Resumo
O artigo argumenta haver, no contexto da Independência do Brasil, uma linguagem republicana ainda pouco explorada pela bibliografia. Para tal, investigam-se os periódicos Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822) e Correio do Rio de Janeiro (1822-1823). Foi adotada a perspectiva metodológica da Escola de Cambridge do contextualismo linguístico, tanto no trato do debate público quanto daquele da recepção. Para isso, desenvolvem-se dois movimentos: 1) o argumento de autoridade mobilizado na recepção de ideias e autores republicanos consagrados, em seus usos diretos e indiretos, cotejados com as fontes primárias; 2) os conceitos de cidadania e virtude atrelados ao republicanismo, do cidadão-soldado na defesa da nação e da abnegação individual em prol do público. Conclui-se que o conceito de liberalismo republicano é mais adequado para descrever esses periódicos do que liberalismo radical ou apenas republicano, expressões consagradas pela literatura especializada.
Palavras-chave
Independência do Brasil; republicanismo, Correio do Rio de Janeiro; Revérbero Constitucional Fluminense; liberalismo
Abstract
This article argues that, in the context of Brazil’s Independence, there existed a republican discourse that remains underexplored in the scholarly literature. To this end, the journals Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822) and Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) were investigated. The methodological approach of the Cambridge School of linguistic contextualism was adopted, addressing both public debate and the reception of ideas. Two main lines of analysis are developed: 1) the appeal of authority in the reception of renowned republican thinkers and ideas, through both direct and indirect references compared with primary sources; 2) the concepts of citizenship and virtue associated with republicanism—such as the ideal of the citizen-soldier defending the nation, and individual selflessness in service of the public good. The article concludes that the concept of republican liberalism better captures the ideological orientation of these journalsthan radical liberalism or just republicanism , expressions recognized by specialized literature.
Keywords
Brazilian Independence; republicanism; Correio do Rio de Janeiro; Revérbero Constitucional Fluminense; liberalism
Résumé
L’article soutient qu’il existe, dans le contexte de l’indépendance du Brésil, un langage républicain encore peu exploré par la bibliographie. Pour ce faire, nous étudions les périodiques Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822) et Correio do Rio de Janeiro (1822-1823). La perspective méthodologique de l’École de Cambridge du contextualisme linguistique a été adoptée, tant dans le traitement du débat public que dans celui de la réception. Pour cela, deux axes sont développés : 1) l’argument d’autorité mobilisé dans la réception des idées et des auteurs républicains reconnus, dans leurs usages directs et indirects, comparés avec les sources primaires ; 2) les concepts de citoyenneté et de vertu liés au républicanisme, du citoyen-soldat dans la défense de la nation et de l’abnégation individuelle au service de l’intérêt public. Il est conclu que le concept de libéralisme républicain s’avère plus pertinent pour décrire ces journaux que le libéralisme radical ou simplement républicain, expressions consacrées par la littérature spécialisée.
Mots-clés
Indépendance du Brésil; républicanisme; Correio do Rio de Janeiro; Revérbero Constitucional Fluminense; libéralisme
Resumen
El artículo sostiene que, en el contexto de la independencia de Brasil, existe un lenguaje republicano aún poco explorado por la bibliografía. Para ello, se investigan los periódicos Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822) y Correio do Rio de Janeiro (1822-1823). Se adoptó la perspectiva metodológica de la Escuela de Cambridge del contextualismo lingüístico, tanto en el tratamiento del debate público como en el de la recepción. Para ello, se desarrollan dos movimientos: 1) el argumento de autoridad movilizado en la recepción de ideas y autores republicanos consagrados, en sus usos directos e indirectos, cotejados con las fuentes primarias; 2) los conceptos de ciudadanía y virtud vinculados al republicanismo, del ciudadano-soldado en defensa de la nación y de la abnegación individual en pro del bien público. Se concluye que el concepto de liberalismo republicano es más adecuado para describir estos periódicos que el liberalismo radical o simplemente republicano, expresiones consagradas por la literatura especializada.
Palabras clave
Independencia de Brasil; republicanismo; Correio do Rio de Janeiro; Revérbero Constitucional Fluminense; liberalismo
Introdução
A historiografia consagrada em relação à Independência do Brasil jamais negligenciou a força das ideias políticas naquele contexto ( Neves, 2009: 51; Rodrigues, 1975: 1-51). Ainda que haja discordância quanto a determinadas classificações a respeito, por exemplo, da coerência interna nas recepções de tradições e ideologias europeias e norte-americanas, parece haver uma concordância geral na classificação binária entre aquela posição que defendia um projeto constitucional e aquela mais enviesada ao absolutismo. Comumente, deriva-se daí a explicação dos motivos que levaram os primeiros a aderirem ao constitucionalismo formulado nas Cortes pela Assembleia em Lisboa, em decorrência da Revolução do Porto (1820), que, aparentemente de modo contraditório, não tinham como marca qualquer veio independentista ( Lustosa, 2000: 174; Oliveira, 2022a:145; Silva, 1989: 39). Aqui, o projeto de um reino de Portugal, Brasil e Algarves unificado por uma Constituição preponderava sobre o receio de, tornando-se independente, o Brasil caísse nas graças do absolutismo. De outra parte, aqueles mais afeitos à manutenção da família Bragança no poder, com especial ênfase nos momentos em que d. Pedro se posicionara contra as determinações das Cortes reunidas em Lisboa, tenderiam a fazê-lo coadunado à emancipação, ainda que estes pudessem representar um certo despotismo ilustrado ( Lustosa, 2000: 176)1.
Exceções feitas a algumas leituras de Hipólito da Costa e Frei Caneca2, em regra, os estudos sobre as ideias políticas no processo de Independência opõem os constitucionais liberais aos “corcundas” conservadores – para empregar o uso do termo de época mobilizado por Lúcia Pereira das Neves (2003) – cujas principais expressões públicas, de ambos os grupos, se fizeram nos nascentes periódicos de então ( Carvalho, 2002: 193; Oliveira, 2022a:106-28). Entretanto, pesquisas mais recentes têm chamado a atenção para a hipótese de que existira um terceiro grupo, às vezes entendido como um subconjunto dos liberais constitucionais, majoritariamente chamados de liberais radicais (Barbosa, 2010:50; Leme, 2022a:140; Leme, 2022b:207; Molina, 2015: 200; Neves, 2003: 189; Oliveira, 2022a:113; Rodrigues, 1975: 49).
As características unificadoras desses liberais constitucionais, incluindo-se aqui os radicais, são a defesa de uma Constituição soberana pautada em um regime representativo, o limite dos poderes monárquicos, liberdade de imprensa e consciência, o império da lei e responsividade do governo em relação à sociedade civil em uma linguagem contratualista de direitos e deveres ( Lustosa, 2000: 287; Neves, 2009: 190; Rocha, 2009: 96). Ou seja, os termos clássicos do liberalismo anglo-saxão desde o século XVII e, em parte, transmutados para a França em meados do século XVIII e início do XIX (Oliveira, 2022b:84). O que separaria moderados de radicais, sejam estes um subconjunto ou não daqueles (Leme, 2022b:209; Rodrigues, 1975: 36), seriam graus distintos de aceitação das determinações oriundas das Cortes de Lisboa, particularmente quando não se tinha claro qual dos projetos de integração – se meramente comercial, algum tipo de federalismo monárquico ou a maior centralização do poder em Lisboa – estavam em jogo ( Sodré, 1977: 62).
Ainda que esse fenômeno tenha aproximado constitucionais e corcundas do ímpeto do príncipe regente e seus apoiadores mais próximos pela separação do Brasil, os projetos ainda permaneciam diferentes (cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821; 26/2/1822; Neves, 2024: 217)3. Mas esses dois momentos, a consolidação historiográfica pelo Independentismo, capitaneada por José da Silva Lisboa, e a adesão dos liberais a essa versão, colocando-se, inclusive, desse lado da querela, são fundamentalmente diferentes (Oliveira, 2022b:109). De fato, os que são comumente chamados de liberais radicais sustentam com maior firmeza a necessidade de controle do poder via separação de funções e soberania popular entendida como uma Constituição escrita e regime representativo, ausente, por exemplo, o direito de veto real (cf. Rodrigues, 1975: 33; Silva, 2022: 119). Nessa leitura, moderados e radicais seriam expressões de graus diferentes de um mesmo conjunto de doutrinários e seus interesses mais imediatos, particularmente quando vitoriosa a versão de que a Independência foi uma reação libertadora à “recolonização” (cf. Oliveira, 2022b:89).
O presente trabalho não pretende retomar qualquer querela historiográfica no sentido de reclassificar todos esses grupos, nem mesmo se posiciona sobre todos eles. Mas o fato de que a grande parte de essas pesquisas reconhecer ao menos a distinção entre um grupo mais liberal-constitucional e outro mais conservador-absolutista nos coloca um ponto de partida indispensável ( Neves, 2024: 214). Quanto ao primeiro grupo, subdividido ou separado em um terceiro, há um entendimento que havia pessoas e publicações marcadamente mais radicais em relação aos conceitos que foram resumidos acima, em geral denominados de liberais radicais.
Contudo, se for observado com maior atenção a distinção das ideias defendidas por liberais moderados e liberais radicais, é possível encontrar nos textos destes últimos fortes vieses republicanos ainda pouco explorados pelas pesquisas especializadas. Nesse sentido, há pesquisas, algumas delas ainda mais recentes, que optam por denominar o chamado grupo liberal radical de republicano ( Toniato, 2021 ; Leite, 2000 ; cf. Neves, 2024: 213). Elas têm como foco majoritário as publicações de época dentro de seus respectivos contextos, não exclusiva mas particularmente, político. É verdade, porém, que os traços ideológicos, teóricos, filosóficos ou doutrinários daquelas publicações raramente são postos de lado, mas um estudo que eleja os aspectos intelectuais, recepcionados das tradições ocidentais, ainda merece espaço4. Diante disso, este trabalho tem como objeto central duas publicações de época que, via de regra, são identificadas como radicais ou republicanas: o Correio do Rio de Janeiro e o Revérbero Constitucional Fluminense .
