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PINTO, R.; CABRAL, A. L. T.; RODRIGUES, M. G. S. (org.). Linguagem e Direito: perspectivas teóricas e práticas. São Paulo: Contexto, 2016. ISBN: 978-85-7244-951-9. 240p.

PINTO, R.; CABRAL, A. L. T.; RODRIGUES, M. G. S.. (org.). Linguagem e Direito: perspectivas teóricas e práticas. São Paulo: Contexto, 2016. ISBN: 978-85-7244-951-9. 240p.

Palavras-chave:
Linguagem; Argumentação jurídica; Linguística forense

Key-words:
Language; Legal arguments; Forensic linguistics

Atualmente, no campo da Linguística Aplicada, muitos pesquisadores têm focalizado seus estudos e discussões na linguagem jurídia. Nessa perspectiva, por meio de uma abordagem interdisciplinar, a obra intitulada “Linguagem e Direito: perspectivas teóricas e práticas”, organizada por Rosalice Pinto, pesquisadora do Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Cedis), Ana Lúcia Tinoco Cabral, pesquisadora e professora titular da Universidade Cruzeiro do Sul, e Maria das Graças Soares Rodrigues, professora associada III do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estabele uma importante relação dialógica entre o Direito e as Ciências da Linguagem onde pesquisadores de ambas as áreas enfocam desde a petição inicial à sentença final, mostrando as múltiplas facetas desse diálogo.

Para tanto, as organizadoras reuniram contribuições de 19 autores de 13 diferentes instituições e centros de pesquisa de ensino superior no Brasil e em Portugal, o que já evidencia a relevância da obra, que está dividida em quatro partes:

A primeira parte, intitulada “A linguagem no e para o Direito”, apresenta reflexões de especialistas tanto do Direito quanto das Ciências da Linguagem, os quais mostram a importância da interdisciplinaridade nas escolas de Direito e da linguagem para a prática jurídica. Na sequência, a segunda parte traz trabalhos sobre a linguagem empregada em contextos jurídicos, como tribunais e delegacias, espaço em que prevalece a interação face a face.

A terceira parte, denominada “A linguagem em documentos jurídicos”, traz a análise de textos jurídicos produzidos nos contextos português e brasileiro (sentenças, petições iniciais e contestações) a partir de perspectivas textuais diversas. Por fim, e não menos importante que as demais, a quarta e última parte, “A linguagem no ensino da prática jurídica”, apresenta contribuições de docentes que trabalham com a linguagem jurídica em cursos de Protuguês/Redação para estudantes das escolas de Direito.

Por meio de uma abordagem pragmática, discursiva, textual, enunciativa e linguística, trata-se de uma obra de extrema relevância, pois os leitores dispõem de reflexões de especialistas nas áreas de Direito e Ciências da Linguagem numa obra esta de cunho interdisciplinar e inovador, evidentedentemente necessário ao contexto de ensino e aprendizagem do Direito.

Na primeira parte da obra, o texto “O legislador como poeta: alguns apontamentos sobre a teoria flusseriana aplicados ao Direito”, Paulo Barros Carvalho, doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e professor de Direito Tributário nos cursos de graduação, mestrado e doutorado da USP desde 1997, traz reflexões sobre a linguagem como constitutiva do saber na perspectiva hermenêutica, a linguagem prescritiva em função fabuladora: a poesia no Direito, a conversação como axioma da atividade exegética e ainda discorre sobre a interpretação dos fatos: delimitação do conteúdo de “fato puro” e “fato jurídico”

Entre tantas afirmações relevantes, o autor escreve que nas ficções, torna-se evidente que o Direito não existe para coincidir com a realidade, mas para nela incidir, governando e dando orientação axiológica ao fluxo das interações entre sujeitos. Afirma, também, que a intertextualidade e a inesgotabilidade são axiomas da interpretação. Trata-se, segundo ele, de um trajeto, de uma atividade, de um processo que ocorre, como produto, a compreensão da mensagem.

