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O RIO TRADUÇÃO

THE RIVER TRANSLATION

Resumo

O presente artigo consiste em uma contribuição teórica nos campos dos estudos da tradução, estudos pós coloniais e literaturas africanas. Toma por base o início do romance The River between, do escritor queniano Ngugi Wa T’hiongo, e algumas considerações feitas por estudiosos como Edward Said e Conceição Lima, propondo uma forma de pensar as relações entre línguas nativas africanas e as línguas das metrópoles imperiais nas literaturas africanas que problematize a celebração dos hibridismos diaspóricos. Para tal, recorre aos ensaios Decolonising the Mind, também de autoria de T’hiongo, e “Tradução e Cultura”, de Gayatri Spivak, no sentido de elaborar a imagem do “Rio tradução”, isto é, um lugar de encontros, trânsitos e deslocamentos, mas também de “sobrevida”, ou fortleben, para usar o termo de Walter Benjamim.

Palavras-Chave
Literaturas Africanas; Estudos da Tradução; Estudos Pós-Coloniais

Abstract

The present article consists of a theoretical contribution in the fields of translation studies, post-colonial studies and African literature. It takes as its basis the beginning of the novel The River between, by Kenyan writer Ngugi Wa T’hiongo, and some considerations made by scholars like Edward Said and Conceição Lima, proposing a way of thinking about the relations between native African languages and the languages of imperial metropolises in African literature that problematizes the celebration of diasporic hybrids. To this end, it uses the essays Decolonising the Mind, also authored by T’hiongo, and “Translation and Culture”, by Gayatri Spivak, in the sense of elaborating the image of the “translation Rio”, that is, a place of encounters, transits and displacements, but also “survival”, or fortleben, to use Walter Benjamim’s term.

Keywords
African Literature; Translation Studies; Post-Colonial Studies

Duas cordilheiras estendiam-se, lado a lado. Uma era Kameno e a outra Makuyu. Entre elas, havia um vale; chamava-se vale da vida. Por detrás de Kameno e de Makuyu haviam muitos mais vales e serranias, esparaiando-se sem um plano definido. Como muitos leões adormecidos que nunca acordam, apenas dormiam o grande sono profundo de seu criador.

Um rio corria por entre o vale da vida. [...] O rio chamava-se Honia, que significava ‘cura’ ou ‘trazer de volta à vida’. O rio Honia nunca secava, parecia possuir um forte desejo de viver [...].

Honia era a alma de Kameno e de Makuruyu. Ele juntava-as. E os homens, o gado, as feras e as árvores estavam todos unidos por esta corrente da vida.

Se estivéssemos de pé, no vale, as duas cordilheiras que diante de nós tínhamos deixavam de ser leões adormecidos unidos por sua força comum de vida. Elas tornavam-se adversárias.

(Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana. Prólogo e tradução de Marta Sofía López. Barcelona: Penguin Randon House. Edição Kindle, 2015. apud Lima, 21-22.)1 1 Este trecho do romance The river between, de Ngugi wa Thiong’o foi traduzido por Conceição Lima. No entanto, a obra integral ainda não possui tradução para o português. .

O fragmento acima é o início do romance The river between, do queniano Ngogi wa Thiong’o, e recebeu atenção por parte de, pelo menos, dois autores em obras crítico-teóricas acerca de narrativas pós-coloniais. Entendo “pós-colonial”, na esteira de Ashcroft et. al. (179)Ashcroft, Bill; Griffiths, Gareth; Tiffin, Helen. “El Imperio Contraescribe: Introducción a la teoría y la prática del postcolonialismo”. Tradução de N. Carbonell. La literatura comparada: princípios y métodos, Veja, María José; Carbonell, Neus. (Orgs.). Madrid: Gredos, 1998. p. 178-187., como “toda cultura afetada pelo processo imperial, desde o momento da colonização até nossos dias. [...] Sugerimos também que é o termo mais apropriado para a nova crítica cultural que emergiu nos últimos anos e para o discurso com que ela se constitui”2 2 Traduzido do espanhol: “toda la cultura afectada por el proceso imperial desde el momento da coloniazación hasta nuestros días. [...] Sugerimos también que és el término más apropriado para la nueva crítica cultural que há emergido em los últimos años” .

Os estudiosos a que me referia são Edward Said, no seu Cultura e imperialismo, e Conceição Lima em seu livro A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira.

O primeiro associa o romance a um dos temas da cultura de resistência, qual seja, a viagem-busca do escritor nativo descolonizante ao interior do próprio país, do qual fora banido pela aculturação colonial. O tema da viagem, um topos recorrente na narrativa imperialista, presente em No coração das trevas (ConradConrad, Joseph. Coração das Trevas. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), por exemplo, é, assim, recuperado também nas narrativas pós-coloniais. O autor analisa o tratamento dado a esse tema por Ngugi wa Thiongo em no romance The river between, onde, tal como em No coração das trevas, o rio e a viagem através dele, são o coração da narrativa.

