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Entre Chicotes e Cenouras Orgânicas: Coerção e Cooperação na Implementação das Compras da Agricultura Familiar no Âmbito do Pnae* * O presente artigo desenvolve argumentos e aprofunda a discussão das evidências presentes em trabalho anteriormente realizado por Bonduki (2017). Agradecemos os excelentes comentários e sugestões dos pareceristas anônimos de DADOS. Erros e omissões ainda presentes nesta versão são de nossa inteira responsabilidade.

Between Whips and Organic Carrots: Coercion and Cooperation in the Implementation of Family Agriculture Purchases under the Pnae

Entre Fouets et Carottes Bio: Coercition et Coopération dans la Mise en œuvre des Achats de l’Agriculture Familiale dans le Cadre du PNAE

Entre Garrotes y Zanahorias Orgánicas: Coerción y Cooperación en la Implementación de las Compras de la Agricultura Familiar en el Ámbito del PNAE

RESUMO

As relações intergovernamentais são cruciais para explicar a descentralização de políticas públicas. Após a redemocratização, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) seguiu a trajetória de outras políticas sociais no Brasil: houve a universalização dos repasses de recursos financeiros da União por adesão direta dos municípios. Em 2009, foi criada por lei federal a exigência de que no mínimo 30% das compras de alimentos do Pnae fossem adquiridas da agricultura familiar. O presente artigo pretendeu identificar o padrão de relações intergovernamentais presente na implementação da política de compras da agricultura familiar para a merenda escolar. Para tanto, foram realizadas análise documental e entrevistas com gestores municipais e federais. Como resultado, observou-se uma descentralização desigual e assimétrica desse programa. Os elementos de coerção e cooperação se misturam para produção de uma limitada coordenação do programa, tendo destaque o papel exercido por atores da política de desenvolvimento agrário.

relações intergovernamentais; descentralização; coordenação governamental; merenda escolar; agricultura familiar

ABSTRACT

Intergovernmental relations are crucial in explaining the decentralization of public policies. After re-democratization, the Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) followed the trajectory of other social policies in Brazil: there was the universalization of transfers of financial resources of the Union by direct adhesion of the municipalities. In 2009, federal law created a requirement that at least 30% of Pnae food purchases should come from family farms. This article aimed to identify the pattern of intergovernmental relations present in the implementation of the family farming purchasing policy for school meals. To this end, documentary analysis and interviews with municipal and federal managers were performed. As a result, an uneven and asymmetric decentralization of this program was observed. The elements of coercion and cooperation mix to produce a limited program coordination, highlighting the role played by actors of the agrarian development policy.

intergovernmental relations; decentralization; government coordination; school meals; family farming

RÉSUMÉ

Les relations intergouvernementales sont essentielles pour expliquer la décentralisation des politiques publiques. Après la redémocratisation, le Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) a suivi la trajectoire d’autres politiques sociales au Brésil: il y a eu l’universalisation des transferts de ressources financières de l’Union par adhésion directe des municipalités. En 2009, la loi fédérale a créé une exigence selon laquelle au moins 30% des achats d’aliments Pnae doivent être achetés à des exploitations familiales. Cet article vis à identifier le schéma des relations intergouvernementales présentes dans la mise en œuvre de la politique d’achat de l’agriculture familiale pour les repas scolaires. À cette fin, une analyse documentaire et des entretiens avec des gestionnaires municipaux et fédéraux ont été réalisés. En conséquence, une décentralisation inégale et asymétrique de ce programme a été observé. Les éléments de coercition et de coopération se mélangent pour produire une coordination de programme limitée, mettant en évidence le rôle joué par les acteurs de la politique de développement agraire.

rapports intergouvernementales; décentralisation; coordination gouvernementale; repas scolaires; agriculture familiale

RESUMEN

Las relaciones intergubernamentales son cruciales para explicar la descentralización de políticas públicas. Después de la redemocratización, el Programa Nacional de Alimentación Escolar (Pnae), siguió la trayectoria de otras políticas sociales en Brasil: se dio la universalización de las transferencias de recursos financieros de la Unión por adhesión directa de los municipios. En 2009, fue creado por ley federal la exigencia de que mínimo el 30% de las compras de alimentos del Pnae deberían ser adquiridas de la agricultura familiar. El presente artículo pretendió identificar el patrón de relaciones intergubernamentales presente en la implementación de la política de compras de la agricultura familiar para la merienda escolar. Para ese fin, fue realizado un análisis documental y entrevistas con gestores municipales y federales. Como resultado, se observó una descentralización desigual y asimétrica de ese programa. Los elementos de coerción y cooperación se mezclan para la producción de una limitada coordinación del programa, dando énfasis al papel ejercido por actores de la política de desarrollo agrario.

relaciones intergubernamentales; descentralización; coordinación gubernamental; merienda escolar; agricultura familiar

INTRODUÇÃO

As relações intergovernamentais têm assumido papel de destaque nas discussões internacionais sobre implementação de políticas públicas. A descentralização ou “devolução” de atribuições administrativas aos governos locais, além da existência de arranjos internacionais de cooperação, têm tornado as relações intergovernamentais uma faceta central do funcionamento de governos (Phillimore, 2013PHILLIMORE, John. (2013), “Understanding intergovernmental relations: key features and trends”. Australian Journal of Public Administration, no 72, pp. 228-238.).

O federalismo é um elemento institucional que torna ainda mais complexas as relações intergovernamentais. Sua definição consiste em um arranjo territorial que prevê a existência de mais de um governo, com autonomia política e fiscal, sobre o mesmo território (Elazar, 1987ELAZAR, Daniel. (1987), Exploring federalism. Tuscaloosa: University of Alabama Press.; Almeida, 2005ALMEIDA, Maria Hermínia T. (2005), “Recentralizando a federação?”. Revista de Sociologia e Política, no 24, pp. 29-40.; Souza, 2008SOUZA, Celina. (2008), “Federalismo: teorias e conceitos revisitados”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, v. 65, pp. 27-48.). Dessa formulação aparentemente simples, decorrem dilemas complexos e de difícil resolução. Souza (2019)SOUZA, Celina.. (2019), “Coordenação, uniformidade e autonomia na formulação de políticas públicas: experiências federativas no cenário internacional e nacional”. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, pp. 2-14. enumera como exemplos as tensões provenientes da coordenação versus cooperação governamental; uniformidade versus diversidade; autonomia versus compartilhamento de autoridade; e centralização versus descentralização.

O presente estudo enfocará a dimensão da coordenação versus cooperação sob o ponto de vista da implementação de políticas públicas compartilhadas. Pretende-se responder à seguinte pergunta: qual o padrão de relações intergovernamentais existente na implementação da política de compras da agricultura familiar no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)?

O Pnae é um programa coordenado pelo Ministério da Educação (MEC), através do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE). Está presente em praticamente todos os municípios brasileiros e é responsável pela distribuição de refeições gratuitas para cerca de 43 milhões de escolares da creche ao ensino médio, todos os dias letivos. Sua magnitude o qualifica como um dos maiores programas de alimentação em âmbito mundial (Peixinho et al., 2011PEIXINHO, Albaneide et al. (2011), “Alimentação escolar no Brasil e nos Estados Unidos”. Mundo da Saúde, v. 35, no 2, pp. 128-136.). O orçamento de 2019 da União para o Pnae está estabelecido em R$ 4,15 bilhões.

Ao longo de seus mais de 60 anos, o programa possui um longo histórico de descentralização lenta e gradual. Se no início o programa tinha caráter focalizado e todas as suas decisões e sua execução eram centralizadas na capital federal, hoje é um programa de caráter universal, executado diretamente pelos municípios e estados, sem necessidade de convênios. Dos municípios e estados executores é exigido que cumpram as normativas e os requisitos estabelecidos pelo FNDE, como por exemplo a estruturação de um conselho de política pública, o Conselho da Alimentação Escolar (CAE).

A partir do ano de 2010, com a edição da MP 455/09 convertida na Lei 11.947/09, todos os municípios e estados participantes do programa passaram ter que cumprir uma nova regra: “Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do Pnae, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar [...]” (Brasil, 2009BRASIL. (2009), Lei no 11.947 de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica e dá outras providências.:3).

Seis anos depois, em 2016, dentre os 5.360 estados e municípios que entregaram a prestação de contas ao Pnae, 85% declararam formalmente estar realizando compras de agricultores familiares em algum percentual e 41% declararam haver alcançado o mínimo de 30% estipulado em lei. Em comparação com outros estudos sobre descentralização de políticas sociais em âmbito nacional, como em Arretche (1999ARRETCHE, Marta. (1999), “Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, no 40, pp. 111-141., 2012ARRETCHE, Marta. (2012), Democracia, federalismo e centralização no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/Fiocruz, vol. 1.), Coêlho, Cavalcante e Turgeon (2016) e Batista (2018)BATISTA, Mariana. (2018), “A Difusão da Lei de Acesso à Informação nos municípios brasileiros: determinantes internos e externos”. Cadernos Enap, v. 53, p. 1., o desempenho do Pnae observado em 2016 pode ser caracterizado como intermediário. Se houve uma expansão significativa no uso de alimentos provenientes da agricultura familiar, tal expansão não alcançou ainda, na maioria dos municípios, o percentual mínimo definido pela legislação federal.

Dado esse panorama, por vezes será realizada interlocução com a literatura da sociologia rural e da agricultura, tendo em vista sua contribuição para compreensão do funcionamento da agricultura familiar. No entanto, a ênfase do presente artigo é explicar como ocorreu a utilização de mecanismos de coordenação federal no programa e em que medida os elementos de cooperação e coerção estiveram presentes na implementação da política de compras da agricultura familiar.

Após essa introdução, serão abordados alguns conceitos centrais para o entendimento dos processos de descentralização e do padrão de relações intergovernamentais após a redemocratização no Brasil, com ênfase na importância do desenho dessas relações em cada política pública. Em seguida, será apresentado o método de pesquisa utilizado, seguido dos resultados da pesquisa para a compreensão das compras da agricultura familiar no Pnae. Nas considerações finais, serão destacadas as principais limitações do trabalho e o esboço de uma agenda futura de pesquisa.

