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Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora Unesp.

Butler, J.. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora Unesp.

RESUMO

O presente texto é uma resenha crítica da obra Discurso de ódio: uma política do performativo, de Judith Butler. Cada um dos capítulos da obra são comentados pelo resenhista, que identifica seus principais postulados e noções, que lhe reconhece os méritos e que ainda indica pontos nos quais a reflexão de Butler poderia estar mais bem desenvolvida. As mais fundamentais contribuições do livro resenhado consistem em mostrar elementos essenciais do funcionamento do discurso de ódio, em apontar para seu poder deletério, mas também e principalmente para suas falhas e para as possibilidades de lhe resistir e ainda em indicar os riscos de abordá-lo como puro ato individual de fala.

Palavras-chaves:
Discurso de ódio; Judith Butler; atos de fala

Em Discurso de ódio: uma política do performativo, Judith Butler (2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP.) trata das forças ilocucionárias e perlocucionárias presentes em insultos, ofensas e ameaças e ainda examina as circunstâncias históricas em que essas violências de linguagem foram produzidas. Sua abordagem crítica de atos de fala do discurso de ódio compreende uma consistente reflexão sobre identidades e diferenças entre a linguagem e as ações. Além de paratextos, como “Agradecimentos”, “Referências bibliográficas” e “Índice remissivo”, a obra é constituída de uma longa Introdução e destes quatro capítulos: “1. Atos incendiários, discursos injuriosos”; “2. Performativos soberanos”; “3. Palavra contagiosa: a paranoia e a ‘homossexualidade’ nas Forças Armadas”; e “4. Censura implícita e agência discursiva”.

As reflexões de Butler, um dos nomes mais conhecidos da filosofia contemporânea e autora incontornável nos estudos de gênero (Butler, 2018Butler, J. (2018). Problemas de gênero. Civilização Brasileira.), sobre o discurso de ódio consideram as relações entre a linguagem, as ações e os corpos dos que odeiam e dos que são odiados. Nessas considerações, a filósofa indica, sem subscrevê-los integralmente, vários autores e obras que defendem as ideias de que o discurso de ódio fere os insultados, de que “as palavras machucam” e de que, enfim, o efeito de um insulto racial, por exemplo, “é ‘como levar um tapa na cara’. Essas formulações sugerem que a injúria linguística atua de forma similar à injúria física” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 16).

Com vistas a avançar em seu pensamento sobre a dimensão política dos atos performativos de fala em que se materializa o discurso de ódio, Butler articula postulados e noções de John Austin, Louis Althusser, Jacques Derrida, Shoshana Felman, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, entre outros. Ainda que cada um desses autores o tenha feito a seu modo, todos afirmaram que a produção de discursos não é somente uma ação, que perfaz ações, mas também e mais fundamentalmente que essa produção consiste numa prática que constitui relações sociais e sujeitos.

Em boa medida, é no bojo desse upgrade discursivo que Butler situa-se para tratar do discurso de ódio, em suas várias modalidades. A linguagem fere-nos, segundo Butler, porque somos seres linguísticos, seres cuja existência social e subjetiva deriva de processos de reconhecimento e interpelação, nos quais a nomeação de si e do outro desempenha funções essenciais. Por essa razão:

ser chamado de forma injuriosa não é apenas abrir-se a um futuro desconhecido mas desconhecer o tempo e o lugar da injúria, desorientar-se em relação à própria situação como efeito desse discurso. O que se revela no momento de tamanha ruptura é exatamente a instabilidade do nosso ‘lugar’ na comunidade de falantes. (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 15-16).

Nesse sentido, a injúria linguística fere o injuriado, mas não é idêntica ao ataque físico. Isso não significa, contudo, que não exista uma dimensão somática na “dor linguística”. O discurso de ódio fere seu destinatário em sua alma, mas também em seu corpo. Entre outros efeitos, “os nomes pelos quais o sujeito é chamado parecem incutir o medo da morte e a incerteza acerca de sua possibilidade de sobreviver” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 18). A violência de linguagem não é a própria violência física, mas i) já é em si mesma uma violência e não uma sua mera representação, ii) concorre direta ou indiretamente e de diversas formas para sua execução e iii) nega, de modo análogo à agressão corporal, a linguagem aos violentados, recusando, assim, a reconhecer integralmente sua própria condição humana.

