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Revisitando as políticas linguísticas educacionais em Moçambique: O caso da educação bilingue

Revisiting language education policies in Mozambique: The case of bilingual education

RESUMO

Conheci Marilda Cavalcanti nos anos 1990, em Moçambique, quando decorria a primeira experiência de educação bilingue, no Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação. A experiência envolvia apenas duas línguas, uma do sul do país e outra do centro, de um total de quase 20 línguas moçambicanas. Passados quase 20 anos, temos 19 línguas no ensino primário e duas modalidades de ensino, a monolingue e a bilingue. Com este artigo, pretendo mostrar a trajetória das políticas linguísticas educacionais, das quais eu tomei parte, e que foram concebidas numa perspectiva epistémica do sul. Nessa trajetória, muito contribuiu para o meu crescimento académico-profissional a valiosa orientação da Marilda, desde os primórdios da educação bilingue em Moçambique e, mais tarde, como minha orientadora na pós-graduação.

Palavras-chave:
Moçambique; educação; educação bilingue; políticas linguísticas.

ABSTRACT

I met Marilda Cavalcanti in the 1990s in Mozambique, when the first experience of bilingual education was taking place. The experience involved only two languages, one from the south and the other from the center of the country, out of a total of almost 20 Mozambican languages. With this article I intend to review the trajectory of the educational language policies, of which I was a part, and much contributed to my academic-professional growth through Marilda’s valuable guidance, since the early days of bilingual education in Mozambique and later as my supervisor in the post-graduation course in Applied Linguistics with a specialization in bilingual education.

Keywords:
Mozambique; education; bilingual education; language policies.

1. Introdução

Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul.

Sousa Santos (1995, p. 508)

Quando conheci Marilda Cavalcanti, na década de 1990, estava a decorrer a primeira experiência de educação bilingue no país, denominada de Projecto de Escolarização Bilingue em Moçambique (PEBIMO), desenvolvida pelo Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação (INDE), com o principal objectivo de avaliar a aplicabilidade da educação bilingue em Moçambique, porque pensava-se que já se conheciam os seus benefícios. Leia-se benefícios como contribuir para a aprendizagem rápida do português, a língua oficial e a língua da unidade nacional.

O PEBIMO, com pouco mais de 400 alunos, decorria em 4 escolas, duas na província de Tete, no centro do país, nos distritos de Moatize e Angónia, na língua nyanja, e duas da província de Gaza, na zona sul, na língua changana. O critério para a escolha destas línguas foi que sua ortografia já era padronizada, havia alguns materiais escritos nas mesmas e decorriam programas de educação de jovens e adultos nestas línguas que poderiam subsidiar o PEBIMO.

A experiência era orientada pelo INDE, órgão do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH). Não havia muito conhecimento sobre a educação bilingue, senão a adquirida em cursos de licenciatura entremeados por narrativas de construção da unidade nacional através da língua oficial, o português. O desenvolvimento dos materiais instrucionais, a formação dos professores envolvidos, bem como a avaliação, eram da total responsabilidade do INDE. Isso suscitava algumas interrogações da comunidade educacional sobre a confiabilidade da experiência, que começou a ser vista com algum ceticismo, como mais uma experiência, pois acreditava-se que apenas o português poderia cumprir o papel de educar as crianças, jovens e adultos. A este respeito, Cabral (1993) refere que o nível incipiente do estudo das línguas moçambicanas, a variedade de línguas e a falta de especialistas de educação bilingue foram algumas das razões que fundamentaram a opção pelo ensino na língua portuguesa no Moçambique pós-independência.

Se havia ceticismo por parte das autoridades educacionais, parte da comunidade académica da área das ciências da linguagem, que já vinha estudando o uso de línguas moçambicanas no ensino, via o PEBIMO como uma esperança para a introdução da educação bilingue em Moçambique.

Foi neste cenário que Marilda visitou o PEBIMO em Gaza, cujo olhar externo trouxe uma luz de esperança ao tecer comentários positivos de algumas aulas que tínhamos observado juntas. Esta visita e as conversas daí advindas originaram um interesse de ambas as partes para que eu realizasse uma pós-graduação em educação bilingue, na área da Linguística Aplicada - o que veio a se concretizar na Universidade Estadual de Campinas, a partir de 2004.

