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UM RIO ENTRE LÍNGUAS NA TRADUÇÃO COMENTADA DO PRIMEIRO CAPÍTULO DE VOYAGE AU MAYCURÚ, DE OCTAVIE COUDREAU

A RIVER BETWEEN LANGUAGES IN THE ANNOTATED TRANSLATION OF THE FIRST CHAPTER OF VOYAGE AU MAYCURÚ, BY OCTAVIE COUDREAU

Resumo

No presente trabalho, tem-se como objetivo central discorrer sobre a tradução do primeiro capítulo da obra Voyage au Maycurú (1903), de Octavie Coudreau, para o português do Brasil. Nesse sentido, busca-se apontar os desafios inerentes à tradução de um texto publicado há mais de um século, do gênero relato de viagem, escrito por uma exploradora francesa sobre a região amazônica brasileira.

Palavras-chave
Octavie Coudreau; Relato de viagem; Tradução comentada

Abstract

The main objective of this work is to discuss the translation of the first chapter of the book Voyage au Maycurú (1903), by Octavie Coudreau, into Brazilian Portuguese. In this sense, we seek to point out the challenges inherent in the translation of a text published over a century ago, in travel literature genre, written by a French explorer about the Brazilian Amazon region.

Keywords
Octavie Coudreau; Travel literature; Commented translation

Introdução

Neste artigo, apresentamos reflexões teóricas decorrentes da prática tradutória do primeiro capítulo do livro Voyage au Maycurú (1903), de Octavie Coudreau, para o português do Brasil, além de informações sobre a autora, sua obra e o gênero relato de viagem1 1 É possível encontrar a tradução de vários relatos de viagens sobre a Amazônia, bem como comentários a essas traduções nas edições anteriores da Cadernos de Tradução: Traduzindo a Amazônia I (Guerini, Torres & Fernandes, 2021) e Traduzindo a Amazônia II (Guerini, Torres & Fernandes, 2022). . Com isso, o trabalho se estabelece como um paratexto relevante para o melhor entendimento da obra em questão, uma vez que elucida sobre fatos que compõem o texto tanto no âmbito linguístico quanto cultural. Com efeito, Genette afirma que o texto literário “raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo” (2009, p. 9). Além disso, constitui função do paratexto, segundo o autor, “garantir sua presença no mundo, sua ‘recepção’ e seu consumo” (p. 9), e são essas funções que este artigo pretende cumprir ao acompanhar a tradução em formato bilíngue do primeiro capítulo do livro Voyage au Maycurú, quarto livro da exploradora Octavie Coudreau.

O livro foi publicado em 1903, em Paris, pela editora A. Lahure e nele há um interessante e raro relato de viagem sobre uma expedição ao Maicuru, um dos rios que atualmente compõem a Reserva Biológica de Maicuru, localizada no estado do Pará. Octavie, exploradora francesa, escreveu algumas obras sobre suas viagens pelos rios da região norte brasileira (Santos & Marini, 2022Santos, Sheila Maria dos & Marini; Clarissa. “O olhar de uma francesa exploradora na amazônia na virada do século XX: tradução comentada de Voyage au Rio Curua, de Octavie Coudreau”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 426-442, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90695.
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), assim como seu esposo, o também explorador Henri Anatole Coudreau. A autora inicia suas expedições acompanhando o marido pelo interior do estado do Pará, mas, mesmo após o falecimento dele, continuou realizando-as nos estados do Pará e do Amazonas. Nesse livro, Octavie nos apresenta um relato em que traz as descrições de sua expedição de 09 de junho de 1902 a 12 de janeiro de 1903. O livro é dividido em seis capítulos e apresenta uma narrativa que descreve desde sua partida e a composição de sua equipe de expedição até seu retorno antes de conseguir chegar ao olho d’água do rio.