A segunda, por sua vez, lê no excerto do autor queniano uma alegoria da hibridação da linguagem presentes em narrativas pós-coloniais, isto é, de um “terceiro espaço” da junção entre o eu e o outro, entre elementos da diferença cultural: a língua oficial do colonizador e as línguas locais dos povos africanos colonizados.

Além da metáfora do movimento e da hibridação, destaco mais uma que o rio de Thiong’o encerra: a da “pervivência” ou “sobrevida”. O rio chamava-se “trazer de volta à vida”, e possuía “um forte desejo de viver”. As três estão intimamente interligadas, assim como ao conceito de tradução.

A viagem/busca, de que fala Said é, figurativamente ou não, a busca daquele passado obliterado da África pré-colonial, que os escritores pós-imperiais do terceiro mundo trazem dentro de si

como cicatrizes de feridas humilhantes, como uma instigação a práticas diferentes, como visões potencialmente revistas do passado que tendem para um futuro pós-colonial como experiências urgentemente reinterpretáveis e revivíveis, em que o nativo outrora silencioso fala e age em território tomado do colonizador, como parte de um movimento geral de resistência.

(Said, 269Said, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.).

Já a diferença cultural é entendida por Lima (22)Lima, Conceição. A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira. Lisboa: Edições Colibri. 2009. como “um processo de significação, através do qual as expressões relacionadas com a cultura diferenciam, separam e validam a produção de campos de referência”. Assim, os escritores pós-coloniais estabelecem essa forma de significação através da língua, ou melhor dizendo, das línguas em que escrevem suas obras, isto é, as das potências imperiais e as nacionais. As línguas, como expressões culturais, dessa forma, remetem a seus campos de referência, operando, assim, mesclas e subversões da periferia em relação ao centro. Para sintetizar a leitura de Conceição Lima do texto que Thiong’o dentro de seu escopo teórico-analítico, reproduzo abaixo um trecho fulcral, por cuja extensão peço desculpas:

[...] as duas cordilheiras, reproduzem, quanto a mim, a vasta e sólida tradição cultural representada, por um lado, pela língua do colonizador, e, por outro, pela do colonizado. O vale representa o elo comum: a língua imposta pelo colonizador. No entanto, por entre o vale da vida, é sulcada uma corrente produtiva, própria daquelas paragens, a expressão da criatividade e inventividade da linguagem típica de escritores colonizados que procuram afirmar a diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador (a partir da exploração das potencialidades estruturais do português – aqui me permito particularizar o caso de Angola – foi talhado o percurso do desenvolvimento de uma norma angolana). Ao traçar o seu rumo, essa força criativa vai mostrando os caminhos trilhados por uma nova literatura, saindo do espaço do colonialismo, para assumir um compromisso com seu próprio contexto cultural. Hónia expressa o sentido de ‘cura’ ou de ‘trazer de volta a vida’. Esta denominação encerra a ânsia por uma cultura nacional que represente uma queda das estratégias assimilativas que caracterizam os movimentos intelectuais precedentes e a procura da identidade perdida que forma a base coletiva de um passado. A força das águas do rio é aqui comparada à força modeladora da língua, alicerçada na experiência. Partindo do pressuposto de que a língua é o mais importante, o mais abrangente dos modos de significar (existindo, no entanto, vários outros sistemas de significação), são a seguir ilustrados (esses) outros modos de significado: os demais vales e serranias. É, deste modo, feita uma menção subtil a elementos do comportamento cultural como formas de arte, em geral, que podem ser a pintura, a escultura, a música ou a dança. Todos eles são portadores de significado numa determinada cultura (cultura que é, portanto, entendida como um conjunto de sistemas semióticos, um conjunto de sistemas de significado que se relacionam uns com os outros). A menção aos leões representa o poder que cada uma das línguas exercita, na delimitação dos respectivos espaços, na afirmação de cada um dos terrenos discursivos: trata-se, efetivamente, de uma referência a ‘posições de poder radicalmente assimétricas’.

(Lima, 25-26Lima, Conceição. A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira. Lisboa: Edições Colibri. 2009..).

O excerto acima é elucidativo. Para Lima, o Vale da Vida é um espaço de junção, que se dá no campo da língua do colonizador, campo comum de escrita de autores das metrópoles imperiais e dos territórios colonizados. O rio é a força criativa dos autores pós-coloniais, que transformam a língua do colonizador mesclando com as línguas locais, trazendo à tona seus contextos culturais sobre determinados pelo processo colonial.

No entanto, essa reflexão de Conceição Lima pode ser problematizada diante da posição assumida por Thiong’o em sua obra Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana (2015). Nesse texto, publicado originalmente em inglês em 1981, o autor queniano demonstra já não aceitar de forma pacífica o lugar hegemônico assumido pelas línguas das metrópoles coloniais na literatura africana e é intransigente em sua crítica aos escritores africanos que, em vez de buscarem saídas para o labirinto linguístico que o colonialismo lhes legou, passaram a definir-se como lusófonos, anglófonos ou francófonos, mesmo em seus momentos mais radicalmente pró-africanistas.

