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Baldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, 224 p.

Baldwin, James. Se a rua Beale falasse. Dauster, Jorio. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 224 p.

James Baldwin (1924-1987)Baldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006. tem sua obra destacada por trazer discussões de temas que envolvem a luta social e a busca por identidade, que instigam o leitor a conhecer seus livros. Dentre os seus escritos estão as obras Go Tell It on the Mountain (1953), em seguida Giovanni’s room (1956), Tell Me How Long the Train’s Been Gone (1968) e If Beale Street Could Talk (1974), além de diversos outros ensaios e peças de teatro. If Beale Street Could Talk (1974) representa sua voz operante e habilidosa e foi composto de maneira denunciatória, carregada de sofrimento e esperança. A obra traz seu enredo enveredado já a partir de seu título, uma referência ao jazz Beale Street Blues, de W. C. Handy, uma representação do mundo no qual os negros eram coagidos a permanecerem.

O livro aborda a história de dois jovens negros, Tish e Fonny, que em meio a uma vida conturbada pelos fatores característicos de uma realidade construída sob a hierarquia e desprestígio por conta da cor da pele, vão pagar os custos cobrados pela sociedade que privilegia a pele mais clara. Tish, grávida e num misto de sensibilidade e exigência de força, narra sua história de amor em meio à luta por justiça em tirar seu namorado da cadeia, acusado de estupro. A personagem nos guia com detalhes pelos entraves surgidos com o início da relação dos dois. Sua sogra e suas duas cunhadas possuem pele mais clara e acreditam que por isso são melhores, julgando-lhe inferior pela diferença de cor. Há períodos narrativos em que fica visível que o enredo se permite emoldurar como imagens das tardes de sábado do bairro, onde as mulheres se viam triplamente ocupadas em coordenar a lida com as crianças, os maridos de folga em casa e as refeições ainda por fazer. O contraste com essa imagem do bairro Harlem, onde moravam os personagens, vai ser distinguido com o Village, região onde vivem os moradores de pele mais clara e que oferta uma vida boêmia, espaço para onde Fonny e Tish foram morar, ambiente provocador da prisão do jovem. A situação dentro desse espaço alcança limites de humanização e desumanização que Tish, em seu papel investigativo, nos faz trilhar por seu olhar. A imagem de pobreza ultrapassa os limites dos bairros americanos e alcança as favelas da cidade de Porto Rico, cidade para onde a única testemunha foge por medo. Por vezes os personagens não conseguem expressar a imagem das favelas daquele país, numa relação de que as condições de miséria iriam mostrar de que tudo ia mal, além dos dois bairros listados na história. Talvez por isso, James Baldwin tem sua narrativa construída a partir de uma história que envolve o amor e a razão amparados um ao outro, para a escuridão poder ser encarada.

Baldwin se utiliza de proximidade com as expressões e traz seu texto narrado em primeira pessoa. A vantagem dessa intimidade é como as palavras nos chegam, sem rodeios de superficialidades, assim, seu desafio maior é construído sob uma essência duplamente marcada por morte e vida, justiça e injustiça, proporcionado pela narração da personagem Tish, de apenas 19 anos. Essa oposição se faz consonante de que para enfrentar a desumanização ofertada por uma sociedade racista, é necessário a força da juventude de uma mulher, fortalecida pelo fruto alojado em seu ventre, e aliada à presença esclarecida de sua irmã, Ernestine. Tudo isso nos faz repensar de que essa é provavelmente uma história que traz um contexto de conflito já conhecido, perpetuado pelo tratamento cedido às contradições e fragilidade daquela sociedade. O racismo e a injustiça sofridos pelos personagens são uma denúncia à submissão ao sistema e que têm sua consequência também nas relações pessoais. Além desses aspectos, a música e a religião vão ser destacados sutilmente pelo autor como princípios relevantes na composição desse enredo.

