Acessibilidade / Reportar erro

Ver com Palavras

Seeing with Words

RESUMO

Este artigo resulta de atividades e projetos centrados em questões relativas às diferentes formas de diálogo existentes entre as dimensões verbal, visual e/ou verbo-visual, desenvolvidos pelas autoras no Brasil e na França. O objetivo é observar, no tecido verbal tramado por um enunciador, o ponto de vista enunciativo-discursivo, as escolhas lexicais, a organização sintática que, ao totalizar um enunciado, o faz de maneira a provocar naquele que lê/ouve a sensação de estar vendo. Por essa razão, os segmentos verbais que constituem nosso corpus de análise foram escolhidos, recortados e organizados, tendo como critério os processos linguístico, enunciativo e discursivo, implicando, em seu próprio ser-fazer, um destinatário, um interlocutor que, sendo o leitor/ouvinte, é também, e inescapavelmente, observador, espectador, graças à força verbal provocadora de imagens visuais. A fundamentação teórico-metodológica de base é a perspectiva dialógica, advinda de Bakhtin e o Círculo, acrescida de elementos de outras vertentes, considerando-se a necessária interdisciplinaridade exigida pelos enunciados constitutivamente intersemióticos. Visamos, com esta reflexão, contribuir para a explicitação da força do verbal para o imaginário e para diferentes esferas da atividade humana, em uma sociedade dominantemente visual.

Palavras-chave:
Trama verbal; Imagens; Verbovisualidade; Perspectiva dialógica

ABSTRACT

This article is a product of activities and projects, developed by the authors in Brazil and France, that are centered on questions that refer to the different forms of dialogue found in verbal, visual and/or verbal-visual dimensions. It aims to observe, in the verbal fabric woven by an utterer, the utterative-discursive viewpoint, the lexical choices, the syntactic organization that, when completing the utterance, does so to provoke in the one who reads/listens the sensation of seeing. For this reason, the verbal segments that comprise our corpus of analysis were chosen, delimited, and organized, using the criterion of linguistic, utterative and discursive processes, which imply, in their own existence and production, an addressee, an interlocutor who is not only the reader/listener, but also - and inevitably - the observer, spectator. This occurs as a result of the verbal force that provokes visual images. The theoretical and methodological framework on which this study is based is the dialogical perspective, grounded in the works of Bakhtin and the Circle. Elements from other perspectives are included as we take into consideration that constitutively intersemiotic utterances demand an interdisciplinary approach. With this reflection we aim to contribute to making explicit the force of the verbal dimension to the imaginary and the different spheres of human activity in a dominantly visual society.

Keywords:
Verbal fabric; Images; Verbal-visuality; Dialogical perspective

1. Introdução

Os estudos a respeito do papel e da força da verbo-visualidade, da intersemiose constitutiva do mundo contemporâneo e da maioria de suas formas de expressão, comunicação e interação, ocupam um expressivo lugar nas ciências humanas em geral, nas diferentes vertentes das análises do discurso e também na linguística aplicada. No caso da perspectiva dialógica (ou teoria/análise dialógica do discurso-ADD), advinda dos escritos de Bakhtin e o Círculo, produtivos trabalhos concretizam essas pesquisas. Em atividades e projetos centrados em questões provocadas pelas diferentes formas de diálogo existentes entre as dimensões verbal, visual e/ou verbo-visual, Amorim e Brait se ocupam do tema, no Brasil e na França, de forma individual e em conjunto. A mais recente interação de pesquisa7 7 Com o projeto “Poder e resistência: tradição e ruptura em discursos verbais e verbo-visuais”, Marilia Amorim atuou como pesquisadora visitante do LAEL, nos meses de setembro e outubro de 2019, a convite de Beth Brait e com apoio da FAPESP. Além de outras atividades, dividiu a disciplina Pesquisa em Ciências Humanas: produção e leitura de palavras, imagens, gestos, palavras-imagens-gestos em diferentes esferas de atividades, uma das fontes deste artigo. oferece, como um dos resultados, as reflexões expostas neste artigo. O objetivo principal é observar, no tecido verbal tramado por um enunciador, as especificidades do discurso em que o ponto de vista enunciativo-discursivo, indiciado nas escolhas lexicais, na organização sintática, na entonação apreciativa, organiza um enunciado que provoca, naquele que lê/ouve, a sensação (e até a certeza) de estar vendo. Esse ouvinte/leitor, em determinadas circunstância, será capaz de desenhar o que ouve/lê/vê.

Assim sendo, os segmentos verbais que constituem nosso corpus de análise, recortados para este artigo, foram escolhidos e organizados tendo como um dos critérios o processo linguístico/enunciativo/ discursivo que, num dado texto, num dado enunciado, de caráter artístico ou não, implica, em seu ser-fazer, um destinatário, um interlocutor que, sendo o leitor/ouvinte, é também, e inescapavelmente, observador, espectador. Mobilizado pela força do verbal em direção ao visual, esse leitor/espectador se torna, do ponto de vista discursivo, um coenunciador, por meio do qual o objeto, invisível pela ausência de desenho, ilustração, pintura, se faz imagem.

A fundamentação teórico-metodológica de base é a perspectiva dialógica, advinda de Bakhtin e o Círculo, que será tomada aqui a partir de uma afirmação que se encontra na obra O autor e a personagem na atividade estética (Bakhtin, 2003BAKHTIN, Mikhail. 2003. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. p. 3-192.), a qual resume um dos pontos essenciais deste trabalho:

A criação verbalizada não constrói forma espacial externa, porquanto não opera com um material espacial como a pintura, a escultura, o desenho; seu material é a palavra [...]; no entanto, o próprio objeto [...], representado pela palavra, evidentemente não se constitui só de palavras, embora haja muito de puramente verbal [...], (enquanto na pintura essa forma é representada pelas cores, no desenho pelas linhas, de onde tampouco se conclui que o objeto estético correspondente seja constituído apenas de linhas ou apenas [de] cores; trata-se precisamente de criar um objeto concreto de linhas ou cores). (Bakhtin, 2003BAKHTIN, Mikhail. 2003. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. p. 3-192.:85, destaques do autor)

Tendo essas afirmações de Bakhtin como eixo teórico articulador, o artigo estará centrado em análises de textos provocadores de imagens e com funções bastante específicas nas esferas em que são produzidos. A explicitação e o aprofundamento da fundamentação teórico-metodológica estão presentes em trabalhos anteriores das autoras e do grupo de pesquisa a que pertencem8 8 GP/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória, do qual Brait é líder e Amorim participante. , como por exemplo Brait (2010BRAIT, Beth. 2010. o poema-retrato. In: BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto. p. 224-227., 2013BRAIT, Beth. 2013. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 8, p. 43-66, 2013. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso Acesso em 12/04/2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); Brait & Magalhães (2014cBRAIT, Beth; MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. (Org.). 2014c. Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota .); Amorim (2020AMORIM, Marilia. 2020. O discurso da dança e o conceito de gênero - alguns elementos de leitura. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 64-96, June 2020 64-96, June 2020 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732020000200064&lng=en&nrm=iso >. Access on 17 May 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Assim, neste recorte de pesquisa, a questão analítica será privilegiada, considerando a importância de desenhar com esta reflexão, e para todos nós envolvidos em um universo predominantemente visual, a força e a presença do verbal, sozinho ou em articulação com o visual.

2. Ensaiando a visualidade verbal.

Olhar-se, olhar o outro, em seu espaço-tempo, em suas singularidades, e construir uma imagem decorrente desse olhar, não é privilégio exclusivo das artes visuais. Na esfera forense, por exemplo, o retrato-falado é, ainda hoje, um importante recurso para identificação de suspeitos. Trata-se de desenho à mão livre, resultante da interpretação que um desenhista faz do que alguém fala. É um processo complicado e trabalhoso, na medida em que aquilo que é falado deve transformar-se em imagem, em rosto passível de reconhecimento. Segundo Guimarães (2009GUIMARÃES, Arthur. 2009. Retratistas transformam lembranças traumáticas em pistas para prender criminosos. São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/29/ult5772u6711.jhtm Acesso em 08/04/2020.
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/20...
),

Apesar de especialista nos desenhos, está nas palavras o maior segredo de Sidney Barbosa, 37 anos. Responsável pelo departamento de retrato falado da Polícia Civil de São Paulo, o perito de arte forense sabe que o principal desafio de seu trabalho não é traçar contornos bem feitos, mas sim conseguir extraí-los de mentes traumatizadas, abaladas por crimes cometidos por desconhecidos. (Guimarães, 2009GUIMARÃES, Arthur. 2009. Retratistas transformam lembranças traumáticas em pistas para prender criminosos. São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/29/ult5772u6711.jhtm Acesso em 08/04/2020.
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/20...
:s.p, destaques nossos)

Essas afirmações do especialista forense a respeito de palavras que geram imagens, que fazem ver, podem estender-se a poetas e prosadores de todos os tempos, artistas da arte verbal que introduzem, por assim dizer, o espelho em suas obras, refletindo e refratando perfis individuais, sociais, culturais, artísticos, delineados pela afiada tesoura das palavras. À semelhança de pintores, fotógrafos, desenhistas, cenógrafos, eles esboçam autorretratos, retratos, cenários, personagens, obras de arte visuais... Por meio da organização sintática, da força semântica, da escolha e disposição desses elementos no texto, eles tecem traços, cores, espaços, capturando o olhar do leitor, trazendo para dentro do texto verbal a tensão da visibilidade, do invisível que se faz ver.

Esse é o caso do poeta gaúcho Mário Quintana (1906-1994)9 9 Essas reflexões resumem, com modificações, Brait (2010:224-227). , que em seu primeiro livro de poemas Apontamentos de história sobrenatural (1976) desenha-se e desenha outros, como se comprova pelos títulos: O Espelho, O auto-retrato, Retrato, Retrato sobre a cômoda, O velho do espelho, Retrato no parque, Aquarela de após-chuva, Naturezas-mortas. Esses poemas-pinturas compõem uma galeria em que o olho-câmera do poeta, postado de forma privilegiada, tudo espia e (re)cria com palavras -: “retratos na parede; janelas de onde olham avós hirsutos”; “quadros de antanho/quase tão horríveis como a palavra antanho...[...]/porque se pode ver entre o vidro e o retrato/uma folha outrora verde [...]/ “e, na fotografia, alguém está sorrindo eternamente”; “Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse/Que me olha e é tão mais velho que eu?”; “ Como se fosse numa tela [...]/O gesto, a cor, o movimento”; “No céu desenha-se um pálido sorriso”.