Do ponto de vista metodológico, nos inspiramos no contextualismo linguístico da Escola de Cambridge, no sentido muito específico de pensar o significado conceitual e não a reprodução fidedigna da linguagem da época. Um exemplo de um dos autores mais consagrados dessa escola deve ser aludido aqui a fim de pontuarmos nossa inspiração metodológica. Skinner (2002:187-96) afirma que Maquiavel é um partidário do conceito de “liberdade neorromana” – o que significa liberdade como ausência de dominação – a fim de marcar as diferenças para com a liberdade como não interferência. Para isso, ele parte do debate conceitual, e principalmente do vocabulário, desenvolvido apenas no século XX: liberdade negativa e liberdade positiva. Isso significa que o historiador encontrou a terminologia, segundo ele, mais precisa para “descrever” (Skinner, 2002:196) o pensamento de Maquiavel fundada em um debate contemporâneo. Para ele, a mera reprodução do vocabulário de época, ainda que sua análise seja necessária, não implica em um entendimento conceitual. Do mesmo modo, procuraremos cotejar, à luz do contexto, vocábulos de época com um contemporâneo, com a necessária ressalva de que priorizaremos o texto das publicações que são objeto da pesquisa.
O Revérbero Constitucional Fluminense foi um periódico de 48 edições, nas quais se inseriam notícias nacionais e internacionais, inclusive com a reprodução de extratos de outros periódicos, publicavam cartas dos leitores e apresentavam as “Reflexões”, parte mais editorialista. Foi bastante influente no debate público nos meses em que foi publicado, de setembro de 1821 a janeiro de 1822 quinzenalmente e, de janeiro a outubro de 1822, semanalmente. Não é coincidência a mudança da periodicidade, e a alteração da tipografia, com o contexto em que seus redatores assumiriam posturas separatistas, diferentemente do momento anterior em que defendiam a união em dois reinos com uma autonomia relativa. Seus redatores eram figuras conhecidas e respeitadas no debate carioca. Joaquim Gonçalves Ledo (Rio de Janeiro, 1781 – Sumidouro, 1847) teve papel destacado no Império e na Regência como parlamentar e jornalista. Ainda em vida, foi também reconhecido por sua atuação no periódico, mais expressivamente no momento da convocação da Assembleia dos representantes provinciais e da Constituinte, depois de aderir, junto com seu parceiro no periódico, Januário de Cunha Barbosa, ao projeto de independência e à legitimação de d. Pedro como imperador. Januário da Cunha Barbosa (Rio de Janeiro, 1780 – Rio de Janeiro, 1846), sacerdote secular e pregador da Capela Real e depois professor de filosofia, foi imbuído pela Loja Maçônica do Oriente – sociedade à qual Gonçalves Ledo também integrava – de viajar a Minas Gerais a fim de convencer os dissidentes da recém-proclamada independência a reconhecê-la. Em seguida, acusado de “republicano” junto com seu parceiro, foi preso e deportado, mas consegue a fuga para Buenos Aires. Depois de não ser reeleito ao terminar seu mandato na primeira legislatura de 1826, foi nomeado diretor da Imprensa Nacional e redator do Diário Fluminense . Na Regência, se afastou de Gonçalves Ledo ao se aproximar de Diogo Feijó. Então, distanciou-se da vida pública e dedicou-se às ciências e artes. Ambos se notabilizaram pela ferrenha oposição a José Bonifácio e José da Silva Lisboa em atuações marcadas pelos debates via jornais sobre a possível separação de Portugal e, em seguida, sobre os projetos para o Brasil.
O Correio do Rio de Janeiro teve duas fases: a primeira, de abril a outubro de 1822, contou com 158 edições; a segunda, de agosto a novembro de 1823, com 94. Na primeira, o debate girava em torno das demandas e encaminhamentos oriundos das Cortes e a independência, ao passo que a segunda se inscrevia na defesa do constitucionalismo brasileiro. Ligado a comerciantes portugueses radicados há bastante tempo no Brasil, seu redator, o português João Soares Lisboa (?, 1786 – Pernambuco, 1824) teve alguma educação formal em Coimbra, adquirindo e cultivando um vasto conhecimento das letras clássicas e de história moderna. Chegou ao Brasil por volta de 1800, quando se aproximou de comerciantes em Porto Alegre, onde foi vereador em 1818. Mudou-se para o Rio de Janeiro nesse ano como comerciante de grosso trato. Sua vida política de destaque teve início quando da publicação do Correio do Rio de Janeiro e era notória sua aproximação com o Revérbero Constitucional Fluminense . Em julho de 1822 foi acusado de desrespeitar a lei de imprensa pelas constantes críticas a d. Pedro e seu entorno. No fim do ano ele se exila em Buenos Aires, ao retornar em 1823 é preso, mas no fim do ano a pena é comutada para um exílio em Lisboa. No ano seguinte, ao zarpar para Portugal, desembarca no Recife onde adere à Confederação do Equador. Morreu em 1824 em batalha contra as tropas governistas.
Antes de entrarmos nos argumentos que podem levar à constatação de aspectos mais republicanos dessas publicações, é preciso algumas observações teóricas, lembrando ainda que uma classificação rígida, de qualquer que seja o grupo, não é parte de nossos objetivos.
Um liberalismo radical não é, necessariamente, mais próximo do republicanismo, na medida em que as afirmações, como direitos individuais e de propriedade, não são encontradas em toda sua “radicalidade” (cf. Neves, 2009: 45). Pelo contrário, nas publicações do Revérbero Constitucional Fluminense e do Correio do Rio de Janeiro é possível encontrar fortes conceitos claramente devedores de diferentes republicanismos ao longo da história ocidental, mas não aprofundam nos termos definidores, digamos, de um liberalismo clássico ou mercantilista, marca de alguns conservadores e de liberais moderados (cf. Molina, 2015: 296).
A agenda liberal [no início do século XIX] estava assentada principalmente em motivações econômicas – bem mais do que na percepção dos direitos – e sua tônica recaía numa franca defesa do livre-comércio, na afirmação do mérito individual, na salvaguarda dos direitos de propriedade. ( Starling, 2018: 263)
O contexto da Restauração europeia, com toda herança que a Revolução Francesa deixara, sem descuidar da Revolução Americana, acabou por aproximar posições liberais e republicanas ainda na esteira do Iluminismo, particularmente francês ( Neves, 2024: 219). Então, estamos, na verdade, diante de uma recepção republicana muito particular, majoritariamente vinculada ao Iluminismo francês, cuja derrocada já se anunciava desde princípios da Restauração, conduzindo sua aproximação com o liberalismo5. Isso explica em larga medida muitos dos motivos teóricos que fizeram com que escritores claramente imbuídos de doutrinas republicanas não colocassem em destaque o antimonarquismo, o que se pode ver com clareza nas publicações aqui analisadas.
A pouca importância que é dada os conceitos de direitos individuais e garantia da propriedade privada nessas publicações não deve ser menosprezada, se observarmos que eles aparecem com um destaque relativamente menor do que o constitucionalismo ou a virtude cidadã. Isso nos leva a questionar as causas que levaram seus autores por essa opção. Nesse caso, as suas respectivas ausências marcam opções teóricas e doutrinárias que os afastam do liberalismo, pela constatação de que um liberal radical não é, necessariamente por isso, mais republicano, do mesmo modo que não é, necessariamente, mais democrático ( Revérbero Constitucional Fluminense , 16/4/1822). Em um certo sentido, mesmo naquele contexto, seria de se esperar que um “liberal radical” seja alguém com mais propensão a defender valores do individualismo moderno em contexto de uma economia de mercado livre, cuja função primordial do Estado repousaria bem mais em garantias contratuais do que cidadania e participação. Não que esses autores neguem esses termos, mas o fato, por exemplo, de se comprometerem com um certo protecionismo comercial na hipótese de realizarem um Império Ultramarino diz bem sobre os limites de se radicalizar conceitos tão arraigados no liberalismo daquele contexto ( Oliveira, 2020: 113). Essa observação nos conduzirá não à etiqueta de republicano, mas a um entendimento mais preciso de uma linguagem republicana desses autores, no sentido em que particularmente a chamada Escola de Cambridge tem apresentado nas últimas décadas ( Pocock, 1975 ; Skinner, 1978 ).
Diante desse cenário, o presente trabalho argumenta que, no caso específico dessas duas publicações cariocas, ao invés de classificá-las como representantes de um liberalismo radical, é mais apropriado tratá-las como mais afeitas ao republicanismo. Propomos, assim, uma ideia de liberalismo republicano. Há um contraponto importante que deve ser destacado. Em nenhum momento seus autores advogam a derrubada da monarquia como forma de governo stricto sensu , isso é, o antimonarquismo não esteve presente nesse momento da história do Brasil. Entretanto, a linguagem empregada, as premissas teóricas mobilizadas muitas vezes de modo subentendido, a escolha das fontes de autoridade, bem como a presença dos temas mais candentes do percurso republicano ocidental autorizam uma leitura de um republicanismo bem constituído e próximo daquele que estava sendo forjado na Europa e nos Estados Unidos àquela altura, que coadunava determinados princípios republicanos com outros liberais. Para sustentar esse ponto, a pesquisa terá como objeto central as duas publicações mencionadas, jogando luz nas recepções teóricas, explícitas ou implícitas, que objetivavam medir forças na batalha do debate público sobre o futuro imediato do Brasil.
A inspiração teórica dessa proposta de um liberalismo republicano para esses dois periódicos se origina, sobretudo, em trabalho recente de Jean-Fabien Spitz (2022) , ainda que ele não empregue essa expressão. Nele, o autor argumenta pela continuidade do republicanismo da primeira modernidade com o liberalismo clássico e aqueles desenvolvidos durante o século XIX europeu, sobretudo na França e Inglaterra. Essa unidade se sustenta na internalização do conceito de liberdade pelo da igualdade. É nesse sentido que buscaremos argumentar no próximo item a sua dimensão conceitual adequada àquele contexto. Em seguida, apresentaremos o modo pelo qual o argumento de autoridade era mobilizado a fim de evidenciar a presença de diferentes tradições republicanas. De fato, porém, a ocorrência de citações de autores republicanos, desde ao menos meados do século XVII, ainda que corrobore, não é suficiente para demonstrar uma teoria republicana. Faz-se necessário, além disso, uma presença das formulações teóricas propriamente e seus desdobramentos normativos contidos nos termos mais propositivos das publicações. O terceiro movimento do artigo argumenta que havia uma preocupação prioritária a respeito de um dos aspectos mais contundentes do republicanismo, qual seja, a correlação entre cidadania e virtude e que essas se separam das tradições liberais por excelência, evidenciando, o que será retomado na conclusão, uma coadunação mais forte entre liberalismo e republicanismo do que um liberalismo radical.