Se a rua Beale falasse traz nessa nova edição um posfácio escrito por Márcio Macedo, intitulado A prisão na forma de blues. São destacadas as características baldwianas de escrita; “linguagem própria, a coragem em abordar certos temas polêmicos e a ternura na forma de escrever” (197) com passagens textuais e explicativas para fundamentação e caracterização de seus personagens. Márcio Macedo também se responsabiliza por trazer nas páginas finais um “perfil” do autor James Baldwin. O tradutor Jorio Dauster tem seu nome escrito na folha de rosto da obra e mais uma vez nos créditos. Essa obra completa um total de 33 autores traduzidos por Jorio Dauster para a editora Companhia das Letras, demonstrando uma relação de trabalho já consolidada, embora a menção ao seu trabalho não seja aqui destacada. Diante disso, a ausência de observações de como se deu seu processo tradutório dessa obra ocasiona um vazio aos interessados pelo assunto, aspecto que poderia ser relevante diante de questões sociais abordadas.

A maneira como os personagens são apresentados, bem como as situações e lugares faz-nos perceber através do olhar de Tish, a personagem que também nos narra a história, a forma como tudo é sentido e nos traz uma proporção dramática de sua descrição. A exemplo disso, o exagero dos caminhos desérticos duplamente sofridos por Tish e Fonny são expressos pelo autor dessa forma:

The poor are always crossing the Sahara. And the lawyers and bondsmen and all that crowd circle around the poor, exactly like vultures. Of course, they’re not any richer than the poor, really, that’s why they’ve turned into vultures, scavengers, indecent garbage men, and I’m talking about the black cats, too, who, in so many ways, are worse.

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., If Beale Street Could Talk 5, e grifo nosso)

Que Jorio Dauster traduz para:

Os pobres estão sempre atravessando o Saara. E os advogados e os homens que emprestam dinheiro para pagar a fiança de toda essa gente, eles ficam rondando em volta dos pobres exatamente como abutres. Claro que de fato não são mais ricos que os pobres, é por isso que se transformam em abutres, carniceiros, lixeiros indecentes; e estou falando também dos negros, que muitas vezes são piores.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., Se a rua Beale falasse 16, e grifo nosso)

A leitura do texto transcorre de maneira fluída e impactante seguindo o proposto por Baldwin, enfatizando a questão da subordinação financeira dos pobres por um sistema carcerário corrupto. Dauster faz uso do exagero na descrição dos caminhos desérticos duplamente sofridos por Tish e Fonny expressos no texto fonte em “bondsmen”, escolhendo uma descrição mais explicativa feita por “homens que emprestam dinheiro para pagar fiança” e acrescentando a eles suas características negativas “scavengers – carniceiros”, “indecent garbage men – lixeiros indecentes”. O uso de black cats por Baldwin tem sua fundamentação no Jazz, evocando a fixação do trecho da personagem ou suas sensações. O tradutor explicita a indignação por meio do uso da palavra negros abordando a contrariedade entre ter inimigos dentro do seu próprio grupo.

O propósito de uma resenha de tradução está ligado a discussão de fatores questionáveis sobre como esse processo se deu e a análise das técnicas resultadas no texto traduzido. Desse modo me detenho a um aspecto recorrente na tradução de Jorio Dauster, o uso repetitivo do artigo definido antecedente de um nome próprio, iniciado/identificado a partir da primeira página:

Hoje fui ver o Fonny. Este também não é o nome dele, que foi batizado como Alonzo.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., Se a rua Beale falasse 13)

Today, I went to see Fonny. That’s not his name, either, he was christened Alonzo.