DESCENTRALIZAÇÃO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NO FEDERALISMO BRASILEIRO ATUAL

Arranjos institucionais diversos tendem a produzir estruturas que, embora não sejam as únicas determinantes, trazem consequências para as escolhas de governantes, burocratas públicos, cidadãos e empresas e influenciam diretamente as políticas públicas presentes em cada território. Sob este pressuposto, nos Estados federalistas, o arranjo institucional específico que articula autonomia e unidade dos entes federados tende a trazer consequências – positivas ou negativas – para as políticas públicas (Peterson, 1995PETERSON, Paul E. (1995), The Price of Federalism. Washington: The Brookings Institution.; Abrucio e Samuels, 1999ABRUCIO, Fernando; SAMUELS, David A. (1999), “‘Nova’ política dos governadores: política subnacional e transição democrática no Brasil”. Lua Nova, v. 40/41, pp. 138-326. Disponível em: <http://scholar.google.com.br/scholar?hl=en&q=A+NOVA+POL?TICA+Dos+GovERNADoREs&btnG=&as_sdt=1,5&as_sdtp=#4>.
http://scholar.google.com.br/scholar?hl=...
; Abrucio, 2005ABRUCIO, Fernando. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, pp. 41-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Arretche, 2004ARRETCHE, Marta. (2004), “Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, no 2, pp. 17-26.).

Entre as consequências negativas mais frequentemente apontadas do arranjo federativo para as políticas públicas, a literatura destaca a tendência dos estados federalistas a reduzirem seus gastos em políticas sociais numa “corrida ao fundo do poço”, ou race to the bottom, a competição predatória no campo fiscal, o incentivo ao comportamento free rider entre governos, aumento das desigualdades socioeconômicas no interior do país, a dificuldade de solução para problemas comuns em regiões metropolitanas, a criação de coalizões de veto por atores subnacionais, a dificuldade de obter processos de implementação homogênea em políticas nacionais, a menor abrangência e cobertura dos programas sociais e, de modo geral, a dificuldade de realizar a coordenação interfederativa nas políticas públicas e o enfraquecimento dos laços de união dentro da própria federação (Bichir, 2016BICHIR, Renata Mirandola. (2016), “Novos instrumentos de coordenação federativa: reflexões a partir do Programa Bolsa Família”. Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais-RPPI, v. 1, no 1, pp. 49-78. Disponível em: <http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/rppi/article/view/28463>
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; Spink, 2011SPINK, Peter. (2011), “Cooperação e governança interjurisdicional: conceitos em discussão”. Cadernos Adenauer, v. 12, pp. 13-29.; Weir; Orloff; Skocpol, 1988).

Entre as consequências do arranjo federativo para as políticas públicas citadas como positivas, costuma-se mencionar a possibilidade de maior accountability trazida pela proximidade dos cidadãos da esfera local de poder, a possibilidade de adaptação de cada política às necessidades da população de cada ente federativo num reconhecimento à diversidade, as inovações que podem surgir da multiplicidade de experiências e da competição entre governos e a maior facilidade para integração intersetorial entre políticas no âmbito local (Abrucio, 2005ABRUCIO, Fernando. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, pp. 41-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
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; Farah, 2012FARAH, Marta Ferreira Santos. (2012), “Políticas sociais e governos locais: indução ou coordenação federativa?”. Colóquio Internacional de Poder Local, v. 12, no 10, pp. 1-20.; Bichir, 2016BICHIR, Renata Mirandola. (2016), “Novos instrumentos de coordenação federativa: reflexões a partir do Programa Bolsa Família”. Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais-RPPI, v. 1, no 1, pp. 49-78. Disponível em: <http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/rppi/article/view/28463>
http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index....
).

Muitas são as teorias que buscam explicar a natureza do federalismo. Muitas também são as dificuldades ao abordar a temática. Para Celina Souza (2008SOUZA, Celina. (2008), “Federalismo: teorias e conceitos revisitados”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, v. 65, pp. 27-48.:36), a estrutura federalista de Estado tem como principal característica distintiva a organização do Estado em “dois ou mais níveis de governo, que tem autoridade formal sobre o mesmo espaço territorial e sobre todos os cidadãos”.

Um dos desafios, portanto, dos países federalistas consiste em alcançar um equilíbrio adequado entre cooperação e competição quando se trata das relações horizontais e um arranjo que permita alcançar cooperação vertical sem cair em um padrão coercitivo que anule o valor diversidade. É neste contexto que se insere o desafio da coordenação intergovernamental.

Para Abrucio (2005ABRUCIO, Fernando. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, pp. 41-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
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:41), a coordenação intergovernamental corresponde “às formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações”. Através dela é que os vários entes federativos podem buscar acomodar pretensões e “compartilhar tarefas e objetivos entre os níveis de governo” sem abrir mão de suas autonomias (Abrucio, 2006ABRUCIO, Fernando. (2006), “Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil”. In: S. Fleury (org.), Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV.:91). Para o autor, a coordenação intergovernamental pode responder adequadamente aos desafios de melhorar o desempenho na prestação de serviços públicos em um contexto de contenção fiscal, apoiando a redução de desigualdades regionais, sem ter de recorrer à padronização das políticas e com isso afetar o valor diversidade. Pode funcionar ainda como um instrumento adequado para que os entes subnacionais enfrentem os desafios de uma ordem internacional crescentemente complexa e interconectada. Para Arretche (2004)ARRETCHE, Marta. (2004), “Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, no 2, pp. 17-26., a coordenação federal se justifica para evitar superposição e dispersão de ações entre os entes, objetivando também equalizar a heterogênea capacidade de gasto dos estados e municípios. Na síntese de Pierson (1995)PIERSON, Paul. (1995), “Fragmented Welfare States: Federal Institutions and the development of Social Policy”. Governance, v. 8, no 4, pp. 448-478., a importância da coordenação interfederativa reside no fato de que, no federalismo, as políticas públicas são “altamente interdependentes”, mas as ações dos governos autônomos são apenas “modestamente coordenadas”.

Quando se trata de políticas sociais induzidas a partir do nível federal, os problemas mais comuns de coordenação referem-se à dificuldade de obter a adesão, gerar coordenação intersetorial e interfederativa, e garantir homogeneidade da prestação de serviços ao nível do cidadão. Diante da problemática da coordenação de políticas públicas no âmbito da federação, a literatura tem buscado compreender os fatores que influenciam a possibilidade de conciliar a autonomia típica da estrutura federativa com algum nível de unidade que possa mitigar tais dificuldades.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 adotou um modelo cooperativo, mas que combinou a descentralização de autoridade e recursos com processos de consolidação por meio dos quais as esferas subnacionais passaram a, apenas, implementar as políticas já decididas centralmente (Almeida, 2005ALMEIDA, Maria Hermínia T. (2005), “Recentralizando a federação?”. Revista de Sociologia e Política, no 24, pp. 29-40.). Consequentemente, não há um único arranjo vigente, mas arranjos que convivem e variam conforme a política e o período. Neste sentido, ressalta:

Estes dois últimos tipos [federalismos centralizado e cooperativo] correspondem a padrões de relacionamento que tanto podem descrever o perfil predominante das relações entre instâncias de governo, em dado período, como “podem conviver lado a lado, em diferentes áreas de ação governamental”’. Mas, nos dois casos, eles nomeiam relações intergovernamentais nas quais a não-centralização, característica do ordenamento federativo, convive de forma complexa e, frequentemente, conflitante com a lógica da centralização-descentralização (Almeida, 1995ALMEIDA, Maria Hermínia T. (1995), “Federalismo e políticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, no 10, pp. 88-108.:90, ênfases nossas).

No campo das políticas de assistência social via transferência de renda, ao longo dos anos 1990 o maior protagonismo do governo federal significou para Almeida uma ruptura com o modelo de federalismo cooperativo, retornando a um modelo de federalismo centralizado.

Para Abrucio (2005)ABRUCIO, Fernando. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, pp. 41-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
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, o maior protagonismo federal a partir de meados dos anos 1990 não pode ser compreendido adequadamente enquanto um movimento dentro do eixo centralização-descentralização, mas como um avanço no sentido da coordenação. O autor reconhece, no entanto, que arranjos de coordenação mal dosados podem confundir coordenação com verticalização e subordinação.

Já para Arretche (2005ARRETCHE, Marta. (2005), “Quem taxa e quem gasta: a barganha federativa na federação brasileira”. Revista de Sociologia e Política, no 24, pp. 69-85.:83), o arranjo vigente tem sido marcado pela descentralização das receitas combinada com centralização da autoridade decisória, “isto é, limitação da autonomia dos governos subnacionais para a regulamentação da cobrança de impostos e do destino do gasto”. E, também, pela descentralização de competências (policy-making), mas não da autoridade decisória (policy decision-making). O arranjo específico de cada política, no entanto, produzirá níveis variados de capacidade de coordenação federal. A forma como estão organizadas as transferências do Sistema Único de Saúde (SUS), na política de saúde, bem como os fóruns federativos existentes (comissões bipartite e tripartite, além do Conselho Nacional de Saúde) permite uma grande capacidade de coordenação federal sem que isto signifique uma excessiva centralização no Ministério da Saúde. No caso da educação básica, por ter menos responsabilidade no financiamento, a situação é de baixa capacidade de coordenação federal. A autora considera que “condicionar – e garantir a efetividade das – transferências à adesão dos governos locais à agenda do governo federal revelou-se uma estratégia de forte poder de indução sobre as escolhas dos primeiros” (Arretche, 2004ARRETCHE, Marta. (2004), “Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, no 2, pp. 17-26.:24).

Nesse sentido, uma tipologia bastante útil para a compreensão das relações intergovernamentais no pós-1988 é a desenvolvida por Machado (2014)MACHADO, José Angelo. (2014), “Padrões de indução de políticas sociais por meio de transferências intergovernamentais condicionadas”. Teoria & Sociedade, v. 19, pp. 191-218.. Do ponto de vista teórico, há dois tipos ideais de relações entre os entes federados: o contrato de execução e a gestão compartilhada. O primeiro caracteriza-se pela hierarquização de fato dos entes subnacionais como agentes atuantes em nome do governo central. Para o entendimento dessas relações, caberia a utilização da teoria da agência que descreve o conjunto de dilemas de delegação presentes na relação entre principal e os agents. A segunda perspectiva, por sua vez, aponta no sentido de entes federados com autonomia e capazes de produzir decisões conjuntas com repercussão para o conjunto da federação.

Os dois tipos ideais representariam possibilidades teóricas dificilmente observáveis na realidade. Os programas governamentais em geral se situam no contínuo que possui esses polos em seus extremos. Machado (2014)MACHADO, José Angelo. (2014), “Padrões de indução de políticas sociais por meio de transferências intergovernamentais condicionadas”. Teoria & Sociedade, v. 19, pp. 191-218. analisa 15 programas governamentais do governo federal das políticas sociais – educação, saúde e assistência social – quanto ao grau de autonomia ou de hierarquização em sua concepção (poder de agenda e desenho dos incentivos) e implementação (controle do comportamento dos governos subnacionais).