O pioneirismo de Octavie Coudreau

É inegável a relevância histórica e social que a autora de Voyage au Maycurú (1903) possui entre os exploradores europeus, visto ter sido O. Coudreau uma das poucas representantes do gênero feminino em uma área essencialmente masculina e em uma época em que a mulher não dispunha de liberdade e incentivo para se desenvolver profissionalmente, sendo-lhes reservados o espaço privado do lar e funções relativas à maternidade e ao matrimônio, forçando-as, assim, a depender dos proventos de seus cônjuges. No entanto, em meio a este cenário patriarcal desfavorável, destacava-se a figura de Octavie Coudreau como líder de expedições exploratórias no norte do Brasil, comandando dezenas de homens em meio à floresta amazônica.

Nascida em Anais, na França, em 1867, Marie Octavie Renard deu seus primeiros passos exploratórios em terras amazônicas ao lado de seu marido, o também explorador, cartógrafo e geólogo Henri Coudreau, no final do século XIX. Embora tenha iniciado como acompanhante, segunda em comando, após o falecimento de Henri Coudreau, Octavie assumiu a frente das missões exploratórias no interior do Pará, tendo realizado diversas expedições pelos rios e florestas da Amazônia, que somaram anos de experiência e lhe renderam a publicação de quatro livros autorais sobre a região amazônica. Mas o pioneirismo de seus feitos vai além do lugar inusitadamente ocupado na liderança dessas expedições, pois, conforme defende Souza Filho, Octavie Coudreau “seguramente foi a primeira mulher a fotografar a Amazônia e suas gentes” (Souza Filho, 2012Souza Filho, Durval de. “Ciência e Arte nas fotografias de viajantes na Amazônia no século XIX”. In: Malcher, Maria Ataide; Marques, Jane Aparecida & De Paula, Leandro Raphael (Org.). História, comunicação, biodiversidade na Amazônia. São Paulo: Acquerello, 2012., p. 12).

A esse respeito, cabe ainda a colocação do pesquisador José Guilherme Fernandes, ao relatar que, embora houvesse algumas obras que discorressem sobre o papel da mulher nos relatos e na história local, “Faltava, no entanto, que a voz efetivamente fosse feminina, para se alcançar o ponto de vista da mulher nos relatos dessas paragens amazônicas. Eis que com Octavie Coudreau (1867-1938) aflora a escritura feminina inédita nos relatos acerca da região” (Fernandes, 2023Fernandes, José Guilherme dos Santos. “Prefácio”. In: Coudreau, Octavie. Viagem ao Cuminá. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres. Belém: Editora Dalcídio Jurandir, 2023., p. 10), segundo o autor, “Uma autêntica mnemon amazônida dos relatos telúricos à francesa” (Fernandes, 2023Fernandes, José Guilherme dos Santos. “Prefácio”. In: Coudreau, Octavie. Viagem ao Cuminá. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres. Belém: Editora Dalcídio Jurandir, 2023., p. 16).

Além de sua escrita inovadora, os registros fotográficos na obra de Coudreau também têm importância singular para a história do Maicuru, o que ficou evidente pelo reencontro de um monólito cuja fotografia foi publicada em seu livro e que só foi encontrado mais de um século depois (Barreiros, 2021Barreiros, Isabela. “Depois de um século, monólito é reencontrado em Parque Arqueológico do Pará devido à foto em rede social”. São Paulo, 2021. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/depois-de-um-seculo-monolito-e-reencontrado-em-parque-arqueologico-do-para-devido-foto-em-rede-social.phtml. Acesso em 23 mar. 2023.
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).

Em Voyage au Maycurú, já no primeiro capítulo, O. Coudreau descreve, com detalhamento, sua partida, a composição de sua equipe e suas impressões sobre a Amazônia:

o majestoso Bosque Grande e a misteriosa Mata Virgem, os belos rios de águas traiçoeiras e as trovejantes cachoeiras, o ar sufocante e a brisa perfumada, o sol abrasador e o doce frescor das noites, a grande voz do vento na floresta e da chuva torrencial2 2 « le Grand Bois majestueux et la Forêt Vierge mystérieuse, les belles rivières aux eaux traitresses et les cachoeiras au fracas de tonnerre, l’air étouffant et la brise parfumée, le soleil brûlant et la douce fraîcheur des nuits, la grande voix du vent dans la forêt et la pluie torrentielle » (Coudreau, 1903, p. 1).