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., If Beale Street Could Talk)

O Fonny tinha um amigo chamado Daniel, um garoto negro e grande, que não gostava da Geneva tanto quanto ela não gostava do Fonny. Nem lembro como começou, mas, no final, o Daniel jogou a Geneva no chão, e os dois rolaram enquanto eu tentava tirar o Daniel de cima dela e o Fonny me puxava. Dei meia-volta e atingi o Fonny com a única coisa que consegui pegar numa lata de lixo. Era só um pedaço de pau, mas tinha um prego na ponta. O prego raspou a bochecha dele, rasgou a pele e o sangue começou a pingar. Eu não podia acreditar no que via, fiquei muito apavorada. O Fonny pôs a mão no rosto, olhou para mim, depois olhou para sua mão, e a única coisa que fiz foi jogar o pau no chão e sair correndo. O Fonny correu atrás de mim e, para piorar as coisas, a Geneva viu o sangue e começou a gritar dizendo que eu havia matado ele, matado ele! O Fonny...

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., Se a rua Beale falasse 20-21)

Fonny had a friend named Daniel, a big, black boy, and Daniel had a thing about Geneva some-thing like the way Geneva had a thing about Fonny. And I don’t remember how it all started, but, finally, Daniel had Geneva down on the ground, the two of them rolling around, and I was trying to pull Daniel off her and Fonny was pulling on me. I turned around and hit him with the only thing I could get my hands on, I grabbed it out of the garbage can. It was only a stick; but it had a nail in it. The nail raked across his cheek and it broke the skin and the blood started dripping. I couldn’t believe my eyes, I was so stared. Fonny put his hand to his face and then looked at me and then looked at his hand and I didn’t have any better sense than to drop the stick and run. Fon-ny ran after me and, to make matters worse, Geneva saw the blood and she started screaming that I’d killed him, I’d killed him! Fonny...

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., If Beale Street Could Talk)

Observemos que essa recorrência pode estar relacionada à função da região a qual o tradutor pertence. Jorio Dauster nasceu no Rio de Janeiro, local adepto do uso do artigo diante de nome de pessoas. Já em regiões como o Nordeste isso não se faz necessário. Considerando a ampla escala que a obra alcança, a revisão deixou de oferecer um pequeno olhar a essa questão. A escolha associada a marcas regionais também se faz presente no trecho onde o autor apresenta a problemática que envolve o julgamento de Fonny e a sua defesa preparada por um advogado, Hayward, que tem em suas mãos pela primeira vez um caso assim. Tish nos descreve a situação do advogado da seguinte forma:

He had never taken a case like Fonny’s before, and it was Ernestine, acting partly out of experience but mainly out of instinct, who had bludgeoned him into it. But, once into it, the odor of shit rose high; and he had no choice but to keep on stirring it. It became obvious at once, for example, that the degree of his concern for his client – or the fact that he had any genuine concern for his client at all – placed him at odds, at loggerheads, with the keepers of the keys and seals. He had not expected this, and at first it bewildered,- then frightened, then angered him. He swiftly understood that he was between the carrot and the stick: he couldn’t avoid the stick but he had to make it clear, finally, that he’d be damned if he’d go for the carrot.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., If Beale Street Could Talk, e grifo nosso)

Dauster reapresenta dessa maneira:

Hayward nunca tinha cuidado de um caso como o do Fonny, e foi Ernestine, agindo em parte com base em sua experiência, mas sobretudo por instinto, que o obrigou a aceitar. Porém, uma vez dentro do caso, ele sentiu um forte cheiro de merda e não teve alternativa senão ir mais fundo. Por exemplo, tornou-se logo óbvio que o grau de preocupação dele para com seu cliente – ou o fato de que tinha algum interesse genuíno por seu cliente – o pôs em conflito com as autoridades. Como não esperava que isso acontecesse, Hayward ficou de início surpreso, mas depois assustado e por fim enraivecido. Ele entendeu de imediato que estava entre a cruz e a caldeirinha: não podia evitar a caldeirinha, mas tampouco admitia a hipótese de correr humildemente para a cruz.