Ainda na primeira parte, o texto “Direito como sistema de normas e Direito como sistema de práticas: aportes teóricos e empíricos para a refundação da “ciência” do Direito (em diálogo com a Linguística Aplicada), de autoria de João Pedro Pádua, professor adjunto na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), traz uma reconstrução da história do nascimento de duas maneiras tradicionais e complementares de ver o que o Direito é. Conforme argumenta o autor, de um lado o Direito é “doutrina” ou a “dogmática” do Direito um conjunto de conceitos adaptados da filosofia medieval e usados para construir grandes proposições lógicas e interpretativas sobre normas jurídicas, seu alcance e seu conteúdo normativo (p.42).

De outro lado, segundo ele, o Direito postula a sua posição de “ciência”, buscando rigor na escolha do seu objeto específico, na constituição do seu método e lógica de pesquisa e na construção de sua linguagem “científica”. Nas palavras do autor evidencia-se, portanto, que a convergência entre essas duas vertentes é a concepção do objeto do Direito como um sistema de normas e como tal, apresenta defi­ciências epistemológicas e ontológicas. A exemplo dos demais textos que compõem a obra, esta discussão é rica em exemplos ilustrativos, o que facilita a leitura.

Na segunda parte do livro, o texto “A pré-estase como “preparação do terreno” em deliberações jurídicas” abre as reflexões sobre a linguagem em interações no contexto jurídico. De autoria de Rubens Damasceno-Morais, pesquisador em Ciências da Linguagem, especificamente em argumentação, retórica e estudo de interações verbais, professor na Universidade Federal de Goiás (UFG-Goiânia), o texto analisa mecanismos de gestão do desacordo utilizados por magistrados, durante a interação face a face, nos momentos em que divergência de opiniões surgem, durante deliberações argumentativas na Segunda Instância de um tribunal brasileiro. O foco da discussão é, portanto, o funcionamento pragmático dos momentos de discordâncias entre experts.

O autor afirma que o universo judiciário é indiscutivelmente repleto de rituais estritamente elaborados e que escapam ao cidadão comum, que, além de nunca ser coadjuvante nesse mundo, nem sempre compreende de fato o décor. Esse posicionamento atesta a necessidade da simplificação da linguagem jurídica como forma de democratizar/pluralizar o acesso ao Direito/Justiça.

Dando sequência às discussões, Conceição Carapinha, professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e pesquisadora nas áreas da Linguística Portuguesa e de Estudos de Linguística Geral e Aplicada, apresenta o texto “Desacordo e conflito: uma análise pragmática das estratégias de descortesia em tribunal”. A autora inicia definindo a cortesia como uma forma de comportamento, desenvolvida em sociedade, para evitar divergências e permitir preservar a harmonia social. Entretanto, ela entende que esse comportamento nem sempre é adotado, o que pode trazer sérias implicações no relacionamento entre as pessoas. O discurso constitui, segundo a autora, um dos meios usados na concretização dessas estratégias de descortesia. Por meio de análise de corpus, ela procura mostrar a necessidade de evitar um conflito aberto com o leigo, que seria imediatamente travado pelo juíz, o que força os profissionais da área jurídica a evitar as estratégias de descortesia direta.

Ela menciona ainda que a maior parte das estratégias de descortesia encontradas se integra no âmbito das que são sancionadas pela instituição, isto é, das que constituem formas de descortesia estratégica, embora os leigos nem sempre se sintam como tal. De fato, esse gênero discursivo é intrinsicamente conflitual e opressivo, e os profissionais sabem bem como obter os efeitos desejados, sempre sob a proteção do poder que lhes é dado pela instituição (p.89).

“Formulação e argumentação na análise de uma audiência de conciliação no Procon” encerra a segunda parte do livro. Paulo Cortes Gago, professor e pesquisador do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Amitza Torres Vieira, professora adjunta na Universidade Federal de Juíz de Fora, discutem o uso de formulações na argumentação dos envolvidos em uma situação de conflito. Apresentam uma metodologia empírica para análise de dados orais, que pode ser empregada no contexto jurídico, tomando como exemplo uma audiência de conciliação no Procon.