Liberalismo Republicano
Desde fins dos anos 1990, a teoria política contemporânea, tanto de caráter histórico quanto normativo, tem se esforçado em apresentar pontos de conexão entre o liberalismo e o republicanismo. A consolidação do Estado de direto pós-revoluções do século XVIII, juntamente com princípios que pretendiam universalizar a igualdade perante as leis com a divisão de poderes foram passos que se integrariam ao vocabulário democrático do século XX e não separavam de maneira categórica republicanismo de liberalismo ( Bellamy, 2007: 154; Dagger, 1997: 61; Kalyvas e Katznelson, 2008: 5).
No entanto, há autores ( Honohan, 2002: 5; Skinner, 1998: 112; Pettit, 1997: 12) que reconhecem, nesse mesmo período, um “eclipse” do republicanismo pela ascensão de doutrinas utilitaristas em uma sociedade de mercado que não garantia paridade de armas nas relações contratuais ( Pettit, 1997: 164) e isso seria uma marca decisiva de um tipo hegemônico de liberalismo individualista. Esses mesmos autores, e outros mais, reconhecem, porém, a proximidade dessas duas tradições pelos conceitos acima referido ( Honohan, 2002: 181; Pettit, 1997: 22; Skinner, 1998: 70; Spitz, 2022: 128-129). Isso indica que o contexto pós-revolucionário estava eivado por um vocabulário que borrava as fronteiras bem mais rígidas de épocas anteriores.
Nos séculos XVIII e XIX, os progenitores centrais do liberalismo moderno simplesmente se recusaram a fazer essas distinções. Eles não abandonaram o bem ou a vida cívica. Eles não glorificavam os interesses pessoais [...] Mas eles também não eram republicanos tradicionais. ( Kalyvas e Katznelson, 2008: 15)
Ainda em 1997, concomitantemente à influente publicação de Philip Pettit (1997) , Richard Dagger, recorrendo a argumentos históricos e normativos, advoga por um liberalismo republicano pautado em virtudes cívicas. O ponto central de seu trabalho reside em negar a oposição entre direitos e virtudes e podemos, segue o autor, encontrar exemplos claros na história do pensamento político que evidenciam isso, ainda que poucos tenham “conscientemente” se identificado como “liberais republicanos” (Dagger, 1997:5)6. Daí a necessidade de uma reconstituição histórica, no sentido metodológico de recepção, para se pensar em termos normativos em algum dado contexto. Esse argumento é particularmente relevante para o presente trabalho, pois fornece as confluências entre virtude e direito, termos centrais nas publicações aqui analisadas e que, como argumentaremos, não são interpretados pelos nossos autores como opostos. Em segundo lugar, eles também não parecem estar “conscientes” desse liberalismo republicano cuja tradição pode ser evocada desde o século XVII britânico.
Interpretações mais rígidas da separação entre republicanismo e liberalismo, seja no espectro liberal ( Banning, 1983 ) ou republicano próximo do comunitarismo ( Honohan, 2002: 8), tendem a identificar na neutralidade moral do Estado e no perfeccionismo da natureza humana os conteúdos divergentes entre as tradições cuja normatividade recairia na primazia de direitos individuais ou virtudes coletivas, respectivamente. Não se pretende com isso afirmar que quaisquer republicanismo e liberalismo possam se aproximar por esses conceitos, mas que em determinados contextos eles se combinam. E foi justamente no contexto pós-revolucionário, e particularmente pós-napoleônico, que essas tradições mais dialogaram entre si. Há, portanto, dois níveis de análises que seguiremos para pensar o liberalismo republicano desses periódicos cariocas do período da independência. Em um deles, abordaremos a pertinência de um liberalismo republicano, cuja fundamentação se ampara na interseção de conceitos liberais e republicanos, jogando luz sobre a linguagem do direito e a da virtude. Em um segundo, exploraremos os temas centrais do republicanismo pós-revolucionário e início do século XIX, a fim de testar o modo pelo qual os autores brasileiros interpretavam essas confluências.
Para a [teoria] republicana, o império da lei é tipicamente considerado um meio essencial de assegurar às pessoas da dependência da vontade arbitrária de outros. [...] Para a liberal, o império da lei é tipicamente considerado um meio essencial de dar às pessoas um conjunto seguro de expectativas para que elas possam perseguir seus projetos privados. (Dagger, 2997:61)
Antes de tudo, é preciso avançar com bastante cautela para não se deduzirem posições claramente anacrônicas, uma vez que definições abstratas e generalistas como essa não eram parte do vocabulário no contexto da independência. O que se pretende mostrar, entretanto, é a existência de uma confluência teórica entre ambas as tradições, tendo o império da lei como ponto de partida, que teve seu ápice no período pós-revolucionário. A mera reprodução de época e continuada pela historiografia – “liberalismo radical” – ajuda pouco na compreensão conceitual e normativa das reflexões e agendas desse grupo, ainda que, de um ponto de vista historiográfico, seja rigorosamente adequada. A definição de Dagger de império da lei, pensada em parte com típicos republicanos como Rousseau e típicos liberais como Locke, na verdade, mostra duas justificativas diferentes para um mesmo princípio, ou, de outra maneira, apresenta intensidades de preocupações diferentes que se complementam. De certa maneira, não estar sujeito à arbitrariedade de terceiros, na já consagrada definição de liberdade como não dominação, exige um controle legal a fim de garantir, inclusive, direitos individuais. Por outro lado, continua Dagger (1997:90), isso não exclui, e até mesmo demanda, encorajamento, a virtude cívica7.
Partindo do ideal rousseauniano, Dagger (1997: 98-102) sustenta que a associação de cada um com todos mantém todos livres como antes de se associarem, o que é equivalente a afirmar, continua ele, que a virtude necessária para a associação e manutenção do corpo político se conecta com a garantia dos direitos individuais, resultado primeiro do império da lei. O operador fundamental da coabitação de virtude e direito não é, como críticos do republicanismo apontam, uma abnegação individual e moralizante do bem comum, mas uma cidadania efetiva, da qual se exige uma participação em termos de debate público àquilo que diz respeito, exclusiva ou majoritariamente, ao público. A consequência de curto e longo prazo do império da lei, nas definições complementares republicana e liberal, não é senão a cidadania. “[A] concepção liberal republicana de cidadania que eu tenho desenvolvido aqui tem a virtude de gerar seu próprio suporte”, no sentido de direitos individuais e no plano ético de um “espírito público” ( Dagger, 1997: 104). Nesse sentido, o liberalismo republicano exige relativamente menos dos cidadãos do que um bem comum ciceroniano ou estoico, o que é bastante diferente de afirmar que a virtude cívica esteja ausente. Essa argumentação, desenvolvida em diálogo com o republicanismo e liberalismo históricos e contemporâneos, se encaixa, como veremos, com precisão nos periódicos aqui analisados, justamente pelo fato de que recepcionaram muito da produção intelectual com a qual Dagger opera, qual seja, aquela oriunda da tradição anglo-saxã e francesa dos séculos XVII e XVIII.
Mas ele não foi o único a atacar esse “falso antagonismo” ( Kalyvas e Katznelson, 2008: 4), nem a defender que “a cultura política republicana não é iliberal ” ( Spitz, 2005: 17. Grifo no original.). Recentemente, Jean-Fabien Spitz (2022: 13) afirmou que “a ideia republicana é uma reflexão sobre a maneira de realizar uma sociedade de indivíduos livres e independentes de uma maneira mais do que nominal [...] Ela está bem longe de estar em ruptura com o liberalismo”. Ele avança na argumentação, também partindo de autores consagrados de ambas as tradições, relacionando participação com independência e direitos individuais ( Spitz, 2022: 31). O ponto alto de seu argumento, entretanto, é a separação do liberalismo em duas correntes, uma ancorada no neoliberalismo e outra, de inspiração clássica, perfeitamente compatível com o republicanismo. A rigor, o liberalismo herdou do republicanismo de primeira modernidade os direitos individuais conformando-os em uma linguagem contratualista ( Spitz, 2022: 114 e 173).
Spitz identifica no contexto da Ilustração Escocesa, da Revolução Francesa e nas décadas subsequentes a sobreposição marcante entre liberalismo e republicanismo cuja afirmação da igualdade residia na “independência reciproca e [n]a ausência de sujeição à vontade arbitrária de outros” (Spitz, 2022:118), que devem ser politicamente construídas8. A opção analítica de Spitz é ligeiramente distinta daquela de outros intérpretes do republicanismo. Ele coloca como ponto de partida a ascensão da economia de mercado, e as contribuições dela decorrentes como a de Adam Smith, o desenvolvimento da “condição da legitimidade desses direitos [individuais]” (Spitz, 2022:167). Desse modo, a propriedade estaria sendo pensada como uma fonte de progresso humano se condicionada a uma reflexão crítica sobre a legitimidade da desigualdade material ( Kalyvas e Katznelson, 2008: 22). Há que se notar, e aqui apenas indicamos a ocorrência, que os referidos periódicos cariocas frequentemente defendem os direitos de propriedade, como direitos naturais individuais, em consonância com a ascensão de uma economia de mercado ( Correio do Rio de Janeiro , 15/4/1822; Revérbero Constitucional Fluminense , 15/10/1821), ainda que comparativamente, a linguagem da virtude e do direito não estejam atreladas ao mercado. Aliás, parte da agenda normativa dos periodistas era a de criação de mercado pujante no Brasil como forma de progresso material e moral.9 Para Spitz, essa visão, originariamente desenvolvida por Smith, não era complacente ou estava fora do horizonte de uma acumulação ilimitada ou mesmo de indefinidos direitos de propriedade, mas que, se legítima, acarretaria o progresso moral (Spitz, 2022:169). Assim sendo, estamos diante de um cenário que coaduna uma noção de aperfeiçoamento, caudatária de Rousseau e seus seguidores imediatos, com a de mercado.
