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Eu, o outro (Outro) e o vazio na constituição da representação identitária

I, other (Other) and emptiness in the constitution of identity representation

RESUMO

Este artigo tem por objetivo explorar uma possível interface entre a Teoria Dialógica do Discurso e a Teoria das Representações Sociais, considerando o movimento entre o eu e o outro, bem como o papel do vazio na construção da representação identitária. Recorremos ainda a algumas formulações de Lacan e de Cassirer, no que se refere ao vazio e ao simbólico. As representações identitárias são, assim, efeito do movimento discursivo entre sujeitos, inscritos em um determinado grupo social, que se formam na/pela linguagem, sendo o vazio o espaço do outro na arena discursiva, condição que revela a incompletude constitutiva da identidade.

Palavras-chave:
Dialogismo; Alteridade; Representações Identitárias; Incompletude

ABSTRACT

This article aims to explore the possibility of an interface between the Dialogic Theory of Discourse and the Theory of Social Representations taking into account the movement between “I” and “other” and the role of emptiness in the construction of identity representation. We also discuss some proposals by Lacan and Cassirer, especially regarding emptiness and the symbolic. Identity representations are thus the effect of discursive movements between subjects, inscribed in a particular social group, which form in / by language, being emptiness the space of the other in the discursive arena, a condition which show the constitutive incompleteness of identity.

Keywords:
Dialogism; Alterity; Identity Representations; Incompleteness

Em poucas palavras, a língua tem sua história3 3 . BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 2004, p. 79 .

(Bakhtin/Volochinov)

1. Introdução

Bakhtin (1981BAKHTIN, Mikhail. 1981. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), contrapondo-se ao discurso monológico, defende que há no mínimo duas vozes no diálogo. A palavra bivocal deve ser entendida como a mobilização das palavras do outro em nossa fala, imbuída de nossos valores, de nossas avaliações (horizonte axiológico), mas trazendo o peso dos valores do outro. O diálogo em sentido amplo, portanto, é ação entre interlocutores, ação que reverbera tanto no âmbito interior (intrapessoal) como no âmbito exterior (interpessoal), que se acham em constante intercâmbio. As várias vozes são por nós atualizadas quando (re)colocadas no discurso, e elas oferecem material simbólico para a investida do ser social diante de seu(s) interlocutor(es). A existência do outro é necessária para a produção de sentido, da parte do eu, ou seja, para as formas de significar as vivências humanas garantidas pela linguagem. O eu também constitui, por outro lado, o outro pelo qual é assim constituído.

Neste estudo, objetivamos discutir a constituição das representações identitárias à luz da Teoria Dialógica do Discurso (Bakhtin/Volóchinov 1976BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHINOV, Valentin. 1976. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Cristóvão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art”, publicado como apêndice in. Voloshinov. V.N. Freudism: a marxista critique. New York: Academic Press., 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.; Bakhtin 1981BAKHTIN, Mikhail. 1981. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1984_____. 1984. Rabelais and his world. Bloomington: Indiana University Press., 1998______. 1998. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. F. Bernadini, José P. Júnior, Augusto G. Júnior et al. 4. ed. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec., 2003______. 2003. O autor e a personagem na atividade estética. In: M. Bakhtin, Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.), em interface com a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 1961MOSCOVICI, Serge. 1961. La psychanalyse, son image et son public. Paris: Press Universitaires de France ., 1996______. 1996. Préface: Santé et Maladie. Paris: Mouton., 1989______. 1989. Des représentation collectives aux représentations sociales. JODELET, Denise (Org.). Les représentations sociales. Paris: Press Universitaires de France.; Abric, 1986ABRIC, Jean-Claude. 1986. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France., 2001______. 2001. O estudo experimental das representações sociais. In D. Jodelet (Ed.), As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ.; Ribeiro e Matencio 2009MATENCIO, Maria de Lourdes; RIBEIRO, Pollyanne. 2009. A dinâmica das e nas representações sociais: o que nos dizem os dados textuais?. Estudos Linguísticos, São Paulo, 38 (3): 229-238, set.-dez. , Marková, 2006MARKOVÁ, Ivana. 2006. Dialogicidade e Representações Sociais. As dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes .).

Acreditamos que a identidade também é um constructo discursivo, cunhado na interação em sentido amplo, que vai bem além do estrito espaço de contato direto entre interlocutores. A identidade, portanto, possui natureza social na medida em que se funda nas relações eu-outro/Outro e, por assim ser, não possui contornos fixos a priori, constituindo-se de elementos simbólicos mobilizados no/pelo ato verbal. A partir dessa premissa, podemos afirmar que a identidade é uma representação social e, portanto, elaboramos e atualizamos as representações identitárias no contexto das práticas sociais.

Quando nos comunicamos, comunicamos também nossas filiações, os conhecimentos interpretados por nós na condição de membros de uma coletividade, colocamos em xeque tanto quem somos/ queremos ser como quem não somos/ não queremos ser. Ressaltamos a nossa identidade diante da alteridade dos integrantes do grupo de pertença (movimento intragrupal) e, mais do que isso, dirigimo-nos, alteritariamente, aos integrantes de outros grupos sociais para ressaltar traços de nosso grupo de pertença (movimento intergrupal).

Dessa forma, as representações identitárias são balizadas por representações comuns que se prestam à condição de referência para justificar e orientar as nossas escolhas enquanto sujeito situado, sujeito cultural. A relação do eu e do outro pode ser traduzida por sujeitos que se relacionam a partir de representações atualizadas pela linguagem. Tais representações são (re)veladas e evocadas pelos papéis sociais atribuídos e assumidos na ação entre interlocutores. O vazio, portanto, ao nosso ver, é o lugar instituído para o outro chegar e se entrelaçar ao eu, gerando uma nova ordem nesse eu, que se torna, por conseguinte, um novo eu para o outro.

Nossa intenção é propor uma reflexão sobre como o dialogismo é propulsor das representações identitárias nas práticas discursivas. Ao desenvolvermos nossa proposta, procuraremos explicitar de que modo, com o pensamento do Círculo de Bakhtin, podemos alinhar contribuições de estudiosos da Teoria das Representações Sociais, bem como alguns pensamentos de Lacan (1978LACAN, Jacques. 1978. Escritos. São Paulo: Perspectiva., 1979______. 1979. Seminário, Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editoras., 1996) que julgamos compatíveis com uma reflexão sobre a natureza em última análise social da identidade.