Assim, ele aponta para eventos contraditórios, como, por exemplo, o Congresso de Escritores Africanos de Expressão Inglesa, de 1962, para o qual fora convidado, pois escreveu quatro romances e vários contos em inglês no início de sua carreira, e aceitou entusiasmado pela possibilidade de conhecer pessoalmente Chinua Achebe. No entanto, em sua reflexão posterior, percebeu que o termo “expressão inglesa” forçosamente excluía do encontro proeminentes escritores que produziam em línguas africanas, como o tanzaniano Chabaan Robert, que escrevia em kiswahili, ou o nigeriano Jefe Fagunwa, que escrevia em iorubá.

Dessa forma, Thiong’o evidencia o caráter excludente de se definir a literatura africana a partir das línguas europeias em que se expressam, criticando a visão dessas línguas como mediação literária e política entre africanos de uma mesma nação ou de outras nações da África ou fora dela, ou mesmo como fator de união diante da multiplicidade de línguas africanas faladas dentro de um país, isto é, como “elo comum” que seria do Vale da Vida para Conceição Lima.

Por outro lado, Thiong’o também comenta a “apropriação” criativa que o escritor africano faz da língua da metrópole, isto é, a necessidade de “enegrecer” ou “africanizar” essa língua, seja com elementos da oralidade e folclore africanos, como provérbios e contos, ou mesmo com elementos do léxico e da sintaxe das línguas africanas. Ele cita um trecho de um artigo publicado na edição de setembro de 1963 da revista Transition, no qual Gabriel Okara fala de seu trabalhoso exercício de tradução de expressões da língua ijaw, e por extensão, sua cultura e imaginário, para o inglês, tomando cuidado para captar a vivacidade das imagens da oralidade africana (Cf. Thiong’o, Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana).

Diante deste trecho, Thiong’o afirma:

por que, poderíamos nos perguntar, se um escritor africano, ou qualquer escritor, desenvolvesse essa obsessão de roubar expressões da língua materna para enriquecer outras línguas? Por que eu deveria entender isso como sua missão prioritária? Nunca nos perguntamos: como podemos enriquecer nossas línguas? Como podemos nos tornar donos da rica herança humanística e democrática das lutas de outros povos em outros tempos e em outros lugares para enriquecer os nossos? Por que não podemos traduzir Balzac, Tolstoi, Sholojov, Brecht, Lu Hsun, Pablo Neruda, H. C. Andersen, Kim Chi Ha, Marx, Lenin, Albert Einstein, Galileu, Ésquilo, Aristóteles e Platão traduzidos para os idiomas africanos? Em outras palavras, por que Okara não deveria suar a tinta para criar em ijaw, que, como ele reconhece, é capaz de expressar uma filosofia profunda e uma enorme variedade de ideias e experiências? Qual era a nossa responsabilidade em relação às lutas dos povos africanos? Não, essas perguntas nunca foram feitas. O que parecia nos preocupar mais era o seguinte: depois de toda a ginástica literária de saquear nossas línguas para adicionar vida e vigor ao inglês e a outras línguas estrangeiras, o resultado seria aceito como bom inglês ou francês? Os donos da língua criticariam nosso uso? Aqui éramos mais assertivos com nossos direitos!

(Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature. Londres: James Currey, 2011., Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana.).3 3 Traduzido do espanhol: ¿Por qué, podríamos preguntarnos, debería um escritor africano, o cualquier escritor, desarrollar tal obsesión por robarle expresiones a su lengua madre para enriquecer otras lenguas? ¿Por qué debería entenderlo como su misión prioritaria? Nunca nos preguntamos: ¿cómo podemos enriquecer nuestras lenguas? ¿Cómo podemos hacernos dueños de la rica herencia humanística y democrática de las luchas de otros pueblos en otros tiempos y en otros lugares para enriquecer la nuestra? ¿Por qué no podemos tener a Balzac, Tolstói, Shólojov, Brecht, Lu Hsun, Pablo Neruda, H. C. Andersen, Kim Chi Ha, Marx, Lenin, Albert Einstein, Galileo, Esquilo, Aristóteles y Platón traducidos a lenguas africanas? En otras palabras, ¿por qué no debería Okara sudar tinta para crear em ijaw, que, como él mismo reconoce, es capaz de expresar una filosofía profunda y una enorme variedad de ideas y de experiencias? ¿Cuál era nuestra responsabilidad con respecto a las luchas de los pueblos africanos? No, estas preguntas nunca se hicieron.