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., Se a rua Beale falasse 128, e grifo nosso)

O uso da expressão entre a cruz e a caldeirinha para between the carrot and the stick faz lembrar da aplicabilidade dessa expressão na região sudeste mais uma vez, embora o fator regional aqui não interfira na validação da expressão. Também denominada por entre a cruz e a espada, esta expressão representa o dilema sofrido por alguém, entre duas coisas difíceis. Nesse propósito, o uso da especificação utilizada pelo tradutor em apresentar esse trecho, chega-nos através de uma maneira próxima ao texto de Baldwin, fazendo-nos entender sua escolha em denunciar a postura enganosa do sistema, numa estratégia proporcional de despertar a mesma ideia.

Vale-nos observar atenciosamente o texto de Baldwin e sua forma de conduzir a obra. Para isso, tomemos dois aspectos importantes: o enredo em volta da prisão com a percepção dada através do olhar de Tish em suas visitas a Fonny, e as características dos corpos na formação desse romance e como elas são percebidas na tradução para o português. No trecho abaixo, Baldwin deixa-nos perceber, através da narração inflamada de Tish em um momento de aflição e angústia, a visão perturbadora de sua realidade. A escolha da palavra “inferno” por Baldwin remete à comparação complicada e fora do controle que existe entre o ambiente interno e externo da prisão.

He followed the guard into the unimaginable inferno, and I stood up, my knees and elbows shaking, to cross the Sahara again.

(Baldwin, If Beale Street Could Talk, e grifo nosso)

Assim, o tradutor Jorio Dauster concebe na tradução para o português:

Ele seguiu o guarda para entrar de novo naquele inferno inimaginável, e eu me pus de pé, os joelhos e os cotovelos tremendo, para atravessar mais uma vez o Saara.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., Se a rua Beale falasse 113, e grifo nosso)

Observamos nessa passagem o proveito de se acentuar a ideia de “altas temperaturas” sofridas nos ambientes que se encontravam os personagens com “inferno” e “Saara”. O tradutor não pode deixar de conceber a ligação em português aos dois termos, sendo uma solução habitual, resultando numa proposta tão latente quanto o original. Dauster utiliza da técnica de transposição de classe, “unimaginable inferno - inferno inimaginável” porque esta se constitui de obrigatoriedade na língua portuguesa.

Na montagem das imagens envoltas no paralelo vivido por Fonny dentro da cadeia e a realidade externa onde Tish se encontra, temos a ardência e a agitação da temperatura que une os dois. Representando uma aproximação entre os personagens (Fonny sofre os horrores como presidiário e não consegue controlar; da mesma forma, do lado de fora Tish enfrenta o sistema esmagatório), o parâmetro seguido na história (a imagem e referência ao Saara é retomada algumas vezes) marca fortemente a ideia de luta solitária num campo vasto de injustiça, entre outras explicações. Vale lembrar a importância das indicações dadas por Baldwin, apontadas não só pelo preenchimento de ideias, mas como representações de desigualdade e injustiça, por exemplo, a favela em Porto Rico, país que em sua história sofreu interferência por parte dos Estados Unidos.

Uma das marcas que merece importância é a compreensão e valorização do amor de Tish e Fonny. A conturbação da prisão, aliada a outros elementos de empecilho, resultam em resistência e fortalecimento deste sentimento. Durante as visitas na prisão, a comunicação além de acontecer através do vidro, faz-se atrelada a ausência de boas notícias. A mensagem se fortalece pela riqueza do olhar, como no trecho a seguir:

A silence falls, and we look at each other. We are looking at each other when the door opens behind Fonny, and the man appears. This is always the most awful moment, when Fonny has to rise and turn, I have to rise and turn. But Fonny is cool. He stands, and raises his fist. He smiles, and stands there for a moment, looking me dead in the eye. Something travels from him, to me, it is love and courage. Yes. Yes. We are going to make it, somehow. Somehow. I stand, and smile, and raise my fist. He turns into the inferno. I walk toward the Sahara.

