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A perspectivação conceptual em autocitação factiva e fictiva

Construal operations in fictive and factive selfquotation

Resumos

Este artigo analisa o fenômeno da Autocitação Factiva e Fictiva sob a ótica perspectivação conceptual ou construal, tendo em vista trabalhos de Talmy (1996, 2000), Langacker (1999, 2008), Verhagen (2005, 2007) e Rocha (2006a e b, 2010). Com base em dados extraídos de corpora em Português Brasileiro e Europeu para fins exclusivamente qualitativos, postula-se que o discurso direto, em forma de autocitação, dispõe de instâncias factivas de seus tipos comunicativos como diametralmente opostas, mas contíguas, às suas instâncias fictivas, gerenciadas por operações de construal ora mais subjetificantes, ora mais objetificantes.

fictividade; autocitação; perspectivação conceptual; subjetificação


This paper analyzes the phenomenon of factive and fictive selfquotation in terms of construal operations according to Talmy (1996, 2000), Langacker (1999, 2008), Verhagen (2005, 2007), and Rocha (2006a e b, 2010). Based on data extracted from Brazilian and European Portuguese corpora for qualitative purposes, the selfquotation frame of direct speech shows factive instances of their communicative types as diametrically opposed, but contiguous, to its fictive instances. In a continuum, these instances are respectively managed by objective or subjective construal operations.

fictivity; selfquotation; construal; subjectification


ARTIGOS ARTICLES

A perspectivação conceptual em autocitação factiva e fictiva* * Este artigo é um dos produtos intelectuais resultantes do projeto de pesquisa Construções gramaticais de conversa fictiva: convergências entre frames cognitivos e interacionais (bolsista da CAPES - Processo: BEX 4084/10-1), desenvolvido durante cumprimento de estágio pós-doutoral (2010-2011), sob supervisão do Prof. Dr. Augusto Soares da Silva, em regime de colaboração com o Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos da Universidade Católica Portuguesa (CEFH-UCP), Centro Regional de Braga (Portugal), no âmbito da linha de investigação Estudos Linguísticos e Literários e do projeto Linguística Cognitiva do Português: semântica e gramática.

Construal operations in fictive and factive selfquotation

Luiz Fernando Matos Rocha** ** Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (FALE-UFJF), Minas Gerais, Brasil. E-mail: luiz.rocha@ufjf.edu.br. Página de entrada do PPG-Linguística: http://www.ufjf.br/ppglinguistica/.

Universidade Federal de Juiz de Fora - FALE-UFJF, E-mail: luiz.rocha@ufjf.edu.br

ABSTRACT

This paper analyzes the phenomenon of factive and fictive selfquotation in terms of construal operations according to Talmy (1996, 2000), Langacker (1999, 2008), Verhagen (2005, 2007), and Rocha (2006a e b, 2010). Based on data extracted from Brazilian and European Portuguese corpora for qualitative purposes, the selfquotation frame of direct speech shows factive instances of their communicative types as diametrically opposed, but contiguous, to its fictive instances. In a continuum, these instances are respectively managed by objective or subjective construal operations.

Key-words: fictivity; selfquotation; construal; subjectification.

RESUMO

Este artigo analisa o fenômeno da Autocitação Factiva e Fictiva sob a ótica perspectivação conceptual ou construal, tendo em vista trabalhos de Talmy (1996, 2000), Langacker (1999, 2008), Verhagen (2005, 2007) e Rocha (2006a e b, 2010). Com base em dados extraídos de corpora em Português Brasileiro e Europeu para fins exclusivamente qualitativos, postula-se que o discurso direto, em forma de autocitação, dispõe de instâncias factivas de seus tipos comunicativos como diametralmente opostas, mas contíguas, às suas instâncias fictivas, gerenciadas por operações de construal ora mais subjetificantes, ora mais objetificantes.

Palavras-chave: fictividade; autocitação; perspectivação conceptual; subjetificação.

1. INTRODUÇÃO

Em Linguística Cognitiva (LC), os termos fictivity ou fictive podem ser aplicados a certas expressões linguísticas que estão apenas indiretamente vinculadas a seus referentes pretendidos, as quais evocam cenários concebidos como não-verídicos com o propósito de se obter acesso mental aos cenários concebidos como verídicos. Tendo em vista trabalhos como o de Talmy (1996/2000), no exemplo "A cerca vai do platô até o vale", uma parte de nossa cognição pode perceber a imagem de algo em movimento, percorrendo o caminho que vai do platô ao vale. Contudo, outra parte de nossa cognição pode avaliar essa imagem como irreal, preservando a concepção de que nada na cena está se movimentando na realidade. Considerando esse tipo de conflito cognitivo interno, a imagem avaliada como irreal é fictiva.

Talmy (1996/2000) afirma que representações fictivas são concebidas como menos verídicas, sem sugerir que se trata de uma representação objetivamente real ou externa; enquanto as factivas, como mais verídicas, sem indicar que se trata de uma representação objetivamente irreal, como a palavra "fictício" sinalizaria. Desse modo, este artigo reivindica formalmente, para o português, a cunhagem dos termos fictividade e fictivo(a) como traduções dos termos em inglês fictivity e fictive. Por se distinguirem do que se entende por ficção, não remetem a um cenário concebido como imaginário e irreal, mas a dispositivos linguísticos de simulação que apontam para cenários concebidos como não-verídicos.

Quando usado para fins de autocitação (discurso reportado em que o falante cita suas próprias falas ou seus pensamentos), o discurso direto, por exemplo, com dêixis de primeira pessoa, apresenta instâncias factivas de seus tipos comunicativos como diametralmente opostas, mas contíguas, às suas instâncias fictivas - hipótese desdobrada a partir de Rocha (2004, 2006a, 2006b e 2010). Em outros termos, um mesmo padrão canônico de discurso reportado pode configurar-se como um modo não-virtual e/ou factivo, de natureza reportativa, para evocar discursos avaliados como efetivamente construídos; ou ainda, configurar-se como um modo fictivo, de natureza apreciativa, para evocar discursos avaliados como apenas mentalmente construídos.