Por mais que possa ser chamado de essencialista, o questionamento de Thiong’o é legítimo. Por que a torrente criativa deveria passar pelo português, francês, inglês, etc? Por que não pelo iorubá, quimbundo, kiswahili, ijaw, entre outras línguas africanas? Porque, em vez de africanizar línguas europeias, não britanizar, hispanizar, aportuguesar, afrancesar as línguas africanas, enriquecendo-as através da tradução de clássicos europeus (essa afirmação remete a Walter Benjamin, mas ainda falarei disso mais adiante)? Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. The River Between. Oxford: Heinemann, 1965 cita ainda excertos de Chinua Achebe e Gabriel Okara em que eles falam em “renovar o inglês” ou dar “novo vigor” para se adequar a seu entorno africano. Ora, e por que não renovar ou dar novo vigor ao igbo e ao ijaw através da criação literária com o mesmo empenho?

Poder-se-ia argumentar que o uso de línguas europeias confere à literatura africana um público mais amplo, inclusive fora da África. Nesse âmbito, entretanto, esclarece que, a literatura africana escrita em línguas europeias de sua geração foi produzida por e para uma “burguesia nacionalista”. Cabia a ela também, neste período, apresentar a África ao mundo, seja sua tradição e cultura ancestrais, seja seus problemas políticos contemporâneos, como a denúncia do colonialismo e a notícia dos movimentos de resistência.

No entanto, após as descolonizações, num acordo neocolonial, outro setor das burguesias africanas tomou o poder, o que ele chama de “comprador”, isto é, aquele que estava aliado ao imperialismo e pretendia perpetuar suas práticas. Neste momento, esta literatura abandonou gradativamente o otimismo utópico do período anterior, e tornou-se cada vez mais cínica, amarga, desiludida e crítica em relação à situação da África pós-independência. Há ainda uma crise com relação ao público alvo dessa literatura, que precisa se voltar para o campesinato e para ao proletariado urbano em busca de uma transformação nacional, porém, ainda que tenha explorado formas mais simples e adotado um tom mais direto de chamada à ação e análise da luta de classe nas sociedades neocoloniais africanas, o uso das línguas europeias agora interpunha-se como barreira para alcançar essas camadas “populares”, atingindo apenas alguns setores da pequena burguesia, como estudantes e professores que mediavam esse contato da literatura com o povo. Thiong’o radicaliza ainda mais seu posicionamento ao afirmar que essa literatura escrita por africanos em línguas europeias só pode ser chamada de “literatura afroeuropeia”.

Os meios de uma literatura “genuinamente africana”, na concepção de Thiong’o, isto é, escrita em línguas africanas, comunicar-se satisfatoriamente com seu público alvo foram experimentados pelo autor queniano na ocasião da publicação, em 1980, de seu romance em língua gikuiu Caitaani Mutharabaini (Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature. Londres: James Currey, 2011., Caitaani Mutharabaini), que fez enorme sucesso de público dentro e fora do Quênia. O autor relata que obstáculos como o analfabetismo e a pobreza foram vencidos por meio de estratégias como leituras coletivas:

foi lido como uma família. As famílias se encontraram à tarde e um dos alfabetizados leu para os outros. Os trabalhadores também se reuniram em grupos, principalmente na hora do almoço, e um deles leu para os outros. Era lida em ônibus, lida em táxis, lida em voz alta em bares ...

(Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana. Prólogo e tradução de Marta Sofía López. Barcelona: Penguin Randon House. Edição Kindle, 2015., Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana.).

Dessa forma, o romance foi acolhido pela milenar tradição oral dos contadores de história, e pôde circular coletivamente pelas camadas populares. Também a distribuição do livro se deu de forma alternativa à tradicional estrutura de livrarias e bibliotecas. Uma das alternativas veio espontaneamente, por meio de leitores entusiastas que compravam lotes de livros e os levavam para serem vendidos em zonas rurais e plantações, e não só vendiam todos, como voltavam para buscar mais sob demandas dos moradores. Caitaani Mutharabaini, foi, portanto, sucesso de público, tendo vendido mais de dez mil cópias apenas no ano de seu lançamento. Não obstante, através do “venerável veículo da tradução”, Thiong’o pôde continuar dialogando com o mundo, visto que a obra foi traduzida para o inglês, o sueco, o norueguês, o alemão e o swahili.

Mas afinal, porque Thiong’o se opõe ao celebrado hibridismo pós-colonial? Na verdade, o que parece incomodá-lo é a ruptura brusca ocorrida no ambiente cultural queniano, e, por extensão, africano, quando a língua utilizada na comunicação cotidiana, nas contações de histórias, no trabalho, na feira, e na criação das crianças é marginalizada, ou até mesmo proibida (conforme relatos da infância e juventude do autor). Assim, “no Quênia, o inglês passou a ser algo mais que uma língua: era a língua, e todas as demais deveriam render-lhe homenagem.” (Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. Caitaani Mutharabaini. Nairobi: Nairobi Heinemann Educational Books, 1981., Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana).