2. Sujeito e comunidade semiótica

O sujeito, da perspectiva da Análise Dialógica do Discurso (ADD)4 4 . Beth Brait, grande referência para os pesquisadores bakhtinianos, defende a denominação Análise Dialógica do Discurso (ADD) para as interpretações brasileiras concernentes ao pensamento gestado pelo Círculo de Bakhtin (PAULA, 2013). , não é entendido em termos estritamente subjetivos, uma vez que sua caracterização se funda em três pilares: sua inserção social e histórica; seu vínculo necessário com a sociedade, que os constitui e é por eles constituída; e sua condição de ser em constante realizar-se, vir a ser, buscando social e historicamente no outro a sua completude, e sendo para este aquilo que lhe permite se completar. Como ser inserido na história na qualidade de membro de um grupo social, o sujeito constitui a sociedade porque não há sociedade antes de haver relações entre sujeitos, mas é igualmente constituído nessas mesmas relações. A sociedade se articula para além dos propósitos individuais dos sujeitos, para além da soma desses propósitos, mas é marcada pela relação, em geral tensa, entre esses propósitos no todo social, atravessado sempre pela história, tanto retrospectiva como prospectivamente.

A linguagem é parte vital de todo processo envolvendo sujeitos, sendo, para além de funções de representação do mundo, uma maneira de dar ao mundo versões de acordo com a constituição social e os interesses dos grupos sociais e dos indivíduos na arena social, não chegando aos sujeitos, portanto, em alguma “pureza”, mas, sempre, matizada pela ideologia, entendida como processo de valoração interessada dos enunciados proferidos.

As palavras, para a ADD, são constituídas por uma pluralidade de fios ideológicos que compõem a trama de todas as relações sociais engendradas nos diferentes domínios. A palavra é, nesses termos, o indicador mais sensível do estado da sociedade e das mudanças sociais, mesmo daquelas incipientes, que ainda não tomaram forma, que não impactaram de maneira contundente os sistemas ideológicos mais estruturados e bem formados: “A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais” (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 41).

Nesse fluxo ideológico, a enunciação se apresenta como um lugar de reiteração e atualização de repertórios de formas de discurso. Ela instancia os sujeitos (concretos, únicos, ativos) ao garantir o intercâmbio, ou seja, a atribuição de distintos valores a toda forma de conhecimento. Quando confere um tom apreciativo, um juízo de valor, a seus enunciados no processo comunicativo, o sujeito reconstrói não só o objeto referenciado, mas também a si mesmo e ao outro, pois o material simbólico colocado em jogo se sobrepõe à significação linguística estrita e adquire novos contornos e configurações. Na enunciação, o ser, investido de um papel social, (re)vela a si e se reconstrói em um continuum que terá um fim absoluto com o término do enunciado concreto, mas que ecoa, reverbera, tanto interna como externamente, na cadeia de enunciados já proferidos e a proferir, demonstrando, pois, que esse fim é relativo se tomarmos o contexto mediato da enunciação como parâmetro. O dito e o dizer não se esgotam nesta última, visto que não apenas evocam a soma total das relações sociais como projetam no futuro suas ressonâncias.

O que determina essa refração do ser, essa sua ressignificação, no e através do signo ideológico é “o confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica” (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 46). Uma comunidade semiótica “utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios”. (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 46). Isso significa que a mesma língua pode ser apropriada diferentemente a depender de quem dela se apropria, e que, portanto, os signos só seriam neutros na língua como sistema, no nível da significação, mas não do sentido: tudo o que é enunciado traz as marcas de sua origem na valoração que exibe.

A linguagem, sendo constitutivamente dialógica, não pode ser compreendida de maneira estática, como um sistema abstrato e acabado, mas como um fluxo comunicativo intermitente. Todo enunciado é resposta a outro enunciado dado e suscita respostas de outros que virão. Lidamos com palavras alheias, clivadas de valor axiológico, que, quando mobilizadas na interação, são reelaboradas, apropriadas e produzem velhos/novos sentidos:

As palavras, antes de serem assimiladas e usadas por nós, são palavras alheias, palavras dos outros; depois, elas passam a ser como uma sociedade: meio nossas, meio dos outros, palavras próprias-alheias, sendo que só mais tarde elas se tornam palavras nossas. (Sobral e Giacomelli 2016SOBRAL, Adail.; GIACOMELLI, Karina. 2016. Observações didáticas sobre a análise dialógica do discurso - ADD. Domínios da Linguagem. Uberlândia, vol. 10. N° 3, jul/set.: 1080)

Nesse sentido, se não há propriamente ineditismo na produção discursiva, há, no entanto, singularidade: pode-se não dizer algo nunca dito, mas cada sujeito o diz de uma maneira irrepetível. Lidamos com a fala do outro de maneira particularizada, pois nos inscrevemos como sujeitos de fala, assenhoreamo-nos da linguagem e agimos com ela visando obter êxito em nosso projeto de dizer.

Nosso psiquismo é tanto necessário para que a ideologia exista como afetado por suas regras e seu funcionamento. O processo de compreensão do signo interior diz respeito “a relacionar um signo interior qualquer com a unicidade dos outros signos interiores, isto é, aprendê-lo no contexto de um certo psiquismo”, já a compreensão do signo exterior consiste na capacidade de “apreender um dado signo no contexto ideológico correspondente”. (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 60)

Dessa forma, tanto aquilo que se pretende exprimir como sua objetivação externa são compostos por signos, mobilizados na inter-relação entre a consciência individual e a outra consciência. A interação abre espaço, naquele momento irrepetível, para que o material ideológico possa ser socializado, atualizado, aprimorado, pois os signos não são de natureza monossêmica, mas plurissêmica.

O sujeito é membro de uma coletividade e, mais especificamente, de um grupo e de um segmento específico dessa coletividade e, sendo influenciado pelo outro em sua constituição como sujeito, e influenciando a constituição dos outros com quem interage, seus enunciados não descrevem simplesmente o mundo, mas o descrevem de acordo com as maneiras como seu grupo e seu segmento social veem o mundo. E isso depende da posição desse grupo, segmento etc. na sociedade em que ele vive e no momento histórico em que vive. A maneira como é sua existência social e histórica constitui os modos como ele vê o mundo e, assim, os modos como valora esse mundo. E esses modos se manifestam no discurso.