Dessa análise, cabe destacar que, na média, os programas governamentais possuem uma leve inclinação para o contrato de execução. Há variações importantes como o Teto Financeiro de Média e Alta Complexidade (Teto MAC, no SUS) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que possuem caráter mais próximo da gestão compartilhada, ao passo que os medicamentos excepcionais e o Índice de Gestão Descentralizada (IGD, utilizado no âmbito do Programa Bolsa Família) são os mais próximos de um contrato de execução. O Pnae figura como um programa com forte caráter de contrato de execução, em razão de um papel restrito conferido a estados e municípios como executores de recursos, cabendo à União, por lei, todas as funções planejamento, controle e avaliação1 1 . Conforme proposto por Machado (2014), os programas governamentais foram avaliados a partir de um índice que variava entre 0 (mais próximo de um contrato de execução) e 1 (mais próximo de gestão compartilhada). O Pnae apresenta o valor de 0,16, o menor valor dos 15 programas analisados. .

MÉTODO DE PESQUISA

A presente pesquisa tem natureza descritivo-exploratória. O método utilizado para compreensão do processo de descentralização das compras da agricultura familiar no Pnae é predominantemente qualitativo. Foram realizadas pesquisa documental e entrevistas com gestores municipais e federais atuantes em âmbito nacional e em organizações dedicadas ao processo de implementação no nível estadual. Ao todo, foram realizadas 13 entrevistas, entre 21 de novembro de 2016 e 20 de janeiro de 2017, que foram a seguir tratadas a partir da metodologia de análise de conteúdo (ver Anexo 1 ANEXO 1 Entrevistas realizadas Público entrevistado Entrevistado Cargo Servidores federais em representações nos estados, atuantes nos projetos Nutre e Ceia Entrevistado 1 Representante do MDA na organização Ceia (Comissão Estadual Intersetorial da Alimentação Escolar) Entrevistado 2 Conab/SP Entrevistado 3 Chefe gabinete SAF/MDA Entrevistado 4 Conab / BA Entrevistado 5 Projeto Nutre Nordeste Gestores Nacionais do Pnae Entrevistado 6 Coordenadora na Coordenação Geral de Alimentação Escolar/FNDE Entrevistado 7 Coordenadora-Geral na Coordenação Geral de Alimentação Escolar/FNDE Gestores Municipais do Pnae Entrevistado 8 Coordenadora de Projetos – Dpto. de Educação – Prefeitura de Mongaguá/SP Entrevistado 9 Engenheiro Agrônomo na Diretoria de Agricultura e Abastecimento – Prefeitura de Mongaguá/SP Entrevistado 10 Nutricionista – Prefeitura de Mongaguá/SP Entrevistado 11 Coordenadora da Educação – Prefeitura de Taquarituba/SP Entrevistado 12 Nutricionista – Prefeitura de Taquarituba/SP Representante da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação –Undime Entrevistado 13 Undime-SP ). Os dados coletados foram compreendidos com base em análise de conteúdo, que propiciou a visualização, consulta, processamento e citação dos documentos e entrevistas (Bardin, 2009BARDIN, L. (2009), Análise de conteúdo. 4 ed. Lisboa: Edições 70.).

Em relação às entrevistas de gestores municipais, a amostra foi composta por municípios que se adequavam ao padrão de “caso desviante”, ou seja, aquele caso para o qual se esperaria determinado comportamento, mas que não o apresentou. Assim, foram selecionados entrevistados em municípios que apresentaram a pior taxa de implementação da lei, mas que, pelos dados disponíveis, possuíam a presença significativa de agricultores familiares e cooperativas organizadas. Ou seja, dispunham de potenciais fornecedores e possuíam um porte que facilitaria, em tese, a aquisição de alimentos da agricultura familiar2 2 . Bonduki (2017) vale-se de critérios objetivos para dividir os municípios entre 20 mil e 100 mil habitantes em quatro diferentes clusters. A expectativa foi a de observar como se comportam municípios de estratos médios, que não fossem extremamente pequenos ou grandes, e como tais municípios responderiam aos incentivos desenhados pelo programa, uma vez isolado o critério populacional. . A escolha por municípios com presença de agricultores familiares e cooperativas visou também evitar as objeções de que a obrigatoriedade dos 30% seria inexequível em grande parte do país, em especial em lugares onde há menor presença de agricultura familiar organizada.

Assim, teve-se como objetivo a compreensão de como ocorreu a resposta à determinação federal de compra da agricultura familiar e quais são os motivos que os levaram a uma implementação insatisfatória. Almejou-se compreender a relação entre a autonomia municipal e a coordenação federativa.

Entendendo a teoria do federalismo como um pacto, de Daniel Elazar, temos que esta existência formal de autonomia por parte dos entes subnacionais em relação ao ente nacional, prevista no pacto fundador da União, convive com a cessão de parcelas do poder destes entes fundadores ao ente nacional. Estados federalistas configuram-se, nesta visão, como aqueles nos quais o poder político se estrutura a partir da resultante entre os vetores que levam de um lado à unidade e de outro à autonomia das unidades federativas, ou self-rule e shared-rule, na elegante formulação de Elazar. Tem-se, assim, uma autonomia bipartida ou, no caso do Brasil pós-1988, tripartida entre União, estados e municípios.

PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: ENTRE CHICOTES E CENOURAS ORGÂNICAS

O Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Pnae, é considerado o mais antigo programa de nutrição do país; tem seu marco de fundação no ano de 1955, quando o presidente Café Filho instituiu a chamada “Campanha da Merenda Escolar” (CME). Hoje, depois de mais de 60 anos, é considerado um dos maiores programas de alimentação e nutrição do mundo, atendendo diariamente um contingente de cerca de 43 milhões de estudantes. Desde sua criação, o programa passou por profundas alterações em termos de operacionalização, tendo passado por um longo e contínuo processo de descentralização da execução administrativa e financeira.

Entre os anos de 1955 até a década de 1970, os alimentos fornecidos para a alimentação escolar organizada pela CME vinham principalmente de programas de cooperação internacional como “Food for Peace”, da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas organizações, sobretudo o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Commodity Credit Corporation (CCC), agência do governo dos EUA para a política agrícola. À época, os produtos eram doados, fornecidos a preços simbólicos ou mediante empréstimos conferidos pelos EUA. Havia, neste período, um grau elevado de concentração em relação à origem dos alimentos (provenientes de alguns poucos grandes fornecedores do mercado internacional). E havia centralização de poderes na CME e em seu superintendente nacional tanto quanto à normatização quanto em relação à execução administrativa do programa.

No período que se inicia na década de 1970, num arranjo típico do período militar brasileiro, o Pnae passou por um processo de nacionalização dos fornecedores dos alimentos. Foi mantida a centralização das compras em Brasília para os gêneros industrializados. As coordenações regionais da campanha – delegações federais nos estados – foram incentivadas a complementar a merenda com gêneros in natura, com recursos da campanha ou estaduais. Neste modelo, nas compras de alimentos processados, o governo federal definia o que comprar e era responsável pela distribuição dos alimentos para todo o território nacional, de norte a sul. O alto nível de centralização do modelo exigia, além de uma capacidade logística extraordinária, gêneros alimentícios pouco perecíveis que suportassem transporte a longas distâncias.

A partir do início dos anos 1980, iniciativas de descentralização da execução do programa vão tomando forma. Segundo Spinelli e Canesqui (2002)SPINELLI, Maria Angélica dos Santos; CANESQUI, Ana Maria. (2002), “O programa de alimentação escolar no estado de Mato Grosso: da centralização à descentralização (1979-1995)”. Revista de Nutrição, v. 15, no 1, pp. 105-117., em 1983, órgãos estaduais de educação ou planejamento dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, em articulação com as prefeituras, passaram a encarregar-se da alimentação escolar, tendo alcançado no estado paulista uma participação de 90% dos municípios. Entre 1986 e 1988, um novo estímulo à descentralização veio novamente da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE/MEC, sucessora da CME) que passou a dividir com os municípios as atribuições para aquisição de alimentos.

Nos anos seguintes, a inclusão da alimentação escolar entre os programas suplementares que efetivam o direito à educação na Constituição Federal de 1988 e a manutenção do programa mesmo em meio à extinção ou abandono de vários dos programas de apoio à nutrição pelo governo Fernando Collor (1990-1992) são elementos que indicam a relevância social adquirida pelo programa. Silva (1995)SILVA, Alberto Carvalho da. (1995), “De Vargas a Itamar: políticas e programas de alimentação e nutrição”. Estudos Avançados, v. 9, no 23, pp. 87-107. aponta, no entanto, que o modelo do programa estava em crise. Apesar de o governo federal propor uma meta recorde de aquisição de 460 mil toneladas de alimentos a serem distribuídas por 200 dias por ano, menos de um terço da meta foi atingida. Houve apenas 60 dias com merenda em 1990 e 1991 e 32 dias em 1992.

O modelo centralizado do Pnae não resistiu ao processo de abertura democrática do país. Após 1988, inclusive pelas dificuldades logísticas que o formato impunha, o programa foi alvo de frequentes denúncias e uma sucessão de escândalos por alimentos perecendo nos armazéns da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 1991, que ficou conhecida como CPI da Fome3 3 . O nome oficial da CPI era “Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a examinar as causas da fome e a iminente ameaça à segurança alimentar”. .

Spinelli e Canesqui (2002)SPINELLI, Maria Angélica dos Santos; CANESQUI, Ana Maria. (2002), “O programa de alimentação escolar no estado de Mato Grosso: da centralização à descentralização (1979-1995)”. Revista de Nutrição, v. 15, no 1, pp. 105-117. apontam que, na época, uma mobilização reuniu o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), a União dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime) e a Frente Municipalista de Prefeitos (FMP) contra o modelo centralizado na gestão do Pnae. Entre os argumentos estavam críticas ao:

[...] gigantismo, ineficácia, consumo elevado de recursos financeiros e deficiências no controle da qualidade dos alimentos e ainda que os alimentos oferecidos não se adequavam aos hábitos dos alunos; suas perdas e deterioração eram grandes e a permanente descontinuidade [...] comprometia a equidade no atendimento aos beneficiários (Spinelli; Canesqui, 2002SPINELLI, Maria Angélica dos Santos; CANESQUI, Ana Maria. (2002), “O programa de alimentação escolar no estado de Mato Grosso: da centralização à descentralização (1979-1995)”. Revista de Nutrição, v. 15, no 1, pp. 105-117.:109).

Em 1993, já sob o governo de Itamar Franco, o problema da forma de gestão centralizada do programa entra definitivamente na agenda. No “Plano de Combate à Fome e à Miséria”, produzido pelo recém-criado Conselho Nacional Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), foi incluído entre os cinco programas prioritários a descentralização do Pnae (Mattei. Wright e Branco, 1997; Silva, 1995SILVA, Alberto Carvalho da. (1995), “De Vargas a Itamar: políticas e programas de alimentação e nutrição”. Estudos Avançados, v. 9, no 23, pp. 87-107.).