Em outros termos, o inglês converteu-se na semiótica generalizante, e o gikuiu manteve-se como idioma historicamente particularizado.

Tal afirmação foi elaborada a partir das considerações de Gayatri Spivak tecidas em seu ensaio “Tradução como cultura” (2005). Para melhor elucidá-la, cabe retomar o fio de sua argumentação.

Partindo de algumas ideias da psicanalista Melanie Klein, Spivak apresenta uma concepção de tradução como um vaivém que é como a “vida”, isso porque o aprendizado de uma criança se dá através de um traslado incessante “de um exterior indistinguível de um interior constitui um interior, um ir e vir, de lá para cá, codificando tudo em um sistema de signos através do que já foi apreendido.” (Spivak, 43Spivak, Gayatri. “Tradução como cultura”. Ilha do desterro, nº 48, Jan./Jun. 2005: 41-64..).

Nesse ato, a violência converte-se em consciência, pois “a privação — o mal — choca o sistema-em-formação da criança mais marcadamente do que a satisfação” (Spivak, 43Spivak, Gayatri. “Tradução como cultura”. Ilha do desterro, nº 48, Jan./Jun. 2005: 41-64.), e a “natureza” se converte em “cultura” e vice-versa.

Nesse escopo, surge a diferença entre idioma e semiótica. O primeiro é singular a língua, o segundo é generalizável.

Por exemplo, quando Thiong’o lamenta a forma como o inglês assumiu a hegemonia do ensino formal, da literatura e das formas prestigiosas de comunicação e produção textual, ele parece proceder tal como os aborígenes australianos da região leste de Kimberley, que, segundo Spivak, afirmavam: “perdemos nossa língua”. No entanto a autora esclarece que essa expressão

não significa que as pessoas envolvidas não saibam mais sua língua materna aborígine. Significa, nas palavras de um(a) assistente social, que ‘perderam o contato com sua base cultural’, que não a contabilizam mais, que ela não é mais seu software. Nos termos da metafórica kleiniana, ela não é a condição-e efeito do vaivém dos aborígines entre natureza e cultura.

(Spivak, 47.Spivak, Gayatri. “Tradução como cultura”. Ilha do desterro, nº 48, Jan./Jun. 2005: 41-64.).

Acredito que o software a que se refere Spivak, a língua como metáfora-conceito referente à formação dos sujeitos em suas trocas, suas traduções “de dentro pra fora e vice-versa”, instrumento de vai e vem entre natureza e cultura que seria a medida da formação de sujeitos, vai ao encontro da conceituação de Thiong’o (Thiong’oThiong’o, Ngugi Wa. The River Between. Oxford: Heinemann, 1965, Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana, 479-493.):

os povos desenvolvem uma cultura e história distintas. A cultura encarna esses valores morais, éticos e estéticos, o conjunto de lentes espirituais através das quais um povo vem se ver e seu lugar no universo. Os valores são a base da identidade de um povo, do seu senso de particularidade como membros da raça humana. Tudo isso é transmitido através da linguagem. A linguagem como uma cultura é o banco de memória coletiva da experiência de um povo na história. A cultura é quase indistinguível da linguagem que torna possível a sua gênese, o seu crescimento, a sua acumulação, a sua articulação e, claro, a sua transmissão de uma geração para outra. [...] o segundo aspecto da linguagem como uma cultura é a sua agência como uma imagem-ex na mente de uma criança. Nossa concepção inteira de nós mesmos como indivíduos, individual e coletivamente, é baseada nessas pinturas e imagens, que podem ou não corresponder corretamente com a realidade efetiva das lutas com a natureza e com a educação que os produziu em um Início. Mas a nossa capacidade de enfrentar o mundo de forma criativa depende da medida em que essas imagens correspondem a essa realidade ou não, como eles distorcem ou esclarecem a realidade de nossas lutas. A linguagem como uma cultura, portanto, medeia entre mim e meu próprio eu; entre mim e os outros; entre mim e a natureza. A língua está mediando meu próprio ser.

Por fim, Thiong’o relata os debates que ocorreram no Quênia que culminaram com a produção de um documento que propõe a inserção da cultura africana no centro dos estudos formais de literatura nas escolas de segundo grau quenianas, para, a partir delas, ou, tomando-as como parâmetro, expandir tais estudos para outras línguas, literaturas e culturas, inclusive europeias e norte-americanos, e não proceder o contrário, como era a regra no Departamento de Literatura da Universidade de Nairóbi. Talvez essa seja uma forma que Thiong’o encontrou para intentar recuperar “sua língua”, isto é, relocar as línguas francas africanas no lugar da semiose generalizante no vaivém tradutório da formação de sujeitos.