Extraídos aleatoriamente do Corpus NURC1 1 . Corpus do português brasileiro desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), no âmbito do Projeto Norma Linguística Urbana Culta - RJ ( http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/ [consultado em 11-03- 2011]). , com o objetivo de apenas emblematizar o fenômeno tratado, o exemplo (a) abaixo ilustra a Autocitação Factiva (AFac), enquanto (b), sua contraparte Fictiva (AFic), respectivamente. Ambos contam com o mesmo verbo enunciador de fala reportada ("disse"), em primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo:

(a) Acontece que quando eu resolvi estudar na faculdade e o piano ocupava demais, né? Você para estudar piano, pra vo... estudar piano precisa estudar horas, horas, horas, horas. Então ou, eu tinha que optar, ou estudar piano ou então estudar na faculdade. Então eu disse pro meu pai: eu prefiro estudar na faculdade. E de... eh, desliguei totalmente da música, eu gosto de ouvir música, viu?

(b) A primeira vez que eu o vi, eu devia ter doze pra treze anos e ele cinco anos mais velho que eu, eu olhei e disse: eu vou namorar esse cara. Não sei como não, mas eu vou namorar esse cara. Aí alguns, alguns anos depois, acho que uns dois anos depois, ele mudou-se pra perto da minha casa.

Em (a), a leitura factiva da autocitação em destaque apoia-se, sobretudo, no sintagma direcional "pro meu pai", com função temática de alvo metafórico. Considerado uma zona ativa2 2 . Conceito vinculado à predicação relacional central feita por verbos e preposições. Zona ativa é a área focal da interação relacional. As porções de um trajetor ou marco que participam diretamente de uma dada relação são referidas como sua zona ativa. No exemplo, Seu cachorro mordeu meu gato, o trajetor "cachorro" participa do processo designado como "morder" focalmente com os dentes, e o "gato" (marco), com a área afetada. É possível explicitar as zonas ativas, assinaladas em negrito, quando se diz: Seu cachorro, com os dentes bem afiados , mordeu meu gato no rabo . explicitada (Langacker 1991), vincula-se à participação de certos elementos mais diretos e centrais para a relação de destinação conceptual; no caso, estabelecida entre o trajetor "eu" e o marco "meu pai" 3 3 . Langacker (2008:7) explica que "o participante mais proeminente, chamado trajetor (tr), é a entidade construída como sendo localizada, avaliada ou descrita. De modo impressionístico, pode ser caracterizada como foco primário dentro da relação perfilada. Frequentemente, um outro participante se torna proeminente como foco secundário. Desse modo, é chamado de marco (m)". , via predicação relacional "disse pro" (verbo-preposição). Entretanto, em (b), dois aspectos básicos contribuem para que se interprete epistemicamente o verbo "disse", contribuindo para a leitura fictiva da autocitação em destaque:

(i) o conteúdo informacional que a precede e a sucede pressupõe a ausência de diálogo reportado entre conceptualizadores; no caso, a falante de (b) e o sujeito sobre o qual ela fala - o verbo "olhei", por exemplo, também pode ser epistemicamente perfilado;

(ii) a natureza prospectiva do encaixe Oracional é sustentada pela perífrase verbal com verbo "ir" ("eu vou namorar esse cara"), sinalizando futuro, associada a um distanciamento dêitico-epistêmico entre a marcação morfopragmática de primeira pessoa em "vou" e a expressão referencial "esse cara". Se fôssemos conceber como mais factiva a autocitação de (b), a dêixis de pessoa de "esse cara" deveria mudar de terceira para segunda, com o uso de "você", por exemplo, para acessar o mesmo referente de "esse cara". Contudo, no caso (b), o encaixe mantém a dêixis de terceira pessoa, como se estivéssemos diante de um discurso indireto sem o complementizador "que".

Os aspectos (i) e (ii) apontam para uma reportação preferencialmente monológica, afeita a contextos digressivos e subjetificadores de enunciação, em que se proliferam conteúdos expressivos de emoção, fictivamente perspectivizados. Com isso, o verbo "dizer" (ou o "falar" em outros contextos) passa a perfilar nuances epistêmicas, equivalentes a dos verbos "considerar", "avaliar" e "pensar". Isso possibilita um desemparelhamento entre a forma dos verbos "dizer" e "falar" e a função dicendi atrelada a eles, que passa a ser sentiendi.

Uma vez que uma AFic é um padrão não-canônico proveniente do padrão canônico de discurso direto, pode ser que se configure como uma consequência direta de processos de gramaticalização e, principalmente, como um produto do padrão geral de fictividade (Talmy 1996:212), em que "duas representações discrepantes - embora não excludentes - estão em desacordo com relação a alguma dimensão, representando pólos opostos dessa dimensão (AFac e AFic, comentário meu)". O conceito de fictividade pode ser assim sumarizado:

A Linguística Cognitiva tem mostrado repetidamente que a Fictividade é absolutamente fundamental no pensamento e na linguagem. Geralmente, presume-se que expressões linguísticas estão apenas indiretamente vinculadas a seus referentes pretendidos e que cenários não-verídicos são frequentemente apresentados pelos usuários da língua com o propósito de obter acesso mental aos cenários efetivos (Pascual 2006:246, tradução minha).4 4 . "Cognitive linguistics has shown time and again that fictivity is absolutely fundamental in thought and language. It is generally assumed that linguistic expressions are only indirectly linked to their intended referents and that non-veridical scenarios are often introduced by language users in order to gain mental access to actual ones" (Pascual 2006:246).