(Coudreau, 1903, p. 1, tradução nossa).

É nos entremeios das águas traiçoeiras desta terra de sol escaldante, que Coudreau percorre as margens, as correntezas, a fauna e a flora no fluxo do rio Maicuru. É neste capítulo que ela relata o estabelecimento de um grupo de pessoas que compõe sua campanha exploratória, homens da terra que são os marinheiros e condutores das embarcações, e também os grandes conhecedores do rio e de seus perigos. A partir de seus relatos, podemos perceber que o lugar de produção de discursos parte do olhar de uma europeia sobre um rio inospitaleiro e sobre as pessoas que convivem com ele e, em muitas de suas descrições, ela não deixa de construir uma narrativa sobre negros, indígenas, caboclos. Ainda que seu texto traga qualidades poéticas nas passagens descritivas, as palavras de Coudreau performam, em muitos momentos, uma opressão racista, reforçando uma desigualdade entre as raças. Assim como em seu livro Voyage au Rio Curuá (1901), em Voyage au Maycurú não passam despercebidos momentos em que ela é “racista e violenta em relação aos negros” e que “acreditava na inferioridade racial destes” (Santos & Marini, 2022Santos, Sheila Maria dos & Marini; Clarissa. “O olhar de uma francesa exploradora na amazônia na virada do século XX: tradução comentada de Voyage au Rio Curua, de Octavie Coudreau”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 426-442, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90695.
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, p. 430). O racismo explícito é uma das características de seus relatos como já haviam chamado atenção Santos & Marini (2022, p. 437)Santos, Sheila Maria dos & Marini; Clarissa. “O olhar de uma francesa exploradora na amazônia na virada do século XX: tradução comentada de Voyage au Rio Curua, de Octavie Coudreau”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 426-442, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90695.
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.

Mesmo na descrição de uma viagem cujo objetivo é relatar descobertas da fauna e da flora de uma Amazônia de imensas possibilidades, encontramos passagens em que a narrativa palavreia com maestria o olhar europeu sobre os povos autóctones e afrodescendentes, e este olhar reforça as famosas e terríveis teses racistas do século XIX, principalmente quando vemos continuamente no texto comentários como “Além disso, esses caboclos me parecem um pouco preguiçosos, muito descuidados e bastante imprudentes; a ideia do futuro não os atormenta3 3 « aussi bien ces caboclos me paraîssent un peu paresseux, très insouciants et tout a fait imprévoyants; l’idée de l’avenir ne les tourmente point » (Coudreau, 1903, p. 20). ” (Coudreau, 1903, p. 20, tradução nossa). Essa forma de qualificar os povos originários e os povos de África como “preguiçosos”, “descuidados” é discurso que vem de longe, que dialoga com uma violenta tradição europeia de exotização e de desumanização do outro. Vale ressaltar que Coudreau publica seu livro cinquenta e cinco anos após a abolição da escravatura na França e no Brasil a abolição mal tinha chegado aos quinze anos, já que fomos o último país do Ocidente a fazê-lo. Além disso, essa exotização racializada no texto dialoga com práticas que ainda eram comuns no continente europeu, em espaços em que seres humanos eram aprisionados em jaulas, nos terríveis zoológicos humanos, violentos lugares de desumanização que perduraram até os anos 50.