Um dos textos exemplares desse fazer ver com palavras é O auto-retrato, soneto enxuto, de ritmo rápido, permeado de reticências, interrogação, exclamação, travessões (signos linguísticos verbo-visuais), em que o enunciador surpreende-se na incessante e meticulosa tentativa de compor seu retrato: compor-se, enxergar-se por meio da pintura/desenho/poema, reconhecer-se na analogia com a natureza, com as coisas perdidas, significar para si e para os outros, por meio da tensão expressiva de duas linguagens.

Do ponto de vista linguístico, enunciativo e discursivo, uma das particularidades desse texto, em seu empenho de assumir a condição de retrato/desenho/pintura, é a forte presença, por um lado, dos sinais de pontuação e sua natureza visual, e, por outro, do léxico próprio das artes visuais. O título remete de imediato a um dos mais tracionais gêneros da pintura, o autorretrato, e os versos incluem em sua composição os termos retrato, traço, lembrança, semelhança, desenho que, por meio dos verbos fazer e pintar, em primeira pessoa, traçam o sujeito a ser visto.

Para se ter uma ideia desse procedimento verbal, mesmo sem analisar o poema todo, basta flagrar algumas passagens. Nos primeiros versos, inicia-se o retrato, incluindo a ação reflexiva sobre a imagem que o enunciador tenta fazer de si: “No retrato que me faço/- traço a traço -/às vezes me pinto nuvem,/às vezes me pinto árvore...” (Quintana,1976QUINTANA, Mário. 1976. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Editora Globo/Instituto Estadual do Livro.:17). O me, que tanto pode ser entendido como “faço de mim” ou “faço para mim”, reformula o prefixo auto, contido no título, trazendo para dentro da perspectiva enunciativa uma parte fundamental da designação do gênero. Ao mesmo tempo, o traço, gesto pictórico essencial, é assumido pela estrofe por meio de dois recursos: os travessões que o materializam, - traço a traço -, e a rima que o integra à ação, faço/-traço a traço-, exibindo a forma meticulosa da composição verbo-visual.

Outros aspectos merecem destaque pela maneira como estabelecem o diálogo intrínseco poema-pintura, tempo-espaço, verbal-visual. Um deles é a repetição da expressão às vezes, nos dois últimos versos da primeira estrofe e no primeiro da segunda (“às vezes me pinto coisas”), estabelecendo a frequência do gesto, as pinceladas que introduzem, no espaço papel-tela, marcas que conferem ao retrato a condição de obra em constante estado de elaboração, em processo.

É significativa, também, a presença das reticências em quatro dos versos: “às vezes me pinto árvore.../ de que nem há mais lembrança.../ mas que um dia existirão.../ Um desenho de criança...” (Quintana, 1976QUINTANA, Mário. 1976. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Editora Globo/Instituto Estadual do Livro.:17). Por meio delas, abrem-se espaços para que tanto o sujeito enunciador quanto o leitor se posicionem diante da estrofe/verso/quadro/desenho e, como sujeitos-contempladores, observem reflexivamente as formas construindo a composição. Diferentemente do retrato ou do autorretrato figurativo convencional - aparência física exterior de uma pessoa num dado momento-, o resultado desse poema-retrato, seu efeito visual de sentido, é a condição interior desse sujeito: nuvem, árvore, coisas de que não há mais lembranças, ou coisas que não existem mas que um dia existirão.

O que se observa, no conjunto, é que o sujeito enunciador é exposto em sua busca pela eterna semelhança, pela procura de um mesmo que sempre se dá a ver como outro. A duração da busca, a temporalidade da construção e a passagem do tempo estão assinaladas, mais uma vez, pela verbo-visualidade, mobilizadas pelo travessão: “e, desta lida, em que busco/- pouco a pouco -/minha eterna semelhança,” (Quintana, 1976QUINTANA, Mário. 1976. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Editora Globo/Instituto Estadual do Livro.:17). À moda de um Juan Miró, de um Vincent van Gogh e de todos que têm no traço e nas cores o seu fazer visual, o poeta forja seu retrato com palavras milimetricamente escolhidas e organizadas, explorando os recursos da língua e obtendo uma imagem, surpreendente até mesmo para ele: “no final, que restará?/Um desenho de criança.../Corrigido por um louco!” (Quintana, 1976QUINTANA, Mário. 1976. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Editora Globo/Instituto Estadual do Livro.:17).

Na continuidade, para mostrar a maestria de dois grandes escritores/pensadores que, em várias obras em prosa, fizeram ver com palavras, analisaremos, dentro dos objetivos deste artigo, dois textos: Equipamento de escritório, de Walter Benjamin (2017:51-52) e um trecho inicial de A obra-prima ignorada, de Honoré de Balzac (2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:14-15).

3. Palavra, imagem e pensamento

Para introduzir esta análise, começaremos com algumas reflexões sobre a pintura do belga René Magritte (1898-1967) que, depois do retrato-falado e do autorretrato, permitem chegar ao texto do filósofo Walter Benjamin, na medida em que Magritte nos convoca a pensar com suas pinturas-textos.

Sabemos que Magritte, filiado e identificado com o movimento surrealista francês, manteve um diálogo constante com filósofos e com textos filosóficos. Além da conhecida relação com o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) que acontece mais para o final de sua vida, a partir de 1962, ele mantém contato igualmente com o fundador da escola designada como Nova Retórica, Chaim Perelman (1996PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. 1996. [1958]. Tratado da argumentação. A nova retórica. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes .), então professor de lógica na Universidade Livre de Bruxelas. Ao longo de sua vida e de sua obra, a questão filosófica da relação entre imagem, palavra e pensamento nunca o abandonou: “A visão é um pensamento […] sem ideia, mas não sem pensamento o que seria absurdo”10 10 No original: “La vision est une pensée [...] sans idée, mais non sans pensée ce qui serait absurde”. (Magritte, 2016aMAGRITTE, René. 2016a. [1979] Lettre à A. De Waelhens du 17 avril de 1963. Citée dans Écrits complets. Édition établie et annotée par André Blavier. Paris: Flammarion. p. 392. Apud Didier Ottinger, Ut pictura philosophia. Portrait de Magritte en philosophe. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 24.:24 [1963])11 11 Todas as traduções foram feitas por Marilia Amorim. .

Ele interroga sua própria obra, nas diferentes fases, sempre de um ponto de vista filosófico, como explica, por exemplo, nesse trecho de uma conferência: “[...] minhas experiências precedentes tendo alcançado a representação abstrata do mundo, tornavam-se inúteis a partir do momento em que essa mesma abstração caracterizava igualmente o mundo real”12 12 No original: “[...] mes expériences précédentes ayant abouti à la représentation abstraite du monde, devenaient inutiles du moment que cette abstraction même caractérisait également le monde réel”. (2016bMAGRITTE, René. 2016b. [1938]. Conferência proferida no Musée Royal des beaux-arts d’Anvers, em 20 de novembro de 1938. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 30-37.:32 [1938]). O artista belga, portanto, reivindica o uso da lógica como norteadora de sua criação. Concebe seu trabalho como uma pesquisa quase científica:

Como essas pesquisas só podiam dar uma única resposta para cada objeto, minhas investigações assemelhavam-se à busca da solução de problemas dos quais eu possuía três dados: o objeto, a coisa ligada a ele na sombra da minha consciência e a luz em que essa coisa devia chegar. (Magritte, 2016bMAGRITTE, René. 2016b. [1938]. Conferência proferida no Musée Royal des beaux-arts d’Anvers, em 20 de novembro de 1938. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 30-37.:35)13 13 No original: “Comme ces recherches ne pouvaient donner pour chaque objet qu’une seule réponse exacte, mes investigations ressemblaient à la poursuite de la solution de problèmes dont j’avais trois données : l’objet, la chose attachée à lui dans l’ombre de ma conscience et la lumière où cette chose devait parvenir”.

Ele trata seus quadros como uma verdadeira resolução de problemas: “o problema da porta”, tratado no quadro A resposta imprevista; “o problema da janela” em A condição humana; “a árvore como objeto de problema” em A gigante; A invenção coletiva é a resposta ao problema do mar”; “o problema da luz” em A luz das coincidências. (Magritte, 2016bMAGRITTE, René. 2016b. [1938]. Conferência proferida no Musée Royal des beaux-arts d’Anvers, em 20 de novembro de 1938. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 30-37.:35-36)14 14 No original “[...] le problème de la porte dans La Réponse Imprévue ; le problème de la fenêtre dans La Condition Humaine; l’arbre comme objet de problème dans La Géante; L’Invention Collective est la réponse au problème de la mer; le problème de la lumière dans La Lumière des coïncidences”. .

Uma janela aberta na fachada parcialmente visível de um prédio deixa ver em segundo plano, no interior do aposento, um prédio com janelas fechadas cujas cores coincidem com as da primeira fachada, do mesmo modo que as cortinas brancas remetem à cortina aberta da janela do primeiro plano. Essas remissões picturais levam o olhar e o pensamento do contemplador a um ir e vir incessante. Magritte nomeia esse quadro Elogio da dialética (1937).

A pintura de Magritte constitui um corpus ideal para todos aqueles que trabalham com o discurso verbo-visual. Seus títulos provocam e convocam, do mesmo modo que as palavras e frases que integram frequentemente suas telas. O caso mais célebre é o A traição das imagens (Isso não é um cachimbo) (Magritte, 1929). (Ver Brait, 2013BRAIT, Beth. 2013. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 8, p. 43-66, 2013. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso Acesso em 12/04/2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Nossa intenção aqui não é retomar a análise, mas tão somente evocar certos aspectos da pintura de Magritte para sublinhar que a relação entre ver com palavras e falar/pensar com imagens se dá como um movimento de remissões infinitas.