Os aborígenes de Spivak, por sua vez, tem objetivos mais moderados:

o que os aborígines estão solicitando, depois de terem perdido o controle generalizante sobre a semioticidade de seu sistema, é o acesso hegemônico a blocos de narrativas e descrições de práticas, de forma que a representação de tal instrumentalidade, como um idioma cultural ao invés de semiótico, se torne disponível para a performance do que se chama teatro, ou arte, literatura, cultura, até mesmo teoria. Dada a ruptura entre as muitas línguas da aboriginalidade e as ondas de migração e aventura colonial agrupadas em torno da multilíngue aqui se tornam risíveis. Tudo que temos são bilinguismos, ou seja, arranjos bilaterais entre, por um lado, idiomas compreendidos como sendo essencialmente e historicamente particulares, e, por outro lado, o inglês, compreendido como a própria semiótica. Essa é a violência política da tradução como transcodificação, a indústria contemporânea da tradução sobre a qual muitas(os) de nós escrevemos.

(Spivak, 47Spivak, Gayatri. “Tradução como cultura”. Ilha do desterro, nº 48, Jan./Jun. 2005: 41-64..).

Enquanto Thiong’o defende um retorno da semiose das línguas africanas, os aborígenes, já conformados com a perda de sua semioticidade, apenas solicitam a inserção de elementos de suas culturas e línguas na educação formal, para que possam também produzir formas textuais de prestígio em seu idioma cultural. De qualquer forma, nos dois casos, evidenciam-se os arranjos bilaterais, o embate de forças desiguais, em que uma violentamente sobrepuja a outra, assumindo o lugar da semiótica enquanto relega o lado mais fraco para a especificidade do idioma.

Novamente, a posição de Thiong’o pode ser taxada de essencialista ou nostálgica. De fato, não há como retornar a um momento anterior ao contato com os europeus, quando as tradições xhosa, quimbundo, ibo, iorubá, assumiam plenamente a semiose de formação de sujeitos africanos (quando não havia literatura escrita, livros, escolas e universidades naquele território) e creio que ele está ciente disso. O que propõe, no entanto, é um tour de force no sentido de descolonizar a cultura nesses espaços institucionais.

Contudo, a crítica de Thiong’o sobre essa literatura africana que “recria” a língua do colonizador como forma de resistência encontra eco nas palavras de Spivak (50):

[...] estamos de luto pela perda das culturas aborígines como ficções não-derivadas que são condição e efeito da história do sujeito, meramente porque esse é o crime fundador do mundo em que vivemos. Aqui não se cogita anular nem tampouco reescrever a história. Aquele essencialismo hibridicista de má fé, interessado em descobrir híbridos diaspóricos e em oferecer tal transcodificação do popular como um gesto radical em si mesmo, não pode fechar essa ferida da história.4 4 Essa situação agrava-se no contexto lusófono, em que, em função da metaficção lusotropicalista incrustrada no discurso oficial do colonialismo, há que se tomar muito cuidado com a reinvindicação da ambivalência e do hibridismo, sabendo diferenciar as “hibridações emancipatórias” das “hibridações reacionárias”, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (2003). Certamente não tenho interesse algum em censurar trabalhos. O que estou contestando é o tipo de silenciamento que se impõe quando a transcodificação do entrosamento entre as culturas diaspóricas se torna um gesto radical em si mesmo. O que acho dúbia, em outras palavras, é essa pretensão de uma resistência sem esforço, de cortar o caminho, dando um curto-circuito nos esforços de se traduzir ali onde ‘as línguas se perderam’.

Tal como Spivak, Thiong’o critica nos escritores dessa literatura por ele chamada de “euroafricana” essa pretensão de resistência radical no hibridismo diaspórico. Ele escolhe evidenciar o silenciamento histórico, a violência sofrida pelas “línguas perdidas” africanas, que ele ainda busca, talvez de forma utópica, retomar como ficções não derivadas.

Após esse longo contorno, retorno ao trecho de The river between com o qual iniciei este capítulo, e à analogia proposta por Conceição Lima. Por um lado, poderíamos argumentar que a ideia de descolonização cultural e resistência as estratégias de assimiliacionismo alicerçada na hibridização e recriação sobre a língua do colonizador proposta por Lima recai em tudo aquilo que Thiong’o critica. Seria, assim, paradoxal sustentar uma tese sobre um texto de um autor que a rechaça.

Por outro, é necessário destacar que o Thiong’o de seu primeiro romance, que ainda assinava com o nome “James” e escrevia em inglês, era diferente do de Decolonising the Mind. Portanto, as considerações de Lima são adequadas à produção literária deste primeiro Thiong’o.

Diante dessas perspectivas gostaria de manter o esquema de Conceição Lima, propondo, no entanto, algumas mudanças substanciais. As cordilheiras que se encaram matem-se como representativas das línguas e tradições culturais do colonizador e do colonizado, os arranjos bilaterais, de que fala Spivak, confrontadas com forças assimétricas. No entanto, o elo comum, o Vale da Vida, onde corre o rio Hónia, em vez de ser encarado como a língua do colonizador, poderia ser como o espaço da tradução.