Dividido em seis capítulos, o livro traz o percurso pelo Maicuru relatado por Coudreau, uma viagem de encontros entre uma francesa e o esplendor da floresta amazônica. No desejo de conhecer a foz do rio, Coudreau e sua equipe ora atravessam águas tranquilas e calmas, o que gera na exploradora certo desgosto pelo “rio monótono e chato” que “serpenteia de forma insólita” (Coudreau, 1902, p. 27), ora atravessam, em êxtase, as águas turbulentas e perigosas, com inúmeras cachoeiras cuja água “vive, ruge, se enfurece” (Coudreau, 1902, p. 27).

Além de construir os contornos desse rio de incontáveis histórias, seu relato não deixa de enfatizar a exuberância e a ameaça da fauna local. É no caminho das águas e nos espaços de acampamento às suas margens, que encontramos os relatos sobre os mosquitos, “bichos que nos picam sem pena nem descanso” (Coudreau, 1902, p. 12), sobre as variadas serpentes da região, como a terrível cobra coral que pica Gualdino (Coudreau, 1902, p. 21), ou como no relato do encontro com a folclórica Sucuriju, ou Sucuri, que, segundo a narradora, apesar de não ser venenosa, é capaz de “se lançar contra nós e triturar nossos ossos em seu abraço” (Coudreau, 1902, p. 93). Apesar de evidente admiração a todos esses magníficos representantes da fauna local, Coudreau afirma que “há vizinhos que prefiro evitar” (Coudreau, 1902, p. 93), pois conhece os riscos para ela e sua equipe.

Comentários de tradução

Sabemos, hoje, que traduzir não é um ato puramente linguístico, realizável tão somente com o auxílio de dicionários, por um falante bilíngue, como um dia se pretendeu. Toda obra é carregada de informações culturais que a moldam e refletem determinado tempo e espaço. O mesmo vale para as traduções dessas obras, que passam a ser obras heterogêneas, com desdobramentos identitários decorrentes da realidade do(a) tradutor(a) que vêm somar-se às questões previamente existentes no texto-fonte. Cada nova tradução opera transformações profundas no texto-fonte, que passa, então, a conter em suas entrelinhas uma nova existência, um novo modo de ver o mundo, novas interpretações, outros focos de luz e sombra.

E, no nosso caso, cabe ressaltar que a tradução do primeiro capítulo de Voyage au Maycurú foi realizada a quatro mãos, o que contribuiu para um melhor entendimento do texto-fonte, uma vez que havia mais de um olhar sobre as mesmas questões atuando concomitantemente sobre o texto, auxiliando quando necessário. Com isso, destacamos a pluralidade das vozes desse novo texto, em que se lê a autora, tradutora e tradutor.

Corroborando com a definição de Philippe Lejeune sobre as notas de rodapé, por este denominadas “franjas do texto”, Genette afirma que “essa franja, sempre carregando um comentário autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona não apenas de transição, mas também de transação: lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente” (Genette, 2009Genette, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009., p. 10).

Embora essa seja de fato a função de grande parte dos paratextos, tal definição não se coloca de maneira universal a todas as notas de rodapé, como, por exemplo, no caso que nos toca, a saber, leitores brasileiros de uma tradução de texto originalmente redigido em francês, sobre o Brasil por uma exploradora francesa. Isso porque nós brasileiros já dispomos de informações linguístico-culturais básicas que nos dispensam da leitura de determinadas notas, prescindíveis aos leitores que possuem o português do Brasil como língua materna, como é o caso das notas utilizadas para explicar termos por ela usados em português no texto-fonte, como quando redige notas de rodapé para explicar aos leitores franceses o significado das palavras “vargem”, “fazenda”, “sertão”, ou ainda “ponto”. Em tais casos, optamos por grafar as palavras em itálico, indicando, com isso, a presença de uma palavra estrangeira no texto-fonte, e suprimir a nota de rodapé, uma vez que não seriam úteis ao leitor, ou seja, não cumpririam sua função instrutiva de origem.