Butler indica que as afirmações a respeito das relações entre a linguagem e as ações podem provir de posições ideológicas antagonistas, mas serem contíguas e praticamente idênticas no que sustentam: os movimentos e sujeitos antirracistas postulam a equivalência entre os ataques verbais racistas e os atos de racismo, ao passo que os movimentos e sujeitos reacionários também a postulam em sua defesa da interdição da palavra “aborto” e da autodeclaração de homossexualidade nas Forças armadas dos EUA, como se, respectivamente, elas fossem já um primeiro ensejo para a suspensão da vida intrauterina e para o próprio ato homossexual (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 44).

Há ainda um alerta de Butler para os riscos de uma adesão irrestrita à ideia de que os discursos de ódio têm força ilocucionária e correspondem a atos de violência. Eis dois desses riscos: a superestimação da eficácia desses discursos poderia implicar dificuldade em sua desconstrução; e a concessão de uma prerrogativa ao Estado para desempenhar funções censórias poderia ser revertida contra os próprios grupos vulneráveis. Dessas concepções das forças ilocucionárias e perlocucionárias dos atos de fala derivam demandas e recusas de intervenção do Estado:

os esforços que visam demonstrar que o discurso é uma conduta são utilizados pelos tribunais conservadores para endossar a ideia de que o discurso sexual é um ato sexual; no entanto, esses tribunais tendem a questionar a relação entre o discurso e a conduta em assuntos relacionados à linguagem racista. (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 47)

Essa posição de Butler tem a vantagem de indicar-nos que os discursos de ódio não são todo-poderosos, que eles têm limites em seu alcance e falhas em seus rituais e ainda em suas pretensões de soberania de si e de subordinação do outro. Mas, ela também tem estes inconvenientes: pode fazer-nos subestimar a força desses discursos e todas as inibições, dores e traumas que eles provocam; e pode ainda fazer corresponder a abordagem crítica e a resistência política a um voluntarismo que poderia dispensar conquistas, proteções e garantias institucionais, como se elas se reduzissem à “censura patrocinada pelo Estado” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 75).

Esses riscos compreendem ainda outros perigos tratados nos quatro capítulos da obra. No primeiro, “Atos incendiários, discursos injuriosos”, Butler examina a decisão da Suprema Corte dos EUA no julgamento de um “adolescente branco” que queimou “uma cruz em frente à casa de uma família negra” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 91). O argumento fundamental em que assentou a assombrosa decisão era o de que “a cruz em chamas não era um exemplo de ‘palavra belicosa’, mas de um ‘ponto de vista’ que faz parte do ‘livre mercado de ideias’, e que tais ‘pontos de vista’ eram categoricamente protegidos pela Primeira Emenda” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 91). Assim, a determinação “do que será ou não entendido como discurso protegido é, ela mesma, um tipo de discurso, o qual implica o Estado no próprio problema do poder discursivo do qual está investido para regular, sancionar e restringir o discurso” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 93).

Além desse monopólio estatal de poder sobre o discurso, há, segundo Butler, reduções e distorções ocasionadas por concepções exclusivamente linguísticas e/ou por abordagens estritamente jurídicas do discurso de ódio, em detrimento de uma visada histórica, social e política desse fenômeno. O aprofundamento da reflexão sobre essas reduções e distorções encontra-se particularmente no segundo capítulo da obra: “Performativos soberanos”. Ali, uma vez mais, aponta-se para a relação entre o discurso de ódio e certa concepção de Estado, dotado de poderes soberanos. Essa relação é decisiva, já que “o Estado produz ativamente o domínio do discurso publicamente aceitável, demarcando o limite entre os domínios do dizível e do indizível e conservando o poder de estipular e manter essa linha de demarcação” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 133). Por assentar-se nesse modelo de Estado e na ideia correlativa de atos de fala analogamente soberanos, a linguagem injuriosa é investida de força performativa e, assim, concorre para: i) amenizar a inquietação provocada por um poder soberano; ii) situar o poder na linguagem da injúria; iii) atribuir-lhe o estatuto de um ato; e iv) instituir esse ato como conduta individual de um sujeito.

