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DEBATE DEBATE

Paulo Capel Narvai; José Leopoldo Ferreira Antunes; Samuel Jorge Moysés; Paulo Frazão; Marco Aurélio Peres; Karen Glazer Peres; Maria da Luz Rosário de Sousa; Angelo Giuseppe Roncalli

Foi acertada nossa decisão de questionar as conclusões do artigo de Queiroz et al. 1, especialmente o seu modo categórico, típico de quem faz julgamentos peremptórios, ao recusar valor e validade em estudos desenvolvidos a partir da base de dados gerada pela pesquisa SB Brasil 2003. É isso o que se depreende das leituras feitas pelos debatedores: foi adequado indagar por que uma experiência complexa, rica, estimulante, desafiadora, que mobilizou alguns milhares de profissionais de saúde do SUS em todo o país, pôde ser desqualificada até o ponto em que os autores chegaram? E, sobretudo, porque desqualificavam com base em um saber disciplinar (o da Estatística) que avocava e arvorava-se em juiz, senhor e soberano do certo e do errado, do representativo e não-representativo, do válido e inválido, do pode e não pode. Essa pretensão de monopólio de veracidade, que rejeitamos, mobilizou-nos imediatamente à reflexão sobre aquele artigo. Não foi preciso muito esforço para compreendermos os limites daquela abordagem.

Aferrados à sua visão dogmática e disciplinar, que chegou, em uma passagem, ao extremo da recusa dialógica ("não merece resposta"), ainda quando questionados no âmbito de sua disciplina, Portela & Vasconcellos recusam-se a aceitar que nosso problema comum é um fenômeno que comporta, e requer respeitar, várias racionalidades. Não admitem, porém, essa possibilidade e se fecham, reiterando cânones que brandem como dogmas da fé, em nome da doutrina, sobre as "imperfeições" de uma disciplina aplicada, a epidemiologia. Nada dizem sobre o significado e as conseqüências dos conhecimentos e das práticas produzidas em saúde bucal com base naquela pesquisa. Abertos a outras razões, propusemos justamente o oposto: valorizar outros olhares sobre o SB Brasil 2003.

Castiel compartilha a objeção de que parte de nossa produção científica, originada do SB Brasil 2003, foi "subordinada" aos paradigmas usuais da estatística e que também nós operamos no interior deste marco epistemológico. Entretanto, não o consideramos "o melhor" modelo para "representar" o mundo, nem o vemos como único critério para aceitar a validade de um conhecimento. Não descartamos o uso dessa abordagem e, sobretudo, admitimos outras possibilidades de conhecer, interpretar e transformar o mundo. E as valorizamos. É isso o que diferencia a abordagem que fizemos do objeto do modo como o fizeram Queiroz et al. 1. Nós reconhecemos que, na clausura da sua abordagem, a objeção central relativa à deficiência de execução do plano amostral é pertinente. Mas não rejeitamos outras possibilidades de olhar para o mesmo objeto. E não há, ao fazê-lo, qualquer impedimento ético. Seria como se, por sermos autores desses produtos, estivéssemos interditados à reflexão que oferecemos à apreciação do leitor. Analogamente, poder-se-ia dizer que, por não terem participado de nada do SB Brasil 2003, Portela & Vasconcellos não têm o direito de analisá-lo. Têm todo o direito e, ao contrário do que insinuam, fazê-lo não os isenta de interesses. Essa pretensão, pois se trata apenas de pretensão, diz tudo sobre o referencial a partir de onde Portela & Vasconcellos discutem nosso artigo. E não se trata de, ao reclamar outro olhar, buscar legitimidade científica para os artigos que publicamos os quais, como cogita Castiel, estariam fragilizados. Argumentar que nosso questionamento tem essa motivação seria reduzir demais o propósito da nossa crítica. Não é disso que se trata, pois citamos as publicações justamente para enfatizar o leque de possibilidades válidas para a exploração da referida base de dados, ainda que essa produção, como as obras artísticas que referimos, possam conter imprecisões e, às vezes, gerar não mais que uma imagem impressionista dos fenômenos a que se referem. Advogamos que isso pode bastar. Apenas isso. Simples assim.