É curioso notar que ao mesmo tempo em que Coudreau utiliza notas de rodapé para explicar termos básicos do léxico de língua portuguesa, como os precitados, a autora deixa passar sem informações paratextuais a alusão à Cabanagem, episódio histórico relevante da Amazônia, como podemos ver no seguinte trecho:

Às dez horas avistamos o Ponto, fazenda de Manoel de Sá Pacheco. Este nome de Ponto vem, ao que parece, do tempo da Cabanagem. Os cabanos se reuniam neste local para se consultar e combinar novas expedições mortíferas e frutuosas. Era também o local dos sacrifícios. Suas vítimas, uma vez lá, não podiam mais escapar. Um pouco acima da casa de Manoel de Sá, foi-me mostrado o resto do tronco de um grande taperebá. Este taperebá foi, segundo me disseram, a forca dos cabanos

Coudreau, 1903, p. 16, grifos nossos).

Neste trecho, a autora redige duas notas de rodapé para explicar os termos “fazenda” e “ponto”, deixados em português no texto-fonte. Como dito anteriormente, por se tratar de palavras básicas de língua portuguesa, tais notas não teriam valor instrutivo ao leitor da tradução, de modo que foram suprimidas. Em contrapartida, optamos por acrescentar duas notas dos tradutores nos termos “Cabanagem” e “cabanos”, seguindo o mesmo princípio informativo da autora, porém, em termos que pudessem, eventualmente, ser desconhecidos do(a) leitor(a). Para fazê-lo, pautamo-nos no trabalho de RodriguesRodrigues, Denise Simões. Revolução cabana e construção da identidade amazônida. Pará: EDUEPA, 2019., intitulado Revolução Cabana e Construção da Identidade Amazônida (2019), bem como na dissertação de Leandro Mahalem de Lima, “Rios Vermelhos: perspectivas e posições de sujeito em torno da noção de cabano na Amazônia em meados de 1835” (2008).

Além disso, no caso de retroconversão dos antropônimos e topônimos, pautando-nos nas discussões de Torres (2021, p. 179)Torres, Marie Helene Catherine. “Tradução e ética: a problemática da retroconversão”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), p. 174-184, 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84952
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, decidimos reescrever os nomes brasileiros que aparecem no texto afrancesados, ou transcritos como a autora os entendia, como, por exemplo, Maycurú, que reescrevemos em sua grafia brasileira correta “Maicuru”, ou ainda Buyussu, na tradução reescrito como “Buiuçu”, povoado do município de Itaituba, no Pará, além de referir-se a um igarapé afluente do rio Tapajós, também no estado do Pará. O mesmo ocorre com alguns nomes de árvores amazônicas, como a que aparece no texto-fonte como “tapériba”, popularmente conhecida no Nordeste brasileiro como “cajá”, o fruto também leva o nome de “taperebá”, opção adotada na nossa tradução. Ainda com relação à flora local descrita nos relatos de Coudreau, encontramos também “taquara-assú”, ou em algumas passagens “taquarassu”, que na nossa tradução aparece como “taquaruçu”, palavra que nomeia uma planta da família dos bambus que possui variados nomes em português: “chibata”, “bengala-de-folha-miúda”, “caratuva”. Apesar de nossa intenção em reescrever os topônimos afrancesados por Coudreau, tal postura nem sempre foi possível, devido à ausência de correspondente sonoramente identificável em português, como ocorreu os termos “Cé-in” e “Pajacy”, de modo que foram mantidos com a mesma grafia do texto-fonte e destacados com um asterisco.

Com isso, buscamos manter uma certa ética da tradução, tal como a entendia Antoine Berman (2013), na busca pela manutenção, quando possível, das marcas expressivas do texto-fonte, como é o caso das palavras que aparecem em português no texto-fonte. As correções de mesma ordem podem ser identificadas no nome da canoa Bemtevi, na tradução “Bem-te-vi”, ou ainda “frado” em francês, que na tradução passa a ser grafado como “frade”, atendendo à ortografia da língua portuguesa, uma vez que não se tratava de uma alteração de ordem poética por parte da autora, mas sim de transcrições a partir de termos que lhe eram oralmente transmitidos.