O sujeito, portanto, na condição de membro, reflete-se e refrata-se, como faz com que os saberes cunhados pelos outros membros sejam acessados e modificados, instaurando uma nova ordem social. A partir do acervo ideológico compartilhado pelos membros do grupo de pertença, os sujeitos irão se movimentar, ora em consonância, ora em dissonância em relação ao repertório representacional empreendido pelas interações entre pares. Em outras palavras, “As diferentes modalidades de enunciação, portanto, não se realizam enquanto resultados de escolhas individuais, mas como respostas às necessidades sociais dos grupos, regularizando-se pelo uso e pelas circunstâncias”. (Zandwais 2016ZANDWAIS, Ana. 2016. Bakhtin/Voloshinov: condições de produção deMarxismo e filosofia da linguagem . In: BRAITH, B. (org). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto.: 113). Isso não significa que o sujeito não faça escolhas, mas sim que estas são condicionadas por suas relações sociais. Logo, tudo que se refere à linguagem é valorado, porque o enunciado sempre reflete e refrata a posição do sujeito que o enuncia com respeito ao que enuncia e à coletividade no âmbito da qual enuncia.

Os signos, cunhados no contexto sócio histórico, adquirem valor ideológico no âmbito do grupo social. Na condição de membro de um grupo é que lidamos com as avaliações dos objetos do discurso na interação. O sujeito na condição de mãe, professora, cristã, mulher etc. atribui valor e reage a essa avaliação na prática comunicativa. Nesses termos, “há sempre um horizonte social que determina, estabelece os atos de criação ideológica dos grupos, de acordo com os valores simbólicos que estes cultivam nos meios socioculturais em que produzem” (Zandwais 2016ZANDWAIS, Ana. 2016. Bakhtin/Voloshinov: condições de produção deMarxismo e filosofia da linguagem . In: BRAITH, B. (org). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto.: 112). No âmbito do grupo social, após a mobilização de saberes cunhados na comunidade semiótica implicada na enunciação, haverá trocas simbólicas efetivas. Esse jogo representacional de assunção de papéis sociais compõe a expressão, como potência das forças sociais na interação. O(s) outro(s), representante(s) de uma comunidade de fala, dispõe(m) de material semiótico na (de)formação do ser entendido como evento.

Para o Círculo, portanto, tudo é ideológico no sentido de que todo material semiótico cria sentido e de que o sentido nasce da interação, do confronto entre as valorações distintas dos envolvidos, e, nesses termos, toda valoração é ideológica, constitui simbolicamente o mundo segundo os interesses dos sujeitos envolvidos. Como tudo que faz sentido é valorado, tudo é ideológico.

Nas interações, a partir da emergência do material simbólico, manifestam-se matrizes históricas que irão balizar as escolhas dos envolvidos e é nesse continuum que as representações identitárias são (re)formuladas, tanto no plano micro, dos sujeitos particularmente atuantes na enunciação, quanto no plano macro, do grupo de pertença, inserido no âmbito de outros grupos na sociedade e na história.

3. Representações Identitárias e Dialogismo

Foi Moscovici (1961MOSCOVICI, Serge. 1961. La psychanalyse, son image et son public. Paris: Press Universitaires de France .) quem, a partir de Durkheim, desenvolveu o conceito moderno de representação social. Trata-se de uma organização de imagens e linguagem que tanto destaca como simboliza atos e situações que se manifestam nas interações e que se cristalizam para grupos e indivíduos e, assim, moldam, a partir das relações dos sujeitos com objetos do mundo, a maneira como o mundo social e o mundo individual se relacionam. A sociedade é vista como dinâmica e em constante transformação, o que significa que os sujeitos não estão condenados a uma dada condição fixa, mas igualmente em transformação.

Para Abric (1986ABRIC, Jean-Claude. 1986. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France.: 15-18), podemos definir as representações sociais a partir de suas quatro funções essenciais: (i) função do saber, por permitirem aos atores sociais se apropriarem de conhecimentos diante do quadro de valores aos quais eles aderem; (ii) a função identitária, por conferirem ao grupo social traços identitários, colocando-se como referência para as ações dos membros desse grupo; (iii) a função de orientação, por se prestarem a guiar as ações e, por conseguinte, a definir finalidades e antecipar reações; e (iv) a função justificativa, por permitirem aos atores sociais explicarem e justificarem comportamentos, opiniões, tomada de posicionamentos etc.

Operaremos aqui particularmente com a função identitária das representações, por ser esse nosso foco, sem, no entanto, desconsiderar as demais funções. Acreditamos que a identidade, na verdade, é uma representação per se, pois se amalgama com os outros elementos presentes na enunciação e ganha contornos nos enunciados proferidos. Não há, portanto, como vimos, identidade a priori, mas uma representação identitária assumida, refletida e refratada na teia do discurso, como fruto de lugares sociais assumidos diante do deslocamento do sujeito-membro em relação a seu grupo de pertença. No movimento dialógico, eu-grupo social, fazemos escolhas, assim como somos levados a fazê-las, e as justificamos recorrendo ao acervo representacional colocado em xeque na interação, uma vez que “compartilhar uma ideia, uma linguagem, é também afirmar um laço social e uma identidade5 5 . Partager une idée, un langage, c’est aussi affirmer un lien social et une identité. (Tradução dos autores). ” (Jodelet, 1989JODELET, Denise. 1989. Representations sociales: un domaine en expansion. In: JODELET, Denise (Org.). Les représentations sociales. Paris: Press Universitaires de France.: 51).

Nesse sentido, a dinâmica das representações sociais, segundo Py (2000PY, Bernard. 2000. Représentations sociales et discours. Questions épistémologiques et méthodologiques. In: Travaux neuchâtelois de linguistique, n. 32, p. 5-20, Neuchâtel, Université de Neuchâtel (Digitalizado)., 2004______. 2004. Pour une approche linguistique des représentations sociales. In: Langages: répresentations métalinguistiques ordinaires et discours, n. 154, Paris, Larousse. ) contém duas modalidades de representações: a de referência (RR) e a de uso (RU). As RR se apresentariam como um tipo de repertório comum aos membros de um dado grupo social, seriam mais suscetíveis à inércia, a modelos padronizados. As RU, as quais, (re)formuladas no momento da enunciação, particularizadas pelos interlocutores na interação, seriam mais dinâmicas, mais abertas a incorporar mudanças, mais sensíveis às singularidades dos sujeitos sociais. (Cf. Matencio e Ribeiro: 2009MATENCIO, Maria de Lourdes; RIBEIRO, Pollyanne. 2009. A dinâmica das e nas representações sociais: o que nos dizem os dados textuais?. Estudos Linguísticos, São Paulo, 38 (3): 229-238, set.-dez. ).

As RR colaboram para a reiteração de crenças, tomadas de posicionamentos, opiniões, disponibilizados pela memória coletiva, às quais, ao se configurar como modelos na estrutura social, são mobilizados pelos membros do grupo para fomentar, orientar, justificar e identificar ações. Essa dinâmica é fundamentalmente sócio discursiva, pois irá contar com a avaliação no âmbito de uma situação de comunicação precisa, essa situação também estará ancorada em uma conjuntura sócio-histórica determinada.