Já a factividade pode ser entendida nos termos de Talmy (1996), segundo a qual uma representação é percebida no nível concreto de palpabilidade como sendo verídica, algo que se vê e é experienciado como completamente manifesto, claro e vívido. Por razões como essa, não é o caso de se aplicar aqui a noção clássica de verificação de condições de verdade, pois, para este estudo, é irrelevante saber se o falante proferiu ou não o discurso relatado, mas importa saber se a representação mimética desse discurso reportado é avaliada pelos conceptualizadores5 5 . Segundo Langacker (2008), falante e ouvinte são conceptualizadores por natureza pela capacidade de apreensão do significado das expressões linguísticas. como mais ou menos factiva ou verídica, como mais ou menos fictiva ou não-verídica.

A AFac, como um tipo de referência direta ou descrição da "realidade", é um ponto de partida6 6 . Sugere-se que "partidas advindas da descrição direta da EFETIVIDADE são ubíquas e fundamentais em linguagem" (Langacker 1999:78) - "[...] departures from the direct description of ACTUALITY are ubiquitous and fundamental in language" (Langacker 1999:78). para AFic: tipo comunicativo de fictividade discursiva, mais restrito ao tipo textual narrativo de caráter oral, em que o frame da construção de discurso direto, em formato de autocitação, é interacionalmente acionado, porém parcialmente vinculado ao referente pretendido. Por meio de um cenário não-verídico de reportação discursiva, o agente locutório remete-se a um cenário prévio e suposto de fala, com propósito efetivo de permitir acesso mental ao cenário verídico de pensamento.

A AFic não se configura como um tipo de citação direta, ou mesmo paráfrase, de enunciados realmente proferidos em trocas comunicativas ou inventados; sendo, na verdade, avaliada como objetivamente atual7 7 . Opto por traduzir o termo actual (oposto de virtual em Langacker 1987, 1999 e 2008) por "atual" ou "efetivo". O termo "real" seria admitido apenas no sentido de realidade como conceptualmente reificada. O conceito de fictividade (Talmy 1996; Langacker 1987) é análogo ao de virtualização, de Pierre Lévy (1996/2009), em que virtual se opõe ao atual por se tratar de um complexo problemático que invoca uma atualização, isto é, invenção ou criação de uma solução potencialmente exigida pelo virtual, como a árvore que está virtualmente na semente, cujo "problema" é brotar; ou ainda, o meio virtual da ultrassonografia que permite o interior "passar" ao exterior permanecendo no interior, como na descoberta do sexo do bebê. Através do virtual, acessamos o atual, elemento vigente ou presente. ; no entanto, subjetivamente virtual. Respectivamente, isso significa dizer que a AFic é presentificada como situação efetiva, mas veiculada por meio de um processo abstrato e indireto de subjetificação ("dizer" ou "falar" em vez de "pensar, considerar"). Do modo como se apresentam, AFac e AFic constituem construals distintos entre si, porém suas bases canônicas de discurso reportado os aproximam, à medida que podem se configurar como instâncias da construção semi-aberta (EU) DIZER/FALAR X-Oracional (PARA Y), a saber: (i) (EU) DIZER/FALAR (sentido factivo: proferir, verbalizar, etc.) X-Oracional (PARA Y); e (ii) (EU) DIZER/FALAR (sentido: ponderar, considerar, etc.) X-Oracional.

Partindo da apresentação inicial do objeto de investigação, este artigo trata, em seguida, das noções gerais em torno da perspectivação conceptual, ao mesmo tempo que as discute tendo em vista o fenômeno da Autocitação Fictiva e Factiva. A análise concentra-se na adaptação do modelo teórico de construal proposto por Verhagen (2005, 2007) a dados reais de fala em Português Europeu (PE) e Português Brasileiro (PB), focalizando a contraparte cognitiva de AFic e AFac. Por conta disso, tal modelo teórico passa por ajustes, devido às especificidades dos objetos em questão, o que, de certa forma, contribui para o aperfeiçoamento das categorias analíticas pressupostas.

2. AS OPERAÇÕES GERAIS DE CONSTRUAL

As classificações quanto às operações de capacidade humana de perspectivação conceptual (construal) vêm sendo revistas e atualizadas com certa frequência por estudiosos em LC, como, por exemplo, Langacker (1987, 2008), Talmy (1988, 2000), Croft e Cruse (2004) e Verhagen (2005, 2007). Considerando que

[...] um falante que cuidadosamente observa a distribuição parcial de certas estrelas pode descrevê-las então em modos muito distintos: como uma constelação, como um agrupamento de estrelas, como pontos de luz no céu, etc. Tais expressões são semanticamente distintas; elas refletem construals alternados da cena pelo falante, cada um compatível com suas propriedades objetivamente dadas (Langacker 1991:61, tradução minha) 8 8 . [...] a speaker who accurately observes the spatial distribution of certain stars can describe them in many distinct fashions: as a constellation, as a cluster of stars, as specks of light in the sky, etc. Such expressions are semantically distinct; they reflect the speaker's alternate construals of the scene, each compatible with its objectively given properties (Langacker 1991:61). .