É visível que os liberais republicanos da independência raciocinavam em termos de progresso moral sob a insígnia da defesa do “bem comum” em um regime cuja economia de mercado é sustentada pelos direitos individuais. Nesse sentido, o liberalismo republicano das primeiras décadas do século XIX retinha o receio jacobino, mas, por outro lado, não abandonou termos chave do republicanismo ( Cassimiro, 2020: 39 e 76). Um exemplo disso é que não encontramos, no debate da independência nem no contexto europeu, fórmulas abertamente contrárias à manutenção da monarquia, seja na defesa de uma determinada tradição, seja na sustentação de certa unidade da nação. O esforço teórico desse contexto, portanto, era unir direitos e virtudes em um ambiente cujos desdobramentos futuros estavam abertos ( Spitz, 2005: 25). Portanto, parece um equívoco, de um ponto de vista teórico ou conceitual, afirmar que a radicalização do liberalismo caminhe para o republicanismo ou para a democracia. Primeiro, porque não encontramos uma sobreposição de direitos individuais, como os de propriedade, sobre a virtude cívica. Segundo, porque as relações hegemônicas de contrato, e suas garantias pelo poder público, como apontam as interpretações do período como um “eclipse” do republicanismo citadas acima, não são defendidas por esses autores. Desse modo, a formulação de Benjamin Constant da “liberdade dos modernos” faz pouco eco no liberalismo republicano brasileiro, ainda que esse seja um tema central para os liberalismos de época e que ele tenha sido, como veremos, um autor central nos debates da independência ( Cassimiro, 2020: 26). Esperar-se-ia, assim, que a radicalização do liberalismo pós-revolucionário fosse uma ferrenha defensora, não apenas dos direitos individuais, mas do individualismo como fim em si, do trabalho livre, do desfrute interessado da vida privada e um desapego às questões públicas ( Cassimiro, 2020: 72; Spitz, 2005: 42). Mas o que encontramos é justamente uma valorização do bem público, responsabilizando em parte os cidadãos, da virtude cívica e da participação através de uma concepção forte de cidadania ( Spitz, 2005: 51).
Os autores que advogam pela proximidade entre liberalismo e republicanismo, e aqui também é possível incluir Bellamy (2007: 159-71), partem, no geral, do conceito de liberdade como não dominação, desenvolvido no formato atual por Skinner e Pettit, num esforço teórico de compreender manifestações sem recorrer exclusiva ou necessariamente a um vocabulário de época. Ou seja, diferentes manifestações históricas, cujo apogeu é o início do século XIX, encontram o denominador comum de ambos os percursos no conceito de liberdade originalmente desenvolvido pelo republicanismo que, nesse período, começou a ser incorporado pelo liberalismo. Inspirados nessa confluência, mas não estritamente nesse conceito, é que pretendemos desenvolver os aspectos republicanos do liberalismo da independência.
Apenas a título de exemplo de como essas ideias liberais republicanas estavam em voga naquele contexto e que não se trata de qualquer anacronismo nesses esforços aproximativos, lembramos que Antonio Penalves Rocha (2009: 16, n. 4), ao comentar o campo semântico da “recolonização”, afirma que
na maioria das vezes, à expressão ‘reduzir o Brasil à colônia’ segue-se uma referência metafórica à escravidão; trata-se certamente da adesão dos brasileiros a um aspecto do que Quentin Skinner denominou ‘teoria neo-romana dos estados livres’: desde Maquiavel considerou-se como servidão pública a sujeição de um corpo político à vontade de um outro Estado em consequência da colonização ou conquista.
Ou seja, a “teoria neo-romana dos estados livres”, formulada por Skinner no século XX para interpretar um conceito basilar do republicanismo, deve ser empregada para explicar o contexto intelectual da independência do Brasil. Porém não jogaremos luz sobre o conceito neorromano de liberdade nesse trabalho, mas precisamos mencionar que esse tipo de investigação da recepção, ainda que pouco desenvolvida, está longe de ser estranha à literatura especializada. Pelo contrário, as referências podem ser multiplicadas muitas vezes em relação a essa abordagem: a recepção de autores consagrados para explicitar uma doutrina política é uma abordagem bastante comum (Basile, 2011:174; Leite, 2000: 49; Leme, 2022b:205; Neves, 2009: 189-90; Oliveira, 2020: 212, n. 284; Oliveira, 2022b:101).
Argumento de Autoridade e Seus Usos
Antes que seja possível evidenciar os termos mais propriamente republicanos desses periódicos, é preciso afirmar a confluência com o liberalismo. Provavelmente, a evidência mais latente dessa proximidade se faça nas citações dos autores e personagens europeus e norte-americanos, no mais das vezes, por escritores que se opunham mutuamente.
O uso do argumento de autoridade, como bem mostrou José Murilo de Carvalho (2000) , estava entre as formas retóricas mais empregadas ao longo dos períodos joanino e posteriores. Por isso, a mobilização de autores particularmente estrangeiros extrapola um recurso corriqueiro de transferir a conclusão do argumento debatido para uma camada supostamente superior. Na verdade, isso evidencia as fontes com as quais os periodistas raciocinavam sobre o próprio lugar. E o que pode parecer ainda mais surpreendente é que eles próprios estavam cientes disso e apresentavam essa força retórica abertamente: “O homem sábio sabe colher dos escriptos as ideias de seus autores” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/12/1821). A separação na escolha dos pensadores europeus e norte-americanos citados entre moderados e radicais não deve ofuscar o modo pelo qual cada autoridade é mobilizada (cf. Neves, 2003: 37). Por exemplo, Montesquieu e Benjamin Constant, que estão entre os campeões de citações entre os liberais de vários tons, e também estiveram presentes na pena de muitos conservadores, eram lidos em chaves diversas. Vejamos com um caso emblemático:
A liberdade he o dote mais precioso do homem; porém os authores não concordão na sua definição. Montesquieu a chamou de direito de fazer tudo que as leis permitem, confundindo (diz B. Constant) a liberdade e a garantia, isso he, os direitos individuais e os direitos sociaes; devendo melhor definir-se, segundo o Sábio Constitucional, liberdade o que os indivíduos tem direito de fazer, e que a sociedade não tem direito de estorvar. ( O Espelho , 1/10/1821)10
Acentua-se aqui a relação entre lei (e a igualdade de todos diante dela) e liberdade a partir da crítica de Constant (1997: 344-6) a Montesquieu, naquilo que concerne o espaço de ação dos indivíduos em relação à sociedade. No Revérbero Constitucional Fluminense , como veremos em detalhes à frente, Constant é chamado ao debate no que se refere aos limites do poder real no reconhecimento explícito da soberania popular e sua estreita ligação com a república. O exemplo ilustra adequadamente que não é apenas uma lista de autores citados como autoridades o cerne da mobilização teórica. No mais das vezes, o mesmo autor, em pontos diferentes de sua obra ou em interpretações diferentes de um mesmo ponto, era mobilizado diferentemente. É claro que autoridades limítrofes podem ser, e eram, mobilizadas de modo alternativo, seja na defesa dos direitos individuais de Constant ou na liberdade moderada da monarquia de Montesquieu, seja na soberania popular e limite do poder do mesmo Constant ou na virtude republicana de Montesquieu. Casos mais paradigmáticos, porém, como aquele de Rousseau, também ocorrem e, dificilmente, poder-se-iam colocá-los distantes de uma interpretação republicana (cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 15/9/1821; cf. Silva, 2022: 129)11.
O que chama mais a atenção é o emprego de autores, tanto no Revérbero Constitucional Fluminense quanto no Correio do Rio de Janeiro , hoje pouco canônicos, mas que, nem aqui nem na Europa, havia dúvidas de que eram republicanos. John Milton, James Harrington, Algernon Sidney, Thomas Jefferson, Thomas Paine, Gabriel de Mably, Sieyès eram fontes correntes ( Revérbero Constitucional Fluminense , 8/1/1822; 19/2/1822; 23/4/1822; 30/4/1822; cf. Lustosa, 2000: 43; Neves, 2009: 37). Vejamos o uso específico de Constant pelo Revérbero Constitucional Fluminense a fim de contrastar com a citação acima de O Espelho (cf. Lustosa, 2000: 149). Ao analisar a sessão das Cortes de 18 de outubro de 1821, semanas após a citação de O Espelho , criticando os “déspotas” e “opressores”, escrevem os redatores, num comentário à Revolução Pernambucana:
E na verdade, que desejavão os mais accérrimos Democratas do Brasil? Liberdade. Como havião de assegurá-la? Por huma Constituição? E que Constituição mais livre, mais cheia mesmo de formas Republicanas do que a Constituição de Portugal? Escreve o celebrado Benjamin Constant: - que quando os poderes públicos se dividem, e estão a ponto de se fazerem mal, he necessária huma Authoridade neutra, que faça a seu respeito, o que o poder Judicial a respeito dos indivíduos; que esta Authoridade na Monarquia Constitucional, he o Poder Real. Se a ação dos ministros he irregular, o Rey os admitte; se a acção do corpo Legislativo vai se tornando funesta, o Rey o dissolve = Ao Rey, continua elle, pertence o Direito de dissolver a Assembleia Representativa, e de preservar assim a Nação das aberrações e desvios dos seus Mandatários, chamando a novas nomeações = Ora, na Constituição Lusitana, os Órgãos da Lei, e os Funcionarios são propostos pelo Conselho de Estado, e o Rey nem póde dissolver, nem congregar as Cortes, e até nem suspender as Lei [ sic ], que fizeram; logo he claro, que nada mais podia desejar o Brasil, e que os Brasileiros são agora verdadeiramente livres: logo he livre o Brasil. ( Revérbero Constitucional Fluminense , 19/2/1822)
Aqui, é preciso considerar a hipótese de que a escolha a respeito do tema da liberdade pode não ter sido simples coincidência, mas uma provocação a O Espelho . Ao contrário de os redatores terem se inspirado na leitura que Manuel Ferreira Araújo Guimarães fez de Constant, reproduzindo e aprofundando a crítica a Montesquieu, não é improvável que tenham abertamente feito tal escolha a fim de disputar uma interpretação dos autores europeus. É claro que a comprovação de tal hipótese não é factível, mas admitindo-se apenas sua plausibilidade, não se pode descartar a ideia de que estão afirmando aos seus leitores, que eram basicamente os mesmos daqueles de O Espelho , qual era o “verdadeiro” Constant. Nesse sentido, o emprego do argumento de autoridade escapa às citações eruditas de autores renomados a fim de conquistar a posição do leitor. Mais do que isso, a fonte era tanto mais poderosa quanto mais o redator colocava sua interpretação nela. Consequentemente, eventuais fontes de autoridade futuramente citadas pelo periódico criticado, se ele não perdesse a sua credibilidade, o redator certamente a perderia.
