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Weber e o desencantamento do mundo: uma interlocução com o pensamento de Nietzsche

Weber et le désenchantement du monde: un dialogue avec la pensée de Nietzsche

Weber and disenchantment of the world: a dialogue with the thinking of Nietzsche

Resumos

Dans cet article, on oppose la pensée de Max Weber à celle de Friedrich Nietzsche à propos de l'Occident moderne, en prenant comme point de départ les notions de "mort de Dieu" et de "désenchantement du monde". On y examine leurs affinités et différences, surtout sous l'angle du diagnostic de Weber sur la "culture de la technique" et ses effets inéluctables sur la subjectivité. L'hypothèse centrale, c'est que, malgré les points de contact qu'on peut et qu'on doit établir entre ces deux penseurs, il reste un fossé infranchissable, dû surtout à la reconnaissance des pouvoirs de la raison et à la vue du monde culturel construites sous la direction des orientations conscientes.

désenchantement du monde; mort de Dieu; culture de la technique; subjectivité


This article conducts a theoretical confrontation between the thinking of Max Weber and that of Friedrich Nietzsche concerning the modern Western world, based on the notions of "death of God" and "disenchantment of the world". The article explores the affinities and differences between the two thinkers, especially from the angle of Weber’s diagnosis of the "culture of technique" and its inexorable effects on subjectivity. The paper’s underlying hypothesis is that despite the parallels that can (and should) be drawn between the two, what prevails is an insurmountable distance, especially by the recognition of the powers of reason and the vision of a cultural world edified under the command of conscious orientations.

disenchantment of the world; death of God; culture of technique; subjectivity


désenchantement du monde; mort de Dieu; culture de la technique; subjectivité

disenchantment of the world; death of God; culture of technique; subjectivity

Weber e o desencantamento do mundo: uma interlocução com o pensamento de Nietzsche

Weber and disenchantment of the world: a dialogue with the thinking of Nietzsche

Weber et le désenchantement du monde: un dialogue avec la pensée de Nietzsche

Renarde Freire Nobre

ABSTRACT

This article conducts a theoretical confrontation between the thinking of Max Weber and that of Friedrich Nietzsche concerning the modern Western world, based on the notions of "death of God" and "disenchantment of the world". The article explores the affinities and differences between the two thinkers, especially from the angle of Weber’s diagnosis of the "culture of technique" and its inexorable effects on subjectivity. The paper’s underlying hypothesis is that despite the parallels that can (and should) be drawn between the two, what prevails is an insurmountable distance, especially by the recognition of the powers of reason and the vision of a cultural world edified under the command of conscious orientations.

Key words: disenchantment of the world; death of God; culture of technique; subjectivity

RÉSUMÉ

Dans cet article, on oppose la pensée de Max Weber à celle de Friedrich Nietzsche à propos de l'Occident moderne, en prenant comme point de départ les notions de "mort de Dieu" et de "désenchantement du monde". On y examine leurs affinités et différences, surtout sous l'angle du diagnostic de Weber sur la "culture de la technique" et ses effets inéluctables sur la subjectivité. L'hypothèse centrale, c'est que, malgré les points de contact qu'on peut et qu'on doit établir entre ces deux penseurs, il reste un fossé infranchissable, dû surtout à la reconnaissance des pouvoirs de la raison et à la vue du monde culturel construites sous la direction des orientations conscientes.

Mots-clé: désenchantement du monde; mort de Dieu; culture de la technique; subjectivité

PREÂMBULO

Quando se trata de comparar pensamentos de expressiva magnitude, como são os de Weber e os de Nietzsche, costumam ser várias as possibilidades temáticas e as possíveis portas de entrada. É necessário, pois, bem explicitar as opções deste texto. Pretende-se, aqui, refletir sobre as aproximações e, principalmente, as diferenças entre os dois pensadores no que diz respeito às análises produzidas sobre o Ocidente moderno. Mas, assim posto o objetivo, ficam em aberto os caminhos pelos quais se pode construir a problemática. De forma interrogativa: quais os aspectos que devem ser priorizados para uma boa apreensão comparativa dos estudos de Weber e de Nietzsche sobre a época moderna? Ou, que recortes se pretende fazer em seus pensamentos dedicados à "história do Ocidente"?

Começarei pela relação entre a idéia do "desencantamento do mundo" [Entzauberung der Welt] e a idéia da "morte de Deus" [Tod des Gottes]. É uma entrada estratégica pela centralidade destas idéias em cada pensamento para a compreensão do Ocidente moderno, em seus processos e em sua formatação, podendo-se, através dela, atingir as principais semelhanças como também as intransponíveis diferenças que separam os dois pensadores enquanto intérpretes do destino do Ocidente. Como, a partir dessa abertura, ainda são vários os caminhos que podem ser seguidos, prosseguirei por aquele que leva às considerações sobre o "racionalismo" dominante, que impõe a impessoalidade como princípio de orientação e que supõe a consciência como guia, o qual, por sua vez, levará à questão do posicionamento subjetivo. Isso ficará claro pela subdivisão do texto.

O "DESENCANTAMENTO DO MUNDO" E A "MORTE DE DEUS"

Pode-se atestar, a princípio, que as idéias do "desencantamento do mundo" e da "morte de Deus" são rigorosamente antagônicas, uma vez que a gênese da primeira pressupõe, precisamente, o nascimento e a edificação das religiões monoteístas, notadamente o judaísmo e o puritanismo, nas quais se vê a presença de uma sistemática teológica e uma rotinização de condutas autoconscientes calcadas nas máximas de um "dever ser", em franca oposição às superstições, à pragmática e à excelência das ações extracotidianas (ritos) típicas das religiosidades mágicas. Por isso, no seu sentido elementar, a expressão Entzauberung é melhor traduzida como "desmagicização"1 1 . Pierucci (2003) procurou fixar esse sentido original e "nuclear" do "conceito" de "desencantamento do mundo" realizando uma pesquisa minuciosa da aparição da expressão na obra de Weber. Trata-se de um livro referência, não obstante as reservas que lhe fiz (Nobre, 2004a). . Para Weber, o desenvolvimento do campo religioso, via constituição de congregações sacerdotais e sistematização de doutrinas éticas, representa, em si mesmo, um distanciamento em relação às religiosidades mágicas, em maior ou menor grau.

Todavia, foi notadamente em torno do culto de um Deus único e poderoso que melhor se delinearam as racionalizações históricas do campo religioso – tanto no plano da teoria (teodicéia), quanto no plano da técnica (ascetismo) –, ou seja, que se realizou de modo mais conseqüente a expulsão das orientações mágicas. Vê-se bem isso quando se observa que a "graça da predestinação" é a crença que conduz, por um lado, às mais definidas formas de monoteísmo – como se observa com o judaísmo ("povo eleito"), com o islamismo e com o puritanismo –, e, por outro lado, às mais radicais formas de desencantamento, via "desvalorização radical e definitiva de toda administração de graça mágica, sacramental e institucional perante a vontade soberana de Deus" (Weber, 1991a:282-385). Neste segundo sentido, destacam-se o judaísmo e o puritanismo, concebidos como religiões que levaram a termo o desencantamento, ao ponto da ruptura efetiva com a magia, ao passo que outras religiosidades, como o catolicismo e o islamismo, apresentam formas de preservação e convivência com estereótipos e rituais mágicos. No caso do Islã, a crença na predestinação não promoveu o desencantamento por conta de seu traço fatalista e da distância que mantém do cotidiano e da ação, implicando na tolerância da "magia na religião do povo" (idem:384).