Racismo, ódio de classe, machismo, homofobia e atrocidades afins não podem ser reduzidos a algo pontual e pessoal, porque são constituições históricas e sociais. Reduções e distorções dessa natureza ocorrem, quando circunscrevemos o poder deletério desse discurso à produção particular de um ato injurioso de linguagem e quando atribuímos à injúria o estatuto de um ato e situamos “esse ato na conduta específica de um sujeito” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 135). A necessária precaução ante tais reduções e distorções e o devido enfoque a ser dispensado ao discurso de ódio não correspondem, evidentemente, à desoneração de responsabilidade do indivíduo e à sua anistia no plano jurídico. Essa precaução e esse enfoque compreendem, antes, o imperativo reenquadramento do problema, para que busquemos evitar este risco:

No momento em que a cena do racismo é reduzida a um único falante e seus ouvintes, o problema político consiste em traçar o percurso do dano a partir do falante até a constituição psíquica/somática de quem ouve o termo ou daquele a quem tal termo é dirigido. As estruturas institucionais complexas do racismo, e também do machismo, são repentinamente reduzidas à cena do enunciado, e o enunciado, não mais a sedimentação da instituição e do uso anteriores, é investido do poder de estabelecer e manter a subordinação do grupo ao qual se dirige. (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 137)

Além disso, existe a ameaça das reapropriações reacionárias de ideias linguísticas presentes e atuantes nos movimentos de maiorias minorizadas (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 131). Não só a língua, pensada pela Análise do discurso como base relativamente autônoma para os processos discursivos, mas também diversas ideias linguísticas e distintos recursos argumentativos estão à disposição de diferentes posições políticas e discursivas. A ideia linguística de acordo com a qual uma fala já é uma ação, de que um enunciado racista já é um ato racista, é reapropriada por reacionários que vão afirmar que uma autodeclaração de homossexualidade já é em si um ato sexual, que deve ser interditado em contextos públicos.

Com Butler, reiteramos a necessidade de identificar as posições discursivas dos enunciadores como condição de nossa crítica aos discursos de ódio. Nesse sentido, indicar o papel decisivo desempenhado pela força deletéria da linguagem no racismo, no machismo, na homofobia e em fenômenos afins não implica necessariamente uma redução destes últimos a simples atos linguísticos nem uma abordagem pontual e pessoal, jurídica e estritamente linguística de suas dimensões e de seus funcionamentos históricos, sociais e políticos. Estes últimos são constitutivos da “política do performativo” e de suas força e eficácia, que provêm do fato de que o discurso de ódio é uma citação de si mesmo: “é só porque já conhecemos sua força, em razão de suas instâncias anteriores, que sabemos que ele é ofensivo hoje e que nos preparamos para suas futuras invocações” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 138). Mas, a iterabilidade do discurso de ódio é dissimulada pelo fato de um sujeito proferir pontualmente seus enunciados. Reconhecer esse funcionamento concorre para que não subestimemos o poder da linguagem e para que redimensionemos os riscos indicados por Butler, desde que a abordagem desse fenômeno linguístico ressalte o fato de que a história, a sociedade e a política são constitutivas da produção da linguagem.

Ora, o poder performativo de uma fala odiosa não é o mesmo em diferentes condições históricas e ao ser produzida por sujeitos diversos. Não há, portanto, um único poder performativo no discurso de ódio. Por essa razão, constatamos um seu recrudescimento geral em contextos populistas autoritários de ascensão da extrema-direita (Piovezani; Gentile, 2020Piovezani, C., & Gentile, E. (2020). A linguagem fascista. Hedra.). Em situações como essa, e diante de falas de líderes e porta-vozes que concentram considerável poder em suas intervenções, a aposta no fracasso a que estão sujeitos os performativos, tal como Butler identifica em Austin e Derrida, pode se tornar temerária e inspirar resignação. Em algumas passagens de sua obra, Butler parece superestimar essa possibilidade do fracasso dos atos de fala no discurso de ódio, fixando-se tanto em poderes da polissemia da linguagem quanto na relativização do poder do sujeito que o produz e na projeção de uma grande força nos odiados, quando das investidas para resistir-lhe e invertê-lo (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 148-160).