O meu interesse em políticas linguísticas provém de meu envolvimento com a educação bilingue em Moçambique, trabalhando em políticas e planificação linguísticas e no currículo para a introdução da educação bilingue no ensino primário, no INDE e, também, como formadora de professores em serviço. Actualmente, a educação bilingue e as políticas linguísticas permeiam a minha vida académica, quer através de disciplinas que leciono na graduação e na pós-graduação, quer na participação em diferentes estudos nesta área.

O objetivo do presente artigo é, por isso, revisitar a trajetória de políticas linguísticas educacionais, desde a década de 1990, quando aconteceu a primeira experiência do uso de línguas moçambicanas no ensino primário, da qual fiz parte, até a atualidade, e como essas políticas foram se construindo e/ou se desconstruindo, em contextos de implementação marcados por incertezas e indecisões por parte dos decisores educacionais, e de esperança por parte de alguns académicos, pesquisadores e as comunidades locais (Patel, 2006Patel, S. (2006). Olhares sobre a educação bilingue e seus professores numa Região de Moçambique. [Dissertação de Mestrado]. Unicamp., 2012Patel, S. (2012). Um olhar para a formação de professores de educação bilingue em Moçambique: Foco na construção de posicionamentos a partir do lócus de enunciação e actuação. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.).

O texto está organizado em quatro partes. Após a introdução onde contextualizo o artigo revisitando as políticas linguísticas educacionais em Moçambique, segue-se a parte 2, onde abordo os aspectos epistemológicos relativos às políticas linguísticas educacionais. Na parte 3 perspetivo o desenho de epistemologias amigáveis que possam contribuir para o desenvolvimento de políticas linguísticas não subalternizadas ao ocidente e, finalmente, na parte 4 onde apresento algumas considerações.

2. Epistemes ocidentalistas VS epistemes locais

Em princípio, as políticas linguísticas educacionais em Moçambique salvaguardam o princípio psicopedagógico segundo o qual um indivíduo, criança ou adulto se alfabetiza melhor e mais rapidamente na sua língua materna ou numa língua que lhe é mais próxima. Versam sobre a importância de se preservar o direito linguístico e cultural da criança e do adulto de serem alfabetizados na sua língua materna ou numa língua próxima, no entanto, a maior parte da educação primária em Moçambique ainda é monolingue, em português.

A diversidade etnolinguística e intercultural2 2 Considero o termo intercultural mais apropriado quando falamos de epistemologias do Sul, segundo a visão de Cavalcanti (1999, 2011), Cavalcanti & Bortoni (2007) e Santos (1999), no sentido do diálogo intercultural entre as várias etnias e culturas e não apenas no sentido de muitas culturas que não dialogam entre si. é uma das características culturais principais de Moçambique, aparentemente, oficialmente reconhecida, como se pode observar pela citação do Instituto Nacional de Estatística: “Embora o Português seja a língua oficial, existe uma enorme variedade de idiomas. Para a maioria da população, os idiomas nacionais constituem a sua língua materna e a mais utilizada na comunicação diária” (INE, 2019).

Estudos realizados por linguistas moçambicanos e de outros países indicam, com pequenas variações, que existem cerca de vinte línguas moçambicanas, todas de origem bantu, e que cada língua possui cerca de quatro a cinco variantes dialetais.

Em 1983, a língua portuguesa era falada por 1.2% da população como língua materna e 24% como língua segunda, em contextos urbanos. Os dados do recenseamento geral da população de 1997 indicavam que numa população de cerca de doze milhões de habitantes (população de mais de cinco anos), somente 6% falava o português como língua materna em zonas urbanas, e 1.2% em zonas rurais, e que 39% da população total (população com mais de cinco anos de idade) falava o português como língua segunda. Esses dados mostram que, em catorze anos, o número de falantes de português como língua materna e segunda, em zonas urbanas, aumentou em 5.2% e 15%, respectivamente. Em contextos rurais o cenário em relação ao português manteve-se em 1.2%. Esses dados mostram que 94% da população moçambicana fala as línguas bantu, porque mesmo as pessoas que falam o português como língua segunda, falam também uma língua moçambicana.