No bojo das RR, estão os estereótipos, que “constituem o substrato cognitivo dos preconceitos. Eles estão à base do que se pode chamar de discriminação avaliativa” (Deschamps e Moliner 2014DESCHAMPS, Jean-Claude.; MOLINER, Pascal. 2014. A identidade em Psicologia Social. Dos processos identitários às representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.: 37), os protótipos, que seria o elemento considerado “como o que melhor define a categoria, que é seu melhor modelo ou representante. Cada objeto será então mais ou menos típico de uma categoria segundo a proximidade em relação ao protótipo, podendo-se falar de seu grau de tipicalidade”. (Deschamps e Moliner 2014DESCHAMPS, Jean-Claude.; MOLINER, Pascal. 2014. A identidade em Psicologia Social. Dos processos identitários às representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.: 75). Os estereótipos e protótipos são representações mais cristalizadas, avaliações sociais recorrentes que ganham uma configuração mais fixa se comparadas às RU. As RU estão mais diretamente relacionadas ao contexto pragmático, são mais instáveis, suscetíveis às mudanças. Apesar de serem influenciadas pelas RR, as RU demonstram de maneira mais evidente a forma como os sujeitos singularizam saberes sociais. Lidamos, portanto, com o acervo representacional identitário compartilhado pelo grupo de pertença (RR) e o particularizamos, ou seja, (re)constituímos tais representações identitárias de referência de maneira peculiar, de acordo com nossa singularidade (RU).

Na interação, inscrevemo-nos em determinados lugares discursivos, e é a partir desses lugares que somos (re)construídos e (re)construímos o outro. É possível afirmar que as representações sociais acabam por condicionar, de certa forma, a configuração dessas possíveis posições; elas imprimem um caráter coercitivo às relações. O movimento dialógico de interconstituição dos sujeitos é o que assegura essa dinâmica da construção de posições discursivas, visto que a posição assumida pelo locutor se relaciona à posição do interlocutor e vice-versa. Nas palavras de Vasseur, “A construção-distribuição de lugares discursivos se funda nas imagens de si mesmos que os locutores parceiros se comunicam, se propõem ou se impõem um ao outro6 6 . La construction-distribution des places discursives se fonde sur les images d’eux-mêmes que les locuteurs partenaires se communiquent, se proposent ou s’imposent l’un à l’autre. (Tradução dos autores). ” (Vasseur 2001VASSEUR, Marie-Thérèse. 2001. Places discursives, imaginaire dialogique et apprentissage de la langue. In: MOORE, Danièle (Org.). Les répresentations des langues et de leur apprentissage: références, modèles, données et méthodes. Paris: Didier. (Collection Crédif Essais).: 138).

No decorrer do discurso, a posição social e sua função influenciam os conteúdos representacionais e sua estruturação, devendo-se isso ao enquadre de modelos ideológicos cunhados no mundo social. As posições discursivas não são estáticas; ao contrário, são maleáveis, deslocando-se ou se conformando com respeito às demandas surgidas ao longo do evento comunicativo.

O diálogo só se realiza no âmbito de um grupo social. Ao se inscrever em um determinado grupo, o sujeito mobiliza saberes, representações, etc. específicos e, diante desse acervo, constrói, avalia, aprecia, os objetos do discurso. Logo, como vimos, para que se possam analisar as representações identitárias do sujeito construídas no processo discursivo, é de fundamental importância considerar o outro, ou seja, devem-se examinar as inter-relações dos sujeitos sociais na enunciação.

Se considerarmos a arquitetônica do ato, o ser, entendido como um evento único (marcado pela eventicidade), ao agir em relação ao outro, dispara o universo de valores ativos (afetivos, éticos, estéticos, etc) que irão compor a enunciação, incluindo nessa composição os interlocutores, o tempo, o espaço, o objeto do discurso e seu posicionamento no ato. A dimensão axiológica, portanto, sendo constitutiva da prática comunicativa, é essencial para a viabilidade das trocas com o outro, sendo assim fonte autêntica das representações (RR + RU). Nas palavras de Bakhtin,

Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante. (Bakhtin 1998______. 1998. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. F. Bernadini, José P. Júnior, Augusto G. Júnior et al. 4. ed. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec.: 46).

O discurso, na elaboração representativa, deve ser entendido não só como um meio para o processamento das representações sociais, mas também como uma condição de sua existência; pois é através dele que o sistema representativo se funda e é vulgarizado, ou seja, torna-se acessível para os membros da sociedade. Pode-se afirmar que o discurso dá condições para que as representações identitárias sejam (re)configuradas, visto que elas se valem de modelos culturais, institucionais, sociais. Como vimos, o sujeito constitui o grupo social assim como este também o constitui, instanciando, assim, uma via de mão dupla que faz emergir concomitantemente a história pessoal e coletiva do grupo social. Essa genética social é viabilizada pelas relações dialógicas.

De acordo com Morin (1996MORIN, Edgar. 1996. A noção de sujeito. In: Schnitman, D. F. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas.: 54), “quando falo, ao mesmo tempo que eu, falamos ‘nós’; nós, a comunidade cálida da qual somos parte. Mas não há somente o ‘nós’; no ‘eu falo’ também está o ‘se fala’. Fala-se, algo anônimo, algo que é a coletividade fria”. Nas interações, o sujeito depara-se com a sua “realidade”, com a do seu grupo e a da coletividade de um modo geral, gerencia vozes (a sua, a do grupo, a dos outros), e, inevitavelmente, com as marcas ou sob a égide da alteridade, modifica a si e ao meio.

O sujeito, então, objetiva as representações sociais, tornando conhecimentos, imagens e crenças, construídas coletivamente, familiares à medida que expressa e lida com sua singularidade na atividade interacional. Dito de outra forma, ele opera com a objetivação através da expressão da subjetivação materializada em pensamentos, atitudes, valorações, enfim, e assim se expõe e ao mesmo tempo expõe a realidade simbolicamente representada.

Ao expor as representações relacionadas ao universo tematizado, o locutor revê as suas e as (re)avalia, reiterando-as ou refutando-as, nessa operação, portanto, há uma potencialidade real de mudanças. Na esteira dessas mudanças, as representações identitárias são reformuladas. Para Moliner (1996MOLINER, Pascal. 1996. Images et représentations sociales: de la théorie des représentations à l’étude des images sociales. Grenoble: Press Universitaires de Grenoble.: 80), o efeito do processo representacional “é tanto uma atividade descritiva (interpretação e compreensão) como uma atividade avaliativa (julgamento)”7 7 . «...est autant une activité descriptive (interprétation et compréhension) qu’ une activité évaluative (jugement)» (Tradução dos autores). .