No manuscrito do livro As palavras e as imagens15 15 No original: Les mots et les images. (Magritte, 2016cMAGRITTE, René. 2016c [1929]. Les mots et les images, 1929, Collection particulière. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images. p. 58-59. :58-59) encontram-se figuras que evocam uma cartilha de escola. Abaixo e acima dos desenhos (de uma folha, de um barco, de um sol, etc.), Magritte coloca legendas como “Uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa proposição” ou “Em um quadro, as palavras são da mesma substância que as imagens”, ou ainda “Há objetos que não precisam de nome”16 16 No original: “Une image peut prendre la place d’un mot dans une proposition” ou “Dans un tableau, les mots sont de la même substance que les images”, ou “Il y a des objets qui se passent de nom ». A palavra francesa nom tanto pode significar “nome” como “substantivo”. , etc. A questão do funcionamento sígnico das imagens e das palavras é uma preocupação constante na obra de Magritte. Quase filósofo, quase linguista, ele interroga a motivação e a convenção que estariam em suas bases. O arbitrário do signo linguístico, formulado por Saussure, e a ideia de gramática são elementos que aparecem claramente. Didier Ottinger (2016bOTTINGER, Didier. 2016b. Mots, ombres, flammes, rideaux, fragments. Magritte et les mythes fondateurs de la peinture. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte. La Trahison des images. Paris: Editions du Centre Georges Pompidou . p. 54.), assim analisa a poética do pintor belga:

Para afirmar a dignidade intelectual de sua pintura, para elevá-la ao nível da poética em primeiro lugar, da filosofia em seguida, Magritte a submete a um processo de racionalização, esforçando-se em dotar a sua iconografia da objetividade de um vocabulário. É esse o sentido de uma série de quadros [...] que se dedica à recensão de motivos da predileção do artista (o pássaro, a maçã...) cuja obra explora ao infinito o sentido e as combinações. A significação desses ‘fonemas pictográficos’ se enraíza no conhecimento que possui Magritte da pintura antiga [...]17 17 No original: “Pour affirmer la dignité intellectuelle de sa peinture, pour la hausser au niveau de la poétique d’abord, de la philosophie ensuite, Magritte la soumet à un processus de rationalisation, en s’efforçant de doter son iconographie de l’objectivité qui est celle d’un vocabulaire. C’est le sens d’une série de tableaux [...] qui s’applique à la recension de motifs de la prédilection du peintre (l’oiseau, la pomme…) dont l’œuvre explore à l’infini le sens et les combinaisons. La signification de ces ‘phonèmes iconographiques’ s’enracine dans la connaissance que possède Magritte de la peinture ancienne [...]”. . (Didier Ottinger, 2016bOTTINGER, Didier. 2016b. Mots, ombres, flammes, rideaux, fragments. Magritte et les mythes fondateurs de la peinture. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte. La Trahison des images. Paris: Editions du Centre Georges Pompidou . p. 54.:54)

Construídos, portanto, como quadros para ler, cujas regras gramaticais devemos decifrar ou imaginar, as pinturas de Magritte mostram que o surrealismo aqui não deixa nada ao acaso: “[...] um quadro é um objeto construído. É preciso que ele seja bem construído; é uma condição de vida: exatidão, lógica, economia, probidade; o espírito que não se contenta com o ‘mais ou menos” (Magritte; Servranckx, 2016dMAGRITTE, René; SERVRANCKX, V. 2016d [1979]. L’art pur. Défense de l’esthétique. Écrits complets. Édition établie et annotée par André Blavier. Paris: Flammarion . p. 19. Apud Klaus Speidel, Des signes arbitraires aux affinités électives. In: OTTINGER, D. 2016. (Dir.) Magritte. La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou . p. 65.:65)18 18 No original: “[...] un tableau est un objet construit. Il faut qu’il soit bien construit; c’est une condition de vie: exactitude, logique, économie, probité; l’esprit qui ne se contente pas de ‘l’à-peu-près’. .

4. Walter Benjamin e a gramática da cena

O texto Equipamentos de escritório (Benjamin, 2007) integra o livro Sentido único, publicado na Alemanha em 1928 (Benjamin, 1928BENJAMIN, Walter. 1928. Einbahnstraße. Berlim: Editora Ernst Rowohlt Verlag. ). Ele é composto de fragmentos e sua forma de escrita revela a convivência com os surrealistas em Paris, notadamente Louis Aragon (1897-1982), que em suas obras, caso de Un paysan à Paris (1926), descreve aspectos de Paris em textos curtos sob a forma de aforismos e de justaposição de gêneros literários. Segundo Rainer Rochlitz, o livro faz parte da segunda fase do trabalho de Benjamin em que “À função metafísica e teológica que os primeiros escritos [...] atribuem à literatura, irá se sobrepor e substituir em seguida sua função política” (Rochlitz, 2000ROCHLITZ, Rainer. 2000. Présentation. Œuvres. Tradução do alemão Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard Folio. Vol. I. [3 Volumes]:28-29)19 19 No original: “À la fonction métaphysique et théologique que les premiers écrits [...] assignent à la littérature, se superposera et se substituera ensuite sa fonction politique”. .

Benjamin está em diálogo permanente com seus amigos próximos Bertold Brecht (1898-1956) e Theodor Adorno(1903-1969). Com esse último, participa de modo mais ou menos direto da reflexão empreendida pelo movimento que, posteriormente, ficará conhecido como Escola de Frankfurt e que tem como eixo teórico a articulação entre as ideias de Karl Marx (1818-1883) e de Sigmund Freud (1856-1839). Ainda sobre o contexto dialógico do pensamento de Benjamin, ele era primo do filósofo e ativista Gunther Anders, marido de Hanna Arendt. Em um de seus textos mais célebres, Paris capital do século XIX [Paris capitale de XIX ème siècle], escrito em alemão (1935) e em francês (1939)20 20 Benjamin escreveu muitos textos diretamente em francês. Ver: Benjamin (1991). a reflexão de Benjamin se desenvolve inteiramente no interior do paradigma marxista. Além de dialogar nominalmente com Marx e Engels (1820-1895), os conceitos de base não deixam dúvida: “modo de produção”, “fetichismo da mercadoria”, “proletariado”, “valor de troca”, “valor de uso”, “culto da mercadoria”, “dominação do capital” (Benjamin, 2000BENJAMIN, Walter. 2000. Paris capitale du XXème siècle. In: Œuvres complètes. Paris: Gallimard . Vol. III, p. 44-66. :44-66). Interessante observar que já nessa época, o filósofo esboça uma crítica do capital financeiro e da especulação na bolsa que seria hoje de plena atualidade.

A edição francesa, de onde partiremos, é uma edição revista e corrigida em 2007 por Pierre Jacoste, o mesmo tradutor da primeira edição que foi publicada em Paris em 1978, feita diretamente do original alemão. Ela contém na verdade três livros: Infância berlinense [Enfance berlinoise], Sentido único [Sens unique] e Paisagens urbanas [Paysages urbains]. O primeiro e o último resultam de edições póstumas organizadas, respectivamente, por Theodor Adorno e Peter Szondi (1929-1971). Somente em Sentido único os textos aparecem tal como organizados originalmente pelo próprio Benjamin. Há uma tradução francesa mais recente (Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. 2015. Rue à sens unique. Tradução Anne Longuet Marx. Paris: Allia.) com o título Rue à sens unique [Rua de mão única]. Esse título é interessante porque acentua o caráter de percurso do livro, cujos fragmentos são como estações em que a atenção do filósofo se detém e, com ênfase em aspectos verbo-visuais, nos oferece um retrato comentado. Ele é, aliás, o mesmo título dado às traduções brasileiras de que trataremos mais adiante.

Walter Benjamin dedica Sentido único a sua companheira letoniana, militante comunista, Asja Lacis, revelando de modo explícito a influência do movimento comunista nos textos ali reunidos: Essa rua se chama RUA ASJA LACIS do nome daquela que foi sua engenheira e que a fez penetrar no autor21 21 No original de Sens unique: “Cette rue s’appelle RUE ASJA LACIS du nom de celle qui en fut l’ingénieur et l’a percé dans l’auteur.” Na primeira tradução brasileira (Benjamin, 1987): “Esta rua chama-se Asja Lacis em homenagem àquela que na qualidade de engenheiro a rasgou dentro do autor”. (Benjamin, 2007:137 destaques do autor).

A força verbo-visual do texto que iremos analisar não é algo isolado na obra de Benjamin. Seu interesse filosófico pela fotografia (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter. 1985. A imagem de Proust; Pequena história da fotografia; A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e cultura. Obras Escolhidas, volume 1, p. 36-49; p. 91-107; p. 165-196. ) e pelo cinema, de um lado, e pela imagem na literatura, de outro, o atestam. Em muitos trabalhos, ele toma as paisagens urbanas, a arquitetura, a decoração de interiores, os cartazes de publicidade, etc. como textos que demandam serem lidos e decifrados, tal como acontece em Equipamento de escritório. O questionamento da relação entre o ver e o dizer, entre a imagem e a palavra aparece no mesmo livro, sintetizado em San Gimigniano: “Encontrar palavras para o que se tem diante dos olhos - como isso pode ser difícil [...] foi somente quando pude encontrar essas palavras que a imagem se liberou do vivido demasiadamente cegante” (Benjamin, 2007:299).

Vemos aqui alguns pontos em comum com o pintor René Magritte. Lembremos que eles são contemporâneos, que o manuscrito de As palavras e as imagens é de 1929 e Sentido único de 1928. Ambos frequentam os surrealistas franceses e com eles se engajam em uma visão utópica e revolucionária da arte. Contudo, em nosso enfoque, o ponto chave de contato entre esse pintor que faz ler com imagens e esse filósofo que, como mostraremos, faz ver com palavras é a ideia de exatidão, lógica e economia com que constroem seus objetos.

Benjamin constrói um enunciador/personagem, narrador/ponto de vista narrativo que empreende um verdadeiro trabalho semiológico da cena e do cenário em que se desenrola a narrativa. A hipótese desse ponto de vista é de que aquilo que é visível - os equipamentos do escritório e sua disposição - constitui na verdade um sistema de signos, uma linguagem a ser decifrada. As duas primeiras frases do texto o anunciam de pronto ao leitor: “O escritório do patrão é eriçado de armas. O que seduz o visitante e lhe aparece como conforto é na verdade um arsenal camuflado”22 22 No original: “Le bureau du patron est hérissé d’armes. Ce qui séduit le visiteur et lui semble du confort est en vérité un arsenal camouflé”. (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:206).

Tomaremos aqui a liberdade de acrescentar em nossa análise a palavra “empregado” que o autor não utiliza. O que aparece é “visitante” e “novato” e essa ideia é importante porque, ao estar ali pela primeira vez, ele pode se iludir e não saber de antemão ler os signos constitutivos do escritório. Entendemos, porém, que tal como é descrito e dada a posição que ocupa ao longo do texto, ele não é um visitante qualquer, mas alguém que tem um ponto de vista a defender e que terá que enfrentar um verdadeiro arsenal contra ele. Pode também ser alguém que não é empregado, mas que, de todo modo, está numa posição de inferioridade face às armas do patrão. O uso da palavra “patrão”, já na primeira frase, permite inferir que o narrador tratará de uma relação assimétrica de poder. Para sublinhar a assimetria, escolhemos usar o termo que se opõe à palavra “patrão” nesse tipo de relação, qual seja, “empregado”. Tamanha liberdade com o texto do autor somente se justifica na medida em que nosso trabalho não é de tradução, mas de análise. Enquanto tal é uma construção do analista, empreendida a partir de um determinado ponto de vista.