Ainda no que diz respeito à retroconversão de topônimos, foram feitas alterações nos termos “Cunui”, indicado no texto-fonte como um lago do Pará, no entanto, a partir de pesquisas geográficas, em mapas da região, não identificamos a existência de um lago com esse nome, mas sim “Curuai”, no Pará, de modo que optamos por grafá-lo corretamente, permitindo, assim, acesso ao nome real da região à qual a autora se refere; bem como no rio “Curupitombo”, encontrado em português sob a grafia “Curupitomba”, opção escolhida para a tradução; ou ainda o “igarapé Icuhy”, no texto-fonte, que traduzimos como “Icuí”, localizado na região de Ananindeua, hoje conhecido como Icuí-Guajará.

Outros exemplos de topônimos encontrados na tradução do primeiro capítulo e que também merecem destaque são as palavras terminadas com “y” no texto-fonte. O uso dessa letra pode nos guiar por duas acepções: ou ele demarca uma transcrição proposta pela autora ou demarca o uso de palavras conforme a grafia das palavras tupi-guarani à época, se tomarmos como referência, por exemplo, o Diccionario da língua tupy: chamada língua geral dos indígenas do Brazil, de Gonçalves Dias, publicado em 1858. Claro que há alguns lapsos com relação à grafia das palavras, principalmente quando a escrita do mesmo termo varia na obra, como podemos ver na palavra que descreve a vegetação que acompanha as margens do rio que ora aparece “taquara-assú”, ora “taquarassu”. Entretanto, devemos pensar que as palavras acionadas pela explorada, são palavras que evidenciam uma encruzilhada linguística entre as línguas portuguesa, francesa e as indígenas e, por isso, é possível que elas possuíssem no período de escrita do livro variações na escrita.

Por isso, cabe à tradução, assim como a autora que escreve o texto de partida, seguir o rio pelos caminhos das palavras de hoje, guiando-nos pelos mapas atuais na busca de elementos que possam nos indicar, com a maior precisão possível, os lugares descritos por Coudreau, mesmo que a grafia dela seja divergente da usada hoje em dia. Um dos motivadores para essa viagem pela tradução é a inexistência da palavra em nenhum documento. Quando não as encontramos, imaginamos, logo de imediato, que pode ser uma palavra grafada de forma divergente da grafia atual, como, por exemplo, “le village du Piry”. Em uma busca inicial, não identificamos nenhum lugar com o nome “Piry” nos mapas atuais da região. Mas, ao traçarmos as rotas pelos incontáveis caminhos do Maicuru, encontramos o povoado “Pini”, localizado na cidade de Belterra. Dessa forma, em nossa tradução, optamos por manter a palavra “Pini” como tradução para a palavra “Piry”.

De modo semelhante, não encontramos o mencionado “estirão do Mimi” nos mapas atuais, porém, seguindo as rotas do Maicuru, encontramos “Miri”. A autora pode, então, estar se referindo ao rio Miri, próximo a Jacarecapá. Em nossa busca referente a essa palavra, encontramos ainda um município na região paraense que se chama Igarapé-Miri, nas proximidades dos lugares descritos pela exploradora. Portanto, sugerimos a tradução de “Mimi” por Miri e seguimos essa mesma lógica da retroconversão para outros topônimos: “cujubim” no texto-fonte, que se refere, na verdade ao lago “cajobim”; “Caussu”, que se refere à localidade “Cauçu”, “Maripa”, que na realidade é “Maripuá”.