Jeová, o Deus judaico, foi a primeira divindade supramundana em relação à qual se fixou um princípio de convivência estritamente não-mágico, posto que "racional" (obediência das leis tradicionais). Quanto ao Deus puritano da predestinação – principalmente o calvinista –, ele foi elevado à mais pura irracionalidade, cuja vontade ininteligível corresponde a uma doutrina ética que abandona a tarefa de dar um sentido homogêneo ao mundo; em contrapartida, vê-se fortalecido o princípio de que, somente através de condutas e realizações racionais, é possível obter sinais da graça divina. Como uma prova da firmeza dessa inclinação, o puritanismo, ao se voltar para o campesinato, em vez de adaptar-se ao campo, aceitando elementos tradicionais e mágicos, promoveu a intelectualização dos fiéis pelo domínio da palavra escrita. O puritanismo é a evidência de uma motivação religiosa que radicaliza, como nenhuma outra, o "desencantamento do mundo", como cultura religiosa ascética que favorece diretamente a secularização. Para tal, concorrem duas razões fundamentais. Por um lado, tem-se um grau extremado de racionalização da relação do fiel com seu Deus, via eliminação de toda e qualquer forma de magia (até mesmo a magia da força sacerdotal) e, de modo mais amplo, pela rejeição de tudo o que é tido como irracional ou demasiado pessoal nas condutas (sensualismo, ócio, esbanjamento, intimidades etc.). Por outro lado, tem-se uma explícita legitimação do racionalismo secular e impessoal. Como praticante de um "ascetismo intramundano", o puritano apega-se ao que é mais racional (técnico, controlado, regular, cotidiano) e passa a ver nisso os sinais da glória de Deus. Dentre outras, há uma passagem em que Weber explicita claramente esses elementos da ascese puritana.

"Não a castidade, como no monge, mas a eliminação de todo ‘prazer’ erótico, não a pobreza, mas a eliminação de todo prazer à base de rendas e da alegre ostentação feudal da riqueza, não a mortificação ascética do convento, mas o modo de viver desperto, racionalmente dominado, e a evitação de toda entrega à beleza do mundo ou à arte ou às impressões e sentimentos próprios, estas são a exigência, disciplina e método no modo de viver, o fim unívoco, o ‘homem de vocação’, o representante típico, a objetivação e socialização racionais das relações sociais, a conseqüência específica, do ascetismo intramundano ocidental em contraste com todas as outras formas de religiosidade do mundo" (Weber, 1991a:373, ênfases do autor).

Nesta passagem, fica explícita a afinidade da ascese religiosa intramundana com o moderno Ocidente, cenário histórico das grandes racionalizações e da multiplicação das relações societárias racionais. Dentre todas as imagens religiosas e teodicéias mundiais, somente a ascese da vocação intramundana contribui, de forma unívoca e coerente, para a efetiva racionalização das relações sociais. E o puritano o fez, como o vimos, pela eliminação da mística, do ritualismo e do irracionalismo em geral, mas também pela elevação das ações e sucessos racionais à condição de sinais superiores da eleição divina, ou seja, uma mescla de rejeição e aceitação ascéticas do mundo.

Para melhor entender a boa performance do ascetismo intramundano na configuração da secularidade racional moderna, deve-se realçar o fato de que no interior da cultura puritana se produziu uma relação com o sagrado em que se prescinde da necessidade de conferir um "sentido ao mundo", donde precisamente a melhor adaptabilidade às rotinas impessoais e sem sentido do afazer racional. Segundo Weber:

"O asceta, quando quer agir dentro do mundo, isto é, quando se trata de um ascetismo intramundano, deve estar dotado com uma espécie de obtusidade tranqüila em relação a qualquer questão acerca de um ‘sentido’ do mundo, não se preocupando com este. Por isso, não é por acaso que o ascetismo intramundano tenha podido desenvolver-se de forma mais conseqüente precisamente sobre a base da concepção calvinista da absoluta inescrutabilidade dos motivos da ação divina, subtraída ao alcance de todos os padrões humanos" (idem:368).

O puritano, notadamente o calvinista, mostra-se o agente adaptado às esferas sociais cujas orientações de conduta são de tipo impessoal e não-ético, como são os casos do capitalismo aquisitivo, da ciência empírica, do formalismo racional do direito e do Estado moderno secularizado. Os processos racionalizadores da cotidianidade ocidental – que, antes, sofriam oposição das práticas mágicas e das religiões sacerdotais que pretendiam ordenar eticamente o mundo – encontram no puritanismo um aval ideativo nunca antes manifesto nas relações entre o mundo das rotinas ordinárias e as imagens religiosas. O produto mais notável da combinação da imagem de uma divindade insondável e a de um mundo da perdição é, sem dúvida, o desenvolvimento de uma ética racionalizadora do trabalho. O puritano, portador da doutrina da predestinação como teodicéia que afirma de modo exemplar a inescrutabilidade da vontade divina, apresenta-se como um agente obstinado à conduta desperta, autocontrolada e racionalmente eficaz. A equação para caracterizar a dimensão do desencanto na versão religiosa mais conseqüente é curiosa: a irracionalidade do mistério de um Deus supramundano, incluindo a incerteza da salvação, leva à aceitação do sem sentido do mundo, o que, por sua vez, libera o fiel para agir racionalmente "dentro do mundo", único modo de a criatura distinguir-se de sua vileza e apaziguar as suas incertezas.

Em se tratando de uma religiosidade de extração cristã, há a singularidade do abandono da ética da "fraternidade universal", substituída pela participação ativa (e sem culpa) nas ordens impessoais do mundo, as quais se caracterizam pelo predomínio de orientações baseadas em leis abstratas e em critérios de eficácia. Rompe-se com a idéia de um deus misericordioso, superando-se o problema de como compatibilizar a bondade infinita de Deus com a presença do mal no mundo. Mas, de modo mais amplo, o asceta intramundano não quer dar sentido nem ordenar eticamente o mundo – que é o antro incorrigível da vileza da criatura humana –, por isso, como se sabe, na análise weberiana, ele não age para corrigir completamente o mundo ou mesmo para conseguir a salvação – uma vez que o "aqui e agora" é irremediavelmente imperfeito, e que a vida no "além" é desígnio de uma vontade absoluta e insondável: ele age, sim, para obter o consolo e também o orgulho psicológico de se sentir um dos "eleitos". Com isso, deve ficar claro que não se obtém uma imagem do puritano como um ideólogo dos "interesses" racionais mundanos, onde quer que eles se explicitem, pois, se os mesmos foram fomentados, o foram em favor de um apelo religioso convicto e para a glória divina.

A idéia nietzschiana da "morte de Deus", por sua vez, em contrapartida às racionalizações do campo religioso – no qual se situa o sentido original da expressão "desencantamento do mundo" –, refere-se a uma efetiva perda de importância dos valores sagrados, uma vez que os sentidos pelos quais os fiéis justificavam e regulavam suas vidas se viram inexoravelmente desvalorizados, desacreditados, ao que Nietzsche se refere como sendo a falência dos "valores superiores". Como a famosa "notificação de óbito" de Deus tem como alvo a divindade cristã, ela aplica-se diretamente à história do Ocidente, na qual a crença em um Deus todo poderoso supra-sensível, imutável, onisciente e supramundano foi, durante milênios, o fundamento das máximas de uma vida e uma consciência morais, portanto, fonte superior dos predicados da justiça, da bondade e da verdade. A afirmação no Ocidente de um modo de vida pós-convencional (o que, em Weber, corresponde à primazia de um "racionalismo de domínio do mundo") é prova cabal de que o velho Deus fora dispensado do governo dos pensamentos e das ações mais cotidianos.