Em resumo, uma das ideias-chave de Butler consiste em sua recusa de conceder aprioristicamente força ilocucionária e eficácia perlocucionária aos enunciados do discurso de ódio:

Se admitirmos que o discurso de ódio é ilocucionário, nós aceitamos igualmente que as palavras causam danos imediata e automaticamente, que a cartografia social do poder é a sua causa e que não somos obrigados a precisar os efeitos concretos que o discurso de ódio produz. (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 171)

Seu ceticismo quanto à fusão completa do discurso com a conduta assenta-se na ideia de que o poder de agência do discurso de ódio provém da própria metalinguagem a seu respeito: são os discursos sobre os insultos e as intimidações linguísticas que lhes conferem a capacidade de ferir injuriados e ameaçados. Assim, a força e a debilidade do discurso de ódio se concentram num mesmo elemento, a saber, no que poderíamos chamar de uma “teoria performativa do ato performativo de fala”. A indicação de certas propriedades desse ato de linguagem que materializa o discurso de ódio já é um “fazer”, cujo efeito ilocucionário e perlocucionário compreende a atribuição ao discurso de ódio de uma força de agir sobre o odiado. É com base nesse princípio que Butler sustenta que a desconstrução dessa linguagem deletéria ocorre com uma sua repetição a partir de outra posição enunciativa: “sua repetição é tanto a continuação do trauma quanto o que marca um distanciamento dentro da própria estrutura do trauma, sua possibilidade inerente de ser diferente” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 172).

Um contraponto a essa possibilidade de resistência ao discurso de ódio e de sua desconstrução é o modo como as Forças armadas dos EUA passaram a distinguir orientação sexual, agora tolerada, e conduta homossexual, ainda e sempre interditada. Esse é o ponto de partida de Butler para o desenvolvimento do terceiro capítulo de seu Discurso de ódio. Em suas “Novas diretrizes de políticas sobre homossexuais nas Forças Armadas”, publicadas pelo Pentágono em julho de 1993, há o seguinte enunciado: “A orientação sexual não será um impedimento para o serviço militar, a menos que se manifeste na conduta homossexual” (documento citado por Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 173). A interdição da conduta compreende a proibição da autodeclaração de homossexualidade, pois essa declaração corresponderia a um ato sexual, sob a forma da propensão e da probabilidade de o ouvinte agir movido pelas forças ilocucionárias e perlocucionárias da fala associadas ao poder de contaminação da palavra homossexual: “A performatividade específica atribuída ao enunciado homossexual não é simplesmente que ele performatiza a sexualidade pelo discurso: o enunciado é apresentado como um lugar de contágio” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 182).

As Forças armadas dos EUA têm de falar da homossexualidade para tentar exclui-la, para que ela seja objeto de um discurso que a interdita e para que os sujeitos da comunidade LGBTQIA+ não possam falar por si mesmos e contra os discursos de ódio e discriminação. Isso ocorre, entre outras razões, porque um dos objetivos da política queer é promover circunstâncias em que homossexuais possam se manifestar publicamente como condição para a construção de suas existências, de suas subjetividades e de seus desejos. A norma da instituição encarna uma paranoia que produz uma sublimação e uma introversão da homossexualidade, pois aqui “não se trata de recusar a homossexualidade para conquistar o amor dos companheiros, mas se trata precisamente de certa homossexualidade que pode ser alcançada e contida apenas através e em virtude dessa negação” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 184). Há ainda nessa lei um encontro entre a força mágica das palavras homossexuais, de um lado, e a confissão da debilidade heterossexual, de outro.

Por um lado, o texto legal evoca “um tipo de homossexualidade que age por meio da eficácia mágica das palavras” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 186), de modo que a fala já é um ato e o ato, uma conduta, que se constitui como uma ameaça de contaminação:

Se o ato já é uma conduta, ele já se repetiu mesmo antes de ter a oportunidade de se repetir; ele está, por assim dizer, sempre se repetindo, ele é uma figura de repetição-compulsão que tem o poder de minar todos os tipos de moral social. (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 187)

Por outro lado, essa atribuição de poder à autodeclaração de homossexualidade indica que as tentativas de a censurar consistem numa revelação, à revelia dos censores, de potentes desejos e de frágeis controles. Nesse sentido, o enunciado “Eu sou homossexual” corresponderia a este outro “Eu te desejo sexualmente”, que, por seu turno, implicaria este convite: “Você não quer fazer sexo comigo?” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 190). A declaração é interpretada como convite e este como um chamamento sedutor ao qual o convidado não poderia resistir.