é preciso acrescentar que os conceptualizadores (falante e ouvinte), ao se virem diante de um mesmo construal, podem, ainda assim, dependendo de dimensões subjetivas, impor ao perfil construcional leituras similares ou discrepantes. Aplicando-se então os termos de Langacker (1987) ao objeto de investigação, temos três operações básicas de perspectivação conceptual, ou "ajustes focais", a saber:

(i) Seleção (Proeminência a partir do trabalho de 2007): segundo a qual o conceptualizador seletivamente observa uma faceta da conceptualização em detrimento de outras. Por isso, ele se licencia a privilegiar ora a faceta fictiva do fenômeno, ora seu correspondente factivo;

(ii) Perspectiva: posição a partir da qual o fenômeno é visto, considerando seus subtipos: (a) Figura e Fundo (tomada como outra parte da Proeminência no trabalho de 2007), (b) Ponto de Vista, (c) Dêixis, (d) Objetividade e Subjetividade. Assim, a autocitação mais ou menos fictiva, mais ou menos factiva, produto de uma clara relação Figura e Fundo, depende do ponto (no tempo e espaço) de onde uma situação é vista no decorrer do fluxo discursivo (Ponto de Vista), de pistas linguísticas co-textuais e contextuais no relevo do fenômeno e de seu caráter objetivo ou subjetivo;

(iii) Abstração (Especificidade a partir do trabalho de 2007): ao notar o que há de comum entre as instâncias, o conceptualizador abstrai-se das diferenças e propõe uma categoria; no caso fictivo e factivo, há similaridades formais e de significado que podem ser abstraídas como autocitação, que, por sua vez, já é um subtipo de categoria do discurso direto, um dos possíveis moldes de discurso reportado, como o discurso indireto, o indireto livre e a perspectiva implícita (cf.: Sanders e Redeker 1996).

Uma quarta classificação é adicionada em Langacker (2007) 9 9 . Verhagen (2007) afirma que, acerca das operações de perspectivação conceptual, há uma considerável sobreposição entre a proposta de Langacker e Talmy, salvo a questão da Dinâmica de Forças, ausente da classificação de Langacker. O sistema de Dinâmica de Forças recobre a representação estrutural de duas entidades que interagem fortemente em relação à oposição a uma força, à resistência a uma oposição, à superação de uma resistência, incluindo também forças de bloqueio, apoio e causação (Talmy 2000). , a Dinamicidade, que se relaciona aos desdobramentos da conceptualização por meio do tempo, entendida como processo, não como tempo concebido. Considerada conceptualização sequencial, a dinamicidade aplicada à Autocitação Factiva ou Fictiva, por exemplo, implicaria dinamizar objetos não-dinâmicos, que são mentalmente reificados pelos usuários de línguas para propósitos de "deslocamento" ou de "escaneamento" (reportação discursiva e apreciativa, respectivamente).

De acordo com Silva (2008:28), Croft e Cruse (2004) buscam uma articulação entre as tipologias de Langacker e Talmy, adicionando a elas operações como metáfora, metonímia e esquemas imagéticos, "evidenciando que as principais operações de perspectivação conceptual correspondem a capacidades e processos psicológicos que têm sido estabelecidos, independentemente, por psicólogos e fenomenologistas". Uma das operações definidas por Croft e Cruse (2004) como subcategoria da operação de Atenção/Saliência é o elemento Dinâmico, que compreende Movimento Fictivo e Escaneamento Sequencial/Sumário10 10 . Na tipologia de Talmy (2000), a fictividade geral está submetida à categoria de Dinâmica de Forças. , sendo que, para Silva (2008:4), tal elemento "pode perfeitamente ser incluído na categoria da Constituição/Gestalt".

Considerando o estudo sintético de Verhagen (2007) acerca das operações gerais de construal, é importante buscar um "espaço conceptual" de caráter geral para caracterizá-las. Aposta-se, então, na categoria da Perspectiva, visto que parece haver um consenso entre os autores em torno dela. Nos termos de Langacker (1987), a relação de perspectivação conceptual é estabelecida entre interlocutor e a situação conceptualizada descrita por ele, o que envolve ajustes focais e convencionalidade imagética. Langacker (2008) afirma que, se conceptualização é metaforicamente entendida como a visão de uma cena, Perspectiva é o arranjo da visão, o que pode ser percebido na configuração a seguir:


Envolvendo objeto e sujeito de conceptualização, a diagramação bidimensional acima determina de pronto uma distinção básica entre dois tipos de perspectivação conceptual: (i) um que envolve horizontalmente a imposição de estrutura no objeto de conceptualização (por exemplo, Atenção/Saliência e Dinâmica de Forças); (ii) outro que compreende verticalmente uma relação com a situação comunicativa (por exemplo, Dêixis e Ponto de Vista).

Verhagen (2005, 2007) reconfigura a parte inferior da Figura 1, entendida por Langacker (1987) como ground (âncora), circunstância comunicativa entre participantes de um evento, representada graficamente com apenas um visualizador (V). Verhagen (2007) acrescenta outro visualizador, formando o par de conceptualizadores (falante e ouvinte) do objeto apreciado. O propósito é levar em conta o que ele chama de "outras mentes" na relação com o objeto de conceptualização, evocando os ensinamentos de Tomasello (1999) sobre as capacidades humanas de contemplar a perspectiva de outros co-específicos, ou seja, de sermos capazes de nos colocar na "pele mental" do outro. Dessa forma, Verhagen (2007) invoca dois conceptualizadores como sujeitos de conceptualização no ground, o que condiz com os eventos de uso linguístico, nos quais, pelo menos, há um enunciador (conceptualizador 1, na figura 2) e um endereçado (conceptualizador 2, na figura 2), como se vê em seguida:


Os conceptualizadores 1 e 2 estão atencionalmente coordenados (linha horizontal que liga 1 e 2), compartilhando conhecimentos de modelos conceptuais e voltados para determinada situação discursiva (linha que verticalmente liga 1 e 2 ao objeto de conceptualização), o que se configura como um "ground comum". "O primeiro conceptualizador convida o segundo a prestar atenção conjunta a determinado objeto de conceptualização de um modo específico e atualiza o ground comum fazendo isso" (Verhagen 2007:60). O eixo vertical diz respeito à perspectivação conceptual, enquanto o horizontal inferior, à coordenação intersubjetiva, nos termos de Silva (2008).