O instrumento utilizado inicialmente pelo governo federal para alcançar a descentralização foram novamente os convênios. No primeiro semestre de 1993, estariam aptos a celebrar os convênios as 24 capitais estaduais e, a partir do segundo semestre, ofereceu-se a possibilidade de conveniamento para todos os municípios com mais de 50 mil habitantes (Avila, Caldas e Assad, 2013; Pacheco Filho, 1996).

Em 1994, a descentralização foi prevista na Lei 8.913/94, em que se estipulou que todos os municípios interessados poderiam firmar convênio para receber recursos do governo federal e realizar diretamente a compra, distribuição, preparo e oferta dos alimentos nas suas redes de ensino. Com a alteração, dispara o número de municípios executando o programa, atingindo a marca de 1.532, em 1994. Quatro anos depois, em 1998, o número de municípios executando o Pnae chega a 4.314.

O movimento de descentralização acentuou-se após a Medida Provisória 1.784/1998. Com ela, houve a desburocratização e universalização dos repasses, tendo sido abandonado em definitivo o modelo mais rígido dos convênios, permitindo apenas a adesão direta de todos os municípios que cumprissem requisitos básicos.

Com a mudança, o programa passa a ser executado pela quase totalidade dos municípios e estados. O Gráfico 1 ilustra essa evolução.

Gráfico 1
Municípios executando o Pnae com recursos federais entre 1994 e 2018

Em 2009, por fim, ocorre a última grande mudança na estrutura do programa. Já estando quase integralmente descentralizado no âmbito da execução, ou seja, tendo quase 6 mil executores (entre municípios, estados e escolas) com atribuição de definir os cardápios e realizar as compras, o programa passou então a exigir a multiplicação dos fornecedores.

Parte da literatura da sociologia rural discute a relevância das redes de proximidade na abertura de mercados para a agricultura familiar, a partir das propostas de Granovetter (1974GRANOVETTER, Mark. (1974), Getting a job: a study of contacts and careers. Cambridge, MA: Harvard University Press., 2007GRANOVETTER, Mark. (2007), “Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão”. RAE Revista de Administração de Empresas, v. 6, no 1. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-56482007000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19/2/2020. https://doi.org/10.1590/S1676-56482007000100006.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
)4 4 . Cabe destacar a ênfase dada por Granovetter para o significado do comportamento dos agentes econômicos no âmbito do funcionamento de mercados, que faz uma crítica à economia neoclássica e mesmo a alguns “revisionistas” no escopo dessa corrente, como Williamson. Enfatizando o comportamento econômico, o autor argumenta que sua maior parte “está profundamente imersa em redes de relações interpessoais, e que essa abordagem evita os extremos das visões sub- e supersocializada da ação humana” (Granovetter, 2007). . A partir dessa perspectiva, apesar de estarem frequentemente alheios às detalhadas e por vezes excessivas exigências sanitárias e fiscais e, ainda, às específicas demandas dos “mercados formais”5 5 . Um contraponto a essa constatação para contextos específicos está no argumento desenvolvido por Schneider e Gazolla (2015). Estudando empreendimentos de pequena escala da agricultura familiar da região norte do Rio Grande do Sul, os autores argumentam que a introdução de novos processos produtivos foi acompanhada da criação e adaptação de tecnologias e produtos. Dentre as consequências para a agricultura familiar pode-se destacar a melhoria da renda per capita, a criação de novos mercados e canais de venda, a ampliação de novas interfaces entre as famílias e outros atores sociais, além do desenvolvimento de produtos ambientalmente sustentáveis. (supermercados, instituições públicas etc.), os agricultores são bem-sucedidos em ocupar o mercado local. Essa ocupação se dá a partir da mobilização de sua rede social – seja como consumidores diretos, seja como canais de distribuição para sua produção, fazendo uso de redes de trocas ou de reciprocidade, embebidos de elementos de natureza cultural e simbólica (Sabourin, 2014SABOURIN, Eric. (2014), “Acesso aos mercados para a agricultura familiar: uma leitura pela reciprocidade e a economia solidária”. Revista Econômica do Nordeste (REN), v. 45, pp. 30-43.; Niederle, Radomsky, 2008). Nesse sentido,

[...] o desafio da expansão da produção não se reduz ao gerenciamento de quantias maiores, nem aos problemas ligados a custos fixos mais onerosos, mas implica a extensão do mercado além da rede social. Como negociar essa ruptura entre mercado e rede se torna o desafio fundamental (Wilkinson, 2009WILKINSON, John. (2009), Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS.:94).

A partir da MP 455 depois convertida na Lei 11.947/09 houve a exigência para que no mínimo 30% dos recursos destinados aos executores pelo FNDE fossem adquiridos de fornecedores credenciados como agricultores familiares, e esta aquisição deveria privilegiar fornecedores do mesmo ente federativo que realiza a compra. No âmbito da legislação do Pnae, no entanto, apesar de a venda em nível local ser privilegiada, não houve maiores concessões quanto aos requisitos formais para facilitar este acesso. As condições para eximir gestores locais da obrigação de comprar da agricultura familiar foram expressas já na Lei 11.947/09 que em seu parágrafo segundo lê:

A observância do percentual previsto no caput será disciplinada pelo FNDE e poderá ser dispensada quando presente uma das seguintes circunstâncias:

  1. impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente;

  2. inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios;

  3. condições higiênico-sanitárias inadequadas.

Conforme se verá na análise das entrevistas, esta possibilidade de dispensa é um útil mecanismo aos gestores municipais que não querem implementar as compras da agricultura familiar.

O Gráfico 2 ilustra essa evolução na aquisição da agricultura familiar no âmbito do Pnae

Gráfico 2
Compra da agricultura familiar no Pnae (%) entre 2011 e 2016

A descrição da trajetória histórica permite desenvolver duas análises. A primeira é a de que houve praticamente a universalização na execução dos recursos federais do Pnae entre estados e municípios (Gráfico 1). A flexibilização dos instrumentos de execução e o caráter descentralizador da Constituição de 1988 explicam boa parte desse processo. A segunda análise é sobre o caráter intermediário da adoção pelos municípios da obrigação de que 30% dos alimentos da merenda escolar sejam provenientes da agricultura familiar. Se o percentual de aquisição de alimentos da agricultura familiar sobre o total repassado tem aumentado ao longo do tempo (Gráfico 2), esse cenário é desigual e assimétrico. O elevado desvio-padrão observado demonstra contrastes marcantes entre os diferentes municípios brasileiros.

A partir da evolução da aquisição de alimentos da agricultura familiar no âmbito do Pnae, Bonduki (2017)BONDUKI, Manuel. (2017), Entre chicotes e cenouras orgânicas: cooperação, coerção e coordenação na implementação das compras da agricultura familiar para o Pnae. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. delimita quatro clusters de municípios entre 20 mil e 100 mil habitantes entre 2011 e 2014. Há os que implementaram as aquisições rapidamente no início, mas perdem o ritmo posteriormente (com média oscilando entre 29,9% e 27,3% de aquisições da agricultura familiar no período); os que fizeram uma implementação rápida e sustentada durante todo o período (com média variando entre 39,5% em 2011 para 53% em 2014); os que adquiriram volumes muito baixos durante todo o período (com média de 10,1% em 2014); e os que tiveram implementação lenta no início, mas que se acelera ao final do período (partem de 5,2% em média em 2011 para 39,2% em 2014).

Dado esse cenário, que padrão de relações intergovernamentais compreende essa evolução desigual da descentralização desse programa? A seguir serão analisados aspectos relacionados a coerções, incentivos e necessidades de coordenação do programa.

CHICOTES: HIERARQUIA, DEPENDÊNCIA E COERÇÃO

Há um elemento centralizado na forma de decisão e coercitivo na relação entre o governo federal e os estados e municípios na operacionalização do Pnae. A totalidade das regras do programa é definida pelo Conselho Deliberativo do FNDE, que não conta com nenhum tipo de participação de fora do Ministério da Educação, muito menos de fora do Executivo federal. Esta situação de hierarquia na produção da política pública teve reflexos na forma como foi implementada a compra da agricultura familiar. Os municípios, principais implementadores da política, na maioria dos casos ficam sabendo das alterações na regulamentação do programa pelo Diário Oficial, como comenta uma gestora local: “Você tem que estudar cotidianamente, por que mudança na legislação acontece de hoje pra amanhã. E você tem 15 a 20 dias para se adaptar”. (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 10)

É bem verdade que, tendo sido derivada de uma Medida Provisória convertida em lei pelo Congresso Nacional, a obrigação de gastar no mínimo 30% dos recursos federais em produtos da agricultura familiar teve o aval de ambas as casas legislativas, nas quais há representação dos estados. No entanto, nem só de leis são feitas as políticas públicas. No processo de regulamentação das compras por meio das resoluções do CD/FNDE, poderia ser definido um grau maior ou menor de autonomia aos municípios quanto à forma de implementar a obrigação legal. Igualmente, poderia haver maior ou menor negociação com os entes federativos sobre o conteúdo da regulamentação ou maior flexibilidade nas normas. Uma demanda frequente que surgiu durante a implementação, por exemplo, foi a de que o percentual de 30% não fosse exigido imediatamente para o ano de 2010, mas houvesse uma gradação a partir de patamares menores até chegar aos 30% depois de alguns anos.

A lógica da política pública é que é mais fácil mandar o dinheiro pro município e ele gerenciar porque ele sabe o que está acontecendo. Então o município tem uma responsabilidade muito maior. (...) A divergência de tudo isso é: eles fazem determinações que nem sempre na ponta funcionam. (...) Precisava ter uma flexibilidade para que a gente pudesse usar melhor o recurso, de uma maneira mais tranquila. Sem precisar ficar fazendo arranjo com ninguém, na prática (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 8, ênfases nossas).

Assim, entende-se que no arranjo atual do Pnae encontramos as características de uma descentralização do tipo “consolidação” (Beer, 1998BEER, Samuel. (1998), “Introduction”. In: T. Conlan(ed.), New Federalism – Intergovernmental Reform from Nixon to Reagan. Washington, D.C.: The Brookings Institution.), ou seja, existe a transferência da atribuição de implementar a política para um nível subnacional, mas a definição em relação aos grandes marcos que a regulamentam não está sob escrutínio de municípios e estados. Se nos anos entre 1994 e 1998, quando ocorreu a descentralização da execução dos recursos, essa característica não esteve explícita, apesar de já estar presente, com a implementação do artigo 14 da Lei 11.947/09 foi acentuada a posição centralizadora do plano federal quanto à normatização do Pnae.