A declaração do homossexual comunica a homossexualidade e a transfere ao outro, por meio do contágio. Toda essa força performativa da fala homossexual e a grande ameaça que ela representa e constitui dão ensejo e justificativa para sua interdição. Mas, conforme Butler, essa proibição não visa à eliminação do desejo proibido. Ao contrário, ela tem por objetivo inconfessado a reprodução desse desejo e sua intensificação se dá mediante as renúncias que ele próprio efetua. Assim, “o futuro do desejo proibido é garantido por meio da própria proibição, enquanto a proibição não apenas alimenta, mas é alimentada pelo desejo que ela impõe à renúncia” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 196).

Nesse caso, enquanto as opressões buscam emplacar a equivalência entre a produção discursiva da homossexualidade, o desejo e as ações homossexuais, Butler sustenta a distância e a diferença entre eles para preservar a ideia de que desejos e atos não se reduzem aos nomes que lhes são atribuídos. Seu objetivo consiste em fazer com que vidas e vontades não sejam inteiramente capturadas e abatidas, visto que “uma das tarefas da produção crítica de homossexualidades alternativas será separar a homossexualidade das figuras que veiculam o discurso dominante” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 208), justamente para resistir aos poderes que gostariam de “dar a última palavra sobre a homossexualidade” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 208).

“Censura implícita e agência discursiva” é o título do último capítulo da obra de Butler. Um de seus pontos centrais é outra implicação perigosa da equivalência entre discurso e conduta: certa suspensão da ideia de censura em restrições e interdições de discursos considerados odiosos. Aí não haveria censura, uma vez que se trataria de proibição de atos que ferem os direitos à igualdade fundamental e não de uma limitação da liberdade de expressão. Butler afirma que a própria determinação de que alguns enunciados são discursos de ódio e, por extensão, atos e condutas odiosas, passíveis de interdição, enquanto outros, não o são, “já é uma forma de censura” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 210). Com base em consensos, poderes estabelecidos definem de maneira não dita o que pode ser dito e o que deve permanecer indizível. Porque discreta, essa censura implícita seria mais poderosa do que as proibições explícitas. Em contrapartida, suas regulações introduziriam “o discurso censurado no campo do discurso público, estabelecendo-o como um lugar de contestação” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 212): “o esforço para restringir o termo culmina em sua própria proliferação” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 215). Não estamos inteiramente de acordo com essa afirmação de Butler. Em que pese sua pertinência, há nela certa generalização das contradições que enfraqueceriam a censura explícita e determinada superestimação da força de resistência a poderes opressores presente já no cerne de suas interdições, dada a presença do discurso censurado no discurso censurante.

A produção da subjetividade está associada constitutivamente à regulação do discurso. Práticas de censura devem ser concebidas como formadoras dos sujeitos, porque elas não apenas regulam o que alguém pode dizer, mas também e mais fundamentalmente controlam o horizonte social do que é dizível. A agência discursiva tem relações inarredáveis com os poderes, que fazem com que a força política do performativo compreenda tanto reproduções de relações sociais quanto resistências e rupturas diante dessas reproduções. De acordo com Butler, a condição corporal dos atos de fala é em larga medida responsável pela reprodução de poderes, mas igualmente pela possibilidade de resistências, uma vez que “aquilo que é corporal no discurso resiste às próprias normas pelas quais ele é regulado” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 233) e torna possível que o ato de dizer produza o indizível e abra “o performativo a um futuro imprevisível” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 234). As normas que governam o discurso habitam nossos próprios corpos. O que dá força a um ato de fala, como uma “ameaça”, mas também o que pode enfraquecê-lo, é sua condição bivalente de ato linguístico e corporal.