Por meio de excertos, ilustram a trajetória do processo argumentativo de um caso de venda casada, envolvendo um consumidor e uma instituição financeira, que lhe “forçou” a aderir a um seguro-saúde. Os autores mostram a posição e sustentação inicial da conciliadora do Procon (foi venda casada) em favor do consumidor, e a posição inicial de negação do ocorrido pelo reclamado (não foi venda casada) e sua sustentação (foi desejo do consumidor), concordância parcial com a proposta da conciliadora (o cancelamento), at´da reclamação (devolução total). No caso ilustrativo analisado, houve acordo e o consumidor ficou satisfeito.

A terceira parte da obra é composta por cinco textos, os quais abordam a linguagem em documentos jurídicos. O primeiro deles, denominado “Sequências textuais descritivas e suas funções nas sentenças judiciais”, escrito por Sueli Cristina Marquesi, professora titular de língua portuguesa da PUC-SP e da Universidade Cruzeiro do Sul, discute a estrutura composicional de textos oriundos do contexto jurídico, com ênfase nas sequências textuais descritivas e seu papel na orientação argumentativa em senteças judiciais, marcadamente a sentença criminal.

A professora identifica e analisa as sequências textuais descritivas presentes em uma sentença judicial em que a culpa do réu era indubitável, tendo em vista que fora preso em flagrante. A sentença objeto de análise teve grande repercussão na mídia nacional, e os crimes imputados provocaram grande comoção na opinião pública. Como podemos perceber, ao longo do livro travam-se diferentes discussões nas quais os autores elucidam possíveis dúvidas do leitor através exemplos ilustrativos e um arcabouço teórico que dá sustentação às reflexões e conclusões apresentadas.

O texto seguinte, “O papel da polarização discursiva no processo de negociação de faces em processo judicial de violência contra a mulher”, de autoria de Micheline Mattedi Tomazi, professora do Departamento de Linguas e Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais, e de Gustavo Ximenes Cunha, professor adjunto do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Sociedade, da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), demonstra a importância da questão do gerenciamento de faces pelo viés da polarização em casos que envolvem violência conjugal.

Os autores procuram demonstrar, após um estudo de caso, que as estratégias de polarização discursiva são empregadas no depoimento do agressor para fundamentar crenças avaliativas negativas contra a mulher agredida. O depoimento do agressor reforça a imagem da mulher como inferior ao homem e como causadora e responsável pelas agressões de que é vítima. Segundo os autores a retextualização empregada na passagem do oral para o escrito constitui um interessante processo a ser analisado discursivamente, pois provoca reflexões de ordem tanto linguística quanto ética, uma vez que um documento pouco fiel aos depoimentos dados pode causar problemas às partes envolvidas, como uma condenação ou absolvição equivocada.

Na sequência, “Referenciação em textos jurídicos: da argumentação da língua à argumentação no gênero”, escrito por Leonor Werneck dos Santos, docente de língua portuguesa da UFRJ, Rosalice Pinto, pesquisadora do Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Cedis) e Ana Lúcia Tinoco Cabral, pesquisadora e professora titular da Universidade Cruzeiro do Sul, propõe uma reflexão sobre as estratégias referenciais argumentativas empregadas, no discurso jurídico, pelas partes envolvidas, com o a intenção de apoiar seu próprio discurso ou de refutar o do adversário. Por meio da análise de petições iniciais, as autoras afirmam ter como objtivo contribuir para o ensino da leitura e da produção de textos do contexto jurídico, de forma que futuros profissionais da área possam refletir sobre os textos jurídicos comuns à sua prática.

Ao explicitarem o objetivo do texto, as autoras evidenciam a relevância do material para docentes e graduandos em Direito, pois apresentam uma análise que conduz o leitor à reflexão sobre a utilização de estratégias argumentativas em petições iniciais, textos comuns no dia a dia da prática jurídica.