Na esteira do espaço conceptual configurado por Verhagen (2007), diferentes expressões linguísticas podem evocar casos extremos em que:

(i) estariam envolvidos poucos elementos do ground (objetividade máxima), representado na figura 3 a seguir. As linhas tracejadas indicam que o envolvimento tênue dos sujeitos de conceptualização no perfilamento de aspectos do objeto de conceptualização, cujo negrito apontaria para a maximização objetiva do enunciado:


(iii) estariam envolvidos muitos elementos do ground (subjetividade máxima), representado na figura 4 seguinte. O negrito indica o envolvimento incisivo dos sujeitos de conceptualização no perfilamento de aspectos do objeto de conceptualização, cujas linhas pontilhadas apontariam para a maximização subjetiva do enunciado:


Como afirma Silva (2008:33):

O normal é que as expressões linguísticas se situem num contínuo entre estes dois extremos. Além disso, determinada unidade linguística pode convencionalmente desempenhar uma função em ambas as dimensões (vertical e horizontal inferior) e a preponderância de uma delas pode gradualmente mudar ao longo do tempo.

Partindo desta premissa de Silva (2008) e considerando o modelo de perspectivização de Verhagen (2007), o desafio de analisar e categorizar certos usos de AFac e AFic a partir de dados reais de fala em PE e PB torna-se um empreendimento complexo dado o caráter altamente sutil do fenômeno, cuja localização em corpora não se dá apenas por filtros eletrônicos, mas por mapeamento sobretudo manual. A decisão por categorizar as ocorrências em Autocitação Fictiva ou Factiva depende a princípio da impressão do pesquisador. Contudo, essa etapa impressionística é um obstáculo a ser ultrapassado, visto que existem pistas linguísticas e contextuais diluídas no discurso que favorecem uma leitura e/ou outra, como as observadas na análise dos exemplos (a) e (b).

De fato, estamos diante de um objeto de estudo multifacetado, visto que depende de distintas variáveis e cujo terreno é por demais movediço em virtude de se apresentar em forma de filigranas cognitivas, gramaticais e discursivas, mas sobretudo de decisivos contornos subjetivos. Ou seja, em que parte do contínuo objetividade-subjetividade se situa a Autocitação Fictiva? E como identificar a linha tênue que a separa da Autocitação Factiva? Se for o caso de se tratar de uma mesma unidade linguística que pode convencionalmente desempenhar uma função em ambas as dimensões, de perspectivação conceptual e de coordenação intersubjetiva, em que circunstâncias uma prepondera em detrimento da outra em termos sincrônicos?

3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

O percurso histórico-metodológico dos estudos sobre fictividade é similar ao da Linguística Cognitiva como um todo. Tem início com trabalhos que se baseiam puramente na intuição dos linguistas, que desenvolvem construtos epistemológicos induzidos a partir de ilustrações imagísticas e linguísticas, inventadas ou artificiais - embora completamente plausíveis -, para a postulação de realidades psicológicas e cognitivas. De modo algum, esse método fundador pode ser considerado demeritório, dado que a intuição do pesquisador é inerente à natureza da investigação científica, pois é capaz de produzir insights de grande complexidade e densidade teóricas.

Por outro lado, não há como negar que a pesquisa dessa forma orientada abre brechas generosas para novos trabalhos de investigação, talvez ainda mais desafiadores. Acomodar exemplos inventados ou artificiais à sedimentação de hipóteses é, de fato, uma etapa pioneira e importante. Todavia, isso nos impele a um árduo compromisso com a empiria, no sentido de testar no uso real da linguagem os postulados oriundos de induções simuladas.

Nesse sentido, este artigo aproxima cognição e empiria ao submeter e adaptar aportes teóricos da LC à realidade de dados linguísticos do português (brasileiro e europeu), com o propósito de se verificar a plausibilidade da aplicação conceitual, fornecendo evidências que podem contribuir para adensar as propostas de armações cognitivas. O caráter semântico-cognitivo da análise, exclusivamente qualitativa, lança mão de exemplos extraídos de corpora de fala espontânea. São eles:

1) C-ORAL-ROM Português: Corpus do Português Europeu compilado pelo Grupo de Linguística de Corpus do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL). No C-ORAL-ROM (Cresti e Moneglia 2005), compreende 152 textos que cobrem um período de 30 anos (1970-2002), totalizando cerca de 30 horas de gravação e de 317.916 palavras gráficas transcritas;

2) C-ORAL Brasil: Corpus do Português Brasileiro compilado por pesquisadores vinculados ao Núcleo de Estudos em Linguagem, Cognição e Cultura (NELC), ao Laboratório de Estudos Empíricos e Experimentais da Linguagem (LEEL) e ao Grupo Interfaces Linguagem, Cognição e Cultura (Incógnito), os quais estão sediados na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Raso e Mello 2010, 2012). Com base na diatopia do estado de Minas Gerais (basicamente a região metropolitana da capital Belo Horizonte), o corpus prevê pelo menos 200 textos e 300.000 palavras, divididos em uma metade formal e uma metade informal.

Os excertos correspondentes ao C-ORAL-ROM Português foram extraídos do DVD contido em Cresti e Moneglia (2005) por meio da tecla print screen, pois é o único modo de obtenção dos trechos tal como estão transcritos. Para uma melhor leitura dos excertos de ambos os corpora, leia-se a barra dupla como quebra prosódica terminal, a qual indica a conclusão de um enunciado; e a barra simples como quebra prosódica não terminal, que aponta para a conclusão de uma unidade tonal dentro do enunciado (cf. Raso e Mello, 2012, p.93). O fragmento extraído de um reality show brasileiro não segue o mesmo modelo de transcrição referenciado acima. Nesse caso, optou-se por regras tradicionais de pontuação, porém respeitando o coloquialismo da fala.

Quando se anuncia a utilização de dados linguísticos de variedades nacionais do português para fins analíticos, é compreensível a inferência de que o estudo terá cunho comparativo. No entanto, o objetivo deste artigo não contempla quaisquer propósitos nesse sentido. Os exemplos em PE e PB, juntos, sustentam a possibilidade de aplicação de um aporte teórico, como o de Verhagen (2007), adaptado neste trabalho para atender às nuances de um fenômeno cujo tratamento pode ser considerado inédito.