Moreira e Freire, por sua vez, apontam uma perspectiva para leitura do nosso texto, que consideramos em sintonia com nosso propósito. Mas há que reconhecer que essa perspectiva é mesmo inconciliável com a visão que tem na estatística o solo exclusivo do qual não tira os pés. Sobre essas diferentes perspectivas, aliás, cabe ao leitor julgar e, se for o caso, tomar partido. Parece-nos necessário, a esse respeito, ponderar que, embora se trate de temática complexa, o problema central que nos toca é relativamente simples, e polarizado: de um lado, não se admite nenhum valor nos conhecimentos produzidos a partir do SB Brasil 2003, "sem a correção da amostra"; de outro, há reconhecimento de que há problemas com a execução do plano amostral (há neste inquérito populacional como há em qualquer outro), mas se admite a possibilidade de que, para certos propósitos, isto, que é importante, pode não ser relevante. Ora, cabe a quem considera de outro modo demonstrar essa relevância, algo que, até o momento, não foi feito.

A propósito, a objeção da existência de registros duplicados e "outros problemas" derivados da operação realizada é exagerada, desproporcional. Quem quer que tenha vivido a experiência de executar qualquer plano amostral, sem exceção, de inquéritos populacionais, ou convivido com algum sistema de registro deste tipo de dado, sabe que isso ocorre sempre, em maior ou menor grau, em qualquer circunstância de execução. Não aceitamos que, por imperfeitas certas técnicas, por inexatas certas execuções, então nenhum conhecimento poderia ser construído a partir daquele banco de dados. Pensar assim é propugnar um purismo teórico, de tipo fundamentalista, que deve ser rejeitado. Segundo essa racionalidade, até mesmo as PNAD não seriam válidas, pois seus delineamentos, ao não incluírem as regiões rurais do Norte, inviabilizam produzir estimativas para todo o país. Nessa linha de raciocínio, o VIGITEL 2 (inquérito populacional baseado em telefones), uma experiência promissora, com enorme potencial para as práticas de vigilância em saúde, estaria desde logo interditado por "impuro" do ponto de vista canônico estatístico, tendo em vista a baixíssima cobertura de linhas telefônicas fixas em algumas regiões do país.

A pretensão de desqualificar um banco de dados com mais de 100 mil registros, porque algumas dezenas destes registros foram inadvertidamente duplicados, ou porque se observam "outros problemas" (aliás, não identificados; que problemas seriam?), é algo extraordinário. Qual o propósito dessa objeção? Sobretudo quando se leva em conta que o inquérito objeto de restrições e críticas duríssimas não é um experimento de laboratório, nem envolve apenas algumas dezenas ou centenas de sujeitos de pesquisa, mas centenas de pesquisadores, dezenas de milhares de sujeitos de pesquisa, em todo o território brasileiro. Quem conhece o campo de um inquérito populacional, quem sabe dos problemas que cercam registros decorrentes dessas atividades, não pode reconhecer valor nem pode acolher crítica dessa ordem. É própria de quem analisa produtos de inquéritos sem conhecer as agruras para produzi-los, nem as dificuldades de executar projetos, aproximando-os das realidades a que se referem, de quem coteja amostras produzidas em computadores com amostras reais.

Barata e Czeresnia, por sua vez, compreenderam bem, e valorizaram, o fato de o SB Brasil 2003 ter sido planejado e desenvolvido no âmbito dos serviços de saúde, numa perspectiva de desenvolvimento de práticas de vigilância da saúde. Viram nisso, como nós, muitas virtudes e potencialidades, não apenas deficiências de execução do que fora planejado. Os acontecimentos posteriores ao SB Brasil 2003, que redundaram em opções de operacionalização da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal 2010 outra vez com base nos serviços de saúde, e não de "imaculados" institutos de pesquisa desvinculados do cotidiano do SUS, constituem indício suficientemente forte de que, não obstante eventuais impurezas de que padeça, o SB Brasil 2003 contribuiu de modo válido para ampliar e aprofundar nossos conhecimentos sobre a situação de saúde bucal da população brasileira e orientar importantes decisões da política nacional de saúde bucal, como as relacionadas com a fluoretação das águas, o enfrentamento das desigualdades em saúde bucal e a ampliação do acesso aos serviços públicos odontológicos.

  • 1. Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade de correção. Cad Saúde Pública 2009; 25:47-58.
  • 2. Bernal R, Silva NN. Cobertura de linhas telefônicas residenciais e vícios potenciais em estudos epidemiológicos. Rev Saúde Pública 2009; 43:421-6.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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