Retomo, assim, o conceito de “pervivência” de que falei no início deste texto. Esse termo foi como Karlheinz Bark traduziu a palavra fortleben, presente no texto “A tarefa do tradutor”. Outros tradutores, Fernando Camacho e Suzana Kampf-Lages, o verteram como “continuação da vida”, e João Barrento como “sobrevida”. Vejamos, portanto, o que ele significa dentro da teoria da tradução de BenjaminBenjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de João Barrento. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 82-99.:

tal como as manifestações de vida se relacionam da forma mais íntima com o vivo sem significarem nada para ele, assim também a tradução nasce do original – de facto, não tanto da sua vida, mas da sua ‘sobrevivência’ (Überleben). Com efeito, a tradução vem depois do original e assinala, nas obras mais significativas, que nunca encontram o seu tradutor de eleição na época do seu nascimento, o estádio da sua sobre-vida (Fortleben). A ideia da vida e da sobre-vida das obras de arte deve ser entendida num sentido totalmente objectivo e não-metafórico. [...] só se fará justiça ao conceito de vida quando ela for reconhecida em tudo aquilo de que existe uma história, e que não seja apenas seu cenário. Pois em última análise o âmbito da vida é determinável a partir da história e não da natureza, e muito menos de uma natureza tão instável como a sensação e a alma. Daí que a tarefa do filósofo seja a de compreender toda a vida natural a partir dessa outra, mais vasta, que é a da história. [...].

As traduções que são mais do que meios de transmissão de conteúdos nascem quando, na sobre-vida de uma obra, esta atinge o seu período áureo. Por isso, elas não servem apenas a obra, como os maus tradutores costumam reclamar para o seu trabalho, mas devem-lhe antes a sua própria existência. Nelas, a vida do original alcança o seu desenvolvimento último, mais amplo e sempre renovado.

(Benjamin, 84-85Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de Karlheinz Barck e outros. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 51-66.)

A obra exige naturalmente a tradução assim como um corpo vivo exige naturalmente suas manifestações vitais. A obra precisa da tradução para que sobreviva, para que viva além de seus contemporâneos, e para haver vida, como nos afirmou o autor, é necessário que haja história e historicidade, é preciso que o original se transforme, e essa exigência é suprida pela(s) tradução(ões). Por meio dela(s), a vida do original, de forma sempre renovada, seu maior desdobramento. Na concepção de Benjamin, tradução e vida estão intimamente ligados, com base nisso, compreendo o “Vale da vida” como o vale da tradução.

Esse lugar, apontado como “elo comum” por Lima, em vez de ser a língua do colonizador, pode ser identificado como a “língua pura”, de Benjamin, isto é, a “harmonia de todos os modos de dizer” (Benjamin, 89Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de Fernando Camacho. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 25-51.), diante da qual a línguas isoladas são fragmentos, o que fica evidente no famoso símile do vaso:

assim como os cacos de um vaso, para poderem ser recompostos, devem seguir-se uns aos outros nos menores detalhes, mas sem se igualar, a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, ir configurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso

(Benjamin, 77Benjamin, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor”. Tradução de Suzana Kampff. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 66-82..).

Essa remissão à “língua maior” é frequentemente apontada como o aspecto messiânico e metafísico da teoria de Benjamin. No entanto, Haroldo de Campos (2011)Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011. busca encontrar, sob esta roupagem rabínica, não uma metafísica, mas uma física, uma pragmática da tradução:

basta considerarmos a língua pura como o lugar semiótico da operação tradutora e a ‘remissão’ (Erlösung) desocultadora da Art der intentio ou des Meinens (modo de ‘tender para’ ou de ‘intencionar’) como o exercício metalinguístico que, aplicado ao texto original, nele desvela o modus operandi da função poética jakobsoniana (aquela que promove a palpabilidade, a materialidade dos signos) qual se fora um ‘intracódigo’ exportável de língua a língua, ‘extraditável’ de uma à outra: uma coreografia de correspondências e divergências, regida não tanto pela complementaridade harmônico-paradisíaca, mas pela ‘lógica do suplemento’ (aquela que envolve a différance no sentido de DerridaDerrida, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.)

(Campos, 26Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011..).

E prossegue:

a hipóstase messiânica da língua pura, como sítio de convergência de todas essas diferenças complementares na presença totalizadora da língua da verdade (que as absorveria e resolveria em sua plenitude ‘sacra’), pode aqui ser substituída pela hipótese heurística de uma ‘forma semiótica universal’, concretizável diferencialmente nas diversas línguas e em cada poema, cujo desvelamento (num sentido operacional, não teológico) seria a primeira instância da ‘transposição criativa’ de Jakobson (do que Benjamin denomina Umdichtung; do que eu entendo por transcriação)

(Campos, 26Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011.).