Como o fenômeno da "morte de Deus" caracteriza uma forma de vida em que os preceitos éticos – religiosamente postos em substituição aos "rituais mágicos", para dar sentido metafísico à vida – perdem validade, pode-se dizer que a "morte de Deus" corresponde ao "desencanto" da ética, uma espécie de deseticização. Mas, assim, curiosamente, vemos uma possível aproximação com a noção weberiana de desencantamento, não obviamente na sua expressão original de "desmagificação" via racionalização religiosa, mas na sua forma mais tardia: a da consolidação de "esferas culturais" na forma de estruturas societárias de ações orientadas por regras e regulamentos impessoais. Assim, o desencantamento tardio, impetrado pelos processos seculares de intelectualização do pensamento e de instrumentalização das ações, constitui a versão weberiana sócio-histórica de um mundo sem Deus. Vimos o quanto, em Weber, o caminho para o domínio racional do mundo remete ao ascetismo intramundano como expressão de uma conduta religiosa de vida que reflete, sobremaneira, a desistência de se conferir um sentido ao mundo e a disposição para constituição de institucionalidades e de práticas sociais fora do âmbito das considerações pessoais. A ascese intramundana deixa de postular um sentido para o mundo e substitui uma noção de compromisso com o "povo de Deus" (judaico) ou com os "pobres e infelizes" (católico) pelo mote de uma atenção rigorosa e vigilante com a salvação individual, que, em não podendo ser conquistada, deve ser sinalizada permanentemente, em todo tempo e lugar, via domínio metódico de toda a vida.

A hipótese que me parece a mais adequada, portanto, é a de que o puritanismo representa algo como uma efetiva transição entre o sentido do desencantamento como desmagicização e o desencantamento enquanto deseticização do mundo, tarefa que, todavia, só será plenamente completada com a consolidação de ordens mundanas seculares e autônomas em relação a quaisquer imagens religiosas do mundo, inclusive a puritana. É justamente o processo de deseticização, para além da desmagicização, a que se refere a idéia da "morte de Deus". Negando-se a regular o mundo como um sentido e entregando-se às significações racionais como sinais da graça divina, o puritano revela-se o devoto adaptado a um mundo de rotinas seculares. Talvez a interpretação weberiana não nos autorize dizer que o puritano assassinou Deus, pelo menos não de modo consciente, mas, em certo sentido, ele preparou o terreno para que isso se desse de forma sistemática, rotineira e sem culpa, e o fez, de maneira mais conseqüente, ao lançar a "vontade divina" para o reino do imperscrutável e ao lançar a sua própria vontade para os domínios da razão desperta e eficaz.

Assim, o que há de oposição entre as duas idéias aqui cotejadas – de um lado, o Deus vivo e operante das éticas religiosas; do outro, o Deus morto e impotente da condução secular da vida – está muito longe de cobrir toda a riqueza de detalhes e, conseqüentemente, as várias possibilidades de diálogo que se pode estabelecer entre as mesmas. O principal ponto a se destacar é o de que a diferença apontada não implica a rejeição das idéias entre os autores, antes pelo contrário. No caso de Nietzsche, ele corroborou o princípio da formação de consciências morais, de base religiosa (e não-mágica), como fundamento da cultura ocidental, destacando, tal como Weber, a importância do agente sacerdotal (ver Genealogia da Moral e o Anticristo) e, de modo pouco notado e anteriormente ao sociólogo, observou o paroxismo do protestantismo como religião secularizante. A seguir, uma pequena digressão sobre os insights weberianos de Nietzsche a respeito disto, antes de melhor demonstrar a aceitação, em Weber, da idéia da "morte de Deus", ou melhor, exatamente para que se possa chegar a demonstrá-la.

Dos grandes filósofos modernos, Nietzsche foi quem maior centralidade deu à tradição do cristianismo para sua compreensão da história e do destino do Ocidente. Quem conhece minimamente o seu pensamento sabe que ele o fez com um propósito pessoal decisivo: superar em si mesmo a herança cristã. Assim, ele mesmo se autodefiniu em um dos seus últimos escritos: "Fui compreendido?: – Dionísio contra o Crucificado [...]" (Nietzsche, 1995:117). Ele compreendeu que a tarefa para a qual se dispôs tinha a ver com uma experiência cultural, com o fato de ele, como indivíduo, poder apreender na história da cultura da qual era participante os acontecimentos e as simbolizações necessárias à superação do cristianismo. Significa dizer que era no interior da cultura que se dava o processo fundamental de auto-supressão da moral cristã tradicional, e que caberia aos "espíritos livres" serem, a um só tempo, a mais clara afirmação e a mais ousada superação de um processo histórico-cultural singular.

Para o seu tempo, Nietzsche destacou a Reforma luterana como o acontecimento alemão mais recente e mais típico, que se impôs contra a Renascença (Nietzsche, 2000b:164-165; 1995:103-105; 1988b:41-43 [1998b:43-45]). Em uma leitura que antecipa as famosas análises de Weber sobre o tema, o filósofo compreendeu a tendência fortemente secular ou mundana do protestantismo, de ser ele uma religião que se espraiou entre comerciantes, que apregoou a laboriosidade e que alimentou o ideal racionalista na filosofia alemã (Nietzsche, 1988a:64 [1996a:65]; 2000a:246 [2001:244]; 1996b:32-33; 1995:103-104). Sobre a consciência alemã pesava "a espécie mais imunda, incurável e irrefutável do cristianismo, o protestantismo", que impediu uma efetiva transvaloração renascentista dos valores.

Para fixar o "traço weberiano" das interpretações de Nietzsche sobre a relação entre o protestantismo e a modernidade, vale a pena transcrever uma passagem da sua obra alusiva ao tema:

"A trivialização do espírito europeu, sobretudo no Norte, sua edulcoração, se preferirem um termo moral, deu um bom passo à frente com a Reforma de Lutero, não há dúvida; [...] é também co-responsável pela degeneração do moderno erudito, por sua falta de reverência, pudor e profundidade, por toda a ingênua candura e bonomia em coisas do conhecimento, em suma, pelo plebeísmo do espírito [...]. Também as idéias modernas são parte dessa revolta camponesa do Norte contra o mais frio, ambíguo e desconfiado espírito do Sul, que com a Igreja cristã ergueu seu maior monumento" (Nietzsche, 2000a:262-365 [2001:258-260]).

Embora suas considerações sobre os impactos da Reforma sejam bem menos eruditas e mais restritas do que as de Weber, centrando-se nas repercussões morais (e do luteranismo apenas), em especial sobre a alma alemã, e embora elas tenham um teor judicativo e estranho aos propósitos científicos do sociólogo-historiador, há um ponto em que o filósofo se aproxima sensivelmente do sentido que Weber virá a conferir ao fenômeno: a Reforma vista como um movimento religioso típico do norte europeu, que se aproxima dos assuntos mundanos na justa medida em que afasta os homens dos sentimentos religiosos mais básicos e tradicionais (Nietzsche, 1988a:63-65 [1996a:60-61]; 2000a:262-265 [2001:258-260]), lançando-os em direção aos interesses práticos, o que Unamuno chamará de a "vocação terrestre" do protestantismo, ao substituir a "religião" pela "moral" (Unamuno, s/d:59-61).