O narrador semiólogo de Benjamin opera pela via de uma linguagem geometricamente estruturada por meio da combinação de diferentes elementos. Em primeiro lugar, os signos são dispostos em uma relação que produz o sentido de uma assimetria entre o patrão e o empregado/visitante. Isso gera as seguintes oposições: falar versus não poder falar (o empregado/visitante não consegue dizer nada do que pretendia e o patrão não para de falar ao telefone); mais importante versus menos importante (tudo sublinha a importância do que faz o patrão e do que fazem ao redor dele e isso torna sem importância qualquer coisa que venha do empregado/visitante que ali se encontra); muitos assuntos versus um assunto (o patrão trata de vários negócios ao mesmo tempo e o empregado/visitante tem apenas um assunto a tratar); ausente distante versus presente próximo (o interlocutor do patrão ao telefone vai partir para o Brasil o que o torna prioritário face ao empregado que está presente e disponível); luz pelas costas versus luz no rosto (a iluminação se projeta diretamente no rosto do empregado o que o torna vulnerável, exposto, revelando o mínimo sinal do exaurir de suas forças. Já o rosto do patrão é protegido, obscurecido, posto que a luz vem de trás dele).

Uma peça chave na gramática da cena é a poltrona destinada ao empregado/visitante. Ela é personagem e sujeito ativo no combate, ela “produz também seu efeito: fica-se ali sentado, afundado e reclinado para trás como no dentista, e a gente acaba aceitando o penoso procedimento como o curso ordinário das coisas”23 23 No original: “Le fauteuil produit aussi son effet: on y est assis très profondément renversé, comme chez le dentiste, et l’on finit alors par prendre le procédé pénible pour le cours ordinaire des choses”. (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:207). O texto não diz, mas na evolução de imagens que ele nos provoca, pode-se imaginar a posição contrastante do patrão, sentado em uma confortável cadeira de escritório que lhe mantém a postura ereta, com a mesa lhe servindo, ademais, de apoio. Temos aí, no próprio posicionamento do corpo no espaço, a marca da relação assimétrica de poder: na poltrona “de dentista”, o empregado visitante encontra-se passivo e impotente; na cadeira, o patrão está à vontade, com os recursos para o combate ao seu dispor.

Em segundo lugar, a aparência de conforto e a sedução que exercem os equipamentos do escritório para quem entra pela primeira vez, tem seu sentido oculto indicado pelo universo semântico de um vocabulário de campo de batalha e de afrontamento desigual de forças: “arsenal”, “armas”, camuflado”, “afiar sua resposta” (como quem afia suas armas), “eriçado” (como se composto de lanças pontudas)24 24 No original: “arsenal, armes, camouflé, fourbir ses armes, hérissé; une chance à saisir, glisser, abandonner son propre point de vue”. (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:206-207). A luz ofuscante no rosto evoca uma situação de tortura. Do mesmo modo, a “chance a aproveitar”, o “resvalar” e o “abandono de seu ponto de vista” indicam a posição de fragilidade no campo de batalha da argumentação. Argumentação que nem chega a acontecer. O diálogo por palavras é desnecessário e, de fato, o empregado/visitante tem sua palavra sempre interrompida pelo telefone que não para de tocar. Mais que sujeito falante, esse empregado/visitante é objeto falado e inscrito nas fichas e arquivos que a secretária coloca na mesa do patrão.

O patrão é vencedor sem precisar travar nenhum diálogo com o empregado. Ou melhor, ele fala e aniquila o adversário pelo texto da cenografia. A última frase anuncia a derrota do empregado/visitante: “Uma liquidação inexorável se segue mais cedo ou mais tarde a esse tratamento” (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:207)25 25 No original: “Une liquidation ne manque pas tôt ou tard de faire suite à ce traitement”. . A economia e a justeza da frase lhe confere um caráter de conclusão lógica. A primeira frase anunciara o combate, a última decreta o resultado após demonstração irrepreensível - CQD ou Como Queríamos Demonstrar.

Do ponto de vista da temporalidade, a narração fornece indicações da mesma assimetria. O empregado/visitante está ali pela primeira vez, num breve espaço de tempo, e assistimos a uma batalha ganha também no tempo: o telefone “toca a cada instante” e “corta a palavra do visitante no momento mais importante”, dando ao seu interlocutor “o tempo de afiar sua resposta”. As marcas de progressão do tempo acentuam que ele avança em desfavor do empregado: “enquanto isso”, “a gente começa lentamente a resvalar”, “a gente começa a se perguntar” e logo “a gente fica a tal ponto solidário da empresa” que não se aproveita a “chance” da enxaqueca de que se queixa o patrão (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:206-207)26 26 No original: “sonne à chaque instant”; “coupe la parole du visiteur au moment le plus important”; “le temps de fourbir sa réponse”; “pendant ce temps”; “on commence lentement à glisser”; “on commence à se demander”; “on est bientôt à ce point solidaire de la firme, que la migraine dont il se plaint au téléphone [...] et non comme une chance à saisir”. . O empregado/visitante começa a se cansar e o patrão verá no seu rosto os traços do esgotamento.

O patrão é senhor do tempo, do espaço e da palavra. Senhor e proprietário também da bela secretária cuja entrada na sala contribui para sublinhar a importância do patrão e para desviar a atenção do empregado. Senhor igualmente do saber sobre o empregado/visitante contido nas fichas que lhe fornece a imponente secretária.

No texto curto de trinta e uma linhas, as marcas enunciativas referentes ao empregado/visitante evoluem. Da terceira pessoa ele (il), utilizada até a sétima linha do texto e, depois, somente na linha dezenove na designação “o novato” [le nouveau venu] e na vinte e dois em “o visitante” [le visiteur], chega-se à terceira pessoa se (on) utilizada até o final. Essa passagem aproxima o personagem/empregado/visitante do ponto de vista narrativo, fundindo-os em uma mesma posição enunciativa. Acentua-se assim o caráter generalizante do que é narrado: qualquer empregado que for à sala do patrão se verá na mesma condição. Além disso, o uso insistente do se, entre a oitava linha e a décima segunda, cria um efeito cumulativo que termina por incluir o próprio leitor já que o se ou seu equivalente a gente é um indefinido que, como o on em francês, pode incluir o interlocutor na posição do enunciador. Assim, nós, leitores, poderíamos nos encontrar na mesma situação de um empregado que chega à sala do patrão para fazer uma reivindicação e, sem poder desenvolver seu argumento, é liquidado pela cenografia implacável.

Além do efeito de empatia produzido na relação entre o narrador enunciador-personagem e o leitor, temos aí a culminância da verbo-visualidade desse texto. O texto desenvolve-se como uma câmera de cinema que percorre os constituintes gramaticais da cena como um arsenal de armas em um campo de batalha. A câmera começa nos mostrando o escritório aparentemente confortável, o telefone e o patrão em conversas telefônicas incessantes, tratando de variados negócios. Focaliza, em seguida, o empregado/visitante que começa a resvalar e perde progressivamente seu ponto de vista, sua posição. A câmera prossegue, detém-se na secretária bonita e imponente que enche a mesa com pastas e fichas, para em seguida focalizar o olhar do empregado para a secretária. O plano final da tomada da câmera acentua o papel da luz: de um lado da mesa, ela protege o patrão, do outro, essa mesma luz desnuda e tortura o empregado/visitante. A câmera para, focalizando a poltrona, onde se encontra o empregado posicionado em condição de derrota, o rosto e o peito desprotegidos como numa cadeira de dentista. A liquidação é posta de modo inexorável na última frase como se, nesse ponto, as luzes se apagassem com a tela escura do final de um filme. Com a progressão do ele para o se, é como se a câmera fosse aproximando nosso olhar do ponto de vista do personagem/empregado/visitante até fundir nossas perspectivas. Observe-se que o próprio ritmo da narrativa contribui para que o leitor seja incluído na perspectiva do personagem/empregado/visitante. Escrito em um único parágrafo, Equipamentos de escritório não deixa o leitor descansar, do mesmo modo que a progressão do que é narrado acaba por esgotar as forças do empregado visitante.

Gostaríamos de concluir com algumas observações concernentes ao problema da tradução, uma vez que o original é alemão e utilizamos tradução francesa. Em primeiro lugar, podemos dizer que as duas traduções francesas a que tivemos acesso27 27 Não conseguimos ter acesso em tempo útil a uma terceira tradução francesa (Benjamin, 2013a). são bastante próximas. O que difere significativamente é o título do livro e o do próprio artigo. Na primeira tradução (1978), com edição revista e corrigida em 2007 e que foi aqui utilizada, o título é Fournitures de bureau. Tanto se pode entender esse título como mobiliário de escritório ou como equipamentos, no sentido daquilo com que um escritório é equipado. A última tradução, de 2015, optou por Nécessaire de bureau o que sublinha a ideia de que são os elementos essenciais de que deve dispor um escritório28 28 Em português, usamos o substantivo nécessaire para designar a bolsinha que levamos em viagem com as miudezas que consideramos indispensáveis. .

Como já dissemos, utilizamos a tradução francesa que conhecemos primeiro, a de Jean Lacoste, e com a qual trabalhamos por alguns anos com os alunos da Universidade de Paris 8. Entretanto, uma vez conhecida a primeira tradução brasileira (Benjamin, 1987:55-56), algumas diferenças nos surpreenderam, a começar pela primeira frase: “A sala do chefe está eriçada de armas” (Benjamin, 1987:55). “Chefe” designa uma posição móvel, já que outros empregados podem vir a ocupá-la um dia, inclusive aquele de que trata o texto. Já a palavra patrão, da versão francesa, designa a posição fixa daquele que detém os meios de produção. No contexto discursivo do marxismo e do comunismo em que dialoga o autor, essa palavra convoca uma relação sobredeterminada, qual seja, a da luta de classes. Na interpretação do tradutor brasileiro, o visitante não é um empregado já que o uso da palavra “patrão” se restringe à relação com a secretária. Na segunda tradução francesa (Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. 2015. Rue à sens unique. Tradução Anne Longuet Marx. Paris: Allia.), a tradutora utiliza empregador (employeur). Essa escolha nos parece equivalente à do tradutor brasileiro, pois ameniza igualmente o teor político da condição social da mulher que Benjamin sugere ao mencionar os atrativos físicos da secretária e a submissão a “seu senhor”. Nas demais ocorrências, a tradutora francesa usa a palavra “patrão”.