A “lógica do suplemento” desenvolvida por DerridaDerrida, Jaques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1995. em obras como Gramatologia (2004 [1967]) e A Escritura e a Diferença (1995 [1967]) estabelece que o sentido do signo, da palavra, da escritura, é um suplemento, ou seja, é algo que supre uma falta, a falta de um centro fixo, de um sentido primordial, imanente. Esse sentido suplementar é deslizante, porque exposto ao jogo da diferença e atravessado por elementos contingentes.

Assim, Haroldo de Campos supera uma leitura idealista da teoria de Benjamin, inserindo-a em seu projeto de tradução como transcriação, visto que, para ele, o sentido não é o que deve ser “resgatado” pelo tradutor, e sim a forma de significar. O tradutor deve encontrar em sua própria língua maneiras de transcriar os procedimentos estéticos/poéticos operados pelo original. O sentido se reconstitui a posteriori, como suplemento, não como algo dado por um original a ser resgatado na tradução.

Dessa forma, o lugar da tradução é o espaço dessa “forma semiótica universal”, de que fala Campos, que pode se concretizar de diferentes formas em diferentes línguas. O lugar da tradução é o espaço do trânsito, passagem, viagem, deslocamento, transformação.

A “corrente produtiva” que percorre o Vale da Vida, na acepção de Lima, a criatividade e inventividade de linguagem própria dessa corrente, pode ser identificada como essa atividade transcriadora da tradução, ou, para usar outro termo de Haroldo de Campos, seu caráter luciferino, isto é, a tradução usurpadora, dessacralizadora do original, que borra a origem e transforma “o original na tradução de sua tradução”.

  • 1
    Este trecho do romance The river between, de Ngugi wa Thiong’o foi traduzido por Conceição Lima. No entanto, a obra integral ainda não possui tradução para o português.
  • 2
    Traduzido do espanhol: “toda la cultura afectada por el proceso imperial desde el momento da coloniazación hasta nuestros días. [...] Sugerimos también que és el término más apropriado para la nueva crítica cultural que há emergido em los últimos años”
  • 3
    Traduzido do espanhol: ¿Por qué, podríamos preguntarnos, debería um escritor africano, o cualquier escritor, desarrollar tal obsesión por robarle expresiones a su lengua madre para enriquecer otras lenguas? ¿Por qué debería entenderlo como su misión prioritaria? Nunca nos preguntamos: ¿cómo podemos enriquecer nuestras lenguas? ¿Cómo podemos hacernos dueños de la rica herencia humanística y democrática de las luchas de otros pueblos en otros tiempos y en otros lugares para enriquecer la nuestra? ¿Por qué no podemos tener a Balzac, Tolstói, Shólojov, Brecht, Lu Hsun, Pablo Neruda, H. C. Andersen, Kim Chi Ha, Marx, Lenin, Albert Einstein, Galileo, Esquilo, Aristóteles y Platón traducidos a lenguas africanas? En otras palabras, ¿por qué no debería Okara sudar tinta para crear em ijaw, que, como él mismo reconoce, es capaz de expresar una filosofía profunda y una enorme variedad de ideas y de experiencias? ¿Cuál era nuestra responsabilidad con respecto a las luchas de los pueblos africanos? No, estas preguntas nunca se hicieron.
  • 4
    Essa situação agrava-se no contexto lusófono, em que, em função da metaficção lusotropicalista incrustrada no discurso oficial do colonialismo, há que se tomar muito cuidado com a reinvindicação da ambivalência e do hibridismo, sabendo diferenciar as “hibridações emancipatórias” das “hibridações reacionárias”, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (2003)Santos, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”. Novos Estudos CEBRAP, nº 66, jul. (2003): 23-52..

Referências

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  • Benjamin, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor”. Tradução de Suzana Kampff. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 66-82.
  • Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de Fernando Camacho. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 25-51.
  • Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de Karlheinz Barck e outros. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 51-66.
  • Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Tradução de João Barrento. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português, Castelo Branco, Lúcia (Org.). Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2008. p. 82-99.
  • Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011.
  • Conrad, Joseph. Coração das Trevas Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • Derrida, Jacques. Gramatologia Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
  • Derrida, Jaques. A escritura e a diferença Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1995.
  • Lima, Conceição. A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira Lisboa: Edições Colibri. 2009.
  • Said, Edward W. Cultura e Imperialismo Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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  • Spivak, Gayatri. “Tradução como cultura”. Ilha do desterro, nº 48, Jan./Jun. 2005: 41-64.
  • Thiong’o, Ngugi Wa. Descolonizar la mente: la política linguística de la literatura africana Prólogo e tradução de Marta Sofía López. Barcelona: Penguin Randon House. Edição Kindle, 2015.
  • Thiong’o, Ngugi Wa. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature Londres: James Currey, 2011.
  • Thiong’o, Ngugi Wa. The River Between Oxford: Heinemann, 1965
  • Thiong’o, Ngugi Wa. Caitaani Mutharabaini Nairobi: Nairobi Heinemann Educational Books, 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2020
  • Aceito
    20 Fev 2021
  • Publicado
    Maio 2021
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