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., If Beale Street Could Talk, e grifo nosso)

Fez-se silêncio, nos entreolhamos. Continuávamos a nos olhar quando a porta se abriu atrás do Fonny e apareceu um homem. Este é sempre o pior momento, quando o Fonny precisa se levantar e dar meia-volta. Mas o Fonny se controlou. Ficou de pé, ergueu o punho. Sorriu, ficando imóvel alguns segundos, me olhando no fundo dos olhos. Algo viajou dele para mim, uma mensagem de amor e coragem. Sim, sim. Vamos conseguir. De algum jeito vamos conseguir. De um jeito ou de outro. De pé, sorri e ergui meu punho. Ele se voltou na direção de seu inferno. Eu caminhei rumo ao Saara.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., Se a rua Beale falasse 183, e grifo nosso)

Percebemos traços de humanidade e sensibilidade na personagem, a tristeza e a incerteza que os envolve é declarada mais uma vez na relação inferno/Saara, na qual o tradutor procurou manter a delicadeza e a aspereza do original. Nesse trecho podemos identificar a tentativa do tradutor em manter os períodos do inglês no português, seguindo mais ou menos a mesma estrutura, nem tão longos e nem tão curtos. Suas escolhas semânticas nas expressões confrontadas partem do propósito de realçar, em português, uma conformidade com o texto traduzido. Com exceção do uso do termo viajou/travels, que causa certa restrição à concepção poética da situação apresentada por Baldwin. Talvez o termo escolhido por Dauster não dê conta do imaterial amor e coragem envolvidos nessa entrega, comentário que se adequa possivelmente ao texto de James Baldwin também.

Analisando ainda um outro destaque dado ao romance por Baldwin, chegamos à distinção e trajetos marcados pela diferença de tom de pele, utilizados como prova de choque em que nos é dada a chance de pôr o dedo na ferida. Mais do que identificar, é preciso senti-lo de maneira distinta e por isso também destacamos o papel da tradução. Essa responsabilidade é atribuída ao tradutor, ao seguir o tom da abordagem do autor do texto fonte no trecho narrado por Tish sobre as impressões sentidas e percebidas a partir da relação com a mãe e irmãs de seu amado Fonny. Dauster procurou dar esse destaque no trecho abaixo com o uso do advérbio de intensidade suficientemente (2x), acentuando a problemática da não aceitação por parte da sogra de Tish. O tradutor, no entanto, com sua escolha correspondente, propôs para o português uma transposição de algo comum, “good enough”, para algo pouco harmonioso e cansativo, que poderia ser simplificado como “boa o suficiente”. Observemos os exemplos abaixo:

Now, although we were littte and I certainly couldn’t be dreaming of taking Fonny from her or anything like that, and although she didn’t really love Fonny, only thought that she was supposed to because she had spasmed him into this world, already, Fonny’s mother didn’t like me. I could tell from lots of things, such as, for example, I hardly ever went to Fonny’s house but Fonny was Always at mine; and this wasn’t because Fonny and Frank didn’t want me in their house. It was because the mother and them two sisters didn’t want me. In one way, as I realized later, they didn’t think that I was good enough for Fonny – which really means that they didn’t think that I was good enough for them – and in another way, they felt that I was maybe just exactly what Fonny deserved. Well, I’m dark and my hair is just plain hair and there is nothing very outstanding about me and not even Fonny bothers to pretend I’m pretty, he just says that pretty girls are a terrible drag.

(BaldwinBaldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006., If Beale Street Could Talk, e grifo nosso)

Como éramos ainda crianças, é claro que eu nem podia sonhar em afastar o Fonny da mãe dele ou coisa parecida; mas embora na verdade ela não o amasse e só pensasse que devia amá-lo porque tinha posto ele no mundo, a sra. Hunt não gostava de mim. Eu sabia disso por uma série de coisas, como, por exemplo, o fato de que quase nunca ia à casa do Fonny, mas ele vivia na minha; e não porque Fonny e Frank não me quisessem na casa deles. Era porque a mãe e as duas irmãs não me queriam lá. Como entendi mais tarde, elas não achavam que eu era suficientemente boa para o Fonny – o que na verdade significava que não achavam que eu era suficientemente boa para elas. Além disso, achavam que eu talvez fosse exatamente o que Fonny merecia. Bem, minha pele é escura, meus cabelos são normais e não tenho nada de muito especial - nem o Fonny se dá ao trabalho de fingir que sou bonita, diz apenas que as garotas bonitas são um tremendo pé no saco.