E como soa weberiano, novamente, esse outro parecer de Nietzsche sobre a importância do protestantismo para a afirmação histórica de um tipo "ordinário" [Gewöhnlich] de homem: "Ascetismo e puritanismo são meios de educação e enobrecimento quase indispensáveis, quando uma raça pretende triunfar de sua origem plebéia e ascender ao domínio futuro" (Nietzsche, 1988a:67-68 [1996a:64]). Acima de tudo, conforme Weber tão enfaticamente depois observará, havia, por parte do filósofo, uma compreensão do "paradoxo" interno do protestantismo como religião voltada para a secularidade mundana, o quanto Lutero "não sabia o que fazia" e seus motivos geraram efeitos contraditórios (Nietzsche, 2000a:264 [2001:259]). A Reforma era um sintoma de "trivialização do espírito", expressão de uma "sede de independência", aspiração ao "domínio futuro" e promotora da "ciência moderna" (idem), interpretação afim às considerações de Weber sobre a influência do puritanismo (mesmo que não intencional) na formação do "homem médio", do "especialista sem espírito", do "sensualista sem coração" e para o desenvolvimento do racionalismo moderno em termos gerais. No essencial, o que os dois pensadores destacam é o significado secularizante da Reforma para o destino do moderno Ocidente.

Todavia, de forma ainda mais direta que a afinidade sobre os efeitos secularizantes da Reforma, há a aceitação por parte de Weber da "crítica devastadora" de Nietzsche aos "últimos homens" [letzten Menchen]. Uma alusão ao termo aparece no final do seu famoso estudo sobre protestantismo e capitalismo, quando os "últimos homens" são retratados como rebentos finais do desenvolvimento técnico-cultural, como "especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado" (Weber, 1969:189 [2004:166]). Em outra alusão, eles são relembrados como aqueles que "inventaram a felicidade" (idem, 1991b:255; 1982:69), ao procurarem confeccionar um sentido moral (secular) à vida. São os espíritos práticos e superficiais, desprovidos de transcendência, mas incapazes de levar a condição mundana às últimas conseqüências. No entanto, a despeito da aceitação weberiana da crítica aos "últimos homens", e a despeito ainda do sentimento comum de banalização da vida sob domínio dos interesses mundanos, a tese central deste texto é a de que, para o sociólogo, destoando-se do filósofo, a recusa da crença em novos profetas (ou em se querer viver como Jesus, Buda ou São Francisco), embora envolva uma clareza espiritual, remete a razões "externas", objetivas, relacionadas às mudanças inexoráveis nas estruturas societárias (Weber, 1995:405; 1992:560). É dessa discordância e dos seus fundamentos que tratarei daqui por diante.

WEBER E NIETZSCHE DIANTE DA CULTURA DA TÉCNICA E DA CONDUTA CONSCIENTE

Ao verificar os níveis de coerência e de superioridade técnica apresentados pelas racionalizações no moderno Ocidente, Weber tomou o cuidado de não postular um destino racional para a cultura, não somente porque é inconseqüente supor um mundo desprovido de irracionalidades, mas também e fundamentalmente porque os valores subjacentes às racionalizações mais expressivas são irredutíveis a uma justificação plenamente racional. As diferentes esferas foram racionalizadas conforme pressupostos, que não são de modo algum necessários, que constituem, pois, motivos irracionais, mesmo que estes se apresentem intelectual ou tecnicamente realizados. Tais pressupostos – como a busca da verdade, na ciência, e do lucro, no capitalismo – fazem com que o desenvolvimento e o uso das técnicas de governo, de aquisição monetária e de conhecimento não possam receber uma justificativa racional última. Objetivamente há o desenvolvimento e a consolidação de orientações racionais que substanciam o caráter sociológico e permitem a compreensão do modo (típico) de funcionamento das esferas citadas, mas os sentidos objetivados encontram-se como que sombreados pelo "sem-sentido", e isso por razões intrínsecas: é exatamente a dedicação tão racional a um fim o que carece de sentido. Weber demonstra isso através de um estrito perspectivismo: ao significar o apego a um fim, evidenciado de modo racional, uma esfera mostra-se incompatível com as demais, nas quais se perseguem fins distintos:

"[...] Há, por exemplo, as racionalizações da contemplação mística, ou seja, num contexto que, considerado sob outras perspectivas, é especificamente irracional, da mesma forma que há racionalizações da economia, da técnica, do trabalho científico, da educação, da guerra, do direito, da administração. Cada um desses campos pode, além disso, ser ‘racionalizado’ segundo pontos de vista e fins últimos muito diferentes, e, o que de uma perspectiva é racional, observado de uma outra poderá se irracional" (1995:327 [1997:11]).

O interessante é que as esferas só se mostram objetivamente inconciliáveis quanto aos seus fins últimos, em nome dos quais se racionalizam modos de ação e de pensamento. Não são as "técnicas" que são, em si, injustificáveis, mas o quanto elas se impõem como meios objetivadores de fins, em última instância, contingentes e arbitrários. Verifica-se, então, o paradoxo das racionalizações conduzindo à impossibilidade da plena razão. De um lado, há a consolidação de sentidos plenamente racionalizados, como fins conscientes, com a fixação de regras e procedimentos que regulam a obtenção dos mesmos; do outro lado, há a consolidação do sem-sentido da vida através da divisão inconciliável entre os fins perseguidos. O primeiro plano constitui-se como um problema de "conhecimento" (objetivo), porquanto as esferas cultivadas podem ser racionalmente compreendidas, enquanto o segundo plano constitui-se como um problema de "escolha" (subjetivo), referido às consciências individuais. Embora distintos, exigindo diferentes tratamentos e consolidando a separação entre juízo de fato e juízo de valor, os planos guardam uma relação elementar, pois é justamente a confluência de processos (históricos) de consolidação de formações (sociais) autonomizadas conforme um determinado modo de racionalização o que explicita o destino trágico da experiência cultural no moderno Ocidente como a luta dos "deuses cultivados".

Considerados no âmbito do "racionalismo de domínio do mundo", os valores, como fins, só são "superados" como "convicções" e em suas derivações éticas. Não o são como "imagens" ou "sentidos últimos", pois o fundo arbitrário dos valores permanece vivo, subjacente às mais fecundas técnicas racionais e à clarificação dos fins. Por isso, a dimensão aética das técnicas racionais não implica um extraperspectivismo ou um universalismo absoluto, como também os modos racionais de conhecimento e condução de vida não implicam o monopólio cultural da razão. São os "fins últimos", técnica e intelectualmente postos, os derradeiros guardiões do "politeísmo dos valores", metáfora com a qual Weber designou a condição da modernidade ocidental recortada por esferas culturais autônomas. Toda racionalização das ações significativas remete sempre a um ponto de vista e, inevitavelmente, cerca-se de pontos de vista contrários, configurando um cosmos cultural trágico, em vez de sistêmico. Os sentidos, embora possam ser compreendidos, não podem ser justificados racionalmente. Se a ciência contribui para que se possa "saber" dos "fins últimos" inscritos no âmbito das ações, é somente pela construção "formal" de significações e pelo cálculo racional das conseqüências. Mas Weber alertou que o pluralismo dos valores coloca a ciência abaixo do "destino", este sim, impossível de ser devidamente racionalizado e calculado (Weber, 1991b:262; 1982:175).

A faceta mais marcante com que a modernidade se apresenta a Weber envolve, então, as exigências de uma intensa racionalização da vida, em termos práticos e abstratos: todo um conjunto de regras e condicionamentos associados às diferentes esferas de valor, das quais os homens não podem escapar, podendo, apenas, tomar consciência a fim de experimentarem, de modo mais íntegro, as realidades mundanas. Weber sustentou a tese de que a objetivação dos valores culturais avançou a ponto de edificar socializações fortemente técnicas, as quais, se não estão acima do "destino", são autônomas o suficiente para se distinguirem do mundo das idéias, das crenças, das emoções, impondo-se, em boa medida, como comandos impessoais. Com isso, a subjetividade nos posicionamentos valorativos – a que "deus" cultivado se quer servir – contrastava-se cada vez mais com a objetividade dos procedimentos técnicos.