Na tradução francesa de Jean Lacoste (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.) com a qual trabalhamos, as palavras que designam a relação patrão/secretária são muito mais fortes e acrescentam uma dimensão de poder na relação homem/mulher: o patrão é seu “senhor proprietário”. Em francês aparece seigneur et maître, mas sabemos que a segunda palavra nem sempre significa, como se poderia imaginar, o equivalente em português de “mestre”. Seu sentido se constrói também, como aqui parece ser o caso, na oposição senhor/escravo.

Ainda na primeira tradução para o português (Benjamin, 1987), o mesmo acontece com a escolha de certas palavras que atenuam o caráter de combate ou guerra: em francês, o arsenal está “camuflado” (camouflé), em português, “dissimulado”; em francês, o telefone que não para de tocar dá ao patrão o tempo de “armar” ou “afiar” (fourbir) sua resposta, em português, aparece “ajustar”. O verbo fourbir pertence ao campo semântico da guerra, uma vez que ele integra a expressão fourbir ses armes, isto é, “armar ou afiar suas armas”. Mais adiante, o empregado/visitante será designado em português como “hóspede” o que contribui para atenuar a relação com um suposto patrão.

A segunda tradução brasileira a que tivemos acesso, de João Barrento (Benjamin, 2013bBENJAMIN, Walter. 2013b. Equipamento de escritório. In: BENJAMIN, W. Rua de mão única. Infância berlinense: 1900. Edição e tradução João Barreto. Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora. :51-52), apresenta, a nosso ver, um texto mais corrente para o leitor da língua portuguesa. No início do texto, o visitante é designado como “quem entra” o que nos parece bem mais adequado que “visitante” posto que a situação narrada não caracteriza exatamente uma “visita”. Logo em seguida, utiliza o “nós” na posição enunciativa do narrador o que permite ao leitor bem distingui-la da terceira pessoa do chefe e de seu interlocutor. Adiante, utiliza para a resposta do chefe “pensar na resposta que lhe convém”. Essa opção nos parece melhor do que a primeira tradução brasileira porque assinala o caráter ardiloso do chefe. Na relação com a secretária, utiliza a palavra “patrão” mas, em seguida, utiliza “chefe”. Do mesmo modo, aparecerá a palavra “novato” e, em seguida, “visitante”, o que coincide com as traduções francesas. Identificamos assim um contraste com a conotação política conferida pelas escolhas da tradução francesa com que trabalhamos.

Um curioso problema de tradução que encontramos refere-se ao trecho em que, diante dos negócios importantes de que trata o patrão e da urgência do interlocutor ao telefone que vai viajar no dia seguinte para o longínquo Brasil, o empregado visitante acaba por se sentir solidário com a empresa. A tal ponto que a enxaqueca de que “se queixa ao telefone é vista como um lamentável contratempo para a empresa e não como uma chance a aproveitar” (Benjamin, 2007bBENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique. Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.:207). Em nossa interpretação, o empregado poderia se aproveitar da enxaqueca do patrão para ficar mais forte na defesa de seu ponto de vista mas, em vez disso, vai se sentindo cada vez menos importante. A solidariedade com o patrão aparece ao final de uma progressão em que o empregado vai perdendo seu ponto de vista e abandonando o combate. Nas traduções brasileiras não é isso que se lê. Na primeira, temos:

Começa-se a perguntar-se de quem se está falando, percebe-se com pavor que o interlocutor parte amanhã para o Brasil e logo está de tal forma solidário com a firma que a enxaqueca de que ele se queixa ao telefone é designada como lastimável contratempo nos negócios (em vez de casualidade). (Benjamin, 1987bBENJAMIN, Walter. 1987b. Artigos de escritório. In: Rua de mão única. BENJAMIN, W. Obras escolhidas II. Trad. Rubens R. Torres Filho & José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense . p. 55-56.:55-56)

Parece-nos que há nesse trecho uma certa ambiguidade que dificulta que se identifique quem diz o quê. De quem é a enxaqueca? Quem a designa como contratempo? Permanece a idéia de que o empregado/visitante poderia se aproveitar da enxaqueca do outro? Na segunda tradução brasileira, temos:

Começamos a perguntar-nos de quem se estará falando ali, apercebemo-nos, assustados, de que o interlocutor parte no dia seguinte para o Brasil e, logo depois, de que ele está de tal modo solidário com a firma que a enxaqueca de que se queixa ao telefone é apresentada como uma lamentável perturbação dos negócios, e não como uma oportunidade de que se poderia tirar proveito. (Benjamin, 2013bBENJAMIN, Walter. 2013b. Equipamento de escritório. In: BENJAMIN, W. Rua de mão única. Infância berlinense: 1900. Edição e tradução João Barreto. Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora. :51)

Ao usar o “nós” em lugar do “se” no início do período, o tradutor faz uma boa escolha porque permite distinguir o lugar enunciativo do narrador, que aqui coincide com o do visitante, daqueles ocupados pelos dois interlocutores ao telefone. Mas, se a enxaqueca é do interlocutor que vai para o Brasil, porque ela seria uma oportunidade de que se poderia tirar proveito? Quem a apresenta como lamentável perturbação? E se tudo se passa entre os dois interlocutores, qual a importância disso para o narrador “nós” do início do parágrafo?

Nas duas traduções para o português, essa conversação telefônica e a enxaqueca mencionada aparecem como fortuitas. Qual a função delas na narrativa? Descoladas da evolução através da qual o empregado/visitante vai perdendo força até a liquidação final, elas parecem perder o sentido. Ora, segundo nossa interpretação, o texto de Benjamin, tal como a pintura de Magritte, é “exato, lógico, econômico e probo”, sem lugar para o fortuito. Para concluir, pensamos que se o visitante fosse um mero novato ou até mesmo um hóspede, não haveria razão para que o escritório fosse um arsenal de armas. Sem o caráter de luta entre patrão e empregado, por que razão o visitante deveria ser aniquilado?

Ocorre porém que nossa interpretação está marcada pela tradução francesa inicial que, como dissemos, faz escolhas que politizam a escrita de Benjamin. Ao levarmos em conta o contexto dialógico que apresentamos no início da análise, essa politização parece coerente com ele. As traduções brasileiras são mais neutras mas talvez mais fiéis do ponto de vista literal. O que explicaria essa diferença? Para responder, levantamos a hipótese segundo a qual, além do contexto dialógico em que Benjamin escreve esse texto, seria necessário conhecer o contexto dialógico das traduções. A começar pelas datas, imagina-se que, entre a tradução francesa de Jean Lacoste de 1978 (revista em 2007) e as brasileiras de 1987 e 2013, mudanças importantes possam ter acontecido. Outro elemento decisivo é o fator cultural: entre a França e o Brasil, provavelmente, a sensibilidade política não é a mesma. Muitos elementos poderiam ser ainda evocados. Em suma, queremos dizer que, ao confrontar traduções, estamos sujeitos a interpretações que podem ser determinadas por condições enunciativo-discursivas que desconhecemos. A menos que se investigue a dialogia da tradução, mas isso já seria objeto para novas pesquisas.

5. As palavras dizem, as imagens surgem

Neste artigo, procuramos demonstrar, até aqui, que nosso objetivo não é retomar as discussões em torno do visual, especificamente, ou de uma relação verbo-visual em presença, na qual o enunciado seja constituído por duas dimensões (a verbal e a visual), de forma que a produção de sentidos e efeitos de sentido ocorra pela força da articulação visível desses dois planos. Embora em alguns momentos tenhamos recorrido a isso, como aconteceu quando apresentamos o fazer pictural reflexivo, verbo-visual e filosófico de Magritte, nosso objetivo maior, como explicitado na introdução, é focalizar a dimensão de um texto verbal, sua arquitetônica linguística, enunciativa, discursiva, a qual delineia um destinatário, um interlocutor bivocal, por assim dizer. Ele é leitor, mas é, ao mesmo tempo, observador, espectador, mobilizado produtivamente para a construção do visual. Seu imaginário, condição sine qua non da leitura, da audição, o faz ver imagens plásticas por meio de palavras, única materialidade que ele tem diante dos olhos.

E é a partir da hipótese da força verbo-visual de um texto escrito (ou falado), que nossa análise recai, para finalizar este trabalho, sobre um dos mais famosos textos em que as palavras não apenas fazem ver, mas instigam uma importante discussão no campo das artes, iniciada no século XIX, mas que não cansa de produzir estudos, comentários, interpretações, em diversas áreas do conhecimento, aí incluídas a filosofia e a psicanálise. Trata-se de A obra-prima ignorada [Le Chef-d’œuvre inconnu], do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), publicada inicialmente em 1831, em dois fascículos, mas que sofre significativas modificações ao longo de 16 anos. A narrativa passa-se no século XVII, na França, mais precisamente em 1612, e envolve três personagens-pintores: dois reais, Nicolas Poussin (1594-1655) e François Porbus (Frans Pourbus II ou Pourbus, o jovem, 1569-1622) e Frenhofer, personagem provocador de uma enfática discussão, a qual mobiliza questões sobre arte e que muitos estudiosos consideram mais pertinentes ao século XIX, de Balzac, do que ao século XVII, e que, em geral, são explicitadas como oposição entre formalismo e subjetividade, classicismo e romantismo, ruptura com a concepção artística clássica.

Embora o original seja francês e existam várias boas traduções para o português, para este trabalho, centraremos nossa análise em um trecho, considerado chave para nossos objetivos, extraído da tradução brasileira de Teixeira Coelho (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.). Há várias outras boas edições brasileiras, caso da tradução de Osvaldo Fontes Filho e Leila de Aguiar Costa (Didi-Huberman, 2012DIDI-HUBERMAN, Georges. 2012. A pintura encarnada. Seguido de A obra-prima desconhecida, de Honoré de Balzac. São Paulo: Escuta/Editora FAP-UNIFESP.), assim como excelentes estudos (ver Moraes, 2012MORAES, Melina Xavier de Sá. 2012. A representação artística: literatura e pintura. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Letras, Instituto de Letras e Linguística da UFU. https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/11840 Acesso em abril de 2020.
https://repositorio.ufu.br/handle/123456...
), parte de nosso projeto maior, mas com os quais não trabalharemos neste recorte da pesquisa.