Nunca ninguém veio perguntar se a gente estava gostando ou não [de ter que comprar da agricultura familiar]. A gente, na realidade, é obrigado a se adaptar. Este ano a gente vai informar que não houve compra porque ninguém apareceu [...]. Não passamos incólumes. Chegamos até a comprar do Rio Grande do Sul. Então a gente acabou se adaptando, mas nunca ninguém veio perguntar pra gente, de forma oficial (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 8, ênfases nossas).

Esta posição fundamenta-se na lógica de que os recursos repassados pelo FNDE para o Pnae seguem sendo recursos exclusivamente federais, sob os quais Brasília manteria poder normativo mesmo que a execução seja descentralizada. A consequência previsível desta lógica é que, caso as regras do Conselho Deliberativo do FNDE não fossem seguidas, haveria corte dos repasses.

Ao entrevistar os gestores municipais do Programa de Alimentação Escolar é nítida a relação hierárquica e a potencial ameaça de corte dos recursos como sanção no caso de descumprimento das regras.

Tudo que a gente vai fazer tem que estar ligado ao MEC ou à delegacia de ensino do estado de São Paulo. Toda e qualquer definição do departamento [municipal] de educação relativo à merenda, [...] é vinculada às instâncias superiores: ou estado ou Ministério da Educação (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 8, ênfases nossas).

Uma grande parcela dos municípios tem nos recursos federais a fonte exclusiva de orçamento para alimentação escolar. E, ainda que uma parcela de municípios mais abastados não dependa exclusivamente dos recursos federais para o programa, em todos os casos os repasses significam recursos importantes.

Se você deixar de receber o recurso, não tem condição de se manter. Du-vi-de-o-dó o município que consiga se manter sem ter o recurso da alimentação escolar (...). Sem o recurso federal não tem jeito. (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 11, ênfases nossas).

Há ainda uma percepção de uma distância muito grande entre o município e Brasília. Quando perguntados em que o FNDE ajuda na implementação do Pnae, não apenas os relatos são de distância, mas também de autonomia, nos termos abaixo.

Transfere o recurso e pronto. Não existe nada além disso. Não tem relação. Não tem o contato. Às vezes a gente precisa de uma informação não sabe nem pra quem ligar. Aquele [0800] 616161, lá... tem que deixar pra um dia com muita paciência [...] você fica passando de um de outro. Quando chega na pessoa certa ela até resolve, mas o difícil é chegar. [...] E na verdade a gente não precisa de grandes contatos (Gestor Municipal do Pnae, Entrevista 11, ênfases nossas).

Se considerarmos a visão matricial de Daniel Elazar e a ênfase que o autor faz para a barganha entre os entes federativos como lente para compreender as relações entre governo federal e municípios na implementação do Pnae, parece claro que a cooperação para implementação de compras é obtida em meio a um contexto de dependência, aproximando-se de uma “cooperação coercitiva” (Elazar, 1994 apudGrin, 2016GRIN, Eduardo José. (2016), Rotas federativas para a promoção de capacidades estatais municipais: uma análise da experiência brasileira. Tese (Doutorado em Administração Pública e Governo), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.). Alguns executores de maior peso, como as secretarias estaduais de educação e as secretarias de educação de algumas capitais desfrutam naturalmente de maior trânsito e conseguem ser ouvidas, mas esse é um processo descontínuo, pessoalizado e não institucional. Como argumenta um responsável pelo programa do nível federal:

O feedback que a gente tem do ponto de vista da institucionalidade, do arranjo federativo, é puramente de questionamentos, esclarecimentos, por exemplo, o Estado de São Paulo tem vários questionamentos sobre as nossas regras de alimentos restritos, proibidos [...]. E aí entra num debate bem tecnicista. Mas isso nos municípios mais estruturados. Nos demais, quando ficam sabendo [das mudanças], levam aquele tempo para acolher. Mas a gente nunca recebeu um questionamento sobre a legalidade disso ou daquilo. Não há um enfrentamento. A relação acaba sendo muito “top-down” mesmo. Baixou a regra, cumpra-se. Não está satisfeito, paciência (Gestor Nacional do Pnae, Entrevista 7, ênfases nossas).

Em parte, essa situação deriva, segundo alguns relatos, de um desinteresse mesmo das principais entidades de representação dos executores, Undime e Consed, em relação ao Pnae. Segundo esta visão, a pauta da alimentação escolar teria pouco espaço na já cheia agenda da educação, do ponto de vista do debate público, e teria menos visibilidade e interesse dos gestores municipais quando comparada a investimentos em infraestrutura e outras pautas mais fortes eleitoralmente. Mesmo em relação à implementação da compra da agricultura familiar, em que foi instituído um comitê consultivo com a presença de Undime e Consed que poderia ser um espaço para avançar na direção de uma maior governança do programa que incluísse os executores, a participação das entidades não foi expressiva.

A interlocução do FNDE com a Undime e com o Consed normalmente se dá para temas que são muito mais interessantes para esses atores, que são as questões de obras, a discussão da Base Nacional [Comum]. Então a alimentação não tem muita chance nessas agendas. [...] O [debate sobre a implementação do] artigo 14 é o único que eu vejo que houve mais participação, mas não dos gestores, dos movimentos e da sociedade civil. A Undime e o Consed não eram assíduos nesse debate (Gestor Nacional do Pnae, Entrevista 7).

Mas, no entanto, há interdependência. Não são apenas os municípios que precisam dos recursos federais, o governo federal depende também da ação municipal. Os municípios são peças-chave da implementação do Pnae e sem eles o programa teria grande dificuldade de implementação. Por que, então, esta posição estratégica não é utilizada pelos municípios para negociar e se fazerem ouvir junto ao FNDE? Uma das respostas pode passar pelo fato de que o Pnae não é o único vínculo de relações entre municípios e FNDE. Há múltiplas interações entre os gestores subnacionais e federais no âmbito da educação, o que torna a barganha entre essas elites políticas mais complexa, envolvendo outros programas e recursos. Um dos entrevistados que faz a gestão do programa no âmbito do município mencionou esta situação, em relação ao governo do estado, que tem interesse que os municípios assumam a alimentação escolar das escolas estaduais em troca do repasse da verba federal somada a uma complementação.

Os prefeitos podem romper com o governo estadual, mas é um processo traumático. Tanto que a Seduc investe muito esforço para convencer os municípios a aderirem [à municipalização da merenda]. Mas esforço não é dinheiro, né? Eles falam: “olha, nós somos parceiros em um monte de coisas...” aí cada um entende como quer as entrelinhas (Gestor Municipal, Entrevista 11).

Outra chave que pode explicar a aceitação dos municípios das regras desenhadas de forma centralizada pelo Pnae deriva de um entendimento não assumido, mas corrente entre os técnicos federais do programa, de que cumprir o conjunto de exigências do FNDE em sua totalidade é praticamente impossível aos municípios. Havendo excesso de regras a serem cumpridas, não é possível exigir o cumprimento de todas minuciosamente. Assim, se por um lado o FNDE mantém-se numa postura coercitiva em relação aos municípios, reservando a si a possibilidade de, em tese, cortar os recursos do Pnae, a aplicação destas regras acaba sendo flexibilizada, e apenas os descumprimentos considerados mais graves e em que não há espaço legal de discricionariedade dos gestores é que dão causa ao corte de recursos. Estes casos seriam: i) a não prestação de contas ao final do exercício; ii) a não instituição do Conselho da Alimentação Escolar (CAE); e iii) o não cumprimento do objeto, que é o fornecimento de alimentação. Haveria, portanto, flexibilidade e ocorrência de negociação implícita.

Kate Abreu, ao investigar a implementação da lei em três municípios de pequeno porte afirma, neste sentido: “por meio da análise da atuação dos órgãos de controle institucional, até 2013, sugere-se que não há um modo de agir que vise punir os municípios que não realizam a compra orientada” (Abreu, 2014ABREU, Kate Dayana Rodrigues de. (2014), A implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) em municípios de pequeno porte: implicações práticas e teóricas. Dissertação (Mestrado), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/11650>.
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:141).

Os gestores municipais entrevistados mostram que de alguma forma compreendem este “jogo de faz de conta” em que uma parcela das regras é inegociável ao passo que outra deve ser cumprida “na medida do possível”. Entendem que, embora haja muitas regras, o FNDE é parcimonioso em sua aplicação.

O exemplo clássico é exatamente o da compra da agricultura familiar. Mesmo após sete anos da obrigatoriedade de comprar os 30% mínimos, um conjunto de pelo menos 1.058 municípios não havia chegado nem a 5%, enquanto 73 municípios não utilizaram qualquer valor em nenhum dos seis anos analisados. Mas o FNDE não cortou os recursos e dificilmente teria condições políticas de fazê-lo nos municípios que não justificassem adequadamente o porquê de não realizarem a compra. Em verdade, o FNDE tem mesmo uma dificuldade enorme de acompanhar a parte contábil das prestações de contas6 6 . Relatório da Controladoria Geral da União (CGU) sobre as prestações de contas pendentes de análise no FNDE apontava em 2010 para um estoque de 67 mil prestações não analisadas. Já em julho de 2016 este número havia chegado a 260 mil prestações com análise pendente, num total de R$90 bilhões de recursos executados, mas não fiscalizados (Brasil, 2018). , que dirá de avaliar, por exemplo, se as chamadas públicas consideraram adequadamente ou não a sazonalidade da produção local. Logo, ainda que o pedido frequente dos municípios ao início da obrigação legal de que a compra dos 30% não fosse cobrada desde o primeiro ano, mas que fosse estabelecido um percentual gradativo, não tenha sido aceito formalmente, na prática é o que vem acontecendo. E mesmo que nenhum município tenha sido punido por não comprar, em sua maioria, as prefeituras vêm ampliando as compras ano a ano. Faz parte do “acordo” implícito em que as prefeituras obedecem, na medida do possível, e o FNDE não pune, exceto em casos graves7 7 . Em 31 de maio de 2019, o FNDE atestou em resposta à consulta com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) a inexistência de suspensão ou redução de recursos do Pnae em razão do não cumprimento do mínimo de 30% de alimentos da agricultura familiar. .

Uma das dificuldades na hora de convencer os municípios a comprarem é que o FNDE não punia aqueles que não compravam da agricultura familiar. E eles já tinham um jeito de fazer a compra anterior, então quando você começa a não ter punição… dificulta. Acho que até hoje ninguém foi punido por não comprar (Representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na Ceia, Entrevista 1).

Um dos problemas desta situação implícita – em contraposição a uma pactuação estabilizada em um normativo do programa – é que outros atores da política, em especial os do sistema de controle, como o Ministério Público, a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União podem, em tese, exigir a qualquer momento uma postura mais firme e punitiva do FNDE, ampliando assim a insegurança de gestores federais e municipais e movendo a decisão sobre a política pública dos órgãos que a estão formulando para o sistema de controle.