4. PERSPECTIVAÇÃO SUBJETIVA E OBJETIVA EM AFAC E AFIC

Do ponto de vista cognitivo, podemos buscar suporte no modelo de Verhagen (2007), cujas bases também remetem a estudos de Langacker. Em termos de grounding12 12 . Aqui é entendido como sendo relativo a ground, termo usado em Gramática Cognitiva para indicar um evento discursivo, seus participantes, sua interação, bem como suas circunstâncias imediatas, por exemplo, tempo e lugar de enunciação (Langacker 2008). geral, a Autocitação Fictiva e a Factiva podem ser dispostas como casos relativamente distintos de uma mesma estrutura argumental, que se apresenta basicamente como um tipo de construção semiaberta13 13 . Segundo Croft (2004), como inventário estruturado de convenções de determinada língua, as construções apresentam níveis distintos de esquematicidade, generalização e idiomaticidade, sendo, por ele, divididas da seguinte forma: (i) construções abertas, altamente abstratas, pois permitem elevado grau de preenchimento; (ii) construções semiabertas, com nível de preenchimento intermediário; e (iii) construções cristalizadas, totalmente preenchidas. (EU) DIZER/FALAR X-Oracional (PARA Y). O trajetor EU pode ou não ser elíptico, mas recuperável discursivamente principalmente nos casos de "disse" (base para AFic e AFac em PE e em PB), cuja forma de primeira pessoa do singular é homônima a de terceira, no singular do pretérito perfeito do indicativo. Já o "falei" (base para AFic e AFac em PB, mas não para PE) é deiticamente exclusivo da primeira pessoa do singular, no mesmo tempo e modo. Entretanto, ambos os verbos perfilam um processo perfectivo entre trajetor e marco - o primeiro (tr), de proeminência mais ativa, é responsável por deslocar discursivamente o segundo (m), de proeminência passiva. O marco X-Oracional, então, é o discurso relatado encaixado, arrematando a função estritamente dicendi/sentiendi da construção, que é a de reportar fala ou pensamento.

Tomemos, respectivamente, dois exemplos de Autocitação Fictiva, um extraído do corpus C-ORAL-ROM Português e outro, do corpus C-ORAL Brasil. O primeiro se apresenta com encaixe marcadamente irônico, o que, segundo Langacker (2008), é indício de fictividade, visto se tratar de uma crítica com aparência de elogio; o segundo com encaixe prospectivo, sinalizando planejamento:

(d) tava comprando / porque o povo tinha dinheiro // e aí fui falei / não / mas do [/1] da qual eu vou fazer Letras mesmo // chegou lá na uefeemegê / eu falei / vou fazer português-inglês / porque aí eu tenho a oportunidade de sair / do Brasil // eu vou ter a oportunidade de realmente fazer turismo // fazer tradução / intérprete / &he / &f [/1] ser guia turístico / mexer com outras coisas // chegou lá / tinha habilitação ni português-inglês // aí eu falei / bom / vamo lá / né // vão fazer habilitação em português-inglês // nada nada é um curso superior como eu tenho aí // como muitas colegas minha falava / nada nada é um curso superior que você tem // né // aquele povo / lá / da administração / da [/1] &he / da [/1] da economia / principalmente / que tava muito em moda / na época // &d [/1] &he / oitenta-e-sete // e [/1] e &f [/2] e aí foi / aquele negócio // e eu sempre fazendo o curso / gostando (C-ORAL Brasil)

Em ambos os casos, o conceptualizador (falante) é o próprio trajetor, o que não caracterizaria suficientemente os enunciados em negrito de (c) e (d) como Autocitações Fictivas, uma vez que a Autocitação Factiva apresenta a mesma coincidência. Isso remete à configuração de Verhagen (2007) para o construal de dêixis de primeira pessoa, o que indicaria um tipo de construal bem mais específico; portanto, mais próximo da perspectivação conceptual vinculada às Autocitações Fictiva e Factiva. Veja os diagramas abaixo:


Segundo Verhagen (2007:65), a configuração acima caracteriza instâncias que podem ser chamadas de dêixis de primeira pessoa, exemplificadas por expressões como aqui, agora e isto. No caso das Autocitações Fictivas e Factivas, a dêixis de pessoa "eu" comprime trajetor e falante, perfilando uma sobreposição mútua no ground espaço-discursivo da enunciação. Em outros termos, como objeto móvel, "Eu" promove o movimento de algo imóvel e distal, o discurso relatado, bem como o falante. Como se trata de uma autocitação (reportativa ou apreciativa), o falante é o conceptualizador primário da construção semiaberta (EU) DIZER/FALAR X-Oracional, correspondendo ao visualizador 1 da figura 5; e o (EU) da construção semi-aberta é o conceptualizador primário de X-Oracional, bem como objeto de conceptualização, presente na figura 6, a seguir. Não obstante, o falante e o (EU) objeto de conceptualização se descomprimem temporalmente de modo mais evidente quando do fluxo discursivo a marcação de primeira pessoa morfologicamente se associa à desinência de pretérito perfeito do indicativo, no caso do verbo "falei", ou quando o pronome "eu" se vincula ao verbo "disse" no mesmo tempo e modo. Ou seja, há o (EU) do enunciado que se atrela a um espaço passado e o enunciador ancorado no centro dêitico do discurso, momento em que o enunciado é proferido.