Assim, no contexto da ação avaliativa, o sujeito ora se aproxima do seu grupo, ao agir ou se comportar como os outros integrantes, ora se distancia, ao criticar as atitudes dos seus pares, narrando que é ou faz diferente. Nessa dinâmica, as representações identitárias são expostas, são por isso constantemente (re)elaboradas por operações metacognitivas, pragmáticas. As representações identitárias se fundam na dimensão tensa que se revela na posição discursiva ocupada pelo locutor/indivíduo, que faz escolhas singulares para provocar um determinado efeito de sentido e na condição do locutor de ser social que se exprime como sujeito do mundo, imbuído de representações sociais.

“Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância, é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra. O problema da pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia” (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 107). Assim como o enunciado concreto é único, irrepetível, os sujeitos, coconstruídos na interação, também o são, instaurando dialogicamente sentidos personalíssimos decorrentes da pluralidade de caminhos possíveis do dizer e de significar o dito.

Marková (2006MARKOVÁ, Ivana. 2006. Dialogicidade e Representações Sociais. As dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes .), ao propor um tratamento dialógico das representações sociais, aduz que as representações são constructos simbólicos que se manifestam nos discursos e no pensamento social sobre fenômenos que afetam as realidades sociais. A autora propõe uma interface entre a teoria das representações sociais e o dialogismo para abordar questões concernentes às Ciências Humanas e Sociais. Dessa forma, ela defende uma teoria do conhecimento social que toma a dinamicidade como ponto de partida, visto que “ser significa comunicar simbolicamente” (Marková 2006MARKOVÁ, Ivana. 2006. Dialogicidade e Representações Sociais. As dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes .: 14).

Cada vez que entramos em cena no jogo comunicativo, as palavras alheias tornam-se nossas palavras, os sentidos alheios tornam-se nossos sentidos, pois “somente em um nível concreto, os parceiros de um diálogo poderão se tornar coautores das palavras ou significados no sentido real da palavra diálogo” (Marková 2006MARKOVÁ, Ivana. 2006. Dialogicidade e Representações Sociais. As dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes .: 138). No percurso discursivo, os sujeitos lidam com o que é do imaginário institucional (conhecimentos mais automatizados, difundidos por agências mais estruturadas socialmente) e o que é da ordem do acontecimento, do cotidiano. É dessa instância conflituosa que o discurso emerge e (re)vela o ser social, tanto como estruturador do meio social, como estruturado por ele. Nas práticas sociais, é de se esperar filiações e não filiações, como também modalizações (filiações parciais) aos conhecimentos engendrados no âmbito do grupo social.

Fato é, para nos relacionarmos, recorremos a certos tipos relativamente estáveis de enunciados surgidos no âmbito de um dado grupo social, que são referências ou convenções que farão parte e serão atualizadas, inevitavelmente, no fluxo discursivo. Com base neles, nos movimentamos com vistas a confirmar ou rechaçar, nessa dinâmica, as representações identitárias de si, do outro e do grupo de pertença são reformuladas.

As representações, portanto, interveem de maneira ostensiva no sentimento de identidade, elas são responsáveis pela adesão ao quadro de referência, convergindo ou divergindo dos sujeitos de referência, modulando e expressando as representações identitárias de si e do grupo de pertença.

4. O vazio na relação entre o eu e o outro: desdobramentos simbólicos para as representações identitárias

A metáfora do espaço vazio designa o espaço disponível para o outro chegar e se misturar ao eu, sendo condição para que o indivíduo natural se torne um sujeito social. “Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal” (Bakhtin/Volóchinov 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 108), e, ao penetrar na cadeia enunciativa, o indivíduo se torna sujeito-evento, pois incorpora o ato per se. O sujeito é, portanto, sempre “relacional, nunca isolado, ainda que seu ato seja somente seu; como ninguém pode ocupar o lugar do outro, seu ato só pode ser uma versão sua do ato em geral, nunca esse ato em geral em si” (Sobral 2019______. 2019. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado de Letras.: 70).

A trama discursiva se constitui por fios ideológicos entrelaçados e vazios que admitem a inserção e sobreposição de novos fios ideológicos e, por conseguinte, a produção de uma nova configuração discursiva. Esse fluxo é contínuo e inexaurível; a teia discursiva é constantemente revista, atualizada, pela presença do outro. Novos espaços são garantidos para interações futuras, fomentando a heterogeneidade como elemento constitutivo da linguagem: “Afinal, nossas identidades sociais não são estáticas ou estruturalmente determinadas, mas contextualmente situadas e interacionalmente emergentes”. (Zamponi, 2005ZAMPONI, Graziela. 2005. Estratégias de construção da referência no gênero de popularização da ciência. In: KOCK, Ingedore Grunfield Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina. (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto .: 190).

De acordo com Lacan (1978LACAN, Jacques. 1978. Escritos. São Paulo: Perspectiva.), o sujeito é atravessado por um outro sujeito que ele desconhece, impondo-lhe uma fala que é percebida pelo sujeito consciente como estranha, lacunar e sem sentido. Na medida em que há trocas, ou seja, interação, o material simbólico outrora alheio se torna familiar, e o estranhamento cede lugar ao experimentado, o novo ao dado e a palavra do outro passa a ser nossa palavra, ressignificada em novos termos. É nessa medida que o sujeito ocupa seu lugar no mundo.

Sobral, partindo do artigo sobre o estádio do espelho (Lacan 1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.), afirma:

Entendendo-se “lugar”, em termos lacanianos, como posição na ordem de elementos dotados de sentido que articulam o inconsciente e delimitam a determinação simbólica do sujeito, e, em termos bakhtinianos, como posição na ordem de “regras” de criação de sentido que articulam o agir do sujeito, instaurado primeiramente no evento irrepetível de seu Ser, e que demarcam a sua constituição histórica, condição da sua própria existência no discurso - considerando-se essas duas ordens, pode-se perguntar: se o discurso proferido a partir desse lugar que é o Outro (Lacan) marca ontologicamente o indivíduo a partir do seu nascimento, prefigurando sua “localização”, não seria a inscrição desse sujeito no agir discursivo - em analogia com a “inscrição” do sujeito na vida - o ato que marca o sujeito, desde seu “nascimento” para o discurso, como um lugar a ser ocupado, servindo mesmo de cena inicial na qual ele vai ocupar uma localização que nunca é propriamente “sua”, mas que não existe sem ele? (Sobral 2003SOBRAL, Adail. 2003. A impossibilidade de realização do sentido: elementos sobre as tensões discurso-neurose e outro-outro. Intercâmbio, Vol. XII, São Paulo: LAEL/PUC-SP, p. 321-326. : 35).