Em relação ao pensamento de Nietzsche, mesmo que Weber tenha sustentado um fundo arbitrário e sem sentido para o composto das racionalizações modernas, todo o seu reconhecimento da autonomia e do poder efetivo das estruturas de ações sociais organizadas como técnicas de vida reflete um contraste direto com a perspectiva do filósofo. É bem verdade que Nietzsche não deixou de reconhecer um forte traço de tecnicismo na vida moderna, como os métodos de conhecimento e a atividade maquinal, ao mesmo tempo em que, de modo mais amplo, caracterizou o processo civilizatório como um longo aprendizado do cálculo e da previsão (Nietzsche, 1988b:135-137 [1998b:123-125]; 1983:391). Além disso, foi enfático ao reconhecer que "o homem livre é não-ético", conquanto se encontra liberto das obrigações da tradição (Nietzsche, 2004:15). Mas em momento algum deixou de enxergar o domínio dos "impulsos" e das "crenças" ou de realçar a força operacional das "imagens" por detrás das técnicas e do utilitarismo modernos, o que faz da idéia de autonomia mais uma máscara do que uma realidade. A ciência e toda a cultura secularizada continuariam reféns dos ideais ascéticos e, portanto, de disposições instintuais milenares.

O que for "sociológico" no pensamento de Nietzsche – no sentido do comum, do regular, do normativo, enfim, do dito "objetivado" ou "exteriorizado" – estará sempre secundarizado face às inscrições psíquicas, corpóreas e mesmo cosmológicas das espiritualidades. Para a compreensão das atividades técnicas, Nietzsche insistiu nos traços da interpretação, do posicionamento, da valoração. Não fazia sentido pensar a técnica pelo atributo do "objetivamente posto", mas tão-somente como significação para o espírito humano. Nesse sentido é que a propalada dessacralização política e intelectual das relações sociais é vista como um grosso revestimento simbólico que oculta a mística cristã que lhe pulsa ao fundo, como se percebe nos ideais de igualdade formal e de verdade objetiva, os quais remetem à crença milenar em um Deus da "verdade" e do "amor universal".

Contrariamente, Weber compreendeu que a ciência, o mercado, o Estado e o direito modernos, como dimensões sócio-históricas – ou seja, enquanto se apresentam como técnicas de ação e de pensamento – representam uma ruptura objetiva com a metafísica e os ideais ascéticos. Ao juízo weberiano, este talvez tenha sido um dos grandes equívocos de Nietzsche, que o afastou do conhecimento objetivo e o manteve preso ao ideal romântico do "espírito livre": não compreender a autonomia das orientações racionais, concebendo-as como transfigurações ou sublimações de impulsos e afetos; não aceitar as determinações da cultura como destino ou a inexorabilidade e, particularmente, os custos das objetivações históricas. Weber nunca creu no domínio da consciência sobre a vida, mas constatou a presença de domínios societários estruturados por orientações plenamente conscientes. Em se tratando de "estruturas" tipicamente racionais, o sentido consciente denota que mercado, ciência e administração burocrática só existem porque os agentes são capazes de agir conforme a adequação de meios a fins específicos, o que se faz através de regras objetivadas – o cálculo monetário, as técnicas de investigação, as normas administrativas –, e tais estruturas podem ser compreendidas sem o recurso às transfigurações instintuais ou às sublimações afetivas.

Quando Nietzsche associa as "técnicas de vida" ao princípio das interpretações e ao plano das disposições, corpóreas e anímicas, subordina-as à problemática dos juízos, instintuais e espirituais, e recusa-lhes o status de autonomia e objetividade. Mais exatamente, a tecnificação da cultura é vista como uma inclinação moral, afetiva, daí a crítica à valoração religiosa da atividade maquinal via "bênção ao trabalho", invertendo-se o sentido negativo que as culturas superiores tradicionalmente conferiram às rotinas técnicas. Weber também ressaltou o peso do ascetismo religioso – no caso, o ascetismo intramundano dos puritanos – na origem das orientações racionais modernas, contudo, ao contrário de Nietzsche, viu essa base objetivamente se desfazer pela consolidação de sentidos próprios a cada esfera, de conformação técnica para além de valorativa. Nietzsche, por sua vez, ao entender que a atividade maquinal típica da modernidade tinha características peculiares, como "regularidade", "pontualidade", "estabilidade", "preenchimento do tempo" e "permissão e educação para impessoalidade" (Nietzsche, 1988b:135-137 [1998b:123-125]), continuou a vê-las como disposições psíquicas de caráter gregário, por conseguinte, "moral".

No geral, o antitradicionalismo moderno é interpretado por Nietzsche como recolocação disfarçada, até mesmo inocente, dos velhos fundamentos da moral cristã, ao ponto dele, na condição de quem se sentia psicólogo da cultura, declarar: "Que não haja engano quanto a isso: o que constitui a marca mais característica das almas modernas, dos livros modernos, não é a mentira mas a arraigada inocência de sua mendacidade moralista" (Nietzsche, 1988b:138 [1998b:126]). Com a morte do velho Deus, tornava-se motivo de risada a persistência das "vestes morais". Certamente, como veio a afirmar Weber, não há mais lugar para um autêntico cristianismo. Mas, diferentemente do diagnóstico histórico-sociológico daquele, a interpretação filosófico-psicológica de Nietzsche não credita tal impossibilidade às razões "objetivas" ou "exteriores", mas insiste que se trata de um fenômeno psicológico, cuja consolidação exige a disposição dos espíritos mais elevados para experimentarem e superarem os abalos da "perda de sentido".

Talvez por não reconhecer no domínio técnico uma quebra e uma desvitalização irrecuperáveis no plano dos valores e dos afetos é que Nietzsche pôde continuar a crer na liberdade dos espíritos mais seletos diante do social, na abertura para a expressão subjetiva da vida, não na forma de uma cônscia pertinência histórica ou uma dedicação vocacionada a esta ou aquela área da cultura, mas como postura soberana e extemporânea de fundação de novos e vigorosos valores. Não se trata de uma mera oposição às formações societárias racionalizadas e às técnicas; da perspectiva dos "senhores" poderia ser útil, senão indiferente, que as massas obedecessem a rotinas técnicas. Mas o filósofo priorizou as perspectivas espirituais que estavam além da "cultura da técnica"; a grande política, a arte trágica, o espírito livre, o além-do-homem, o distanciamento do cotidiano. No fundamental, ele se interessou pelas técnicas subjetivas de vida inscritas na carne dos espíritos afetivamente motivados, perspectiva da qual a sua autobiografia Ecce Homo dá o mais preciso testemunho. Nietzsche nunca pretendeu negar a "cultura da técnica", tampouco a ela resignar-se; ele quis se distanciar ou se distinguir, na melhor tradição da kultur alemã e sua luta contra a Zivilization (Elias, 1994:23-50). Que houvesse "especialistas" para as demandas gregárias era aceitável; o problema estava em um grande espírito encontrar no profissionalismo a sua virtude. Era-lhe inaceitável o quanto "o sábio moderno se resignou ao papel de simples operário de laboratório, um técnico do trabalho científico" (Spenlé, 1963:172-173).