Adaptando-se a configuração diagramática de Verhagen acerca do construal de dêixis de primeira pessoa, pode-se estabelecer uma relação entre graus de objetividade e subjetividade para se distinguir imageticamente AFac de AFic: isso sem considerar, a princípio, operações de Atenção/Saliência e as de Dinâmica de Forças, representadas pela linha horizontal que uniria os diagramas no plano do objeto de conceptualização. Por isso, o diagrama abaixo prevê apenas um diagrama como objeto de conceptualização. Em caso de AFac, teríamos então:


Nesse caso, é inadmissível pensarmos em um grau de objetividade máxima para AFac, mas parcial, visto que o sujeito da conceptualização (1 = sujeito da enunciação) se vincula deiticamente ao objeto de conceptualização, embora ambos se descomprimam no fluxo discursivo, como já foi mencionado. Nessa descompressão, o verbo dicendi assume valor prototípico. Portanto, (1), cuja dêixis se relaciona à primeira pessoa, impõe uma perspectiva mais factiva ou mais objetiva à autocitação (linha vertical não-tracejada), mesmo fazendo parte dela subjetivamente. Assim sendo, o grau de proeminência entre sujeito e objeto de conceptualização é equivalente, o que justifica seus diagramas correspondentes serem não-tracejados.

O endereçado (2) está em coordenação atencional com (1), podendo também impor a perspectiva mais factiva ou mais objetiva à autocitação (por isso, a linha que os liga é parcialmente tracejada). Como não se trata de dêixis de segunda pessoa na cláusula matriz, o diagrama que o representa é tracejado. Caso o endereçado seja verbalmente contemplado na cláusula encaixada ou até mesmo como adjunto, ainda assim ele permanece em segundo plano, pois pode ser enquadrado como marco e não trajetor. É importante relembrar que o elemento factivo é avaliado como objetiva e subjetivamente atual.

Vejamos como isso pode ser ilustrado com o exemplo (e), em PE. Ao narrar um episódio vivenciado por ela, GRA está representada no fragmento abaixo ("/e a frase dele + eu depois disse // mas / ó senhor doutor") como sujeito e objeto da conceptualização. À medida que o fluxo discursivo se bifurca entre um e outro sob a força do enquadre dialógico, a interpretação torna-se preferencialmente factiva no âmbito da autocitação:

Antes da autocitação, no terceiro turno de GRA acima, "e o homem disse-me que" constrói um espaço mental de discurso indireto via dicendi mais complementizador ("que"), o qual localmente empreende uma marca propícia à reportação dialógica, abarcando como argumento externo uma terceira pessoa ("homem") e um sintagma direcional ("me"). Dessa forma, aciona-se claramente a perspectiva mais objetiva do outro, para que o enunciador anuncie posteriormente a sua própria perspectiva mais objetiva. Note ainda que o encaixe "eu tinha feito um enfarte e que não podia de maneira nenhuma ir à China" referencia diretamente um evento.

No quinto turno de GRA, "eu depois disse mas ó senhor doutor" arremata a interpretação factiva dessa autocitação com (i) o uso de "depois" com valor de sequência temporal de eventos; (ii) com o encaixe imediato da conjunção "mas", que retoma o espaço-base aberto por "e o homem disse-me que", estabelecendo uma operação de caráter contra-argumentativo; (iii) com o vocativo interjectivo "ó senhor doutor", que não se configura como instância genérica, mas factiva.

Embora não seja contemplado diretamente na fala de GRA, o endereçado em (e), LUC, está em coordenação atencional com sua interlocutora, assentindo com expressões como "hum hum", "claro", "fazem logo de alto a baixo" e "pois", sem sinalizar conflito cognitivo entre perspectivação factiva ou fictiva (por isso, sua representação na figura 6 viria tracejada).

Em termos de AFic, outra configuração diagramática é proposta. Para os casos de Autocitação Fictiva, não podemos admitir grau de subjetividade máxima, mas parcial, devido ao fato de eles serem avaliados como objetivamente atuais e subjetivamente virtuais. Nesse caso, ao se vincular deiticamente ao objeto de conceptualização, o sujeito da conceptualização (1 = sujeito da enunciação) garante certa subjetividade, mesmo havendo descompressão entre ambos no fluxo discursivo. Além disso, o verbo dicendi/sentiendi assume valor exclusivamente epistêmico, o que arremataria a interpretação mais fictiva, dada a incompatibilidade entre forma e significado. Entretanto, mantém-se uma objetividade mínima, pois se faz referência a alguma coisa, mesmo que essa coisa seja apenas psicologicamente real, que é o pensamento. Vejamos os diagramas que seguem:


Em AFic, (1), cuja dêixis se relaciona à primeira pessoa, impõe uma perspectiva mais fictiva ou mais subjetiva à autocitação (linha vertical não-tracejada), mesmo fazendo parte dela de modo minimamente objetivo. Na figura 7, o grau de proeminência entre sujeito e objeto de conceptualização é distinto, o que justifica o diagrama correspondente ao sujeito de conceptualização (1) ser não-tracejado, e o que corresponde ao objeto de conceptualização ser tracejado.

O endereçado (2) está em coordenação atencional com (1), podendo também impor a perspectiva mais fictiva ou mais subjetiva à autocitação (por isso, a linha que os liga é parcialmente tracejada). Sua configuração diagramática específica se justifica pelas mesmas razões anteriormente apontadas para o caso AFac: como não se trata de dêixis de segunda pessoa na cláusula matriz, o diagrama que o representa é tracejado. Caso o endereçado reportado seja verbalmente contemplado na cláusula encaixada ou até mesmo como adjunto, ainda assim ele permanece em segundo plano, pois pode ser enquadrado como marco e não trajetor.

Para ilustrar, temos o exemplo (f) de AFic em PE, logo a seguir, contando com três participantes: AMA e MAR, que conversam sobre cães. MAR relata o fato de que teve um de seus sapatos roídos por seu cão:

O primeiro ponto a se destacar são as falas de MAR, produtora do enunciado AFic, destacado com o "disse" em negrito. Note que o enquadre de reportação monológica é evidente (linhas vermelhas), embora no cenário atual, haja intervenções de AMA, outra participante, que basicamente se limitam a "hhh", que simboliza elementos paralinguísticos ou não-linguísticos. Não há reportação dialógica co-textual, e a narrativa desemboca na autocitação de caráter fictivo, subordinada a um construtor de espaço mental temporal ("e eu quando vi aquilo"), que prepara o terreno linguístico para o anúncio de uma apreciação.