Há muitos elementos republicanos na passagem, mas o que talvez chame maior atenção seja a interpretação republicana da Constituição que se discutia em Lisboa. Trata-se de reconhecer no poder neutro não um viés monarquista, mas liberal republicano12. Para além da contrariedade em relação ao mesmo autor feito em O Espelho , Constant, segundo os redatores do Revérbero Constitucional Fluminense , defende a unidade entre poder real e poder neutro. De fato, essa era uma crítica do autor em relação à teoria da divisão de poderes de Montesquieu. Para Constant, não basta que os poderes sejam divididos com separação de funções, pois podem se unir em determinadas circunstâncias; é preciso ainda um poder acima dos demais, que se dirija tão somente aos poderes.
A teoria é conhecida e possui um longo percurso na história brasileira. Para o Revérbero Constitucional Fluminense , é o Conselho de Estado que possui tais atribuições do poder neutro. Isso quer dizer que a Constituição que se desenhava, ainda que mantivesse o poder monárquico, se fundava na neutralidade do Conselho de Estado, o que fazia dela uma república13. Observe-se que a mesma crítica de Constant a Montesquieu é lida de modo muito diferente pelo O Espelho e pelo Revérbero Constitucional Fluminense . Se a centralidade do poder neutro reside no Conselho, a Constituição é republicana. Além disso, essa característica é tomada como algo positivo por Gonçalves Lêdo e Januário da Cunha Barbosa. O Brasil deve aderir à Regeneração oriunda das Cortes porque a Constituição é essencialmente republicana. A passagem se conclui afirmando que “por isso [o Brasil] tem direito a uma Constituição, que no seu projeto mesmo rivalize com a custosa obra dos Franklins e Washingtons” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 19/2/1822; cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 29/1/1822; Revérbero Constitucional Fluminense , 29/4/1822; Leme, 2022:145). Portanto, estamos diante da defesa do autogoverno, com divisão de poderes e separação de funções, transformado a partir das ideais de Constant, que pode superar a invenção da república americana.
Ocorre aqui um tropo que é muitas vezes repetido pelos redatores, qual seja, a correlação positiva entre a liberdade dos brasileiros e a liberdade do Brasil. Uma das diferenças já bem estabelecidas entre as tradições liberal e republicana reside na correlação que essa última faz entre a liberdade da cidade e a do cidadão ( Skinner, 1998 ), o que não se trata da radicalização de termos contidos em uma tradição transpostos para outra, mas de uma verdadeira cisão. Ao afirmarem essa interdependência, os autores do Revérbero Constitucional Fluminense colocam sob o império da lei, um dos termos mais importantes do liberalismo republicano, através de um regime representativo, a noção de que a liberdade individual e a pública são interdependentes, essa noção, sim, é central no republicanismo ( Revérbero Constitucional Fluminense , 22/1/1822; 29/1/1822). Não é nada furtiva a combinação dessa análise republicana do pensamento de Constant com a defesa da unidade das liberdades individuais e coletivas. É próprio das teorias de Constant a classificação da liberdade em duas formas, aquela dos antigos, pautada na virtude pública e amor ao bem público, e a dos modernos, sustentada nos direitos e garantias individuais em sociedades cujo trabalho é livre e a realização dos interesses privados é a regra. Ao combinarem a liberdade dos brasileiros com a do Brasil, os redatores respondem republicanamente a um dos problemas que mais atormentaram Constant.
O Correio do Rio de Janeiro igualmente mobilizava Constant, em tons muito semelhantes ao Revérbero Constitucional Fluminense:
Com dezejo de que os sábios nos illuminem, provando melhor o systema de Hobbes, vamos a expor como demonstração da nossa these o systema de Mr. Benjamin Constant, que é o seguinte, ‘Não existe sobre a terra nenhuma authoridade ilimitada, nem a do povo nem a dos seus Reprezentantes, nem a dos Reis por qualquer título que elles reinem, e athé nem a da Lei, porque sendo essa a expressão da Vontade do Povo, ou do Príncipe, segundo a forma do governo, deve ser circunscripta nos mesmos limites da athoridade donde dimana’. ( Correio do Rio de Janeiro , 10/4/1822)
Na sequência, o redator sustenta os direitos individuais consagrados pelo liberalismo, mas acrescenta, ao comentar as palavras de Constant, uma linguagem essencialmente rousseauniana (Rousseau, 1964, vol. 3354-69):
O direito de conquista he a força, e a força não he direito; porque passa áquelle, que dela se apodera. O assentimento do Pôvo não pode legitimar, o que he illegitimo, porque um povo não pode delegar huma autoridade, que não tem. Nenhum déspota, nenhuma assembleia pode exercer hum direito similhante, deduzindo que o povo lho tem dado. ( Correio do Rio de Janeiro , 10/4/1822)
Nessas passagens, há dois elementos bem representativos do modo pelo qual esses periódicos tratavam as autoridades e os argumentos. Primeiramente, ocorre a confluência mencionada acima entre as linguagens liberal e republicana. No caso, trata-se da defesa irrestrita dos direitos individuais, como liberdade de expressão e consciência, garantias constitucionais diante de quaisquer arbitrariedades. Em segundo lugar, acrescenta um tom fortemente republicano pautado em Rousseau, numa citação quase direta de O Contrato Social 14, aquela de que a soberania não pode ser alienada ( Correio do Rio de Janeiro , 22/5/1822), o que, no caso do pensamento do genebrino, trata-se nada mais do que a impossibilidade de representação política.
Nenhum povo é capaz de se alinear e, quando subjugado pela força, essa situação de dominação está fora da alçada do direito. A conclusão óbvia seria, a se seguir Rousseau, por um regime democrático de participação direta, com uma virtude cívica desinteressada. De fato, é disso que se trata. O Correio do Rio de Janeiro não conclui expressamente por isso, mas as páginas que se seguem advogam pela cidadania virtuosa, pondo de lado a democracia, interesseira e individualista (Oliveira, 2022b:94; Rizzini, 1988: 394-5). Há aqui um misto de republicanismo clássico lido através de Rousseau com um assentimento pelas condições dadas no contexto, cujo ápice é a sobreposição teórica da virtude sobre o interesse.
Naquele contexto, citar Rousseau, ainda que eles o tenham feito, era admitirem-se republicanos, democratas, demagogos e anarquistas dentre outras acusações das quais todos queriam escapar ( Revérbero Constitucional Fluminense , 8/1/1822; 26/3/1822; Correio do Rio de Janeiro , 26/4/1822; Leite, 2000: 33; Molina, 2015: 192). A depender do mês ou mesmo da semana, essas acusações poderiam ser mais ou menos aceitáveis. Por isso, é perfeitamente compreensível que em determinados momentos os nomes das autoridades citadas não sejam apresentados, mas os redatores mantinham o conteúdo ou até mesmo o texto, como nesse e em outros casos. Assim, é interessante que João Soares Lisboa conduza o leitor a uma conclusão republicana15, particularmente aquela de matriz popular, sem se comprometer com sua fonte.
Se o Revérbero Constitucional Fluminense usa Constant para inferir um republicanismo de Montesquieu, alegando pela soberania da assembleia, o Correio do Rio de Janeiro usa Constant para reavivar Rousseau, sustentando uma soberania popular. Em ambos os casos, observa-se o mesmo autor mobilizado de modos diferentes, mas numa mesma linguagem profundamente republicana, com todo o cuidado para que o texto não resvale em um franco antimonarquismo.
A historiografia das últimas décadas já estabeleceu com bastante precisão o caráter inventivo do projeto de “recolonização” pelas Cortes de Lisboa ( Berbel, 2005 ; Oliveira, 2022b; Rocha, 2009 ), seja pela ausência de propostas concretas naquela assembleia nesse sentido, seja por uma impossibilidade objetiva.
Na verdade, elas [as Cortes] se empenharam em estabelecer a supremacia política e comercial de Portugal no Brasil, que ocorreria não mais pelo estabelecimento do exclusivo, e sim em outros termos. E esse empenho foi tachado de recolonizador por uma elite política brasileira. ( Rocha, 2009: 11)
Quando esse discurso ganhou força no Brasil, os redatores do Revérbero Constitucional Fluminense e do Correio do Rio de Janeiro mudaram de posição, se afastaram das Cortes e se aproximaram de d. Pedro. “Somente após as medidas das Cortes interpretadas como arbitrárias, Gonçalves Ledo abraçou a causa da separação” ( Neves, 2024: 227; cf. Leme, 2022:143; Silva, 2022: 124). Para o argumento desse artigo, importa menos a inexistência da factualidade de um esforço recolonizador, mas sim que havia uma percepção comum entre os letrados, no mais das vezes inventadas pelos mesmos sobre essa possibilidade. Nem pretendemos aqui debater a dimensão ideológica ou normativa dessa empreitada. Se os liberais republicanos acreditavam nisso ou se apenas se renderam a uma confluência do momento também é menos relevante para nós. “O que importa é que a denúncia da tentativa de recolonização teve efeitos políticos práticos no Brasil” ( Rocha, 2009: 12). O fato de que a “ideologia” da “recolonização” produziu uma “mentalidade” ( Rocha, 2009: 115) é suficiente para nosso argumento. E tão importante quanto isso, é o fato de que “era ampla a difusão de interpretações que replicavam, cada vez com maior intensidade, o caráter ‘recolonizador’ das Cortes” (Oliveira, 2022b:102).
À medida que essa mentalidade se espalhava, paulatinamente, os periódicos liberais republicanos se aproximavam de d. Pedro e daqueles defensores da separação do Brasil (cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 26/2/1822; Molina, 2015: 206). Em parte, isso se deve ao fato de que, da ótica dessa união das liberdades de Constant, o autogoverno nacional começava a se apresentar como uma alternativa. Paradoxalmente, a aproximação com o príncipe regente era a forma mais contundente de defender o princípio republicano de que brasileiros devem ser governados por brasileiros. Isso pode ser percebido no aumento progressivo das críticas, cada vez mais virulentas, às Cortes e dos elogios a d. Pedro. É claro que isso mudaria meses depois quando d. Pedro decide por não aceitar a Constituição (Sodré, 1975:66). Esse contexto revela também o cuidado com o qual os redatores precisavam se posicionar ( Rizzini, 1988: 376), uma vez que a proximidade com qualquer adesão constitucional arriscaria, dizia-se, uma empreitada recolonizadora, e aquela independentista poderia consagrar o absolutismo (Oliveira, 2022a:132). De fato, esse cuidado se mostra com clareza nos próprios textos, quando optam por citar ou não um autor.