Quanto a Weber, ele viu as orientações valorativas e éticas definitivamente expulsas de muitas das rotinas da vida societária. Dessa compreensão decorria, não a pretensão de fundação de novas hierarquias de valor e de uma nova dominação senhorial, mas, sim, a necessidade de refazer internamente o compromisso ético, conferindo sentido à pertinência sócio-histórica. Ilustram bem isso as palavras finais do ensaio Ciência como Vocação: "[Procuremos] executar nosso trabalho e atender às ‘exigências do dia’, humana e profissionalmente. Isto, porém, é claro e simples, se cada um encontrar e obedecer ao demônio que controla os cordões de sua vida" (Weber, 1995:272 [1982:183]). Pode-se afirmar que Nietzsche, por conceber os fenômenos culturais como transfigurações instintuais e afetivas, preservou uma quota de "naturalidade" no espírito e na própria cultura, a qual parece, necessariamente, superdimensionada ao juízo de um pensamento como o weberiano, que concebe o "cultural" como antitético ao "natural" e como a ambiência suficiente do espírito. Antitético não como sinônimo de impermeabilidade – a cultura continua a receber influências da psicologia ou mesmo da biologia – mas como sinônimo de exclusividade – os sentidos culturais ganham autonomia como significação própria. Weber viu a cultura como uma problemática autocentrada e fundada sob ações essencialmente antinaturais, que tem na consciência a sua base de constituição.

De modo geral, para Nietzsche, saberes e procedimentos conscientes possuem registro e comando afetivos. A cultura, impessoal e objetiva, juntamente com a instrumentalidade das relações, remetem aos fundamentos fisiológicos e espirituais – a natureza e o estilo de um tipo fraco e mediano de homens –, enquanto Weber as viu principalmente como decorrência da racionalização de práticas e relações na forma de ordens sociais objetivas. A rigor, Nietzsche se atém ao domínio afetivo sobre os modos e os processos de vida, daí sua maior inclinação à psicologia como rainha das "ciências não naturais" e também sua aposta na força criadora e livre do espírito diante do destino histórico, ao passo que Weber destacou precisamente a inexorável objetivação de modos de vida a ponto de o abismo entre "interior" (posicionamentos) e "exterior" (procedimentos) se apresentar como inexorável e o espírito experimentar a sua contemporaneidade de modo fragmentado e sob o signo da renúncia. A distância que separa o "pensador da vida", que aposta na irredutibilidade do espírito à história coletiva, e o "pensador da cultura", que acomoda a subjetividade à história, faz com que o estranhamento último entre eles se defina como uma questão de visão de mundo [Weltanschauung], refletindo a separação mais radical entre quem quis ser psicólogo e quem quis ser sociólogo da cultura.

Se se der um passo mais à frente nessa dualização, pode-se chegar ao tema da consciência. Conforme Weber, a consciência é pressuposta como a sede ontológica do ser na cultura, a condição elementar de construção e experimentação humana da cultura. A cultura é essencialmente significativa, e a significação é essencialmente uma representação mental, portanto, da ordem da consciência. Essa caracterização é validada, sobretudo, por uma historicidade eivada de referências racionais, intelectuais e práticas. O moderno Ocidente é o palco cultural dos grandes processos racionalizadores da condução da vida. Uma orientação racional é, tipicamente, uma conduta puramente consciente. Por isso, somente as ações racionais são, a rigor, "dotadas de sentido" (Weber, 1991a:15). Sendo o ponto de vista último de Weber uma Weltanschauung intelectual, historicamente referida, a consciência é a condutora das interpretações, uma dimensão que, se não pura, se apresenta autonomizada. Concepção que se choca radicalmente com a visão nietzschiana dos fenômenos da consciência como transfiguração de impulsos naturais, notadamente fisiológicos. Como pensador agarrado à vida, Nietzsche realiza uma crítica radical da consciência e suas produções – sem negar a sua importância e sem abrir mão do seu uso –, ao passo que Weber, como pensador agarrado à cultura, procurou exercer uma consciência radicalmente crítica, a ponto de pensar os seus próprios limites – sem concebê-la como sentido da vida ou dela derivar uma ontologia. Ou, de outra forma, tem-se posta a distinção entre o filósofo que, mesmo perscrutando a história dos sentidos, se irmanou com ou sem sentido da vida – o princípio dionisíaco –, e o cientista que, mesmo reconhecendo o sem sentido último das configurações significativas, se aliançou com os sentidos historicamente consolidados – o princípio apolíneo ou, ainda melhor, socrático-racional. Duas "consciências" extremadas, em sentido oposto: uma referida à inspiração e ao vivido, outra referida à reflexão e ao cultivado, sem o traço de exclusividade em qualquer um dos pólos2 2 . Daí a distinção que estabeleci entre o que chamei da "transracionalidade vital", em Nietzsche, e da "racionalidade teórica", em Weber (Nobre, 2004b:15-41). .

OS EFEITOS DA CULTURA MODERNA SOBRE A SUBJETIVIDADE

Quando Nietzsche reconheceu no espírito do homem moderno a oposição entre um "interior" e um "exterior" (Nietzsche, 1976:135), estranha aos povos antigos, isso sugere uma enorme afinidade com Weber. Mas é preciso distinguir que, para o filósofo, a "esquizofrenia" moderna não decorria da constituição de relações sociais objetivas, conforme orientações racionais autonomizadas, que faziam da interioridade um problema de juízo e da impessoalidade social uma questão de fato, mas era entendida como da ordem das disposições e das vivências, ou seja, rigorosamente da ótica de uma experiência de vida; no caso, são os homens ou nações menos espiritualizados que, dado sua natureza gregária e suas inclinações culturais medianas, passam a valorar o que lhes é impessoal e pertinente a uma cultura "exterior". Não que a exterioridade cultural seja uma farsa, mas ela é a perspectiva psicológica de vida da maioria, o campo limitado das disposições gregárias, própria dos seres faltosos e acomodados. Ela é sintomatologia da condição escrava, com tudo que os sintomas têm de efetividade, vale ressaltar. Daí a advertência às nações: "Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que querem, sobretudo, produzir o máximo possível e tornar-se mais ricas possível? Deveriam, isto sim, apresentar-lhe a contrapartida: as enormes somas de valor interior que são lançadas fora por um objetivo exterior!" (Nietzsche, 2004:151). Para o homem ou a nação que tem efetivo senhorio de si, o exterior é cultivado apenas enquanto, sabidamente, uma invenção e apenas na medida em que serve para dar maior plasticidade às experiências de vida: "Para mim – como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior [Aussen]! Mas esquecemos isto a cada som [a linguagem]; como é agradável que o esqueçamos" (Nietzsche, 1994:227 [1998a:224]).

Em ambos os autores discutidos, verifica-se um sentido de impessoalidade associado à modernidade, ao mesmo tempo em que as suas éticas correspondem a uma resposta pessoal ao destino. A diferença é, se Nietzsche tende a pensá-lo como "disposição" subjetiva ao alheamento de si nas ações, associada a uma carência elementar de espíritos destinados à cultura "escrava", donde a sua aposta na potência de si, no distanciamento do ordinário e na liberdade, Weber tende a reconhecê-lo como "imposição" de condições objetivas que se apresentam como motivações culturais, donde a ênfase na vocação mundana e na responsabilidade. As perdas culturais experimentadas pelo espírito humano, que o primeiro criticou como "senso" histórico e alienação moral, o segundo entendeu como "objetividade" histórica e alheamento factual. Para este, paralelo ao pressuposto das escolhas e das intenções subjetivas, há a evidência da fatalidade dos elementos culturais objetivados, que, como parâmetros extramorais de orientação das ações, ganham autonomia em relação às propensões mais naturais e mais íntimas das almas humanas; e, isso, de um modo inexorável e com validade universal. Mas como as objetivações sociais se apresentam sempre e necessariamente como orientações subjetivas – em momento algum, Weber pensa as estruturas impessoais de relação de modo substancial, como "sujeitos" ou "coisas" –, o que se vê mais corretamente, na modernidade, é a objetivação de parcela da subjetividade que se encontra tragada por relações de sentido impessoal. As conseqüências inevitáveis, para todos, em maior ou menor grau são a "fragmentação da alma" e o sentimento de pequenez diante do todo.