Conceber a força do ato de fala relacionada com a presença do corpo na produção da linguagem é o meio pelo qual Butler refuta e incorpora as leituras que Bourdieu e Derrida fizeram de Austin. Enquanto o primeiro tende a reduzir a força do performativo à reprodução de poderes institucionais, o segundo compreende que ela está concentrada na dimensão formal da iterabilidade do enunciado, que rompe com os contextos sociais anteriores em que os atos performativos foram produzidos. Butler postula que toda performatividade repousa na autoridade de quem enuncia e sua constituição se dá numa iterabilidade social do ato de fala, que é performatizado corporalmente e que, ao mesmo tempo, comunica o que é dito e (re)produz o corpo do sujeito que fala (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 248-249). Nossos corpos são repositórios de processos históricos e de relações de poder incorporadas e instrumentos sociais e subjetivos de agência que funcionam como algo mágico nas sociedades. Os corpos concentram essa “magia social” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 251), que outorga força e eficácia a certos atos de fala.

Há uma história incorporada no corpo que produz os atos de fala, mas também um seu excesso em relação aos atos que ele performatiza e às possibilidades de fuga que ele encarna. Os atos de fala não determinam integralmente os efeitos do corpo que fala: “O fato de que o ato de fala é um ato corporal não significa que o corpo esteja totalmente presente em sua fala. A fala é corporal, mas o corpo excede a fala que ele produz” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 255). Embora existam correspondências históricas e sociais entre competências, legitimidades e autoridades de fala, não há identidade absoluta entre estar autorizado a falar e falar com autoridade, “pois é perfeitamente possível falar com autoridade sem estar autorizado a falar” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 258). Assim, podemos constatar a possibilidade de que atos performativos de resistência e desconstrução de negros, pobres, mulheres e homossexuais sejam produzidos com autoridade e sem autorizações prévias.

A incorporação, por meio da qual “as palavras penetram nos membros, moldam os gestos, envergam a espinha” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 260), injeta grande força em mecanismos de reprodução, opressão e exclusão social. Mas, Butler ressalta a possibilidade e o poder das réplicas e das desconstruções. Uma das formas de a performatividade ser contra hegemônica na esfera política é a apropriação de autoridade no próprio momento de constituição de um ato de fala, de modo a instituir inflexões e rupturas em suas recepções e em seus desdobramentos. Butler sustenta que “os contextos inerentes a certos atos de fala do discurso de ódio são muito difíceis de abalar” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 264), porém frisa que o ato de fala ocorre em contextos que não são “totalmente determinados com antecedência e que a possibilidade de o ato de fala assumir um significado não ordinário é exatamente a promessa política do performativo” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 265).

Para tanto, contamos com o fato de que insultos, ofensas e ameaças podem ensejar a contramobilização, porque o nome injurioso pelo qual alguém é chamado tanto pode subordinar o indivíduo quanto pode capacitá-lo para resistir à subordinação, “produzindo uma cena de agência a partir da ambivalência, um conjunto de efeitos que excedem as intenções motivadoras do chamamento” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 267). Assim, “a palavra que machuca se torna um instrumento de resistência na reorganização que destrói o território em que ela operava anteriormente” (Butler, 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 267). A posição da filósofa superestima esse poder da ambivalência e sugere certa equivalência entre poder e resistência, sob a forma do “tanto/como”, mas os riscos implicados nessa superestimação e nessa sugestão são aceitáveis, talvez inevitáveis, quando se trata da necessidade de fomentar a insurreição diante do discurso de ódio. Por essa razão, pela forte presença dos discursos de ódio no Brasil de nossos dias e por seus deletérios efeitos, a leitura da obra de Butler que aqui resenhamos é bastante recomendada. A insurreição que ela propõe é “resposta necessária à linguagem injuriosa, um risco que assumimos em resposta quando somos colocados em risco” (Butler 2021Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP., p. 267). Eis aqui uma repetição na linguagem que é diferença e que tem potencial para promover necessárias e urgentes transformações.

Referências

  • Butler, J. (2018). Problemas de gênero. Civilização Brasileira.
  • Butler, J. (2021). Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora UNESP.
  • Piovezani, C., & Gentile, E. (2020). A linguagem fascista. Hedra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2023
  • Aceito
    06 Set 2023
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