De acordo com o censo populacional de 2007, dez anos depois, cerca de 90% da população moçambicana ainda fala pelo menos uma língua moçambicana, sendo que 85.2% a tem como língua materna. Em contraste, o português é falado por 50.4% da população, sendo a língua materna de 10.7% dos falantes, ou seja, cerca de 40% dos falantes do português têm essa língua como língua segunda.

O cenário sociolinguístico acima apresentado mostra que cerca de 60% da população moçambicana é rural, sendo que as interações diárias se desenvolvem quase unicamente em línguas locais. O português exerce, ainda, o papel de língua de unidade nacional e os cidadãos a relacionam ao bem estar social e económico, uma vez que é a língua de prestígio, de mobilidade social e, por conseguinte, do poder.

Para a educação, significa que a maioria dos alunos moçambicanos que ingressa no ensino primário não entende e não fala o português. De uma maneira geral, os moçambicanos falam pelo menos duas línguas moçambicanas e, às vezes, três. Contudo, para fins educativos, as comunidades locais são definidas como sendo linguisticamente homogéneas, pois, de uma maneira geral, há uma língua que é o principal meio de comunicação local e, no caso de programas de educação bilingue, é a usada no ensino. No entanto, nunca houve em Moçambique um estudo dialetológico que sustentasse a tese da existência de zonas linguisticamente homogéneas.

Constitui uma evidência deste facto um mapeamento linguístico realizado no âmbito do programa de educação bilingue denominado USAID/Vamos Ler!, que decorreu de 2017 a 2021, em Nampula e Zambézia, províncias do norte de Moçambique, cujos resultados mostram claramente que o nível de homogeneidade linguística é quase nula (USAID, 2017USAID (2017). Language Mapping Study in Mozambique. USAID.). Esse resultado evidencia a necessidade de estudos dialetológicos, em todos o país, para se aferir o nível de homogeneidade linguística aludida no Plano Curricular do Ensino Primário (PCEP). Os resultados desses estudos irão requerer a revisão das políticas linguísticas educacionais, tanto para o ensino e aprendizagem, como para a formação.

Já os contextos urbanos são tidos como sendo linguisticamente heterogéneos, devido à afluência de falantes de diversas línguas. Além do mais, considera-se que a maior parte da comunidade urbana e/ou periurbana fala o português como língua segunda e, por essa razão, não seria viável a ocorrência de programas de educação bilingue. Contudo, pesquisas efetuadas por estudantes do curso de licenciatura de Ensino de Línguas Bantu, em 2015, mostram que em escolas urbanas de referência na capital do país, crianças em número considerável interagem na língua local, o ronga ou o changana, nos corredores da escola e, por vezes, em interações entre elas, na sala de aulas.

Volvidos 41 anos da independência nacional, mantém-se, no país, uma política linguística de evitação do reconhecimento das línguas moçambicanas, camuflada em discursos de valorização dessas línguas em forma de programas de educação bilingue, mas as práticas demonstram que o monolinguismo por via do português é ainda dominante.

As políticas linguísticas em Moçambique são melhor entendidas no contexto mais amplo do espectro sociolinguístico africano associado à história da colonização e à própria colonialidade, em que se desperdiçou (e ainda se desperdiça) muita experiência social e reduziu-se (e ainda se reduz) a experiência epistemológica, política e cultural do mundo (Sousa Santos, 1999Sousa Santos, B. (1999) A Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença. Oficina do Ces, Janeiro de 1999. http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/135/135.pdf.
http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina...
). A esse respeito, Ngunga (2005) refere que o governo moçambicano levou mais de 25 anos a perceber e a acreditar em estudos de autores moçambicanos e de outros estudos que se faziam em diferentes pontos do mundo, sobre a necessidade de se introduzir as línguas moçambicanas no ensino, através de programas de educação bilingue.