O Outro, portanto, deve ser entendido como um lugar simbólico, que irá cooperar para a configuração da representação identitária de mim mesmo, sendo esse lugar que me agita e me impõe uma nova ordem. Toda relação com o outro é, na verdade, uma relação com o Outro. Garcia Roza esclarece, quanto a isso, que essas “formações lacunares” indicam:

o lugar do Outro (com O maiúsculo) onde, segundo Lacan, se situa a cadeia do significante e onde o sujeito aparece. Esse Outro é a ordem inconsciente, ordem simbólica, que se distingue do outro (com o minúsculo) que é o semelhante, o outro sujeito. (Garcia-Roza 2008GARCIA-ROZA, Luiz. 2008. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editoras.: 210)

Nesses termos, dirigimo-nos sempre ao outro, ainda que seja o representante típico de nosso grupo social, e também ao Outro (que podemos arriscar comparar com o sobredestinatário de Bakhtin), e este último também está presente para nossos interlocutores. Se para Lacan só se realizam desejos, mas nunca “o” desejo, também para Bakhtin se realizarão sentidos, mas nunca o “sentido” - porque não temos acesso a esse Outro último, garante e sanção, mas apenas as representações situadas dele.

Lacan propõe que se compreenda o estádio do espelho como “uma identificação, (...) ou seja, é a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”. (Lacan 1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.: 96). Esse estádio manifesta, de maneira exemplar, a matriz simbólica em que o eu [je] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro” (LACAN 1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.: 97). Lacan, ademais, destaca o sentido necessariamente relacional da assunção dessa imagem (LACAN 1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.: 96):

Este ato (...) repercute, na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações.

Além disso, Lacan (1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.: 101) reconhece o caráter social do processo, afirmando, por exemplo, que “esse momento em que se conclui o estágio do espelho inaugura, pela identificação com a imagem do semelhante (...) a dialética que desde então liga o eu a situações socialmente elaboradas”.

Retomando a questão dessa dialética, em termos bakhtinianos, Sobral e Giacomelli (2018______. 2018. Alteridade, subjetividade, identidade e variantes enunciativas: explorações especulativas. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.21, n. esp., | FESTSCHRIFT | Hilário Bohn, p. 13-44.: 35) afirmam que o lugar é, nesse sentido, um “não-lugar” em permanente ocupação:

Imerso na tensão entre o desejo inalcançável (Lacan) e o desejar inevitável e na tensão entre o sentido inalcançável e o significar inevitável, o sujeito se define como ser desejante-significante que, embora venha do evento irrepetível do Ser, sem álibi (Bakhtin), e da irrupção irrepetível do Dizer sem remissão (Lacan), negocia todo o tempo seu próprio Ser e seu próprio Dizer. Ele está condenado eternamente a - existindo e dizendo a partir de um dado lugar (sempre fronteira) - ser e dizer desde sempre, e para sempre, “sem-lugar”.

Cabe destacar aqui, já que temos nos concentrado no eu (je), que Lacan (1979______. 1979. Seminário, Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editoras.) propõe a importante distinção entre ego (moi) e eu (je). O ego se constitui no escopo da relação imaginária do estado especular, sendo assim a imagem que o sujeito tem de si mesmo. O eu seria “um termo verbal cujo uso é aprendido numa certa referência ao outro, que é uma realidade falada (...) constitui-se inicialmente numa experiência de linguagem, em referência ao tu” (Lacan 1979______. 1979. Seminário, Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editoras.: 193). Como a ordem do simbólico é condição de existência do imaginário, tanto para o ego como para o eu (entendidos aqui como o mesmo ser social), “eu” só adquire corpo na relação com o “tu”, devendo o tu ser compreendido como o outro específico no lugar social dos Outros:

A imagem de si (moi) assume a condição de eu (je) apenas na medida em que o tu é inaugurado na interação, faz-se presente nela. Em consonância com o tu, o eu é instaurado, para que haja partilhamento de material simbólico e, por conseguinte, de significações (ou sentido, na linguagem Bakhtiniana). O eu e o tu, como afirma Vanier (2005VANIER, Alain. 2005. Lacan. Trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade.: 48), compõem a produção de sentido, não sendo, pois, elementos externos ao processo, mas constitutivos dele: “o que sustenta sua imagem e sua emergência é esse sinal do Outro, signo de seu desejo que lhe sinaliza que ele representa algo para esse Outro, sem que por causa disso saiba o quê”.

Vemos então que, ao se considerar o ser social, considera-se o ser simbólico. Cassirer (1998CASSIRER, Ernst. 1998. Filosofia de las formas simbólicas I: el language. Trad. Armando Morones. Cidade do México, Fondo de Cultura Económica.) afirma que a função simbólica é a que permite ao indivíduo constituir suas objetivações, suas percepções, seus posicionamentos. O simbólico é responsável pela mediação homem-mundo; no ato de representar, o indivíduo se torna ser social. O que aprendemos com as nossas experiências advém da função simbólica, que confere sentido ao empiricamente dado, visto que nosso conhecimento, mesmo já bem consolidado, não nos disponibiliza os objetos, mas signos advindos desses objetos e das inter-relações.

Assim, as formas simbólicas são disponibilizadas como matrizes culturais para compreender o mundo, podendo ser entendidas como formas de objetivação do mundo. O mundo nos chega como mundo simbólico, mundo objetivado socialmente, e por isso sempre nos valeremos do repertório cultural, das representações sociais, de nosso grupo de pertença. O sistema simbólico é pressuposto de existência do próprio mundo e dos sujeitos sociais que com ele e nele se relacionam.

Cassirer (1998CASSIRER, Ernst. 1998. Filosofia de las formas simbólicas I: el language. Trad. Armando Morones. Cidade do México, Fondo de Cultura Económica.) nos ensina ainda que estamos sempre mergulhados em um caldeirão cultural, ou seja, um mundo dotado de significados, e que somente pela via da função simbólica vemos o mundo como nosso mundo. A linguagem é o meio de acesso que dá vitalidade a esse material simbólico, fruto de trocas frequentes. Por via da linguagem, há a formulação e a atualização de formas de significar o mundo; através dela, as matrizes culturais são mobilizadas mediante a disponibilização de uma base comum, as quais possibilitam que uns se relacionem com os outros.