Outro problema desta situação é que não permite ao FNDE, por exemplo, conceder benefícios aos municípios que estejam se adaptando mais rapidamente, ou comprando da própria localidade, uma vez que estão apenas cumprindo uma obrigação. Assim, municípios que se esforçam para obedecer e os que não o fazem acabam recebendo o mesmo tratamento (a não punição), enfraquecendo a possibilidade de uma indução federativa mais flexível.

NOVOS ATORES DISPUTAM O ESPAÇO DO PNAE

Além da dinâmica interna no campo da educação e a relação entre FNDE e municípios, outra dinâmica ajuda a explicar o êxito na implementação da lei. A entrada em cena de novos atores para disputar o espaço da política de alimentação escolar: os atores do mundo rural.

O processo de criação da obrigação de compras no Pnae foi antecedido pelo sucesso de outro programa de compras públicas administrado pelo governo federal em parceria com estados e municípios, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Lançado em 2003 no contexto do Programa Fome Zero, previa em sua modalidade de Compra com Doação Simultânea que agricultores e cooperativas teriam seus produtos adquiridos com recursos federais e deveriam entregá-los a instituições de assistência social, como asilos e creches nos municípios. O PAA, em especial na modalidade da Compra com Doação Simultânea, possui um interessante desenho em que o mesmo recurso federal consegue, simultaneamente, atender à necessidade de alimentos de uma parcela da população em situação de insegurança alimentar e, também, estimular a produção de alimentos por agricultores familiares que estejam próximos a esta população. Desta forma, ao resolver um problema emergencial (a insegurança alimentar cotidiana), apoia a resolução de um problema estrutural (a ampliação da produção e da disponibilidade de alimentos próximos a esses consumidores). Tudo isso com o apoio das prefeituras que se encarregam da logística de entregas em troca de receberem os alimentos para suas instituições de assistência social e, inclusive, escolas. O sucesso do programa garantiu, além da ampliação expressiva de recursos ano a ano, uma aproximação entre os produtores rurais e outras áreas do Executivo municipal além das secretarias de agricultura.

Desde sua formulação, o PAA mobilizou a formação de uma coalizão de instituições federais, a começar da organização em rede do então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (Mesa), estaduais, movimentos sociais ligados à reforma agrária e ao desenvolvimento rural e organizações e conselhos ligados ao campo da segurança alimentar e nutricional (Müller, Silva e Schneider, 2012). Essa coalizão já vinha participando organizadamente das discussões a respeito das compras públicas e teve papel fundamental na inclusão das compras para a agricultura familiar na Lei 11.947/09. Assim, a política de alimentação escolar, que não vinha recebendo maior atenção dos atores organizados do campo da educação, de alguma forma insulada na autarquia que executa programas do MEC, passou a ser disputada por um conjunto organizado e combativo de atores tanto do poder público quanto da sociedade civil. Juntos, movimentos do desenvolvimento rural e da segurança alimentar formaram uma coalizão que esteve na linha de frente da promoção da implementação da nova regra no Pnae.

Esses atores, após conquistar a alteração legal que incluiu a cota de 30%, direcionaram sua ampla rede para garantir a implementação da lei. Uma parte principal deste esforço era convencer os gestores municipais de que: i) havia agricultores aptos no município ou região para fornecer ao programa com qualidade e regularidade; ii) os cardápios locais deveriam ser reformulados para adequar-se a esta produção; e iii) se a lei dos 30% não fosse cumprida poderia haver corte dos recursos da alimentação escolar.

Apesar desta rede não deter poder formal de fiscalização sobre os municípios em relação ao Pnae, ela foi capaz de realizar ampla mobilização, por exemplo, junto aos próprios agricultores interessados em que as prefeituras lançassem as chamadas públicas e iniciassem as compras. Diante do frequente argumento de gestores da educação de que “não tem agricultura familiar no meu município”, a presença demandante dos agricultores e a existência de doações de alimentos advindas do PAA para os municípios eram utilizados como instrumentos de pressão sobre os prefeitos:

Nas reuniões, nós chamamos o pessoal [agricultores] aqui e dissemos pra eles: “olha vocês digam pras prefeituras, que todo esse alimento que está chegando para doação é produzido lá dentro e que se não sair a chamada pública, esse município aqui do lado está fazendo, eu corto a doação aqui e entrego tudo que vocês produzirem pra esse município aqui do lado” (Servidor Federal em representação estadual, Entrevista 2).

Além disso, esta coalizão manteve uma pressão constante sobre o FNDE para que este endurecesse com os municípios que não estavam realizando as compras ou ao menos lançando chamadas públicas. A cobrança era para que houvesse ameaça de corte de recursos ou o bloqueio de uma parcela dos recursos, que somente poderia ser utilizada para compra de agricultores familiares. Esta pressão mantém-se, como mostra uma das entrevistas com um gestor representante deste grupo.

A gente tinha uma presença muito distante do FNDE e uma ausência de encaminhamento sobre o que aconteceria com a prefeitura caso não comprasse. Há quantos anos existe a lei e tinha prefeitura que ainda não comprava. Não acontece nada? [...] O cara que é prefeito não recebe nenhuma punição? Faltam formas de fazer cumprir a lei. [...] Nunca decidiram qual seria a consequência de uma prefeitura passar seis anos sem comprar? [...] É difícil né? (Servidor Federal em representação estadual, Entrevista 2).

Um dos indicadores da entrada deste campo no debate sobre o programa de alimentação escolar é a frequência com que o Pnae passa a aparecer nas pautas do “Grito da Terra” e de outras pautas de reivindicações dos movimentos sociais agrários. Na pauta do Grito da Terra de 2013 havia a demanda de “Ampliar e fortalecer a equipe interna do FNDE que trata do processo de compra de alimentos da agricultura familiar”. Já na pauta da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (Fetraf) entregue ao MDA em 2014 lia-se a seguinte demanda no item 18: “Cumprimento da lei que assegura a aquisição de no mínimo 30% da merenda escolar (PNAE), através de produtos da Agricultura Familiar”.

Em resumo, havia um grupo grande e organizado, de dentro e de fora dos governos estaduais e federal, atuante em todo o território nacional e interessado na implementação da lei, pressionando os prefeitos e o FNDE para que mobilizassem os prefeitos.

CENOURAS ORGÂNICAS: INTERDEPENDÊNCIA, NEGOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO

Apesar de o marco institucional geral do Pnae estar ainda calcado numa estrutura que não prevê espaços de negociação, e de frequentemente os atores interessados na efetivação da compra terem se utilizado de um discurso ou ferramental de estilo hierárquico, o processo de implementação da compra da agricultura familiar foi também balizado por estratégias que buscavam fortalecer o convencimento e a participação das demais esferas. Afinal, a compra dependia de uma alteração nas práticas cotidianas da administração municipal. Os procedimentos de compras deveriam ser precedidos de uma pesquisa sobre o que é produzido na região, seguida da inclusão destes produtos no cardápio elaborado pela nutricionista, além do convencimento de uma burocracia local formada pelos tradicionalmente insulados setores jurídicos e de compras dos municípios e, principalmente, deveria haver disposição em compreender as necessidades e complexidades de um novo público, até então distante dos setores de compras e da área da educação. As famílias agricultoras passaram a ocupar uma dupla posição: ao mesmo tempo em que eram fornecedoras de produtos para a prefeitura, eram também beneficiárias de uma política de desenvolvimento local. Deveria, portanto, haver, por parte dos gestores municipais, algum grau de incentivo e convencimento, para além dos chicotes.

A própria Lei 11.947/09, ao estipular a cota mínima de 30% para produtos da agricultura familiar, previu justificativas válidas e genéricas para os gestores que não realizassem as compras, como o inciso II, do art. 14: “II - inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios”. Logo, os gestores locais possuíam mecanismos legais para forçar a permanência no modelo de compras antigo. Apenas a coerção não seria suficiente e a sensibilização e o apoio técnico cumpririam um papel fundamental.

Além disso, a abertura de mercados de compras públicas para a agricultura familiar não foi um movimento inaugurado pelo Pnae. Como já dito, no campo das políticas públicas foi precedido no Brasil pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) lançado pelo governo federal em 2003 entre as estratégias de combate à fome. Mesmo antes do PAA, já existiam experiências municipais no sentido de incluir a agricultura local, como no município de Cabo Frio (RJ). A mudança no Pnae insere-se, assim, em um contexto de fortalecimento da ideia de utilização das compras públicas para apoiar as cadeias curtas de produção e consumo, a cadeia dos orgânicos e o apoio a grupos específicos como quilombolas, assentamentos etc.

Nesse contexto, após a inclusão da agricultura familiar no Pnae em lei de 2009, muitos estados aprovaram seus próprios programas de compras públicas, como foi o caso de São Paulo (Programa Paulista da Agricultura de Interesse Social – Ppais, criado em 2011); Distrito Federal (Programa de Aquisição da Produção da Agricultura – Papa-DF, de 2012); Rio Grande do Sul (Compra Coletiva, de 2012); Minas Gerais (PAA Familiar, de 2013); Mato Grosso (Peaf, de 2015)8 8 . O Ppais, de São Paulo, tem como principal foco a compra institucional para as unidades prisionais do estado. O Papa-DF tem uma pauta ampla de compras da agricultura familiar, atendendo inclusive o Jardim Zoológico. O Programa Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (Peaf/MS) criou a obrigação de que “no mínimo 20% dos alimentos adquiridos pelo Estado para atender as cinco unidades socioeducativas e 59 penitenciárias de Mato Grosso” venham de agricultores familiares. , entre outros sendo criados em Santa Catarina, Bahia, Maranhão e Goiás. Estados e municípios foram também aprovando legislações para aumentar a presença de alimentos orgânicos na alimentação escolar. Internacionalmente, o modelo do PAA e do Pnae foi apresentado pelo Brasil como um caso de sucesso no combate à fome e à desnutrição, e o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) criou em 2008 o programa “Purchase for Progress” (P4P) em cujo âmbito realiza compras de pequenos agricultores nas regiões onde atua.

Esta repercussão demonstra que a criação da obrigação de comprar da agricultura familiar no Pnae só foi possível porque estava em sintonia com ideias-força ligadas à valorização da alimentação saudável, da proteção ao meio ambiente e da valorização do pequeno produtor e que desempenharam um papel ao “convencer” os municípios a participar da inovação.

No âmbito do FNDE, a principal iniciativa de criar um ambiente de cooperação na implementação da lei foi a criação de um Comitê Consultivo com a presença de membros da Undime, do Consed, do Consea e de movimentos sociais para discutir a implementação da lei e de um Comitê Gestor, com a presença de MDA, MDS, Conab, Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). Nos comitês, as alterações na regulamentação do art. 14 eram o assunto principal e foram o objeto da grande maioria dos encontros. No entanto, as reuniões eram esparsas e com periodicidade indefinida, não havia a produção de uma pauta conjunta ou a redação de atas detalhadas. No Comitê Consultivo, como já foi dito, a participação dos atores representantes dos municípios e estados, Undime e Consed, não era assídua.