Embora Weber não tenha deixado de ser fiel à pressuposição de que somente os agentes são portadores de sentidos, foi levado a constatar a existência de configurações sócio-históricas que se apresentam como domínios desprovidos de senhores pessoais. São realidades que não deixam de ser sociologicamente entendidas como estruturas de ações ou como relações sociais, mas cujas ações constituintes se orientam por regras impessoais, com o que se dispensa ou se secundariza o mando pessoal. Tem-se posta a condição de uma dominação sem "senhores", baseada mais em procedimentos (conforme meios) do que em valores (conforme fins). O "racionalismo de domínio do mundo" é o império dos "senhores impessoais", "deuses desencantados", refletindo o predomínio de uma externalidade expressa como cotidianeidade racionalmente orientada. A orientação hegemônica na vida "pública" não se dá conforme valores (fins) ou de modo emocional, mas por procedimentos (técnicas) e de modo "desperto". O deus absconditus dos puritanos – para a glória do qual eles quiseram ser profissionais – veio a ser substituído pelos deuses impessoais – cujo domínio nos obriga a sermos profissionais (Weber, 1969:188 [2004:165]).

Dito isso, talvez fosse plausível supor que, ao juízo de Weber, teria faltado a Nietzsche perceber o poder de coação dos sentidos objetivados como orientações impessoais e seus efeitos subjetivos. De resto, Nietzsche teria sempre negligenciado ou secundarizado a força e autonomia dos condicionamentos sociais, dada sua superestimação dos fatores psíquicos, como se verifica no exagero do papel do ressentimento na explicação das culturas religiosas (Weber, 1991a:339-340). Poder-se-ia dizer que, obcecado pela imagem da cultura como transposição de impulsos naturais e pelo tema das interpretações morais, o filósofo não percebeu o avanço de um modo de vida efetivamente extramoral; não percebeu a inexorabilidade de condutas e métodos desprovidos de valor ou de qualquer fundamento natural, o que se deu, não por conta apenas do esvaziamento dos sentidos tradicionais, mas também e principalmente por conta da objetivação dos sentidos racionalizados; e, com isso, não atentou para os intransponíveis condicionamentos que um destino histórico fortemente racionalizado impunha à conformação das personalidades, mesmo as mais exemplares. Os novos tempos eram objetivamente – para além de psicologicamente – não-valorativos. Weber procurou mostrar como as técnicas de vida e a referência aos recursos mediáticos se tornaram condições de subjetivação, o quanto a "espiritualidade" se fez cultura e história, com uma inevitável limitação das potencialidades valorativas, daí a referência às personalidades e atividades modernas como condenadas à fragmentação e à cotidianidade – ou, para aqueles que quisessem fazer oposição ao destino histórico e se cultivarem como personalidades plenas ou além do histórico, o inevitável caminho de um extremado irracionalismo (religioso, místico, artístico, erótico), com tudo que isso comporta de inocência, de romantismo e de fuga.

Uma decorrência inexorável das coações objetivas da cultura é a percepção da impossibilidade da "plenitude da vida". Ao juízo do sociólogo, idéias como as de "espírito livre", de "personalidade global" e de "vida como obra de arte" eram um mito romântico. Confrontado com a consciência de Weber, Nietzsche teria deixado de perceber que todos, de modo geral, se tornaram cativos das técnicas de vida, que os meios objetivados se infiltraram nas ações, que as racionalidades técnicas faziam da impessoalidade um traço do destino que a todos comportava. Além da indagação sobre a posição diante da cultura da técnica, é necessária também a compreensão do quanto as técnicas se impõem como orientações impessoais e exigem renúncias.

Weber ponderou que o homem, alheio de Deus, não apenas sofreu uma depreciação valorativa e, quiçá, um déficit espiritual, mas também um descentramento e uma fragmentação social de tipo objetivo, o que lhe impôs a marca definitiva da cultura, a identidade inesquecível da história, a necessidade de dedicação aos sentidos mundanos. A vida, a terra, o corpo, o espírito, os sentidos do mundo – tudo se tornou, como nunca, um intransponível "cultural, demasiado histórico", não só por razões interpretativas, mas, em maior medida, por razões procedimentais. A filosofia fez-se reflexão crítica sobre a razão e o conhecimento, ou seja, sobre produções e temáticas rigorosamente ligadas à finitude humana; a arte tornou-se arte do cotidiano, íntima em vez de monumental; a ciência subdividiu-se em especialidades técnicas; o capitalismo aquisitivo espraiou-se varrendo as resistências tradicionais; as relações de mercado e a pertinência a uma institucionalidade racional-legal tornaram-se referências primárias e impessoais de conduta; por fim, a vida societária viu-se ressignificada na forma de rotinas mundanas e as personalidades perderam a aura de plenitude, acompanhando a especialização das atividades. O ideal de extemporaneidade nietzschiano soa estranho a Weltanschauung de Weber porquanto remete aos registros mais vitais ou preconiza uma superação do historicamente dado.

Embora Nietzsche estivesse ciente da forte secularização dos sentidos culturais, ele não extraiu disso o que Weber considerava mais decisivo: a consolidação de um modo de vida baseado em referências objetivas e impessoais, a solidificação de uma perspectiva racionalista de domínio do mundo e a transformação efetiva das condições de vida subjetiva. Bem mais do que o filósofo, o sociólogo realçou os poderes da razão e a inexorabilidade do destino sócio-histórico, associado ao desaparecimento de Deus, independentemente do julgamento que se possa emitir sobre os novos "senhores" impessoais. Por isso mesmo, face à sua condição de homem da cultura, sabemos como Weber defendeu o compromisso vocacional com um dos deuses cultivados, em claro estranhamento ético com o ideal nietzschiano de transvaloração e de criação, pessoal ou coletiva, de novos mitos.

As idéias nietzschianas de "extemporaneidade" e de vida como "obra de arte" eram incompatíveis com a opção mais realista e intelectual de Weber. Certamente, Weber não concebeu o esgotamento do potencial de criação nem viu o espírito subserviente à técnica – veja as suas esperanças depositadas no líder político vocacionado3 3 . Weber creu no autêntico líder político vocacionado, o "herói sóbrio", ainda capaz de carisma em tempos de desencanto. Não seria um senhor da estirpe dos profetas, patriarcas e reis, por razões puramente objetivas; mas seria viril o suficiente para imprimir uma marca pessoal ao destino de uma nação. Nessa dimensão heróica, o político seria o equivalente weberiano mais próximo ao grande criador "nietzschiano" de valores, só que mais cônscio das forças objetivas que o cercam e cumpridor "responsável" da sua vocação mundana. e a virilidade [männlich] da "integridade intelectual" –, menos ainda acreditou no estabelecimento do reino do previsível – o automatismo e a inexorabilidade do progresso técnico é a chancela da imprevisibilidade última. Ele apenas reconheceu a fixação de sólidas barreiras à fúria criativa e à inevitabilidade do domínio das ações "calculadas" de curto e médio prazo. Ao seu ver, o homem ocidental moderno estava condenado a um modo de vida racional, com tudo que isso comporta de indefinido ou mesmo de trágico.