A fim de marcar algumas citações indiretas, confirmando portanto a retórica do uso da autoridade, é possível encontrarmos desde reproduções literais de trechos inteiros até menções bem menos evidentes, antes e depois do contexto dessa mentalidade recolonizadora. Nas diferentes manifestações republicanas e suas recepções, alguns autores são mais preteridos que outros. O exemplo clássico é Maquiavel que, sempre que nomeado ( Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821; 22/1/1822), os redatores o atrelam à perfídia e despotismo. Entretanto, é possível encontrar menções indiretas, como ocorre também no mesmo texto em que é criticado ( Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821; cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 19/3/1822) a respeito da relação entre virtude e fortuna, de modo não apenas pragmático, mas inclusive respeitoso e laudatório.
Esse tipo de citação sem nomear o autor era algo bastante comum entre esses periódicos, particularmente, quando se tratava de autores marcadamente republicanos e tomados pelo debate público como radicais. Podemos aqui lembrar que James Harrington foi citado pelo Revérbero Constitucional Fluminense , literalmente e sem a nomeação, algumas vezes: “os homens são sufficientemente maduros para ouvirem os seus verdadeiros interesses, com tanto que sejão apresentados com clareza” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821). O contexto da passagem é a defesa de uma reunião das Cortes a fim de se criar um regime constitucional. Harrington (1977: 719) afirmava, em uma conhecida passagem comum entre os republicanos de sua época, que o interesse não mente se ele for debatido com clareza e transparência, justamente nos pontos em que argumentava por uma Constituição escrita e soberana.
Já autores como Locke, Montesquieu e Constant eram bem mais aceitos no debate público16. Ainda assim, das passagens mais republicanas de cada um deles eram retirados seus nomes: “não adherir aos generosos sentimentos da Nação toda, e continuar á ver indifferentemente cortarem as nossas árvores para colherem os frutos” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/12/1821). A ação de cortar uma árvore para colher os frutos é uma das definições de Montesquieu do regime despótico e aqui está indiretamente sendo empregada para definir as atitudes arbitrárias das Cortes de Lisboa17. “Quando os selvagens da Luisiana querem colher o fruto, cortam a árvore em baixo e apanham-no. Eis o governo despótico” (Montesquieu, 1964:292).
Em uma glosa de James Madison, João Soares Lisboa afirma que “os representantes de uma nação não têm o direito de fazer o que a nação não tem direito de fazer por si mesma” ( Correio do Rio de Janeiro , 10/4/1822), o que parece seguir o Revérbero Constitucional Fluminense (22/1/1822), ao afirmar que “esta errada doutrina: o outorgado tem mais poder que o outorgante”. Um dos temas centrais do Federalista era justamente limitar a autonomia de acesso ao poder através do princípio segundo o qual nenhuma assembleia possui legitimidade de agir além da legitimidade daqueles que a elegeram ( Correio do Rio de Janeiro , 15/4/1822; 17/4/1822; 4/8/1823; Leme, 2022:147), o que é constantemente lembrado pelo redator que “a Soberania reside na nação” ( Correio do Rio de Janeiro , 10/4/1822; cf. Leite, 2000: 93). Ainda no universo norte-americano, o Revérbero Constitucional Fluminense (8/1/1822) reafirma a famosíssima máxima de Thomas Jefferson que “ninguém pode disputar a qualquer Nação o direito que tem a querer ser feliz, nem repreender-lhe os meios lícitos de consegui-lo”. Entre os antigos, destacam-se oradores e historiadores romanos ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/12/1821) sem grandes marcas republicanas.
Cidadania e Virtude
Existe um conjunto significativo de conceitos nas mais diferentes matrizes do republicanismo que, em parte, é capaz de aproximá-lo ou afastá-lo de outras tradições políticas ocidentais, sobretudo o liberalismo e a democracia. Um dos exemplos consagrados reside justamente na intercessão entre republicanismo e liberalismo a partir da doutrina de Estado de direito ou, em um vocabulário mais tradicional, império da lei ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/10/1821; 15/12/1821). Tal princípio se ancora na ideia de que as leis, em si mesmas, suspendem qualquer existência de privilégios, o que significa que ninguém está acima das leis e que todos devem estar em relação de igualdade diante dela ( Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821). Em casos específicos, como de regra em tradições longínquas, há fraturas sobre o significado concreto dessa definição corriqueira e até mesmo simplória. O mesmo se pode dizer de temas como o governo misto em esquemas de divisão dos poderes com separação de funções, no mais das vezes, em formas contratualistas ( Correio do Rio de Janeiro , 3/5/1822)18. O que nos interessa para nosso argumento é o entendimento de Estado de direito, no contexto da independência do Brasil, que de modo nenhum separava as linguagens republicana da liberal. Por isso, nessa seção, optamos por conceitos mais ferrenhamente atrelados às tradições republicanas a fim de marcarmos a presença dessa linguagem, a saber, cidadania e virtude.
Inúmeros estudos já se debruçaram sobre o tema da cidadania no Brasil, desde sua formação até as crises do século XX. Particularmente o trabalho de José Murilo de Carvalho (2013) chama a atenção para as conquistas e dificuldades encontradas nesse longo percurso. O historiador parte da conceitualização fundante nas ciências humanas, estabelecida por T. H. Marshall, de que os direitos políticos, sociais e civis foram conquistados ao longo dos séculos XIX e XX, em um processo lento e paulatino. O presente artigo, reconhecendo toda a importância daquela pesquisa, visa jogar luz nas dimensões propriamente republicanas da cidadania, que, importante frisar, não necessariamente, ou não apenas, se relacionam com o universo dos direitos19. Sem negá-los, o republicanismo se assenta também em bases de participação política, no sentido próprio do cuidado da coisa pública e, sobretudo, no fato de que “o conceito de igualdade é interno ao conceito de liberdade, e que a liberação dos indivíduos se passa pelo acesso à condição igualitária de cidadão, por sua integração em um todo cívico onde eles são uniformemente submetidos à lei” ( Spitz, 2005: 17). Esses termos podem ser pensados como formas de cidadania e participação anteriormente às grandes revoluções do século XVIII e que, de algum modo, se estenderam para os séculos seguintes. Enfim, para nossos objetivos, a separação analítica entre cidadania jurídica e cidadania participativa estrutura nosso argumento.
O ponto de partida dos periódicos é caracteristicamente republicano: há uma profunda associação entre cidadania e virtude, ainda que não descuidem da linguagem do interesse e da do direito. Existe, entretanto, uma modelação na linguagem que torna o Correio do Rio de Janeiro , sobretudo em sua primeira fase, ligeiramente mais próximo da linguagem marcadamente liberal dos direitos e até mesmo complacente com versões monarquistas mais centralizadoras ( Leite, 2000: 54; Ribeiro, 2009: 218). Ainda que João Soares Lisboa enfatize a igualdade perante as leis e as liberdades individuais, em notas abertamente jusnaturalistas, não abdica da participação cívica como elemento fundante da nação ( Correio do Rio de Janeiro , 15/4/1822). Esse é um de seus pontos de partida mais característicos, qual seja, a necessidade de constituir uma nação tem como requisito a formação de cidadãos desinteressados e comprometidos com o bem público. Desse modo, ele visa conciliar a linguagem do liberalismo francês da época da Restauração com um republicanismo clássico, no sentido preciso de patriotismo e abnegação individual ( Correio do Rio de Janeiro , 22/4/1822).
O Correio do Rio de Janeiro compara a infância das nações a uma família, na qual o papel de pai se aproxima ao de um rei e, quando atingida a maioridade, seus filhos tornam-se independentes do pai, mas este continua a receber respeito e admiração20. Portanto, emerge “a necessidade absoluta de mudarem ou modificar a natureza dos governos dos povos, à medida que elles avanção em idade” ( Correio do Rio de Janeiro , 30/4/1822). Não obstante se possa ler uma defesa da monarquia ( Ribeiro, 2009: 219), evidencia-se que “todos os entes que ella [a natureza] há creado são nascidos para serem livres” e, assim, a “forma de governo de um povo deve mudar”. E conclui afirmando que “He uma verdade eterna e incontestável, que cada passo que dá huma nação para as luzes da civilização, seu Soberano desce hum degrau do throno” ( Correio do Rio de Janeiro , 1/5/1822).
A emergência dos governos é, na verdade, uma necessidade humana, visto que a autoridade original, comparável ao despotismo benevolente do pai, se deteriora com o tempo à medida em que as crianças crescem ou que as nações amadurecem. Todavia, nesse percurso, as sociedades perdem a comodidade da dedicação paterna e necessitam de instituições representativas, característica de sociedades maduras, que não dependem mais de seus pais. Na verdade, estamos diante de uma profunda inspiração de Thomas Paine, em seu famoso Common Sense (1776), quando afirma que é “na origem e desenvolvimento dos governos, a saber, um modo necessário pela inabilidade da virtude moral de governar o mundo, que também está a forma e a finalidade do governo” ( Paine, 1995: 8). O argumento de João Soares Lisboa é que a honra e a glória naturais do despotismo paterno se perde à medida em que as crianças crescem e o pai declina com a idade, surgindo, assim, a necessidade de representação. Em Paine, a virtude natural declina conforme as sociedades se engrandecem, necessitando a destruição de despotismos e monarquias e emergindo o governo representativo. A diferença fundamental entre os dois reside na separação entre a honra e a glória, em Soares Lisboa, e a virtude, em Paine, que levam à conclusão por uma monarquia constitucional e uma república, respectivamente. Portanto, cidadania e representação se tornam, na maturidade, inseparáveis.