Apesar de nos últimos anos já se observar uma mudança de atitude em relação ao uso das línguas moçambicanas no ensino primário, os programas de educação bilingue comparativamente aos de ensino monolingue em português, são ainda incipientes, como já referi neste artigo, observando-se uma discrepância enorme entre a política educacional para o ensino do português e das línguas moçambicanas (Patel, 2012Patel, S. (2012). Um olhar para a formação de professores de educação bilingue em Moçambique: Foco na construção de posicionamentos a partir do lócus de enunciação e actuação. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.).3 3 Alio-me a César & Cavalcanti (2007) na sua visão de língua como caleidoscópio, o que significa reconhecer um pluralismo linguístico que abarca todas as línguas e suas variantes sem distinções dicotómicas do tipo língua e variedade, língua e norma, língua e dialeto, resinificando, deste modo, os conceitos e seus derivados, como bilinguismo, língua materna, língua segunda, e outros. Essa visão revela, por conseguinte, um alinhamento com epistemologias do Sul na definição e prossecução de políticas linguísticas educacionais, incluindo as de Moçambique. Reforçando, Cavalcanti & Maher (2018, p. 14) dizem que “as línguas não são acções e interacções humanas preexistentes; elas são geradas e moldadas por elas.”

Bamgbose (1991Bamgbose, A. (1991). Language and the Nation: The Language Question in Sub-Saharian Africa. Edinburgh University Press. , p. 69) diz o seguinte sobre esse assunto:

Na discussão das opções as escolhas possíveis têm sido apresentadas como se fossem escolhas livres, existem, de facto, constrangimentos externos que determinam escolhas particulares feitas por determinados países. O importante de tais restrições é que são históricas, sociolinguísticas, económicas, teóricas, pedagógicas e políticas.

A citação acima vem mostrar, mais uma vez, que, em países africanos ou periféricos como Moçambique, as epistemologias ocidentais continuam a sustentar narrativas de ideais de nações estado (Patel, 2012Patel, S. (2012). Um olhar para a formação de professores de educação bilingue em Moçambique: Foco na construção de posicionamentos a partir do lócus de enunciação e actuação. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.). No mesmo viés, Smith (1999Smith, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Zed Books Ltd. ) refere-se à permissão das margens para que os de fora continuem a decidir sobre o nosso destino, a nossa história. Nessa perspectiva a escola fica directamente implicada nesse processo, contudo, através do currículo e das teorias de conhecimento, os locais vêm se reposicionando no mundo.

Ainda assim, a pesquisa educacional mantém-se fortemente ligada aos modelos importados do ocidente. O escopo teórico-metodológicos das pesquisas segue um modelo eurocentrista, havendo pouco espaço para o desenvolvimento de epistemes sobre o outro não ocidental, reforçando o que alude Bhabha (1994Bhabha, H. (1994). The Other Question: The Location of Culture. Routlegde.) sobre como o discurso dos participantes de uma pesquisa é, invariavelmente, intermediado através de e pela voz de outrem, que se coloca em posição de reivindicar algo em nome de um outro.

Essa questão remete-nos ao facto de que Moçambique optou por um programa de educação bilingue de transição, o que nos conserva em modelos de educação assimilacionistas em que, do ponto de vista do ensino e aprendizagem de línguas, a educação na língua materna da criança é só um meio para se alcançar com rapidez a aprendizagem eficaz da língua portuguesa.

Essa situação mostra que é importante se revisitar o conceito de educação bilingue e, sobretudo, envolver os diferentes atores educacionais, como sejam, os alunos, professores, pais, bem como as lideranças locais, nas reflexões sobre os princípios sociais, pedagógicos e culturais que envolvem a educação bilingue, incluindo o papel das línguas bantu moçambicanas, no processo de ensino e aprendizagem.

Uma mudança significativa que poderá contribuir para a visibilização das línguas moçambicanas e da educação bilingue é a aprovação da nova lei do Sistema Nacional de Educação, a Lei 18/2018 de 28 de Dezembro, que determina que o ensino primário no país se desenvolve em duas modalidades, a monolingue, em português, e a bilingue, em línguas moçambicanas e o português, oficializando-se, assim, a educação bilingue e a aprovação da nova estratégia nacional de expansão da desta modalidade, no país. Como afirma, contudo, Cavalcanti (1999Cavalcanti, M. (1999). Estudos sobre a Educação Bilíngüe e Escolarização em Contextos de Minorias Lingüísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-471. , p. 396) “(…) entre aparecer no documento e ser efetivamente parte da escola existe uma distância grande e essa distância passa pelos cursos de formação de professores assim como passa pelas decisões de políticas lingüísticas e educacionais.”