Encerrando a terceira parte da obra, Juliana Camargo de Souza, professora na Unisinos-RS, e Maria Eduarda Giering, professora-pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e no Curso de Letras da Unisinos-RS, revisam noções importantes sobre o texto argumentativo e discutem um texto de opinião, identificando neste as etapas de construção que possibilitam a compreensão da organização ou esquematização argumentantativa. As autoras ressaltam que a leitura dos textos argumentativos de diferentes gêneros é essencial nas atividades de linguagem nos cursos de Direito. Salientam ainda que tais textos sejam fundamentados em posicionamentos orientados para a possibilidade de contraposição na argumentação que, via de regra, instaura-se nas situações de comunicação orais e escritas vividas pelo operador do Direito (p.194).

A quarta parte aborda a linguagem no ensino da prática jurídica por meio de dois artigos. “História jurídica e argumentação: a construção de argumentos jurídico-dogmáticos”, elaborado por Flavia Portella Püschel, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Ana Elvira L. Gebara, professora da Universidade Cruzeiro do Sul e da FGV, suscita uma reflexão sobre as condições dos fatos que chegam até o estudante de Direito para que este possa transformar a sucessão de elementos colhidos de cada um dos envolvidos em uma história jurídica, o que as autoras descrevem como necessária para o desenvolvimento desse futuro operador do Direito nas diferentes funções que exercerá na esfera jurídica.

A relação entre as histórias jurídicas e o desenvolvimento do argumento jurídico-dogmático é complexa, conforme mencionado pelas autoras. Constituem a articulação dos diferentes tipos textuais e de funções persuasivas ao lado das informativas, o que oportuniza que o estudante construa a “ponte” entre o conhecimento baseado no senso comum para o conhecimento qualificado do operador do Direito. Para elucidar a questão, o texto apresenta algumas estratégias que podem permitir o diálogo entre as disciplinas e amplie o desenvolvimento das habilidades dos estudantes.

O texto “Direito e Literatura: um exercício de argumentação jurídica a partir da leitura de Os irmãos Karamazov”, de Ana Márcia Martins da Silva, professora da PUCRS e Janaína Baladão, também professora da PUCRS, associa a prática da argumentação na Oficina de Argumentação Oral, à leitura de “Um erro judiciário”, de Os irmãos Karamazov, o que teve como objetivo resgatar a relação dialógica entre os mundos do aluno, do autor e o da obra. As autoras relatam resultados de um sarau literário realizado com estudantes de Direito e, conforme pontuam, demonstrou que é possível dinamizar uma disciplina acadêmica por meio de uma sala de leitura na qual a “conversa” entre os saberes ocorre por meio de uma obra literária (p.231).

Este texto evidencia, conforme propósito das organizadoras, o caráter interdisciplinar da obra, pois as autoras mostram que o encontro do Direito e da Literatura podem proporcionar a melhoria na competência de leitura do acadêmico de Direito. Conforme mencionado no texto, professores têm usado como ferramenta de trabalho a obra literária em si para promover um exercício de argumentação jurídica entre os discentes, abrindo um espaço de reflexão e crítica que os ajuda a pensar a realidade e buscar soluções para conflitos de sua área de atuação.

Trata-se de uma obra essencial ao contexto acadêmico de Direito, uma vez que reúne reflexões teórico-práticas de estudiosos das ciências da linguagem e do Direito, e pesquisadores renomados de diferentes insituições mostram a possibilidade e importância do diálogo entre as duas áreas para a formação do futuro operador do Direito. Os exemplos ilustrativos tornam os textos que compõem o livro atrativos e elucidam dúvidas comuns não só ao espaço da sala de aula de escolas de Direito, mas também àqueles que já atuam em diferentes contextos jurídicos, onde a argumentação pela linguagem está sempre presente e pode solucionar conflitos entre os sujeitos das relações.

Por fim, é possível assegurar que as organizadoras foram coerentes ao afirmarem que os leitores dispõem de uma obra especializada e ao mesmo tempo plural, interdisciplinar e inovadora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2016
  • Aceito
    22 Ago 2017
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