(BaldwinBaldwin, James. Se a rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., Se a rua Beale falasse 27, e grifo nosso)

Nesse mesmo trecho, a tradução da passagem I’m dark para minha pele é escura foi adotada por Jorio Dauster numa oportunidade de propor uma melhor concordância ao texto traduzido em português seguindo seus critérios semânticos. O tradutor redividiu esse período, acrescentou um travessão e trouxe marcadamente a cor da pele de Tish numa relação atenta com a cultura da obra. Embora tenha escolhido meus cabelos são normais - my hair is just plain hair, contentando em mostrar uma imagem comum da personagem, essa locução pode vir a gerar questionamentos de juízo de valor a um leitor mais atento. Ao final o parágrafo se encerra com o reforço de uma característica do inglês, palavra-imagem, trazida para o português como pé no saco - terrible drag, numa solução que recupera a tradução.

A relevância do trabalho da tradução se reconhece seguindo um caminho de cotejamento entre a obra e o texto traduzido. O tradutor segue o desafio de lidar com as adversidades desse processo e examina e assume a proposta de trazer à tona os recursos intensos propostos por Baldwin em seu texto traduzido.

O leitor tem à disposição nessa obra uma breve epígrafe mantida pelo tradutor (Mary, Mary, What you going to name That pretty little baby?), que tem uma relação de graciosidade ao novo ser que está vindo, o bebê de Fonny e Tish. O bebê não é nomeado tanto no texto original, quanto na tradução, mas os demais nomes dos personagens são mantidos na tradução. Salvo algumas cidades já familiarizadas em português que mostram seus nomes traduzidos, trechos curtos de canções foram mantidos, sendo destacadas pela forma itálica em que foram impressos, como podemos perceber nos seguintes exemplos: “Blessed quietness, holy quietness.” – canção gospel (14 – fonte; 33 – tradução), “All my life is just despair, but I don’t care” (54 – fonte; 107 – tradução) e “Didn’t my Lord deliver Daniel? And why not every man?” (55 – fonte; 108 – tradução). Os nomes de estações de metrô Sheridan Square (28 – fonte; 59 – tradução) e até mesmo a expressão “uptown” (28 – fonte; 60 – tradução) foram preservadas também no texto em português.

No mesmo ano de lançamento da tradução (2019), Se a rua Beale falasse chega às telas de cinema e tem 3 indicações ao Oscar. Fato esse que nos desperta a atenção, pois fatores econômicos podem estar atribuídos a sua publicação, o que não desmerece o incentivo a sua leitura. É uma obra que oferece numa perspectiva literária um traço distinto de história, e toca principalmente na humanização, seja nos Estados Unidos ou Brasil.

A partir da análise comparativa da tradução com o texto fonte podemos compreender o trabalho do tradutor em proporcionar ao leitor brasileiro uma leitura correspondente à proposta por James Baldwin, para isso, perplexidade e desigualdade foram sensações provocadas no decorrer da obra traduzida transmitindo o objetivo do texto fonte. Esse resultado se deve a relevância dada por Jorio a suas escolhas tradutórias, embasadas num manejo com as línguas envolvidas. Os aspectos aqui destacados podem ser levados em consideração por estudos da área na tradução literária, atentando tanto ao trabalho do tradutor, bem como o retorno do leitor ao texto traduzido.

Referência

  • Baldwin, James. If Beale Street Could Talk: A Novel. New York: Vintage, 2006.
  • Baldwin, James. Se a rua Beale falasse Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • Barbosa, Heloísa Gonçalves. Procedimentos técnicos da tradução: uma nova proposta. Campinas: Pontes, 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2020
  • Aceito
    03 Abr 2020
  • Publicado
    Maio 2020
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