A cultura, processo praxeológico, demanda um sistema de ações, que é apropriado pelos indivíduos, convergindo ou divergindo desse sistema, reformulando os saberes cunhados no interior do grupo social, reconfigurando-o e o identificando. A cultura é tanto a causa como a consequência dos modos de significar produzidos nas interações, composta pelo acervo de ações empreendidas pelos sujeitos nas práticas comunicativas.

Segundo Bakhtin/Volóchinov, o sentido não pode ser apreendido nem ser instaurado a partir de uma palavra isolada, fora da enunciação, uma vez que “só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação” (Bakhtin/Volóchinov, 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.: 132). Em compatibilidade com Cassirer, pode-se dizer a partir disso que o simbólico é estruturado pelas relações entre os sujeitos, ao tempo em que as estruturas, os sistemas simbólicos, viabilizam que o ser comunique, e, ao se comunicar, signifique ser para o outro, (re)criando o outro, e que, ao recriá-lo, signifique ser para si mesmo, recriando a si mesmo.

Nesses termos, a corrente contínua de enunciados garante que os participantes das interações se reconheçam como membros e, por assim ser, validem suas participações nas realidades sociais. No mundo, interpretado por Bakhtin e o círculo, os objetos são monológicos, não-responsivos; enquanto os sujeitos são essencialmente dialógicos e responsivos (não-álibi). A realidade do mundo é construída de maneira multifacetada e multivocal, é a todo momento revista e reconfigurada, pois se conforma à organização cultural. Todo e qualquer produto da mente humana é constitutivamente simbólico e dialógico, por ser efeito do ser social, imbuído de elementos ideológicos, que imprimirá na sua criação propriedades advindas do processo de espelhar e de refratar os índices socialmente elaborados. A refração é inerente à avaliação, à axiologia, ela se dá em face das normas dialógicas, historicamente e culturalmente instauradas, ao repertório de representações mobilizadas na assunção do ser diante do agir.

O curso da dinâmica da reflexão-refração torna sensível a tensão, as assimetrias entre o eu e o outro/Outro, entre os aspectos de mim que se assemelham aos meus pares e os aspectos em que diferencio deles, em que me transpareço aos olhos dos outros sem me dar por inteiro e me conformo aos olhos dos outros sem deixar de ser que sou. Em outras palavras, “Paradoxalmente, é a dialogicidade que identifica os indivíduos como indivíduos. Suas imparidades dialógicas definem suas variações e sua criatividade com relação aos outros” (Marková 2006MARKOVÁ, Ivana. 2006. Dialogicidade e Representações Sociais. As dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes .: 135).

Vemos então que as representações identitárias também evidenciam o pressuposto dialógico, visto que sempre há uma sombra do outro (pares ou grupos) para a acentuação de quem se é enquanto membro ou o que se é enquanto grupo. O outro balizará os limites de quem eu sou na dialética do movimento. O vazio, diante do quadro interacional, é condição para a responsividade, é quando o sujeito joga a bola no espaço para o outro rebater. Novos valores são (re)colocados, conferindo à trama uma nova configuração, novos vazios, para novas respostas.

A linguagem, de acordo com Lacan, ainda que deva ser entendida a partir da sua função humanizante, já que funda o sujeito, pressupõe uma dimensão mortal, já que “ a palavra é a morte da coisa, isto é, é preciso que a coisa desapareça para que a palavra exista” (Vanier 2005VANIER, Alain. 2005. Lacan. Trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade.: 29). A coisa, portanto, é revivida na sua representação simbólica na teia do discurso, sempre a partir de um sujeito, sendo que o olhar do ser social assume inevitavelmente propriedades simbólicas.

Dessa forma, o nosso agir é orientado, justificado, embasado no mundo de palavras do outro, palavras que vão nos constituindo axiologicamente, em um movimento dialógico traduzido na relação eu para o outro, outro para mim e nós para eles. De acordo com as perspectivas bakhtiniana e lacaniana, nunca estamos sozinhos diante do espelho, porque o outro/Outro ancora a atividade de autocontemplação - “necessidade estética absoluta” (Bakhtin 2003______. 2003. O autor e a personagem na atividade estética. In: M. Bakhtin, Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.: 33). Em outras palavras, o outro/Outro é a instância onipresente que cumpre o papel de compor o ser para si e para o outro (autorregulação). Somente por via dos olhos do mundo a imagem de “si mesmo”, internamente vivenciada de maneira descontínua, não unitária e de temporalidade não-cronológica, pode ser reconhecida (Cf. Faraco 2009FARACO, Carlos Alberto. 2009. Linguagem e diálogo: As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin.São Paulo: Parábola Editorial.).

Esta expressão não emerge no texto por acaso: a “necessidade absoluta” parece resgatar a dimensão fundante da alteridade, uma vez que o outro/Outro seria a única instância capaz de ver, reunir, unificar um “eu” que em si não é, mas vem a ser, se torna através do olhar alheio. Só através dos olhos do mundo pode a imagem de “si mesmo”, internamente vivenciada como descontínua, não unitária e de temporalidade não-cronológica, ser reconhecida (Cf. Faraco 2009FARACO, Carlos Alberto. 2009. Linguagem e diálogo: As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin.São Paulo: Parábola Editorial.).

Como diz Bakhtin (2017______. 2017. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. São Paulo: Editora 34.: 38), “[E]eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro”. Isso nos permite dizer, à luz do que apresentamos, que o lugar do vazio é o lugar das possíveis percepções a serem elaboradas através da emergência de esboços diferentes uns dos outros, pois também a nossa singularidade é cunhada sob a égide da alteridade. Diante da multiplicidade de esboços (RR), cada um é preenchido pelo outro, sendo que nesse preenchimento haverá lacunas constitutivas, uma vez que cada ser social é estruturalmente incompleto. Assim, através da dinâmica entre o eu, o outro (Outro) e o vazio, as representações identitárias são reveladas e atualizadas (RU), sendo a incompletude condição da construção da identidade do sujeito nas práticas sociais.

Considerações Finais

Neste artigo, objetivamos refletir sobre a questão da representação identitária a partir das contribuições do Círculo de Bakhtin, procurando compreender, particularmente, a sua constituição na relação entre eu, o outro/ Outro e o vazio. Para tanto, perpassamos por diferentes percursos teóricos para tratar do objeto identidade: i) as relações dialógicas como o lócus da linguagem; ii) o surgimento, atualização e circulação de representações sociais e, por conseguinte, das representações identitárias; iii) a função simbólica como constitutiva do eu interior (psiquismo, segundo Lacan) e do eu exterior (relação simbólica eu-outro, também segundo Cassirer); iv) o papel do vazio na constituição do sujeito; v) a construção axiologicamente projetada da relação eu (je + soi) e o tu (outro + Outro).