O trecho escolhido encontra-se no segundo parágrafo do texto de Balzac (2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.) e focaliza o momento em que um jovem e pobre pintor desconhecido, que mais adiante ficamos sabendo ser Nicolas Poussin, está subindo a escada que leva ao ateliê de outro pintor, Porbus e ao chegar ao alto, vê chegar alguém.

[...] Um velho subia a escada. Vendo sua estranha indumentária, a magnificência da golilha de renda e a imponente segurança do andar, o jovem percebeu naquele personagem um protetor ou amigo do pintor. Recuou para deixá-lo passar [...] Mas havia algo de diabólico naquele rosto, sobretudo esse não sei o quê que atrai nos artistas. Imagine uma testa alta, volumosa, proeminente, terminando num nariz pequeno, achatado e rebitado como o de Rabelais ou Sócrates; lábios sorridentes e enrugados, um queixo breve, orgulhosamente empinado, envolto numa barba grisalha e pontiaguda; olhos de um verde marinho, aparentemente esmaecidos pela idade mas que, em contraste com o branco perolado no qual flutuava a pupila, no auge da cólera ou do entusiasmo deviam por vezes lançar faíscas magnéticas. O rosto, aliás, mostrava-se singularmente carcomido pelas fadigas da idade e mais ainda por esses pensamentos que sulcam tanto a alma quanto o corpo. Os olhos não mais tinham cílios e mal se viam traços de supercílios acima das arcadas salientes. Ponha essa cabeça num corpo delgado e débil, envolva-o num rendado de brancuras reluzente e trabalhada em arabescos, jogue sobre o gibão negro usado pelo homem uma pesada corrente de ouro e terá uma imagem imperfeita desse personagem ao qual a luz fraca vinda da escada emprestava uma cor fantástica, como se uma tela de Rembrandt caminhasse silenciosamente e sem moldura na sombria atmosfera criada por esse grande pintor. (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:14-15)

A primeira frase do trecho engloba a totalidade da cena enquadrada pelo ponto de vista do enunciador/observador/onisciente, captura o leitor para essa perspectiva e exibe o movimento ascendente do sujeito da observação, dado sintática e semanticamente pelo pretérito imperfeito do verbo subir (subia a escada). Na frase seguinte, o gerúndio do verbo ver (vendo) confere ao jovem pintor a condição de sujeito do processo de visão, iniciando-se uma minuciosa descrição, a qual privilegia impressões do observador em relação aos detalhes da figura. Isso acontece por meio do jogo linguístico/enunciativo de adjetivos antecedendo e qualificando o detalhe focalizado: estranha indumentária; magnificência da golilha de renda; imponente segurança do andar. Dessa forma, a sintaxe textual imprime um ritmo à descrição, um tom avaliativo, uma entonação que vai revelando a carga de valores do ponto de vista que enuncia, contaminando o leitor/espectador.

Nesse ponto, e por meio desses procedimentos, verificamos ao menos três camadas de olhares, de lugares do ver e do fazer ver pela trama verbal: o daquele que, como uma câmera em movimento, conduz de forma onisciente e intersubjetiva a construção dos detalhes da imagem a ser concebida, percebida, imaginada no geral e nos detalhes; o daquele que é designado por esse primeiro como o sujeito ativo dessa visão, não por acaso um jovem pintor, o qual, pelos recursos verbais instaurados, exibe sua visão sensível, em vários sentidos, construindo, por assim dizer, um retrato falado; o daquele que, sendo o destinatário dessa construção, o leitor, passa a ver a partir das palavras, imaginando, sentindo, adentrando a cena, passando a fazer parte constitutiva dela.

Em seguida e em meio a várias observações do enunciador/condutor da cena, a designação inicial velho é substituída por personagem: “o jovem percebeu naquele personagem [...]” (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:14). Em função dessa mudança lexical, duas coisas ficam estabelecidas. De um lado, o caráter ficcional da cena e, complementarmente, a condição emblemática da figura descrita. Para alicerçar esses aspectos e levar o leitor a ver e compreender a pertinência e a importância das designações velho e personagem, a sequência seguinte detalha o momento em que o jovem pintor para na escada para deixar o retratado passar. Próximo dele, como uma câmera em close, o jovem pintor examina/mostra, em minúcias, o rosto contemplado.

Antes mesmo de iniciar o detalhamento, seguindo a mesmo procedimento entonativo anterior, ele afirma: “Mas havia algo de diabólico naquele rosto [...]” (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:14), aspecto que mais uma vez faz a qualificação, a percepção, a entonação valorativa anteceder os detalhes da figura, de forma a conduzir a percepção visual do leitor. Neste ponto, o verbo imaginar, no imperativo (Imagine), confirma a presença constitutiva do leitor/observador na cena, uma vez que o enunciador dirige-se diretamente a ele e o convida a ver com ele, como ele, por meio da imaginação motivada.

Assim o retrato falado do velho/personagem vai se concretizando. O zoom nesse sujeito/objeto da composição garante a proximidade necessária para a visualização dos traços físicos, qualificados por adjetivação abundante, por comparações, metáforas, advérbios. Esses recursos linguísticos agrupam-se em torno do traço fisionômico em foco, e por vezes de traços em continuidade, sendo os blocos descritos estrategicamente separados por ponto e vírgula. É a ordem da construção do rosto que garante, pelo tom e pela enumeração, a composição, a articulação e a harmonia do todo: a “testa alta, volumosa, proeminente”, que termina “num nariz pequeno, achatado e rebitado como o de Rabelais ou Sócrates”; os lábios, o queixo, a barba grisalha e pontiaguda; os olhos, “aparentemente esmaecidos pela idade”, os quais ganham, da parte do enunciador, a força do contraste representado pelo “branco perolado no qual flutuava a pupila”.

Terminada essa primeira tomada, a descrição do rosto tem continuidade com uma aproximação ainda maior daquele que olha em relação ao objeto olhado: “O rosto, aliás, mostrava-se singularmente carcomido pelas fadigas da idade [...]”; “Os olhos não mais tinham cílios e mal se viam traços de supercílios acima das arcadas salientes” (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:15, itálico nosso). Ao concluir o detalhamento dos traços, vistos em seus mínimos detalhes e ao mesmo tempo compondo o todo de uma cabeça, o enunciador interpela novamente o leitor para ser um coparticipante da composição, para ver com e como ele. Se anteriormente um verbo no imperativo convidou o leitor a imaginar (Imagine), nesse momento, por meio do imperativo dos verbos por, envolver, jogar, há uma espécie de ordem, no sentido de concluir a composição visual como um todo: “Ponha essa cabeça num corpo delgado e débil, envolva-o num rendado [...], jogue sobre o gibão negro usado pelo homem uma corrente de ouro e terá uma imagem imperfeita desse personagem”.

A visualização do velho/personagem depende ainda de alguns elementos composicionais, característicos do retrato, da pintura, que são enunciados/enumerados verbalmente: “[...] a luz fraca vinda da escada emprestava uma cor fantástica, como se uma tela de Rembrandt caminhasse silenciosamente e sem moldura na sombria atmosfera criada por esse grande pintor” (Balzac, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:15, itálico nosso).

Os elementos constitutivos das sequências aqui apresentadas, que antecedem a entrada do jovem pintor e do velho/personagem no ateliê do artista, lugar em que se dará toda a discussão em torno da arte e suas especificidades, são fundamentais como construção verbo-pictural que estabelece um contraponto entre os aspectos artísticos em discussão ao longo dos dois textos de Balzac. Nesse segundo parágrafo do texto, o leitor é levado a enxergar, imaginando e co-participando da composição, uma figura cujo retrato-falado retoma, de maneira verbalmente precisa, a excelência da arte do autorretrato, do retrato e do estilo em geral de um dos maiores pintores holandeses: Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669). Para concretizar essa afirmação, podemos recorrer a alguns dos trabalhos desse artista, indiciados pelo magnífico texto de Balzac, caso de Um homem velho, 163029 29 https://www.meisterdrucke.fr/fine-art-prints/Rembrandt-van-Rijn/29163/Portrait-d’un-vieil-homme.html ; Um velho com corrente de ouro, 163230 30 Art Institute of Chicago, Chicago. https://www.artic.edu/artworks/95998/old-man-with-a-gold-chain ; Autorretrato, 1636-163931 31 Norton Simon Museum, Pasadena, Califórnia. https://www.nortonsimon.org/. ; Autorretrato, 1642 (Royal Collection, Reino Unido); Retrato de um judeu velho, 165432 32 The State Hermitage Museum, São Petesbourgo. http://artetphoto.blogspot.com/2015/02/rembrandt-le-vieux-juif-1654.html ; Pequeno autorretrato, 165733 33 Museu de História da Arte, Viena. https://www.khm.at/objektdb/detail/1519 ; Autorretrato, 165834 34 Frick Collection, Nova Yorque. http://collections.frick.org/view/objects/asitem/items$0040:238 ; Autorretrato, 1657/165935 35 Scottish National Gallery, Glasgow. https://rkd.nl/nl/explore/images/29821 ; Autorretrato, 166036 36 Metropolitan Museum of Art, Nova York. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437397 ; Autorretrato com 63, 166937 37 National Gallery, Londres. https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/rembrandt-self-portrait-at-the-age-of-63 ; Autorretrato, 166938 38 Galleria degli Uffizi, Florença. https://rkd.nl/en/explore/images/29933 .

Olhando essa galeria de retratos e autorretratos, veremos que Balzac faz uma espécie de citação-colagem, de re-enunciação verbal de aspectos pictóricos que singularizam Rembrandt. Para tanto, concentra-se nas obras que têm a velhice, o velho como tema, caso, por exemplo, de Retrato de um judeu velho, de 1654, mobilizando vários outros trabalhos, por meio dos quais reconhecemos a testa, os olhos, o nariz, a pele envelhecida, a indumentária e também, as particularidades da luz, da sombra, da cor, elementos característicos do extraordinário pintor holandês. Com um pouco de distância, percebemos que o conjunto remete, por meio da designação velho/personagem, a uma construção artística pré-existente, a uma assinatura conhecida e reconhecida no campo das artes visuais. Antes mesmo de Rembrandt ser mencionado nominalmente, suas marcas, seus traços estilísticos já estão presentes, por exemplo, no delineamento do nariz pequeno, achatado e rebitado, feito a partir da comparação com o de Rabelais ou de Sócrates.