Já no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, maior interessado no sucesso da política, foi desenvolvido um plano estratégico para apoiar a implementação da lei envolvendo atores federais, estaduais e municipais. Este plano acabou servindo de guia para a atuação dos órgãos federais nos anos que se seguiram à criação da lei, tendo sido discutido e aprovado em reunião do Comitê Gestor. Um de seus objetivos principais era garantir que a viabilidade da compra não fosse questionada por prefeitos e governadores insatisfeitos. O plano previa a realização de ações específicas para as grandes cidades, consideradas os municípios “de maior risco”. Além disso, defendeu a formação de grupos que reunissem instituições estaduais e representações federais nos estados para promover e apoiar a implementação da lei nas municipalidades (Paganini, 2009PAGANINI, Sergio. (2009), Plano estratégico: inserção da agricultura familiar como fornecedora de gêneros para a alimentação escolar. Brasília: GTZ.).

Da iniciativa de ações específicas para as grandes cidades surgiu o “Projeto Nutre”, que atuou por meio de organizações da sociedade civil junto aos gestores estaduais e secretarias municipais da educação das capitais do Nordeste, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pará. Foram ainda organizados em conjunto com o FNDE, MDS, Conab e MPA uma série de seminários voltados para os gestores municipais das regiões metropolitanas, áreas que reuniam um enorme volume de compras para o Pnae, mas que, devido à elevada urbanização e complexa logística, tenderiam a ter maiores dificuldades para realizar tais compras. Por outro lado, entendia-se que se a compra se mostrasse viável em um município como São Paulo ou Rio de Janeiro, seria reforçado o argumento de sua viabilidade para qualquer outro município do país.

Da proposta de formação de grupos intersetoriais nos estados nasceu a Comissão Estadual Intersetorial da Alimentação Escolar (Ceia), inicialmente criada no Estado de São Paulo e depois replicada com outros nomes na Bahia e em Goiás. Em São Paulo a Ceia funcionou ativamente. Dela fizeram parte, além das representações de Incra e MDA no estado, também a Conab-SP, Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) o órgão responsável pela Ater pública, professores da Universidade Federal de São Paulo ligados ao Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar (Cecane)9 9 . Organizações apoiadas pelo FNDE nos estados junto a universidades federais para auxiliar a implementação de suas políticas. , o próprio Projeto Nutre São Paulo, através da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Via Pública, entre outros atores. A Ceia, mesmo nunca tendo existido formalmente, organizou algumas dezenas de reuniões regionais para sensibilização dos secretários municipais de educação, setores de compras e nutricionistas. Foi, inclusive, responsável por organizar um levantamento independente, que mapeou a situação da implementação da compra da agricultura familiar em 95% dos municípios do estado, no ano de 2011.

Além das ações conjuntas dos ministérios envolvendo convencimento e apoio técnico, dois outros fatores podem ter contribuído para uma maior aceitação da alteração no programa.

O primeiro é que com a obrigação de realizar compras priorizando os agricultores do próprio município, muitos prefeitos passaram a ter respaldo legal para executar uma política de desenvolvimento rural com os recursos antes destinados somente à alimentação escolar. Ou, dito de outra forma, passaram a poder privilegiar os seus concidadãos (e, portanto, seus eleitores) como fornecedores da prefeitura em detrimento de fornecedores escolhidos por licitação, sem nenhum critério territorial. Com isso criou-se uma agenda local de apoio ao desenvolvimento dos agricultores em torno da qual os sindicatos, cooperativas e organizações de trabalhadores rurais e agricultores familiares passaram a poder exigir ação do poder público municipal.

O segundo fator que pode ter ajudado a quebrar resistências dos municípios é que, no mesmo ano em que entrou em vigor a cota mínima de 30% para produtos da agricultura familiar, houve um aumento de 36% no valor dos repasses aos executores do Pnae, que passaram de R$0,22 per capita para R$0,30. Assim, os municípios não tiveram que excluir fornecedores, mas foram obrigados a fazer uso destes recursos adicionais para comprar de agricultores familiares.

A compra da agricultura familiar, neste contexto, nunca foi tratada como uma mera imposição do nível federal sobre os municípios e estados, mas como um processo que, para além de estar respaldado por uma legislação federal, era viável e poderia trazer benefícios para os entes que se adaptassem.

NEM CHICOTES, NEM CENOURAS: LACUNAS E POSSIBILIDADES DE COORDENAÇÃO

Para além da discussão sobre os elementos coercitivos ou cooperativos presentes no programa, parece haver uma lacuna na criação de mecanismos de coordenação no Pnae, acompanhada de uma rigidez muito grande nos mecanismos vigentes. Existe, portanto, possibilidade de ampliação de um processo de coordenação no programa que não descuide dos princípios e benefícios da descentralização e da atenção à autonomia e à diversidade. Uma agenda para renovar a coordenação no Pnae deveria avançar: i) na criação de espaços de governança interfederativos; ii) na criação de uma estrutura de incentivos específicos e graduais atrelados a indicadores; iii) na ampliação do papel dos governos estaduais; iv) na inclusão de mecanismos de mitigação das desigualdades regionais no programa; e, por fim, v) na inclusão de elementos de saudável competição federativa entre os executores.

A constituição de espaços de governança federativa do programa é a mais nítida e premente necessidade para avançar no sentido de uma coordenação de cunho cooperativo junto aos executores do programa. Devem, portanto, ser institucionalizados espaços de negociação, que reconheçam os papéis de governo federal, estados e municípios, e diferenciem as representações de municípios de tamanhos distintos, para abarcar sua diversidade. É previsível que a criação destes fóruns tenderia a aumentar as tensões em torno do programa, hoje insulado até mesmo das discussões do Ministério da Educação. No entanto, no médio e longo prazos, serão de fundamental importância na construção de um arranjo que equilibre adequadamente a desejável coerência do programa em nível nacional e com as diversidades inerentes às realidades locais do país.

A criação de uma estrutura de incentivos atrelados a indicadores deverá ser a consequência de uma gestão mais voltada para a cooperação. Hoje há, na prática, apenas uma sanção prevista para qualquer nível de descumprimento das regras do programa, que é o corte total dos repasses10 10 . Caso a Entidade Executora conclua o ano e deixe de executar valores em proporção superior a 30% do repasse, há a previsão de retenção do que extrapolar este percentual. No entanto, esta previsão também não vinha sendo executada pelo FNDE até 2016. . Assim, nas regras do programa não há espaço para nenhum tipo de gradualismo na estruturação de incentivos para fazê-lo avançar no sentido desejado: ou corta-se todo o repasse ou não se corta nada. Como o modelo do programa não é plenamente coercitivo, acaba existindo uma série de normas que funcionam mais como indicações, intenções e estímulos, já que não podem ser levadas às últimas consequências sob pena de inviabilizar o programa. Essa situação, além de ampliar a insegurança dos gestores de todos os níveis, que afinal de contas não estão cumprindo ou fazendo cumprir a legislação vigente, não é a forma mais eficaz de induzir comportamentos. Assim, ao lado da constituição de uma arena de governança, a construção de um conjunto de indicadores, a exemplo do IGD-M e IGD-E utilizados no Programa Bolsa Família, permitiria ao FNDE uma ação de coordenação fina e uma postura mais indutiva e menos coercitiva. Paralelamente a isso, seria capaz de estimular e premiar a inovação no nível local, permitindo que os gestores locais assumissem com mais ênfase a posição de formuladores de soluções para alcançar objetivos definidos do programa.

Em relação ao aumento do papel dos estados, argumenta-se que, assim como é o caso em outras políticas sociais, no Pnae, o papel dos estados na coordenação das iniciativas municipais, especialmente quando se trata de apoiar o desenvolvimento de fornecedores da agricultura familiar para o programa, poderia ser incrementado (Licio, Mesquita e Curralero, 2011). Hoje, os estados têm cada vez mais se retirado da execução direta da merenda, realizando convênios com os municípios para que estes forneçam a alimentação para as escolas estaduais localizadas em seus territórios. Este movimento poderia ser complementado por outro, o de assumir uma posição de apoio técnico, trocas de experiências, apoio logístico e desenvolvimento local utilizando a compra da agricultura familiar como plataforma. A coordenação de uma política descentralizada e com tantos elementos regionais como é o caso da merenda escolar dificilmente poderá se realizar a partir apenas da relação do governo federal com os municípios, e o papel de intermediário desta relação poderá ser realizado com competência pelos estados. Adicionalmente, a retomada e o fortalecimento da política de desenvolvimento territorial, abandonada ainda no primeiro mandato de Dilma Rousseff, teria o potencial de trazer esta coordenação para a esfera intermunicipal, fomentando cooperação e articulação.

Assumindo, ainda, o governo federal um renovado papel de coordenação federativa no Pnae, seria fundamental que o programa passasse a ter mecanismos de mitigação das desigualdades entre municipalidades e regiões. Hoje, os repasses variam em função do público atendido (se de creche ou público indígena ou quilombola) e da modalidade de educação (integral ou parcial). No entanto, não há nenhuma diferença entre os repasses que leve em conta, por exemplo, o IDH municipal, indicadores de segurança alimentar e nutricional, capacidade das unidades federativas ou mesmo o custo das refeições nos locais. Assim, o município de Guaribas (PI), que tem o IDH municipal equivalente ao do Zimbábue, recebe exatamente o mesmo valor per capita que o município de Santos (SP), de IDH equivalente ao da Polônia.

Por fim, pode ser interessante incluir alguns elementos de saudável competição federativa como forma de estimular a inovação e a tomada dos riscos inerentes a ela. Estes elementos devem ser corretamente pensados e pactuados de modo a não gerar incentivos contraditórios ao objetivo de obter cooperação. Neste sentido, seria oportuno ao FNDE assumir essa responsabilidade e retomar a experiência do Prêmio Gestor Eficiente da Alimentação Escolar, iniciativa liderada pela ONG Ação Fome Zero e que teve sua última edição em 2013, depois de dez anos. O reconhecimento de boas experiências em âmbito local e regional tem um extraordinário poder de fomentar inovação e permitir sua difusão e adaptação às necessidades locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A execução do Pnae é uma política pública cuja responsabilidade é compartilhada entre União, estados e municípios. O arranjo atual da política é fruto do processo de descentralização que marcou as relações federativas brasileiras no período da redemocratização (Arretche, 2012ARRETCHE, Marta. (2012), Democracia, federalismo e centralização no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/Fiocruz, vol. 1., 1999ARRETCHE, Marta. (1999), “Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, no 40, pp. 111-141.; Abrucio, 2005ABRUCIO, Fernando. (2005), “A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula”. Revista de Sociologia e Política, v. 24, pp. 41-67. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Souza, 2008SOUZA, Celina. (2008), “Federalismo: teorias e conceitos revisitados”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, v. 65, pp. 27-48.). Foi praticamente universalizado após a Medida Provisória 1784/1998, que facilitou o repasse de recursos financeiros e a adesão dos municípios (Bonduki, 2017BONDUKI, Manuel. (2017), Entre chicotes e cenouras orgânicas: cooperação, coerção e coordenação na implementação das compras da agricultura familiar para o Pnae. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.). No entanto, no mesmo sentido de outras políticas, após um período de menor protagonismo, o governo federal vem aumentando sua presença na coordenação do Pnae, por meio de decisões do Conselho Deliberativo do FNDE. Estados e municípios, as chamadas Entidades Executoras do programa, não dispõem de qualquer fórum federativo no qual possam participar da discussão dos rumos do Pnae.