Vimos que, de acordo com o Círculo de Bakhtin, a linguagem, imprescindível para o desenvolvimento humano, funda os sujeitos e possibilita suas relações. Longe de ser um sistema de formas, produto acabado, estável, pronto para ser usado, ela é criação coletiva, fenômeno social que nos permite elaborar, interpretar, transformar objetos do discurso nas práticas sociais. Através do dialogismo (princípio constitutivo da linguagem), no curso do enunciado concreto, em meio à forma linguística figurada como signo em um dado contexto, o sujeito emerge na relação com o outro/Outro.

Desse modo, a enunciação entendida a partir de seu caráter social, evoca um discurso vivo, plástico, composto por múltiplos posicionamentos, muitas vezes contraditórios, que demanda dos sujeitos que se relacionam réplicas, tréplicas e, nesse processo ininterrupto, que se tornem efeitos dos movimentos de reflexão e refração. Vale repetir que refratar significa que “nós não somente descrevemos o mundo [refletindo-o], mas construímos - na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos - diversas interpretações (refrações) desse mundo” (Faraco 2009FARACO, Carlos Alberto. 2009. Linguagem e diálogo: As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin.São Paulo: Parábola Editorial., p.50-51).

Na ação comunicativa, portanto, emergem saberes cunhados no âmbito de grupos sociais, instauram-se embates, conflitos entre o dado e o novo que mobilizam as contradições socioideológicas. Dada a vivacidade peculiar do jogo linguageiro, somos aquilo que o enunciado nos permite sermos, pois, a cada evento, o sujeito social se constrói a partir das variáveis (condições de produção) que lhes são impostas, claro que mantendo um núcleo que lhe permite manter sua individualidade irredutível. Daí o argumento aqui defendido de que não há uma identidade estática, mas representação identitária engendrada no curso do discurso (eventicidade da existência do ser) na vida concreta.

O eu (moi + je) deve ser compreendido como resultante da relação com o tu (outro + outros) embora, com Lacan (1998______. 1998. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 97-103.), a alteridade decorra da dinâmica do Outro formativo do estádio do espelho, enquanto que, com o Círculo de Bakhtin, ela advém da condição de abertura do eu ao outro, ao que o outro (re)vela em mim, enquanto tem aspectos seus (re)velados por mim. Nesse sentido, na esteira do pensamento da ADD, para o entendimento do outro, Amorim (2004: 26) explica que é preciso um certo estranhamento em que um “abandona o seu território, desloca-se em direção ao país do outro, para construir uma determinada escuta da alteridade, e poder traduzi-la e transmiti-la”. A representação identitária, portanto, é fruto do deslocamento em direção ao outro, uma compreensão de si pelo outro/Outro, síntese entre o eu-para-o-outro e o eu-para-mim.

No percurso argumentativo, pudemos refletir sobre como os pressupostos do círculo bakhtiniano nos ajudam a pensar o modus operandi das representações identitárias no âmbito das práticas discursivas à luz dos movimentos intragrupais e intergrupais. O sujeito, nas interações, a partir da assunção de um papel social, mobiliza representações que irão impactar a composição de sua identidade, seja refutando-as, afastando-as de seu acervo de referência (divergência), seja ratificando-as, operando com o acervo para justificar posicionamentos (convergência).

Demonstramos que a identidade deve ser compreendida como efeito das relações dialógicas, das conjunturas sócio-histórico-culturais da enunciação. Por essa razão, ela ganha contornos fluidos, flexíveis, conforma-se diante das variáveis das conjunturas nas esferas sociais. Assim, as relações dialógicas, relações entre identidade e alteridade, têm papel importante nos estudos das representações identitárias, justamente porque nos ajudam a compreender como agem os membros de um determinado grupo, o quanto modelos coletivamente construídos são tomados, interpretados e revistos nas interações etc.

Propusemos uma discussão em que pudemos relacionar a identidade com os conceitos de representações, relações dialógicas, função simbólica e alteridade. Mostramos com essas bases que as representações identitárias são constructos dinâmicos, negociados nos diálogos, em tensão, de maneira conflituosa. Não há como pensarmos em uma identidade dada, fixa, havendo na verdade, uma identidade visada, almejada, uma representação de si enquanto membro de um determinado grupo social, um identificar-se permanente. Nessas investidas, criam-se novos sentidos para o eu, incorporam-se novos traços por meio da troca com o outro/Outro, novas ordens se impõem, em uma remodelagem sem fim.

Podemos assim especular, ou seja, projetar em um espelho e refletir, refratando, que a pergunta central “quem somos?” deve contemplar no seu bojo “quem somos para aqueles com quem interajo em uma dimensão espaço-temporal específica?”. Com relação a esse outro/Outro, eu também vejo em mim um eu sempre novo, uma realização sempre outra de mim mesmo, um tornar-se cada vez mais eu mesmo de novas maneiras. Os modos de me representar são reflexo e refração das relações dialógicas que tenho com outros sujeitos, sociais como eu e, como eu, únicos, irrepetíveis. Eis por que a identidade é fluida: haverá sempre algo que escape, porque as lacunas, a incompletude, são por excelência aquilo que nos define e nos funda.

Nas interações, a partir da emergência do material simbólico, manifestam-se matrizes históricas que irão balizar as escolhas dos envolvidos e é nesse continuum que as representações identitárias são (re)formuladas, tanto no plano micro, dos sujeitos particularmente atuantes na enunciação, quanto no plano macro, do grupo de pertença, inserido no âmbito de outros grupos na sociedade e na história.

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  • 3
    . BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 2004______. 2004. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec., p. 79
  • 4
    . Beth Brait, grande referência para os pesquisadores bakhtinianos, defende a denominação Análise Dialógica do Discurso (ADD) para as interpretações brasileiras concernentes ao pensamento gestado pelo Círculo de Bakhtin (PAULA, 2013PAULA, Luciane. 2013. Círculo de Bakhtin: uma Análise Dialógica de Discurso. Revista de Estudos da Linguagem. Ling., Belo Horizonte, v. 21, n. 1, p. 239-258, jan./jun. ).
  • 5
    . Partager une idée, un langage, c’est aussi affirmer un lien social et une identité. (Tradução dos autores).
  • 6
    . La construction-distribution des places discursives se fonde sur les images d’eux-mêmes que les locuteurs partenaires se communiquent, se proposent ou s’imposent l’un à l’autre. (Tradução dos autores).
  • 7
    . «...est autant une activité descriptive (interprétation et compréhension) qu’ une activité évaluative (jugement)» (Tradução dos autores).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2020
  • Aceito
    03 Ago 2020
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