A evocação de um traço fisionômico característico das obras elencadas (ver, por exemplo, o Autorretrato, 1660)39 39 Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. https://www.metmuseum.org/pt/art/collection/search/437397 traz, não por acaso, dois conhecidos nomes, um pertencente à literatura e outro à filosofia, o que acrescenta mais ingredientes a essa cena pictórica inicial. O escritor francês François Rabelais (1493/94-1553), conhecido por suas obras Gargantua e Pantagruel, é um exemplo de irreverência, de resistência e de crítica à Idade Média. Além disso, foi também poeta e um de seus poemas, A divina garrafa, por ser verbovisual, o coloca como precursor da moderna poesia visual. Sócrates (470-399 a. C), por sua vez, não deixou obra escrita e o conhecemos principalmente como personagem dos famosos Diálogos de Platão (427-347 a.C.), seu discípulo. É preciso acrescentar aqui mais um aspecto a respeito desse filósofo e seu método: em suas discussões, o interlocutor é conduzido por meio do diálogo, sendo essa primeira fase conhecida como de ironia ou refutação.

Até o final desse parágrafo, quando ambos, o jovem e o velho/personagem adentram o ateliê do pintor Porbus, um retrato foi se materializando diante do leitor, com detalhes que alimentam a imaginação, constroem a imagem visual que, estratégica, persuasiva e dialogicamente se oferece, em termos de figura, de técnicas de luz e sombra, como o retrato de Mestre Frenhofer, personagem central, protagonista não apenas desse retrato inicial, mas de toda a discussão que, desenvolvendo-se em espaços de pintura, o ateliê de Porbus e o do Mestre, marcam a história da arte até hoje.

E é com esse retrato-falado-escrito em mente, tendo essas figuras emblemáticas (Rembrandt, Rabelais, Sócrates, Poussin, Porbus e especialmente o fictício Mestre Frenhofer) como referência, que o leitor acompanha, dialogicamente, a discussão filosófico-artística-literária conduzida pela minuciosa aula teórico-prática de Frenhofer, tendo Porbus e Poussin como ávidos interlocutores.

Veja isso, meu rapaz”, disse o velho sem se virar, “está vendo como três ou quatro toques e um pequeno esfumado azul podem fazer o ar circular ao redor da cabeça desta pobre santa que devia estar sufocando, envolta nessa atmosfera pesada? Veja como esse drapeado agora balança e como percebemos que a brisa o levanta! Antes ele parecia um pano engomado preso por alfinetes. Repare como o acetinado reluzente que coloco no peito dela evidencia a plasticidade untuosa da pele de uma jovem e como este tom de marrom avermelhado e ocre calcinado esquenta a frieza cinzenta desta grande sombra na qual o sangue se imobilizava em vez de correr”. [...] Enquanto falava o estranho homem tocava em todas as partes do quadro: aqui, duas pinceladas; ali, apenas uma, [...]Venham, minhas caras pinceladas, deem uma cor a esse tom glacial! Vamos! Pá, pá! pá!”, ele dizia, aquecendo as partes onde percebia uma ausência de vida, fazendo desaparecer sob algumas placas de cor as diferenças de temperamento e restabelecendo a unidade de tom exigida por uma ardente mulher egípicia. (BALZAC, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:22-23)

Ao mesmo tempo em que acompanham o raciocínio e o fazer genial do mestre, implicando a materialidade pictórica (desenho, luz, cores, linha, etc.) e os problemas da representação, queriam ver sua obra-prima, pois ele afirmara que: “Há dez anos trabalho nessa tela, meu rapaz” (BALZAC, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:27). Finalmente diante da obra, os dois pintores ouviram:

Não é uma tela, é uma mulher! [...] Esta mulher não é uma criatura, é uma criação. [...] “Oh!, ele já está terminado”, disse Frenhofer. Quem o vir pensará estar observando uma mulher deitada num leito de veludo, por trás do cortinado de um dossel (BALZAC, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:36-37)

[...]

“Aqui está! [...] vocês não esperavam tanta perfeição! Estão diante de uma mulher e ficam procurando por um quadro” [...] “Você está vendo alguma coisa?”, perguntou Poussin a Porbus. “Não. E você?”. “Nada”. [...] “Só estou vendo cores confusamente espalhadas umas sobre outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura” (BALZAC, 2012BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.:41-42).

O mistério em torno dessa obra-prima ignorada, ou obra-prima desconhecida [Le Chef-d’œuvre inconnu], que desaparece em um incêndio provocado por Frenhofer, na mesma noite de sua morte, se eterniza na história da arte, como se pode constatar, para citar apenas dois, nos produtivos ensaios: Entre a vida e a arte (COELHO, 2012COELHO, Teixeira. 2012. Entre a vida e a arte. In: BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada. Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras . p. 49-108.) e A pintura encarnada (DIDI-HUBERMAN, 2012DIDI-HUBERMAN, Georges. 2012. A pintura encarnada. Seguido de A obra-prima desconhecida, de Honoré de Balzac. São Paulo: Escuta/Editora FAP-UNIFESP.). A nossa escolha pelo retrato inicial se deu não para discutir esse fabuloso texto de Balzac como um todo, em sua profundidade filosófico-artística, mas apreender sua genialidade ao compor, com palavras, um retrato inicial que instaura discursos sobre a arte conhecida e reconhecida. Impregnado por esses discursos, que percorrem a discussão ao longo das duas narrativas, o leitor ouve/lê Frenhofer com a escuta atravessada pelo conhecido. Diante do diferente, de outra forma de fazer arte, o leitor se decepciona, sem qualquer parâmetro para julgar o quadro, exatamente como fazem as personagens que encarnam os grandes pintores clássicos Poussin a Porbus, ao afirmar: “Nada”. [...] “Só estou vendo cores confusamente espalhadas umas sobre outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura”. Isso ajuda a entender a razão desse Balzac ser livro de cabeceira dos pintores Paul Cézanne (1839-1906) e Pablo Picasso (1881-1973), que viam no quadro de Frenhofer/Balzac uma premonição de suas próprias inovações artísticas.

6. Resumidas conclusões

As reflexões apresentadas neste artigo dizem respeito a resultados de dois projetos de pesquisa articulados: “Discursos de resistência, tradição e ruptura” (CNPq), do qual uma das autoras é coordenadora e outra participante, e “Poder e resistência: tradição e ruptura em discursos verbais e verbo-visuais” (FAPESP) proposto por uma das autoras, na condição de pesquisadora visitante do LAEL (2019). Ambos procuram centrar-se em discursos de resistência, configurados por diferentes gêneros, artísticos e não artísticos, que tomam como objeto de enfrentamento questões que afetam a sociedade de maneira geral ou específica, quer do ponto de vista político, social, cultural, acadêmico, científico ou de qualquer outra natureza. As reflexões sobre as dimensões verbais, visuais e verbo-visuais dos textos constituem um dos centros articuladores dessas pesquisas.

Tendo as autoras se dedicado, em outras produções, à dimensão verbo-visual e visual de textos de diferentes gêneros, neste artigo, em consequência de questões discutidas por meio de análises feitas em disciplinas conjuntas, o objetivo foi mostrar a força visual construída por determinados textos verbais e, em um caso, verbo-visual (Magritte). Acreditamos que o recorte aqui apresentado se insere na perspectiva de texto de resistência, incluindo aí o retrato falado que, apesar de toda tecnologia utilizada hoje em dia, ainda precisa da audição do perito que, como artista, produz um retrato.

No presente estudo, os textos analisados configuram-se como discursos de resistência, primeiramente, pela dimensão político-cultural do embate que se trava no texto de Benjamin e, na segunda análise, pela dimensão estético-cultural do embate em que se move o texto de Balzac. Em ambos, outros discursos, nem sempre explicitados, mas convocados pelos autores, constituem a arena de produção de sentido - por exemplo de Adorno e de Marx em Benjamin, e de Rabelais e Sócrates em Balzac. Em especial, no texto de Balzac, há o embate entre imagens - o quadro do atelier, os quadros de Rembrandt e a pintura de Poussin. Este último aparece na ficção de Balzac como um jovem observador mas, para o leitor de Balzac, situado em outra temporalidade, a obra do célebre pintor também entra em diálogo com as demais. Entretanto, todas essas imagens engendram-se, exclusivamente, nas e pelas palavras de Balzac.

Para as autoras, em seu trabalho de leitura e análise, novos diálogos revelaram-se pertinentes, notadamente com Quintana e com Magritte. Claro está que nossos leitores ampliarão a roda com novos nomes e vozes o que apenas confirmará a fertilidade dos textos escolhidos.

Privilegiamos as análises, em detrimento da apresentação teórica (diferentemente de outros trabalhos realizados por nós e referidos ao longo da exposição), na medida em que esse é um ponto, como pudemos constatar ao longo dos trabalhos conjuntos, realizados no Brasil e na França, que os leitores/ouvintes (discentes ou docentes) solicitam e demonstram maior dificuldade e, consequentemente, mais interesse.

Esperamos com este artigo, construído a quatro mãos, colaborar para uma compreensão ampla, por um lado, e aprofundada por outro, do sentido de discursos de resistência empreendidos em cada um dos textos/trechos aqui trabalhados. Do mesmo modo, a relação entre palavra e imagem reveste-se aqui de um caráter intrínseco na medida em que, sem recorrer à materialidade visual, engendra-se apenas pela arte da palavra.