PALAVRAS FINAIS

Ao tratar o valor da verdade como ideal ascético, Nietzsche identificou a ciência e a cultura da técnica em geral com a moralidade e, esta, com o desejo de um "outro mundo". Para o filósofo, são os ascetas modernos que praticam uma "fuga": "Vós todos, que amais o trabalho árduo e também o que é rápido, novo, alheio, – vós suportais mal a si mesmos, vossa aplicação é fuga e vontade de auto-esquecimento" (Nietzsche, 1994:46 [1998a:62]); praticam uma fuga de si. Certamente não se trata de um moralismo, mas mais propriamente de uma moralidade disfarçada e decadente. Da ótica weberiana, porém, foi o filósofo quem se manteve apegado ao "outro mundo", com suas proposições extracotidianas de liberdade espiritual, com seu ideal de comunhão eterna com a vida e renovação permanente dos valores, a despeito das extensões objetivas, das cristalizações técnicas e das rotinas extramorais dos tempos modernos. Havia a consolidação de ordens sociais delimitadoras do possível e limitadoras do querer, que tornam as profecias caducas e ressignificam a experiência artística ou a erótica como uma espécie de "salvação intramundana". A vitória do racionalismo – ou, se se quiser, a derrota do dionisíaco – tinha sido mais contundente e definitiva do que imagina o filósofo.

Weber lançou o desafio de se estar à altura das "exigências do dia", algo que os religiosos, místicos, idealistas, nostálgicos ou românticos não eram, de todo, capazes. Esse foi o seu juízo ético-intelectual, o seu mais "viril" compromisso de valor. Tanto quanto Nietzsche, ele reconhecia no mundo desencantado as perdas, angústias, massificação, "falta de estilo" e certa banalização. Antigamente, as pessoas tinham posições e distinções sociais bem codificadas; podia-se experimentar a vida em sua "plenitude" e a relação com a mesma era bem mais natural. Na modernidade, as marcas de distinção são questionadas, os apetites mundanos cultivados e as satisfações imediatizadas, ao preço de uma enorme perda de significação, de uma forte impessoalidade e, pelo menos para a maioria, de uma superficialização das vivências. Quanto a esses efeitos, estavam de acordo os dois pensadores, sendo as suas éticas, no essencial, reações ao rebaixamento espiritual e um esforço de ressignificação da existência em busca do senhorio de si. Acontece que conceberam a autonomia sob condições e com estilos bem diferenciados.

A singularidade da interpretação weberiana esteve em acrescer à avaliação negativa da modernidade uma característica que ele reputava "real" e totalmente "além do bem e do mal": a inexorabilidade das rotinas e dos procedimentos racionais, que faz das causas fortemente irracionais uma inevitável e específica "fuga do mundo". Onde quer que haja domínios sociais estruturados, os homens têm que se conformar a alguma forma de legitimidade, e, na modernidade, "a forma de legitimidade mais corrente é a crença na legalidade: a submissão face ao formalmente correto e aos estatutos estabelecidos de forma habitual" (Weber, 1947:19 [1991a:23]). Mas há, também, de modo mais extenso e interiorizado, a "fé" [Glauben] na natureza racional e a "confiança" [Zuversicht] no funcionamento racional das condições da vida cotidiana, em boa medida entregues ao automatismo do progresso técnico (Weber, 1995:135, 403-404 [2005:347-348; 1992:558-559]).

Formalmente estabelecido, o "sentido racional" do "domínio do mundo" indica que este não "encerra infinitas interpretações", como queria Nietzsche (2000a:287 [2001:278]), a não ser que se opte pelo alheamento, não só de Deus, mas também do mundo e, quiçá, da própria razão. Pode-se afirmar que, se Nietzsche pleiteou a inesgotabilidade pulsional da vida e a "eternidade" da experiência, Weber se firmou na historicidade da experiência humana, conforme o esclarecimento e o desencanto cultural a que os processos de racionalização nos conduziram. E, se é certo que a cultura está entregue ao progresso incessante e que esse tem destinação indefinida, isso só aumenta a sua importância na contraface da insignificância relativa das experiências pessoais diante do todo cultivado.

A luta contra o idealismo, na forma de uma experiência radical do pessimismo do espírito capaz de refletir sobre a história e sobre si mesmo, é um traço que perpassa os pensamentos dos dois pensadores. Ambos são expoentes de um tempo que não mais admite nostalgia nem esperanças escatológicas. Eles são, por assim dizer, descrentes nos valores universais e nas proposições humanistas para o destino da cultura. As expressões "morte de Deus" e "desencantamento do mundo" atestam, de modo inequívoco, que os dois pensadores "ousaram a verdade" sobre o seu tempo. A diferença, nada desprezível, é que Nietzsche, sentindo-se "extemporâneo", procurou superar o criticismo consciente e o ascetismo intelectual em favor do dionisíaco e do riso, ao passo que Weber, sentindo-se um contemporâneo "filho do Ocidente", pessoalmente resignou-se ao "demônio" do intelectualismo e à seriedade da tarefa mundana. Weber apregoou um compromisso consciente com determinadas configurações de valor solidamente cultivadas, enquanto Nietzsche não quis o compromisso reflexivo com seu tempo. Por isso, se o pathos nietzschiano fala do espírito livre como "imanência de " forças, o pathos weberiano fala do espírito responsável como "aderência a" forças. A distinção ética entre eles não é tanto de "valor" – ambos querem estar à altura de seus atos, incluindo as conseqüências deles advindas –; é mais de "referencial" e de "estilo" – Weber se viu na História e quis ser uma consciência responsável do Ocidente, Nietzsche se viu na Vida e quis ser uma consciência histriônica da existência.

NOTAS

(Recebido para publicação em abril de 2006)

(Versão definitiva em setembro de 2006)

Renarde Freire Nobre é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Suas áreas de interesse são: teoria sociológica; sociologia da cultura e filosofia. É autor de Perspectivas da Razão: Nietzsche, Weber e o Conhecimento (Belo Horizonte, Ed. Argumentum, 2004) (E-mail: fnrenarde@hotmail.com).

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  • ____ . (2005), Metodologia das Ciências Sociais û Parte II São Paulo, Cortez Editora.
  • 1
    . Pierucci (2003) procurou fixar esse sentido original e "nuclear" do "conceito" de "desencantamento do mundo" realizando uma pesquisa minuciosa da aparição da expressão na obra de Weber. Trata-se de um livro referência, não obstante as reservas que lhe fiz (Nobre, 2004a).
  • 2
    . Daí a distinção que estabeleci entre o que chamei da "transracionalidade vital", em Nietzsche, e da "racionalidade teórica", em Weber (Nobre, 2004b:15-41).
  • 3
    . Weber creu no autêntico líder político vocacionado, o "herói sóbrio", ainda capaz de carisma em tempos de desencanto. Não seria um senhor da estirpe dos profetas, patriarcas e reis, por razões puramente objetivas; mas seria viril o suficiente para imprimir uma marca pessoal ao destino de uma nação. Nessa dimensão heróica, o político seria o equivalente weberiano mais próximo ao grande criador "nietzschiano" de valores, só que mais cônscio das forças objetivas que o cercam e cumpridor "responsável" da sua vocação mundana.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      Set 2006
    • Recebido
      Abr 2006
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