Não obstante os avanços registados nesta área, a educação bilingue ainda é precária. Por exemplo, no ensino primário há cerca de 7 milhões de crianças, das quais apenas 10% está na educação bilingue. Este é um número ainda exíguo que mostra que a episteme dominante em Moçambique ainda é a ocidentalista, orientada para o desenvolvimento do monolinguismo português, não tendo em conta a diversidade e a interculturalidade que caracteriza o país (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. (1999). Estudos sobre a Educação Bilíngüe e Escolarização em Contextos de Minorias Lingüísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-471. ; Patel, 2012Patel, S. (2012). Um olhar para a formação de professores de educação bilingue em Moçambique: Foco na construção de posicionamentos a partir do lócus de enunciação e actuação. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.).

Os Institutos de Formação de Professores (IFPs) primários, por exemplo, vêm formando professores para leccionar em ambas as modalidades, monolingue e bilingue, porém, as áreas de matemática, ciências sociais e ciências naturais não formam professores para a educação bilingue. Paradoxalmente, a formação de professores em serviço, nessas disciplinas, é da responsabilidade dos formadores da área da literacia. Estes conhecem as línguas locais, mas não dominam as matérias curriculares. Os formadores de matemática e ciências têm o conhecimento cientifico, mas não falam e nem escrevem estas línguas. Este cenário aponta para o descaso de que ainda sofre a educação bilingue, não obstante a existência de leis e estratégias que sustentam o seu desenvolvimento.4 4 Em 2018 foi aprovada a nova Lei do Sistema Nacional de Educação de Moçambique, a Lei No 18/2018 de 28 de dezembro, que determina que a educação bilingue é uma modalidade oficial de ensino em Moçambique. Na sequência desta lei foi desenhada uma Estratégia de Expansão do Ensino Bilingue para o período 2020-2029. No entanto, não obstante se terem dado passos significativos desde que o ensino bilingue iniciou, esta modalidade de ensino é ainda incipiente, sobretudo se comparada à modalidade monolingue em português.

É neste contexto que Cavalcanti (1999Cavalcanti, M. (1999). Estudos sobre a Educação Bilíngüe e Escolarização em Contextos de Minorias Lingüísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-471. , p. 405) chama-nos atenção no sentido de que “…os programas de formação de professores deveriam focalizar, através da observação e da iniciação à pesquisa, a diversidade linguística, uma vez que [...] ela é parte dos mais diversos contextos e salas de aula no país.”

3. Que perspectivas metodológicas adoptar?

Aparentemente, em Moçambique, estamos a caminhar para uma situação de reconhecimento da importância das línguas moçambicanas e da educação bilingue. Concordo, no entanto, com Cavalcanti (2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252). Parábola Editorial. ), ao alertar para o facto de, nesse processo, ter-se o cuidado de não se enredar em armadilhas teórico-metodológicas que levem a olhar o outro, em contextos minoritários ou minoritarizados, com condescendência.

É o que acontece com a educação bilingue em Moçambique. É frequente ouvir-se, por exemplo, comentários do tipo: “Ah! São esses do bilingue!”, “São vocês que andam nessas brincadeiras do bilingue!” Isso acontece no MINEDH, no INDE, nas universidades e em tantos outros lugares. O mais interessante é que o mesmo não acontece nas comunidades locais, onde a modalidade bilingue é bem vista e estimada pelos pais. Frequentemente, quando Organizações Não-Governamentais (ONGs) ou governamentais parceiras do MINEDH formam com robustez pedagógica e profissional professores de educação bilingue, técnicos dos serviços distritais de educação transferem-nos para as escolas monolingues, colocando professores sem nenhuma preparação no lugar dos transferidos.

Ainda é preciso criar uma consciência político-educacional em Moçambique para que a educação bilingue seja vista numa perspetiva émica (Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252). Parábola Editorial. ; Smith, 1999Smith, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Zed Books Ltd. ). No processo de visibilizar esses contextos, Menezes de Souza (2004Menezes de Souza, L. M. (2004). Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In B. Abdala (Ed.), Margens da Cultura (pp. 113-133). Boitempo. ) refere que “(…) o significado é construído numa dinâmica de referências e diferenças em relação a outros discursos ideológica e historicamente construídos.” O mesmo acontece com as pesquisas educacionais.