Considerações finais

Neste trabalho buscamos apresentar algumas reflexões sobre a tradução do primeiro capítulo do livro Voyage au Maycurú, de Octavie Coudreau, exploradora francesa que, no início do século XX, foi responsável pela publicação de obras cujas descrições e relatos são documentos de valor histórico para a composição de um mapa das águas do Norte brasileiro. Em um primeiro momento, apresentamos uma pequena biografia dessa exploradora-escritora e enfatizamos, em diálogo com pesquisas anteriores (Souza Filho, 2012Souza Filho, Durval de. “Ciência e Arte nas fotografias de viajantes na Amazônia no século XIX”. In: Malcher, Maria Ataide; Marques, Jane Aparecida & De Paula, Leandro Raphael (Org.). História, comunicação, biodiversidade na Amazônia. São Paulo: Acquerello, 2012.; Santos & Marini, 2022Santos, Sheila Maria dos & Marini; Clarissa. “O olhar de uma francesa exploradora na amazônia na virada do século XX: tradução comentada de Voyage au Rio Curua, de Octavie Coudreau”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 426-442, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90695.
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; Fernandes, 2023Fernandes, José Guilherme dos Santos. “Prefácio”. In: Coudreau, Octavie. Viagem ao Cuminá. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres. Belém: Editora Dalcídio Jurandir, 2023.), seu pioneirismo nas atividades de exploração, que, segundo a lógica patriarcal, é atividade pretensamente masculina. Seus relatos de viagem trazem a voz de uma mulher que enfrenta corredeiras e que descreve fauna e flora amazônicas no trajeto de um rio que desafia tantas gentes.

Enfatizamos, da mesma forma, a manutenção de seus comentários racistas sobre as pessoas negras, indígenas, na busca de palavras que não amenizassem ou apagassem o efeito real de seu discurso, pois, como afirmamos, é importante primar por uma ética da tradução e evidenciar para leitores e leitoras da tradução a ideologia de Coudreau, com suas imprecisões e com a manifestação explícita do racismo europeu do início do século XX.

Na tradução, elencamos os primeiros caminhos da autora por este rio que compõe mais um dos braços da bacia amazônica e pensamos a tradução como trabalho também de exploração, já que nos cabe durante o processo tradutório percorrer os rios das palavras na busca dos topônimos, antropônimos, descritores da fauna e da flora amazônica para a composição de um texto no atual português do Brasil. Além disso, apresentamos uma reflexão sobre o uso das notas de rodapé que são mantidas na versão em cotejo, mas que desaparecem na tradução por entendermos que algumas das explicações apresentadas no texto-fonte visavam um público leitor de língua francesa, mas que para um público brasileiro elas não seriam necessárias. Por fim, esperamos que a tradução do texto de Coudreau aqui apresentada, bem como este artigo de acompanhamento, possa despertar no(a) leitor(a) maior interesse pelo trabalho de exploradoras e suas contribuições ao gênero relato de viagem.

  • 1
    É possível encontrar a tradução de vários relatos de viagens sobre a Amazônia, bem como comentários a essas traduções nas edições anteriores da Cadernos de Tradução: Traduzindo a Amazônia I (Guerini, Torres & Fernandes, 2021Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
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    ) e Traduzindo a Amazônia II (Guerini, Torres & Fernandes, 2022Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
    https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e...
    ).
  • 2
    « le Grand Bois majestueux et la Forêt Vierge mystérieuse, les belles rivières aux eaux traitresses et les cachoeiras au fracas de tonnerre, l’air étouffant et la brise parfumée, le soleil brûlant et la douce fraîcheur des nuits, la grande voix du vent dans la forêt et la pluie torrentielle » (Coudreau, 1903, p. 1).
  • 3
    « aussi bien ces caboclos me paraîssent un peu paresseux, très insouciants et tout a fait imprévoyants; l’idée de l’avenir ne les tourmente point » (Coudreau, 1903, p. 20).

Referências

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    » https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/depois-de-um-seculo-monolito-e-reencontrado-em-parque-arqueologico-do-para-devido-foto-em-rede-social.phtml
  • Fernandes, José Guilherme dos Santos. “Prefácio”. In: Coudreau, Octavie. Viagem ao Cuminá. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres. Belém: Editora Dalcídio Jurandir, 2023.
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
  • Publicado
    Out 2023
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