Uma vez que a nação e a pátria, termos usados de modo intercambiável, estavam por ser criadas, algo do interesse individual, corriqueiro e relacionado à defesa da propriedade e da economia de mercado21, estaria associado à criação de um Estado que garantisse a igualdade perante as leis e a universalidade do direito ( Correio do Rio de Janeiro , 26/4/1822). Soares Lisboa não enxerga essas duas versões – de um liberalismo mais individualista e uma cidadania ativa – como contraditórias, no sentido muito próximo do que vimos na seção inicial. Seu argumento caminha para uma interdependência entre ambas, dado que os direitos somente seriam assegurados mediante forte civismo. Quando cada indivíduo defende seu interesse, precisaria de virtude para fazê-lo22. Em texto bem representativo disso, intitulado “Daquelles que são cidadãos em hum Estado, e daquelles que não são”, logo após retomar a doutrina de Montesquieu a respeito das dimensões territoriais e a população para tratar do tema em tela, escreve: “O verdadeiro cidadão é aquelle que ama sua pátria e seus compatriotas [...] Quero demonstrar, em poucas palavras, que aquelle que possue muito não he cidadão, e o que nada possue he ainda menos se é possível” ( Correio do Rio de Janeiro , 20/5/1822). Nesse ponto, ele faz uma inflexão no texto e apresenta, sem citar nomes, um argumento caudatário de Harrington, de que “o poder político segue a propriedade” (Harrington, 1977:163), de tal sorte que a distribuição da propriedade tem impacto direto na forma de governo. Quando um país tem sua propriedade bem distribuída, segue Harrington (1977: 180), ele não pode ser senão uma república. Ora, ao defender que o cidadão deve ter uma posse mediana, João Soares Lisboa está seguindo de perto o argumento de Harrington, destacando de modo contundente a participação. Mas é preciso um complemento:
he invencível e inspirado do Ser Supremo, o homem livre que toma a armas [ sic ] para defender sua pátria, e que não ambiciona salario senão a honra e a glória de exterminar o inimigo [...] Hum punhado de cidadãos, armados para defender a sua pátria, são verdadeiramente invencíveis. Sua presença só he capaz de espantar e pôr em fugida hum déspota, e muitos mil de seus cúmplices armados e assalariados para combater a liberdade de huma nação. ( Correio do Rio de Janeiro , 20/5/1822)
Observa-se aqui o tropo clássico da cidadania armada maquiaveliana transmitida por Harrington (1977: 446). Todos os termos estão presentes: a interdependência entre interesse privado e interesse comum, a necessidade de o cidadão defender militarmente sua pátria – pois sua liberdade e a da pátria são complementares -, a honra e a glória do combate ao inimigo invasor. Essa suposta abnegação virtuosa deve ser lida, nos termos do próprio João Soares Lisboa ao seguir Harrington, como a defesa também da propriedade privada. Observe-se, por fim, que ele sequer mobiliza, nesse contexto em que trata da cidadania, a linguagem dos direitos, basta a unidade entre cidadania e interesse, do vínculo da propriedade com a pátria, ou seja, uma cidadania participativa de um liberalismo republicano, e não um atributo meramente jurídico. Em uma palavra, “todos temos que defender a própria existência, a Pátria, e decoro Nacional” ( Correio do Rio de Janeiro , 11/4/1822)23.
Diferentemente do Correio do Rio de Janeiro , o Revérbero Constitucional Fluminense emprega abertamente a linguagem da virtude republicana preterindo, nesse ponto, a da propriedade privada. Contudo, essa virtude se assemelha muito ao patriotismo descrito por Soares Lisboa correlacionado ao autogoverno coletivo ( Slemian, 2006: 162). A regeneração dos habitantes de uma nação somente ocorre na melhoria da
Moral Pública [...] com o que, além da igualdade de direitos, se estabelecerá, com a maior aproximação possível, a individual: e com o que se formará colectivamente a Nação de Cidadãos virtuosos, no que exclusiva, e definitivamente consiste a forma, duração, e felicidade imperturbável dos Estados. [...] A Liberdade sem virtude, degenera em licencia, e cedo ou tarde, em Anarquia, peior que o despotismo. ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/12/1821)
Antes de um discurso exclusivamente moralista, a passagem expressa um verdadeiro programa de criação de uma nação, tal qual o Correio do Rio de Janeiro , através de uma cidadania efetivamente republicana. Primeiramente, os redatores defendem uma igualdade mais profunda do que aquela formalizada pelos direitos, o que significa avançar também em uma cidadania participativa. Não fica claro do que se trata quando falam de igualdade individual, mas a julgar pelas inúmeras edições que tratam do tema (cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 1/12/1821), eles se referem à igualdade cívica, de participação (cf. Silva, 2022: 121). Apenas com ela uma nação de cidadãos virtuosos se formará e, em decorrência, realizará a forma, duração e felicidade. Deve-se atentar aqui para os termos que caracterizam esse Estado forjado na cidadania. Uma vez que o Revérbero Constitucional Fluminense repete incansavelmente a autodeterminação dos povos nas suas respectivas escolhas em relação à forma de governo que pretendem adotar, o texto acima sequer fecha questão por uma monarquia constitucional, se a igualdade e a cidadania forem desenvolvidas. Por fim, numa linguagem rousseauniana atrelada ao temor norte-americano da anarquia, o texto une liberdade e virtude de um modo tal que a primeira não se sustenta se for de indivíduos isolados, isso é, a liberdade depende de uma congregação moral. Isso quer dizer que a liberdade individual e coletiva, como apontamos acima, não pode ser desatrelada de uma igualdade substancial de cidadania e, eventualmente, uma igualdade “de bens” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 19/3/1822).
De fato, passagens como essa são bastante comuns nos escritos de Gonçalves Lêdo e Januário da Cunha Barbosa, oscilando, no mais das vezes, de elementos mais igualitários para outros mais voltados para a virtude ( Revérbero Constitucional Fluminense , 22/1/1822), sempre a se opor ao despotismo:
São grandes, devo confessar, os riscos que tereis de correr: mas como pode a Liberdade alcançar-se sem perigo em Nações onde o Despotismo tem abafada a confiança, e sufocadas as virtudes? Onde em vez de Cidadãos Amigos, trata-se de formar homens hypócritas, fanáticos, pérfidos, e insidiosos? ( Revérbero Constitucional Fluminense , 29/1/1822)
Em carta anônima publicada no Revérbero Constitucional Fluminense , a virtude republicana se torna ainda mais evidente do que nas edições anteriores, ainda que, na edição anterior ( Revérbero Constitucional Fluminense , 5/3/1822), os redatores já haviam imprimido um caráter mais explícito ao teor republicano. O texto se inicia assim:
A Virtude he a alma da república; promove-la por Leis para supressão do vício e immoralidade, seria hum meio tão inefficaz, como pela multiplicidade e grandeza de Careceres. O único méthodo de prevenir os crimes, e fazer o Governo durável, he diffundir luzes e sentencias pelo Estado, como sementes fecundas de todas as virtudes. Na verdade conhecemos, de onde começa a História, ainda com o socorro da nossa Fábula, até os nossos dias; que hum Povo por virtuoso que seja, sem luzes se corrompe; e que hum Povo corrupto pode fazer-se virtuoso pela instrução. ( Revérbero Constitucional Fluminense , 12/3/1822)
É claro que a escolha da palavra “república”, diante de toda a carta, não assume um significado necessariamente antimonarquista, mas o simples fato de seus redatores não censurarem nem criticarem seu uso mostra já uma predisposição para o combate em torno de sua publicação ou, ao menos, um arrefecimento de seu tom execrável. O que é notável nessa carta reside na dimensão pedagógica com a qual o autor desenvolve suas ideias, em tons muito parecidos com aqueles empregados por João Soares Lisboa ( Slemian, 2006: 160). A relação entre instrução e virtude, bem característica de um republicanismo de matriz ciceroniana, conforma uma relação de interdependência entre o interesse privado e público, qualquer sobreposição do primeiro em relação ao segundo não é senão uma falha de caráter ou das luzes. Assim, citando nominalmente Rousseau, Mably e a perfectibilidade humana, o texto segue na argumentação de que a instrução “influe na virtude e felicidade dos Povos, e merece particular atenção aos seus reguladores [...] Todo governo deve cuidar na Instrução Pública. Quanto mais forem iluminadas todas as classes” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 12/3/1822). Esse é um dos poucos momentos dos periódicos aqui estudados em que há uma evidente proposta de ação do governo, na esteira dos redatores, de que a virtude necessita de cidadãos bem formados para a participação nos negócios públicos e estes, por sua vez, não podem dispensar a virtude.
O texto se encerra com propostas concretas de disciplinas a serem ministradas publicamente a todos, e as justifica com uma glosa de Cícero: “Quem conhece a legitimidade de obrigações, e deveres, e a relação entre elles, e a felicidade própria, os enche sem hesitar” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 12/3/1822). Ou seja, obrigações e deveres são atributos combinados e mutuamente dependentes oriundos de uma mesma pessoa ou grupo, que teve a oportunidade de se instruir e desenvolver a virtude. É paradigmático que a máxima do republicanismo clássico seja taxativamente alardeada, principalmente porque ela se opõe frontalmente ao discurso preponderante dos interesses e direitos individuais. Encontramos aqui, então, uma clara posição antiliberal - rara na publicação -, seja em sentido anglo-saxão ou em sentido francês, na medida em que se sustenta que a ação individual visando o bem público tem consequências positivas maiores aos indivíduos que agem do que se agissem em prol de si mesmos. Isso não quer dizer que haja um republicanismo antimonárquico stricto sensu , nem que, por isso, esses periódicos rompam com o alardeado liberalismo moderado. Mas confirma que um liberalismo radical não necessariamente é mais republicano (cf. Lustosa, 2000: 334). De fato, esse espírito republicano está presente nesses periódicos de maneira notável, isso é, na junção da doutrina da concórdia estoico-ciceroniana com um constitucionalismo contratualista.