Referindo-se à importância de dar voz aos participantes, como forma de valorizar ao local, e concernente à ideia do desenvolvimento de epistemes sobre o outro não-ocidental, Spivak (2010Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG. , p.14) alude ao facto de que o discurso do subalterno, do colonizado, é invariavelmente, “(...) intermediado através de e pela voz de outrem, que se coloca em posição de reivindicar algo em nome de um(a) outro(a).” A autora, acusada por alguns académicos de fomentar o essencialismo estratégico, parece pretender, com esta atitude, colocar-nos perante o complexo dilema se o subalterno pode ou não falar.

A esse respeito, Bhabha (1994Bhabha, H. (1994). The Other Question: The Location of Culture. Routlegde.) considera ser esta uma manobra familiar do conhecimento teórico praticado e propalado pelo Ocidente, em que se garante que o conhecimento da diferença cultural exclua o Outro [maiúsculo do autor]. A esse Outro é-lhe tirado, desse modo, “(...) o poder de significar, de negar, de iniciar seu desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional” (Bhabha, 1994Bhabha, H. (1994). The Other Question: The Location of Culture. Routlegde., p. 54).

A diferença e a alteridade tornam-se, assim, a fantasia de um certo espaço cultural ou, de fato, a certeza de uma forma de conhecimento teórico que desconstrua a “vantagem” epistemológica do ocidente, possibilitando que o outro possa “efetivamente falar” pela sua própria voz. Desse modo, estaríamos a subverter a ideia em como o subalterno não pode falar (Spivak, 2010Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG. ). Aliás, parece-me que a possível intenção da autora ao “essencializar” a abordagem sobre as subalternidades é chamar atenção para essas questões, daí que seja descrito como essencialismo estratégico. Assim, considero que o subalterno pode falar, dependendo do seu lugar histórico e social.

De facto, em estudos que mostram uma perspectiva imperialista e ocidentalista da invenção do Oriente, Said (2003Said, E. (2003). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras., p.15) defende que existe uma diferença entre um conhecimento do outro “... por razões de coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo de conhecimento por razões de controle e dominação externa.” Desse modo, o autor argumenta a favor de pesquisas alternativas contemporâneas que examinem como se pode estudar outras culturas e outros povos em perspectivas emancipatórias baseadas em epistemologias invencionistas sobre esse outro não ocidental.

Por seu turno, Smith (1999Smith, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Zed Books Ltd. , p. 33) aborda a questão da descolonização das metodologias de pesquisa, apontando que:

O mapa do mundo reforça o nosso lugar na periferia desse mundo, embora continuássemos considerados parte do império. Isso incluía ter que aprender outros nomes, símbolos para a nossa própria terra. A nossa orientação do mundo estava sendo redefinida na medida em que estávamos sendo sistematicamente excluídos da escrita da nossa própria história.

Ainda de acordo com a autora, as implicações pedagógicas para o acesso a formas alternativas para escrever a história das consideradas periferias implica uma revisita sobre como ela foi escrita pelo ocidente e sob o olhar ocidental. Nesse sentido, é necessária uma teoria ou abordagem que nos ajude a entender e agir de acordo com a história da colonização. Em decorrência disso, a autora começa por criticar o ponto de vista ocidental da história da colonização, argumentando que

[...] a descolonização dessa metodologia não significa, contudo, a total rejeição de toda a teoria, ou pesquisa ou conhecimento ocidental, mas sim, é sobre descentralizar as nossas preocupações e visões mundiais e daí vir a conhecer e entender a teoria e pesquisas sobre o nosso ponto de vista e propósitos (Smith, 1999Smith, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Zed Books Ltd. , p. 39).

As desigualdades entre as modalidades monolingue e bilingue em Moçambique trazem à tona a questão de que as epistemes excludentes não ocorrem apenas de fora para dentro, mas também no local. Por essa razão, não faço apologia ao lado oposto, radicalizando a questão da pesquisa. Por outras palavras, há aspectos dentro de um método ou métodos que podemos seleccionar, fazendo as adequações necessárias, de modo a tornar a pesquisa relevante ao contexto em que o pesquisador adopta uma postura émica, e em que os pesquisados são vistos como sujeitos e não simples objectos de estudo.