Referências

  • AMORIM, Marilia. 2020. O discurso da dança e o conceito de gênero - alguns elementos de leitura. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 64-96, June 2020 64-96, June 2020 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732020000200064&lng=en&nrm=iso >. Access on 17 May 2020.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732020000200064&lng=en&nrm=iso
  • ARAGON, Louis. 1926. Un paysan à Paris Paris: Editora Gallimard.
  • BAKHTIN, Mikhail. 2003. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética da criação verbal 4. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. p. 3-192.
  • BALZAC, Honoré de. 2012. A obra-prima ignorada Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras.
  • BALZAC, Honoré de. 1993 [1831] Le chef-d’œuvre inconnu Paris : Mille et une nuits.
  • BENJAMIN, Walter. 2007a. Sens Unique Tradução Jean Lacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau.
  • BENJAMIN, Walter. 2007b. Fournitures de bureau. In: Sens unique Tradução Pierre Jacoste. Paris: Editora Maurice Nadeau , p. 206-207.
  • BENJAMIN, Walter. 2013a. Sens Unique Tradução de Frédéric Joly. Paris: Payot.
  • BENJAMIN, Walter. 2013b. Equipamento de escritório. In: BENJAMIN, W. Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Edição e tradução João Barreto. Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora.
  • BENJAMIN, Walter. 2015. Rue à sens unique Tradução Anne Longuet Marx. Paris: Allia.
  • BENJAMIN, Walter. 1991. Ecrits français Présentés par J-M. Monnoyer. Paris: Gallimard.
  • BENJAMIN, Walter. 1987a. Rua de mão única In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas II Trad. Rubens R. Torres Filho & José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense. p. 9-69.
  • BENJAMIN, Walter. 1987b. Artigos de escritório. In: Rua de mão única BENJAMIN, W. Obras escolhidas II Trad. Rubens R. Torres Filho & José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense . p. 55-56.
  • BENJAMIN, Walter. 1928. Einbahnstraße Berlim: Editora Ernst Rowohlt Verlag.
  • BENJAMIN, Walter. 1985. A imagem de Proust; Pequena história da fotografia; A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política Ensaios sobre literatura e cultura. Obras Escolhidas, volume 1, p. 36-49; p. 91-107; p. 165-196.
  • BENJAMIN, Walter. 2000. Paris capitale du XXème siècle In: Œuvres complètes Paris: Gallimard . Vol. III, p. 44-66.
  • BRAIT, Beth. 2014a. Revisitando mitologias pelas lentes dialógicas. Desenredo (PPGL/UPF), v. 10, p. 9-30.
  • BRAIT, Beth. 2013. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 8, p. 43-66, 2013. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso Acesso em 12/04/2020.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso
  • BRAIT, Beth. 2010. o poema-retrato. In: BRAIT, B. Literatura e outras linguagens São Paulo: Contexto. p. 224-227.
  • BRAIT, Beth; LOPES-DUGNANI, Bruna. 2014b. Em cartaz, a cara e o corpo da linguagem das ruas! In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, p. 116-132.
  • BRAIT, Beth; MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. (Org.). 2014c. Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota .
  • COELHO, Teixeira. 2012. Entre a vida e a arte. In: BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada Organização, tradução e estudo Teixeira Coelho. São Paulo: Iluminuras . p. 49-108.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. 2012. A pintura encarnada Seguido de A obra-prima desconhecida, de Honoré de Balzac. São Paulo: Escuta/Editora FAP-UNIFESP.
  • GUIMARÃES, Arthur. 2009. Retratistas transformam lembranças traumáticas em pistas para prender criminosos. São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 São Paulo: UOL Notícias, 29/12/2009, 07h00 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/29/ult5772u6711.jhtm Acesso em 08/04/2020.
    » https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/29/ult5772u6711.jhtm
  • MAGRITTE, René. 2016a. [1979] Lettre à A. De Waelhens du 17 avril de 1963. Citée dans Écrits complets Édition établie et annotée par André Blavier. Paris: Flammarion. p. 392. Apud Didier Ottinger, Ut pictura philosophia. Portrait de Magritte en philosophe. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 24.
  • MAGRITTE, René. 2016b. [1938]. Conferência proferida no Musée Royal des beaux-arts d’Anvers, em 20 de novembro de 1938. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou, p. 30-37.
  • MAGRITTE, René. 2016c [1929]. Les mots et les images, 1929, Collection particulière. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte La trahison des images p. 58-59.
  • MAGRITTE, René; SERVRANCKX, V. 2016d [1979]. L’art pur. Défense de l’esthétique. Écrits complets Édition établie et annotée par André Blavier. Paris: Flammarion . p. 19. Apud Klaus Speidel, Des signes arbitraires aux affinités électives. In: OTTINGER, D. 2016. (Dir.) Magritte. La trahison des images, Paris: Editions du Centre Georges Pompidou . p. 65.
  • MORAES, Melina Xavier de Sá. 2012. A representação artística: literatura e pintura Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Letras, Instituto de Letras e Linguística da UFU. https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/11840 Acesso em abril de 2020.
    » https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/11840
  • OTTINGER, Didier. 2016a. (Dir.) Magritte. La Trahison des images Paris: Editions du Centre Georges Pompidou .
  • OTTINGER, Didier. 2016b. Mots, ombres, flammes, rideaux, fragments. Magritte et les mythes fondateurs de la peinture. In: OTTINGER, D. (Dir.) Magritte. La Trahison des images Paris: Editions du Centre Georges Pompidou . p. 54.
  • PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. 1996. [1958]. Tratado da argumentação. A nova retórica. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes .
  • QUINTANA, Mário. 1976. Apontamentos de história sobrenatural Porto Alegre: Editora Globo/Instituto Estadual do Livro.
  • ROCHLITZ, Rainer. 2000. Présentation. Œuvres Tradução do alemão Maurice de Gandillac et al Paris: Gallimard Folio. Vol. I. [3 Volumes]
  • 3
    Agradecemos à FAPESP, Proc. 2019/09683-0, a possibilidade da pesquisa conjunta LAEL/PUC-SP/Paris8, da qual este artigo é um dos resultados.
  • 7
    Com o projeto “Poder e resistência: tradição e ruptura em discursos verbais e verbo-visuais”, Marilia Amorim atuou como pesquisadora visitante do LAEL, nos meses de setembro e outubro de 2019, a convite de Beth Brait e com apoio da FAPESP. Além de outras atividades, dividiu a disciplina Pesquisa em Ciências Humanas: produção e leitura de palavras, imagens, gestos, palavras-imagens-gestos em diferentes esferas de atividades, uma das fontes deste artigo.
  • 8
    GP/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória, do qual Brait é líder e Amorim participante.
  • 9
    Essas reflexões resumem, com modificações, Brait (2010BRAIT, Beth. 2010. o poema-retrato. In: BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto. p. 224-227.:224-227).
  • 10
    No original: “La vision est une pensée [...] sans idée, mais non sans pensée ce qui serait absurde”.
  • 11
    Todas as traduções foram feitas por Marilia Amorim.
  • 12
    No original: “[...] mes expériences précédentes ayant abouti à la représentation abstraite du monde, devenaient inutiles du moment que cette abstraction même caractérisait également le monde réel”.
  • 13
    No original: “Comme ces recherches ne pouvaient donner pour chaque objet qu’une seule réponse exacte, mes investigations ressemblaient à la poursuite de la solution de problèmes dont j’avais trois données : l’objet, la chose attachée à lui dans l’ombre de ma conscience et la lumière où cette chose devait parvenir”.
  • 14
    No original “[...] le problème de la porte dans La Réponse Imprévue ; le problème de la fenêtre dans La Condition Humaine; l’arbre comme objet de problème dans La Géante; L’Invention Collective est la réponse au problème de la mer; le problème de la lumière dans La Lumière des coïncidences”.
  • 15
    No original: Les mots et les images.
  • 16
    No original: “Une image peut prendre la place d’un mot dans une proposition” ou “Dans un tableau, les mots sont de la même substance que les images”, ou “Il y a des objets qui se passent de nom ». A palavra francesa nom tanto pode significar “nome” como “substantivo”.
  • 17
    No original: “Pour affirmer la dignité intellectuelle de sa peinture, pour la hausser au niveau de la poétique d’abord, de la philosophie ensuite, Magritte la soumet à un processus de rationalisation, en s’efforçant de doter son iconographie de l’objectivité qui est celle d’un vocabulaire. C’est le sens d’une série de tableaux [...] qui s’applique à la recension de motifs de la prédilection du peintre (l’oiseau, la pomme…) dont l’œuvre explore à l’infini le sens et les combinaisons. La signification de ces ‘phonèmes iconographiques’ s’enracine dans la connaissance que possède Magritte de la peinture ancienne [...]”.
  • 18
    No original: “[...] un tableau est un objet construit. Il faut qu’il soit bien construit; c’est une condition de vie: exactitude, logique, économie, probité; l’esprit qui ne se contente pas de ‘l’à-peu-près’.
  • 19
    No original: “À la fonction métaphysique et théologique que les premiers écrits [...] assignent à la littérature, se superposera et se substituera ensuite sa fonction politique”.
  • 20
    Benjamin escreveu muitos textos diretamente em francês. Ver: Benjamin (1991BENJAMIN, Walter. 1991. Ecrits français. Présentés par J-M. Monnoyer. Paris: Gallimard.).
  • 21
    No original de Sens unique: “Cette rue s’appelle RUE ASJA LACIS du nom de celle qui en fut l’ingénieur et l’a percé dans l’auteur.” Na primeira tradução brasileira (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. 1987a. Rua de mão única. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas II. Trad. Rubens R. Torres Filho & José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense. p. 9-69.): “Esta rua chama-se Asja Lacis em homenagem àquela que na qualidade de engenheiro a rasgou dentro do autor”.
  • 22
    No original: “Le bureau du patron est hérissé d’armes. Ce qui séduit le visiteur et lui semble du confort est en vérité un arsenal camouflé”.
  • 23
    No original: “Le fauteuil produit aussi son effet: on y est assis très profondément renversé, comme chez le dentiste, et l’on finit alors par prendre le procédé pénible pour le cours ordinaire des choses”.
  • 24
    No original: “arsenal, armes, camouflé, fourbir ses armes, hérissé; une chance à saisir, glisser, abandonner son propre point de vue”.
  • 25
    No original: “Une liquidation ne manque pas tôt ou tard de faire suite à ce traitement”.
  • 26
    No original: “sonne à chaque instant”; “coupe la parole du visiteur au moment le plus important”; “le temps de fourbir sa réponse”; “pendant ce temps”; “on commence lentement à glisser”; “on commence à se demander”; “on est bientôt à ce point solidaire de la firme, que la migraine dont il se plaint au téléphone [...] et non comme une chance à saisir”.
  • 27
    Não conseguimos ter acesso em tempo útil a uma terceira tradução francesa (Benjamin, 2013aBENJAMIN, Walter. 2013a. Sens Unique. Tradução de Frédéric Joly. Paris: Payot.).
  • 28
    Em português, usamos o substantivo nécessaire para designar a bolsinha que levamos em viagem com as miudezas que consideramos indispensáveis.
  • 29
  • 30
  • 31
    Norton Simon Museum, Pasadena, Califórnia. https://www.nortonsimon.org/.
  • 32
  • 33
    Museu de História da Arte, Viena. https://www.khm.at/objektdb/detail/1519
  • 34
  • 35
    Scottish National Gallery, Glasgow. https://rkd.nl/nl/explore/images/29821
  • 36
    Metropolitan Museum of Art, Nova York. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437397
  • 37
  • 38
    Galleria degli Uffizi, Florença. https://rkd.nl/en/explore/images/29933
  • 39
    Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. https://www.metmuseum.org/pt/art/collection/search/437397

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2020
  • Aceito
    02 Set 2020
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br