Chama ainda a atenção que, no mesmo volume, mas em outro texto ( Revérbero Constitucional Fluminense , 12/3/1822), os redatores afirmem que a “obediência no systema Constitucional, he a filha da rasão” ao mesmo tempo em que sustentam que não aprovam “invectivas insultantes, e personalidades odiosas, extranhas ao Bem Comum”. Com poucas linhas de distância, reafirmam os direitos individuais, caudatários do “pacto social” das constituições liberais modernas e o bem comum caudatário da virtude pública (cf. Leite, 2000: 52; Silva, 2022: 127). Para os autores, não há qualquer contradição nisso, visto que é a “Liberdade, que a Lei nos concede” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 12/3/1822), pois é um erro “confundir a liberdade com a licença” ( Correio do Rio de Janeiro , 26/4/1822), e que a “liberdade só pode ser firmemente estabelecida tendo por base a Justiça, e por defensora a Virtude” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 7/5/1822). A lei garante ao invés de limitar a liberdade. Muitos estudos recentes sobre o republicanismo já apontaram seu caráter específico, em diferentes manifestações históricas, na oposição à concepção liberal de que a lei restringe a liberdade ( Pettit, 1997 ; Skinner, 1998 ). Trata-se aqui de uma evidente recepção de um dos marcos mais característicos do republicanismo moderno ( Leite, 2000: 18), burilados com republicanismo clássico e jusnaturalismo moderno24.
Conclusão
Dificilmente se poderia atribuir uma robustez teórica ao Revérbero Constitucional Fluminense e ao Correio do Rio de Janeiro comparável ao uso que fazem, direta ou indiretamente, dos autores canônicos, ainda porque não pretendiam escrever tratados de filosofia política, mas textos de intervenção pública ( Silva, 1989: 14). Contudo, o uso retórico do argumento de autoridade nos periódicos é evidente e eles expressam com clareza uma contundente presença das linguagens do republicanismo moderno em suas diferentes matrizes. Sequer estamos diante de autores que escreviam sistematicamente, embora continuamente, sobre os temas que tratavam. De fato, respondiam às querelas cotidianas mobilizando o que tinham à mão e, nessa chave, misturavam fundamentos liberais com republicanos em um contexto em que essas diferenças, no universo luso-brasileiro e na Europa, eram tênues.
Por estar fora do escopo desse artigo, não mobilizamos as possíveis referências a tradições liberais, como tratadistas jusnaturalistas continentais e, sobretudo, Locke, autoridades presentes em ambos os periódicos (cf. Lustosa, 2000: 48). Mesmo assim, autores como Montesquieu e Constant, comumente associados à tradição liberal, são lidos em chave republicana, como mostramos. Pretendemos jogar luz na linguagem republicana ali presente, chamando a atenção de que ela não deve ser tomada, naquela altura, como antimonárquica. Parece ser verdadeiro, porém, que a linguagem republicana estava mais presente do que se supõe comumente, seja na historiografia tradicional ou dentre aqueles que defendem um republicanismo stricto sensu .25
A recepção dos autores-chave do republicanismo era sacada à medida que os debates públicos o exigiam, de modo que buscar uma coerência interna e sistemática, nos diferentes e tumultuados momentos pelos quais os periódicos passaram, é, na verdade, uma tarefa inócua. E isso é diferente de afirmar que limitavam-se à defesa de um regime constitucional. Quando a mentalidade comum assumiu que as Cortes de Lisboa avançavam em um projeto de recolonização, os redatores de ambos os periódicos, paulatinamente, se afastaram delas e, com isso, de um projeto constitucional26 ( Molina, 2015: 195; Silva, 1989: 16). A tarefa ficou mais difícil. Além de constitucional, a agenda política precisava incorporar a independência e, com ela, a proximidade com o absolutismo ( Leite, 2000: 169; Oliveira, 2022a:125; Silva, 1987: 189; Sodré, 1977: 55). É perceptível, portanto, o ponto de inflexão quando aos poucos começam a abdicar da linguagem republicana, criticá-la mais diretamente e enaltecer a figura de d. Pedro (Oliveira, 2022a:134; Slemian, 2006: 128), mantendo, porém, a veia patriótica dos discursos (cf. Revérbero Constitucional Fluminense , 10/7/1822), imposição do contexto em relação às ideias pretéritas.
*
Esse artigo é fruto da Bolsa de Pesquisa (2023-2024) concedida pelo Edital público (2022) do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional. Agradeço à FBN pela oportunidade de desenvolver essa pesquisa, particularmente, ao setor de Pesquisa.
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Notas
-
1
. Em relação à historiografia da independência, cf. Lynch (2022) que debate três versões: a conservadora, a liberal e a radical. Sobre o tema da “recolonização”, trataremos na sequência.
-
2
. A extensa bibliografia que envolve esses dois personagens, e suas respectivas ideias, foge do escopo desse trabalho. Cf., ao menos, Leite (2000 , cap. 1).
-
3
. Segundo Oliveira (2022b:107), a unidade em torno do Revérbero Constitucional Fluminense estava menos atrelada a um projeto político do que a uma proximidade econômico-social. Ainda que isso seja verdadeiro, não trataremos desse ponto. Sobre os aspectos biográficos de Gonçalves Lêdo, cf. Varela (2010) ; sobre a biografia política de João Soares Lisboa, cf. Ferreira (2017) .
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4
. Um exemplo latente de uma posição contrária é de Silva (1989: 12) ao afirmar que “não constatamos contudo a produção ou consumo de obras de teoria política”. Nossa discordância vai menos na esteira da produção e mais na do consumo. De fato, como uma extensa bibliografia já mostrou, o consumo de obras de teoria política era enorme e muito importante nos debates públicos. Velloso (2006:312) afirma, em relação aos periódicos, que “a ênfase dos estudos tem recaído sobre o autor ou o contexto de produção, negligenciando-se o campo social da recepção”. É no sentido da recepção que o presente artigo se inspira.
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5
. Sobre o republicanismo francês, cf. ao menos Spitz (2005) e Grange (2018).
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6
. Para uma visão normativa a atual do “liberalismo republicano”, cf. Lovett (2015) .
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7
. O republicanismo neorromano em suas formas mais bem acabadas de Pettit e Skinner negam a necessidade de participação e virtude cívica, inclusive, para a garantia das leis, embora reconheça que isso possa ser um meio, ou um instrumento, para a manutenção da liberdade.
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8
. Dagger (1997: 175-81) argumenta algo semelhante ao afirmar que o desenvolvimento da igualdade política pelo liberalismo republicano afirma uma “doutrina perfeccionista” da “boa vida” no sentido de se questionar a possibilidade de uma neutralidade liberal.
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9
. Sobre a recepção da recente economia política no universo luso-brasileiro, cf. Rocha (2009: 47-61).
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10
. O Espelho era um dos periódicos mais próximos do príncipe regente e refletia os próprios interesses do governo da Corte no Rio de Janeiro e, não raro, em disputa aberta com o Revérbero Constitucional Fluminense e o Correio do Rio de Janeiro .
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11
. É interessante notar que há casos em que Rousseau é identificado como “cidadão de genebra” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 15/12/1821) e o Correio do Rio de Janeiro repete seu vocabulário sem citá-lo ( Correio do Rio de Janeiro , 15/4/1822; 20/4/1822).
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12
. Para Lynch (2008: 619), esse viés pode ser entendido como uma “monarquia republicana”. De fato, nossa posição não contradiz essa nomenclatura, salvo pelo fato de que nos parece que esses redatores jogavam mais peso nos termos liberais.
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13
. O entendimento dos redatores de que uma constituição assim seria republicana, ainda que mantivesse um monarca, pode ser oriundo de Montesquieu (1964, vol. 2:304), quando afirma que a Inglaterra é “uma nação em que a república se esconde sob a forma de monarquia”.
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14
. O Revérbero Constitucional Fluminense (22/1/1822) também trata do tema da autodefesa armada relacionada à cidadania. Cf. o comentário de Oliveira (2020: 159), que associa esse ideal republicano à defesa de uma economia mercantilista.
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15
. Segundo Leite (2000: 42), João Soares Lisboa, em 1824, se assume “categoricamente um republicano”.
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16
. Para Rodrigues (1975: 3), Locke era empregado por José Bonifácio e o círculo próximo ao governo, ao lado de Burke, “mestres do conservadorismo inglês”.
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17
. Sobre Locke, cf. Revérbero Constitucional Fluminense (15/12/1821) que trata do “produto do trabalho”.
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18
. Sobre o contratualismo, cf. Revérbero Constitucional Fluminense (26/2/1822); Correio (26/4/1822) e Lustosa (2000: 294).
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19
. Para uma leitura que relaciona cidadania e participação no Correio do Rio de Janeiro dentro de uma perspectiva de uma monarquia constitucional, cf. Ferreira (2020) .
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20
. Sem esmiuçar os conceitos, O Papagaio (4/5/1822 e 6/06/1822), ligado a José Bonifácio, também faz referência à infância de nações, em contraste com os Estados Unidos, a fim de afirmar a maturidade na qual o Brasil se encontra em relação a Portugal. Não há qualquer veia republicana aqui, nenhuma menção à cidadania ou virtude.
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21
. O Revérbero Constitucional Fluminense sempre apresenta argumentos a favor de uma economia de mercado, no mais das vezes, por posicionar-se contrário ao “monopólio Colonial” ( Revérbero Constitucional Fluminense , 5/3/1822; Oliveira, 2020: 120-48).
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22
. Para Oliveira (2020: 197 e 211), a cidadania defendida no Correio do Rio de Janeiro era estritamente proprietária.
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23
. A palavra virtude também é usada no sentido de sabedoria, talento e moderação, o que é algo perfeitamente compatível à luz da tradição ciceroniana ( Correio do Rio de Janeiro , 11/4/1822; Lustosa, 2000: 133).
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24
. Para Oliveira (2020: 156 n. 208), a metáfora senhor vs. escravo se refere a Locke. De fato, o autor inglês menciona essa metáfora, mas ela foi recolhida de autores republicanos ( Skinner, 1998 ).
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25
. Para Heloisa Starling (2018: 262), “o século XIX [...] expôs as diferenças da tradição republicana com o que nos acostumamos a chamar de ‘liberalismo’”
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26
. O Revérbero Constitucional Fluminense se aproximou mais do governo regencial do que o Correio . Este ainda procurou manter por mais tempo alguns dos princípios republicanos defendidos desde o início de sua publicação.
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Declaração de financiamento
Não houve financiamento para esta publicação
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Disponibilidade de Dados de Pesquisa – Não se aplica.
Disponibilidade de dados
Disponibilidade de Dados de Pesquisa – Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Nov 2025 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2025
Histórico
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Recebido
11 Abr 2024 -
Revisado
9 Nov 2024 -
Aceito
19 Dez 2024