Nessa perspectiva, alinho-me a Pennycook (1994, p. 301) ao afirmar que “… nenhum conhecimento, nenhuma língua e nenhuma pedagogia é neutra ou apolítica”. É, por isso, necessário desenvolver políticas linguísticas, incluindo as educacionais, que perspectivem o desenvolvimento de um currículo alinhado com materiais instrucionais que tenham em conta os diferentes cenários do ensino de línguas moçambicanas e o português, bem como outras línguas africanas e de origem europeia.

4. Algumas considerações

Com Marilda aprendi muito, sobretudo como desenvolver pesquisas alternativas contemporâneas que examinem como se pode estudar outras culturas e outros povos em perspectivas emancipatórias baseadas em epistemologias invencionistas sobre esse outro não ocidental. Aprendi a importância de se realizar pesquisas de dentro com participação ativa dos membros da própria comunidade, numa perspetiva émica (Smith, 1999Smith, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Zed Books Ltd. ; Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252). Parábola Editorial. ).

Algumas dessas medidas, devo dizer, implicam revisitar a maneira como a nossa história foi escrita pelo ocidente e sob o olhar ocidental. Implica desenvolver teorias ou abordagens que nos ajudem a entender e agir de acordo com nossas histórias e culturas, envolvendo os participantes das pesquisas a partir do seu lócus de enunciação, isto é, descolonizar metodologias! Isso não significa, contudo, o não reconhecimento da contribuição dos ensinamerntos ocidentais.

Aí sim, estaremos a caminho de começar a descolonizar as metodologias de pesquisa, não permitindo que as pessoas de fora nos digam a nossa história, mas que partilhemos experiências e saberes.

Para finalizar retomo a epígrafe com que iniciei o artigo para referir que o sul é real, que existe, mas há muitos e diferentes sul, isto é, cada país é diferente, vale por si próprio e dentro do mesmo país também há realidades diferentes. O reconhecimento e o respeito pela diferença é uma condição necessária para começarmos a fortalecer epistemes que não subalternizem o outro.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à Ana Cecília Cossi Bizon (Unicamp) e ao Daniel do Nascimento e Silva (UFSC) pelo convite para participar da homenagem à Marilda Cavalcanti.

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  • 2
    Considero o termo intercultural mais apropriado quando falamos de epistemologias do Sul, segundo a visão de Cavalcanti (1999Cavalcanti, M. (1999). Estudos sobre a Educação Bilíngüe e Escolarização em Contextos de Minorias Lingüísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-471. , 2011), Cavalcanti & Bortoni (2007) e Santos (1999), no sentido do diálogo intercultural entre as várias etnias e culturas e não apenas no sentido de muitas culturas que não dialogam entre si.
  • 3
    Alio-me a César & Cavalcanti (2007César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras. ) na sua visão de língua como caleidoscópio, o que significa reconhecer um pluralismo linguístico que abarca todas as línguas e suas variantes sem distinções dicotómicas do tipo língua e variedade, língua e norma, língua e dialeto, resinificando, deste modo, os conceitos e seus derivados, como bilinguismo, língua materna, língua segunda, e outros. Essa visão revela, por conseguinte, um alinhamento com epistemologias do Sul na definição e prossecução de políticas linguísticas educacionais, incluindo as de Moçambique. Reforçando, Cavalcanti & Maher (2018Cavalcanti, M. C., & Maher, T. (Eds.). (2018). Multilingual Brazil: Language resources, identities and ideologies in a globalized world. Routledge., p. 14) dizem que “as línguas não são acções e interacções humanas preexistentes; elas são geradas e moldadas por elas.”
  • 4
    Em 2018 foi aprovada a nova Lei do Sistema Nacional de Educação de Moçambique, a Lei No 18/2018 de 28 de dezembro, que determina que a educação bilingue é uma modalidade oficial de ensino em Moçambique. Na sequência desta lei foi desenhada uma Estratégia de Expansão do Ensino Bilingue para o período 2020-2029. No entanto, não obstante se terem dado passos significativos desde que o ensino bilingue iniciou, esta modalidade de ensino é ainda incipiente, sobretudo se comparada à modalidade monolingue em português.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2021
  • Aceito
    27 Set 2021
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