A pesquisa empírica baseada em dados da execução do programa e em entrevistas realizadas com implementadores da política em diferentes esferas de governo aponta de forma sucinta dois fatores principais para explicar a implementação das aquisições da agricultura familiar no âmbito do Pnae. O primeiro remete à operação de mecanismos hierárquicos, como condicionamento de repasses de recursos financeiros e possibilidade de coerção. No mesmo ano em que foi inserida a imposição legal de exigência da compra de ao menos 30% de alimentos da agricultura familiar, foi realizado um reajuste no valor per capita dos repasses em 36%. Além disso, não obstante a suspensão dos recursos dos municípios que não atingem o mínimo de compras da agricultura familiar não tenha ocorrido na prática, há uma possibilidade de essa exigência ser cumprida no futuro, inclusive por determinação dos órgãos federais de controle. Isso reforça uma lógica de dependência e hierarquia entre as esferas federal, estadual e municipal (Machado, 2014MACHADO, José Angelo. (2014), “Padrões de indução de políticas sociais por meio de transferências intergovernamentais condicionadas”. Teoria & Sociedade, v. 19, pp. 191-218.).

O segundo fator aponta para um arranjo de política pública cooperativo, sob a égide da competência comum estabelecida na Constituição e marcado pela interdependência entre os entes para execução do programa. A inexistência de arenas de negociação para as decisões do programa reduz a possibilidade de acomodação dos interesses e aproxima a sua gestão de um modelo mais centralizado. Há, no entanto, mecanismos de cooperação operando na prática dessa política, como o fortalecimento da agricultura familiar promovida pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e os diversos programas estaduais de fomento a essas atividades agrícolas. Assim, a atuação de atores diretamente interessados em fomentar a agricultura familiar, reunidos no âmbito da política pública de desenvolvimento agrário, foi uma fonte motriz relevante para mobilização de prefeitos na efetivação da aquisição dos alimentos provenientes da agricultura familiar.

A coordenação permanece como desafio a ser superado no âmbito das relações intergovernamentais do programa. O processo de descentralização do Pnae iniciado em 1994 necessita ser completado por uma reorganização do programa embasada na reformulação dos papéis e contrapartidas dos níveis federal, estadual e municipal para que esses possam, de forma coordenada e cooperativa, aumentar a eficiência no atingimento dos objetivos sem reproduzir uma uniformização incompatível com as diversidades locais brasileiras.

No âmbito da agenda futura de pesquisa, além do aprofundamento da agenda de pesquisa sobre a coordenação das relações intergovernamentais do programa, cabe a investigação sobre os efeitos da institucionalização dessa ação governamental sobre o funcionamento dos mercados envolvendo a agricultura familiar.

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  • PIERSON, Paul. (1995), “Fragmented Welfare States: Federal Institutions and the development of Social Policy”. Governance, v. 8, no 4, pp. 448-478.
  • SABOURIN, Eric. (2014), “Acesso aos mercados para a agricultura familiar: uma leitura pela reciprocidade e a economia solidária”. Revista Econômica do Nordeste (REN), v. 45, pp. 30-43.
  • SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. (2015), “Seeds and sprouts of rural development: innovations and nested markets in small scale on-farm processing by family farmers in south Brazil”. In: P. Milone; F. Ventura; J. Ye. (orgs.), Constructing a New Framework for Rural Development. United Kingdom: Emerald Group Publishing Limited, v. 22, pp. 127-156.
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  • WILKINSON, John. (2009), Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS.

NOTAS

  • 1
    . Conforme proposto por Machado (2014)MACHADO, José Angelo. (2014), “Padrões de indução de políticas sociais por meio de transferências intergovernamentais condicionadas”. Teoria & Sociedade, v. 19, pp. 191-218., os programas governamentais foram avaliados a partir de um índice que variava entre 0 (mais próximo de um contrato de execução) e 1 (mais próximo de gestão compartilhada). O Pnae apresenta o valor de 0,16, o menor valor dos 15 programas analisados.
  • 2
    . Bonduki (2017)BONDUKI, Manuel. (2017), Entre chicotes e cenouras orgânicas: cooperação, coerção e coordenação na implementação das compras da agricultura familiar para o Pnae. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. vale-se de critérios objetivos para dividir os municípios entre 20 mil e 100 mil habitantes em quatro diferentes clusters. A expectativa foi a de observar como se comportam municípios de estratos médios, que não fossem extremamente pequenos ou grandes, e como tais municípios responderiam aos incentivos desenhados pelo programa, uma vez isolado o critério populacional.
  • 3
    . O nome oficial da CPI era “Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a examinar as causas da fome e a iminente ameaça à segurança alimentar”.
  • 4
    . Cabe destacar a ênfase dada por Granovetter para o significado do comportamento dos agentes econômicos no âmbito do funcionamento de mercados, que faz uma crítica à economia neoclássica e mesmo a alguns “revisionistas” no escopo dessa corrente, como Williamson. Enfatizando o comportamento econômico, o autor argumenta que sua maior parte “está profundamente imersa em redes de relações interpessoais, e que essa abordagem evita os extremos das visões sub- e supersocializada da ação humana” (Granovetter, 2007).
  • 5
    . Um contraponto a essa constatação para contextos específicos está no argumento desenvolvido por Schneider e Gazolla (2015)SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. (2015), “Seeds and sprouts of rural development: innovations and nested markets in small scale on-farm processing by family farmers in south Brazil”. In: P. Milone; F. Ventura; J. Ye. (orgs.), Constructing a New Framework for Rural Development. United Kingdom: Emerald Group Publishing Limited, v. 22, pp. 127-156.. Estudando empreendimentos de pequena escala da agricultura familiar da região norte do Rio Grande do Sul, os autores argumentam que a introdução de novos processos produtivos foi acompanhada da criação e adaptação de tecnologias e produtos. Dentre as consequências para a agricultura familiar pode-se destacar a melhoria da renda per capita, a criação de novos mercados e canais de venda, a ampliação de novas interfaces entre as famílias e outros atores sociais, além do desenvolvimento de produtos ambientalmente sustentáveis.
  • 6
    . Relatório da Controladoria Geral da União (CGU) sobre as prestações de contas pendentes de análise no FNDE apontava em 2010 para um estoque de 67 mil prestações não analisadas. Já em julho de 2016 este número havia chegado a 260 mil prestações com análise pendente, num total de R$90 bilhões de recursos executados, mas não fiscalizados (Brasil, 2018BRASIL. (2018), Relatório de Atividades Subsidiárias: proposta de aprimoramento do modelo de tratamento e seleção das prestações de contas das Políticas Federais de Educação, com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União. Brasília. Disponível em https://auditoria.cgu.gov.br/download/11478.pdf. Acesso em: 4/9/2019.
    https://auditoria.cgu.gov.br/download/11...
    ).
  • 7
    . Em 31 de maio de 2019, o FNDE atestou em resposta à consulta com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) a inexistência de suspensão ou redução de recursos do Pnae em razão do não cumprimento do mínimo de 30% de alimentos da agricultura familiar.
  • 8
    . O Ppais, de São Paulo, tem como principal foco a compra institucional para as unidades prisionais do estado. O Papa-DF tem uma pauta ampla de compras da agricultura familiar, atendendo inclusive o Jardim Zoológico. O Programa Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (Peaf/MS) criou a obrigação de que “no mínimo 20% dos alimentos adquiridos pelo Estado para atender as cinco unidades socioeducativas e 59 penitenciárias de Mato Grosso” venham de agricultores familiares.
  • 9
    . Organizações apoiadas pelo FNDE nos estados junto a universidades federais para auxiliar a implementação de suas políticas.
  • 10
    . Caso a Entidade Executora conclua o ano e deixe de executar valores em proporção superior a 30% do repasse, há a previsão de retenção do que extrapolar este percentual. No entanto, esta previsão também não vinha sendo executada pelo FNDE até 2016.
  • *
    O presente artigo desenvolve argumentos e aprofunda a discussão das evidências presentes em trabalho anteriormente realizado por Bonduki (2017)BONDUKI, Manuel. (2017), Entre chicotes e cenouras orgânicas: cooperação, coerção e coordenação na implementação das compras da agricultura familiar para o Pnae. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.. Agradecemos os excelentes comentários e sugestões dos pareceristas anônimos de DADOS. Erros e omissões ainda presentes nesta versão são de nossa inteira responsabilidade.

ANEXO 1

Entrevistas realizadas

Público entrevistado Entrevistado Cargo
Servidores federais em representações nos estados, atuantes nos projetos Nutre e Ceia Entrevistado 1 Representante do MDA na organização Ceia (Comissão Estadual Intersetorial da Alimentação Escolar)
Entrevistado 2 Conab/SP
Entrevistado 3 Chefe gabinete SAF/MDA
Entrevistado 4 Conab / BA
Entrevistado 5 Projeto Nutre Nordeste
Gestores Nacionais do Pnae Entrevistado 6 Coordenadora na Coordenação Geral de Alimentação Escolar/FNDE
Entrevistado 7 Coordenadora-Geral na Coordenação Geral de Alimentação Escolar/FNDE
Gestores Municipais do Pnae Entrevistado 8 Coordenadora de Projetos – Dpto. de Educação – Prefeitura de Mongaguá/SP
Entrevistado 9 Engenheiro Agrônomo na Diretoria de Agricultura e Abastecimento – Prefeitura de Mongaguá/SP
Entrevistado 10 Nutricionista – Prefeitura de Mongaguá/SP
Entrevistado 11 Coordenadora da Educação – Prefeitura de Taquarituba/SP
Entrevistado 12 Nutricionista – Prefeitura de Taquarituba/SP
Representante da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação –Undime Entrevistado 13 Undime-SP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2019
  • Revisado
    19 Fev 2020
  • Aceito
    10 Dez 2020
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