A oração encaixada "ai/ meu Deus// o que é que eu vou fazer? e agora?" recorre ao elemento interjetivo "ai" que endossa a incompatibilidade entre forma e significado de "disse", conceptualizado como "pensei". Interjeições seriam comuns apenas à expressão da oralidade, mas são também capazes de evocar conteúdos estritamente epistêmicos. Além disso, o vocativo "meu Deus" suscita uma interlocução com um entidade sem referente no mundo, o que se relaciona à baixa resolução ou granuralidade de AFic, seguida por duas perguntas retóricas de caráter fictivo, que apontam para uma projeção temporal futura, embora deiticamente ancoradas no espaço passado da enunciação relatada.

"Como o futuro a Deus pertence", em se tratando de pareamento de discurso com dados de cultura em PE (também em PB), tal projeção ganha um caráter imponderável e imprevisível; portanto, desengajado, pelo menos no "por-enquanto" do fluxo discursivo. Tais elementos diluem quaisquer ambientes factivos de enunciação, permitindo que o valor epistêmico de "disse" se convalide como "pensei", "apreciei", "considerei" ou "conclui", incompatível com seu uso meramente reportativo ou reconstrutivo de diálogos. Por isso, AFics apresentam, em geral, valor de conclusão apreciativa acerca de um fato relatado e não de um relato de vozes de outrem, sendo detectadas pelo conjunto de pistas diluídas discursivamente.

Quando acionamos novamente conceito de zona ativa (Langacker 1991), segundo o qual, às vezes, há uma incompatibilidade de uma predicação relacional com seus argumentos, entre perfil do verbo e zona ativa, podemos ampliar as pistas cognitivas, gramaticais e discursivas, que ajudam a separar a Autocitação Fictiva da Factiva. No exemplos de AFics (c), (d) e (e), não há presença explícita de zonas ativas, ou seja, seus enunciadores não evidenciam com que ou com quem disseram ou falaram o enunciado encaixado, por exemplo, com a boca cheia, ou até mesmo com o microfone, com a voz rouca, com alguém, para alguém etc. A explicitação da zona ativa seria suficiente para favorecer a leitura factiva.

Supondo "Eu disse/falei com a boca cheia: '...' ", a predicação relacional perfilaria uma relação factiva e compatível entre trajetor e marco, na qual está presente a zona ativa com a boca cheia, que tem a ver com a participação de certas regiões mais diretas e centrais para a relação conceptual, como lábios, língua, alvéolos etc. - sendo a contribuição do fígado, por exemplo, irrelevante para o estabelecimento da zona ativa. Supondo ainda "Eu disse/falei (com o pensamento): '...' ", a predicação relacional que perfilaria a interação entre trajetor e marco sinaliza incompatibilidade e fictividade, visto que "dizer" ou "falar" com o pensamento apresenta discrepância entre perfil e zona ativa, pois ninguém diz ou fala alguma coisa quando se encontra apenas pensando. Por isso, a Autocitação Fictiva pode ser considerada um caso de incongruência entre forma e significado, uma vez que "dizer" (em PE e PB) e "falar" (apenas em PB) podem assumir um caráter apenas epistêmico na autocitação.

Respectivamente, as figuras 3 e 4 deste artigo representam casos extremos de perspectivação maximamente objetiva e de perspectivação maximamente subjetiva, Nesse sentido, AFac e AFic se situam num contínuo, mas entre opostos não tão extremos e se diferenciam basicamente pelo fato de a primeira apresentar perspectivação mais objetiva e a segunda, perspectivação mais subjetiva.

Dessa forma, podemos propor uma adaptação do modelo de Verhagen (2007) no que diz respeito às relações verticais entre objetos de conceptualização, recuperando a partir de agora o segundo diagrama ignorado nas representações iniciais já ajustadas à AFac e AFic. O uso de linhas negritadas e tracejadas, gestalticamente, ilustra o envolvimento forte ou fraco de objeto e sujeito de conceptualização na perspectivação. Vejamos o diagrama (8) a seguir primeiramente relativo à AFac:


O estabelecimento de relações no nível horizontal, as quais são produto da imposição de estrutura ao objeto de conceptualização, é importante para a caracterização da Dinâmica de Forças14 14 . O modelo da Dinâmica de Forças advém de trabalhos de Talmy (1988 e 2000). Trata-se de um subtipo de construal, em que há uma generalização da noção de causação em torno de processos conceptualizados, envolvendo tipos diferentes de forças que atuam de modos distintos sobre os participantes do evento. No que diz respeito a movimento, o antagonista pode forçar o agonista a se mover (e.g Ele chutou a bola), o antagonista pode impedir o agonista de se mover (e.g. Ele segurou a bola) ou o antagonista age de forma a permitir que o agonista exerça sua tendência de se mover (e.g. Ele deixou a bola cair). como subtipo da capacidade cognitiva geral de Saliência/Atenção. No caso da Figura 8, o antagonista (EU) impele seu próprio discurso (X-Oracional - agonista) a se mover metaforicamente, em direção à cena enunciativa atual, reificando-o como objeto conceptual factivo, com o frame dicendi DIZER/FALAR para evocar discursos concebidos como realmente proferidos. Como a proeminência é de caráter mais objetivo, a linha que liga objetos de conceptualização é inteiriça e negritada, assim como no caso do sujeito da conceptualização que produz o movimento metafórico.

Já na versão AFic, o sujeito de conceptualização se envolve mais na reificação do objeto, que é fictiva. Nesse caso, há um meio subjetivamente virtual (apreciativo) que conduz o escaneamento do pensamento relatado. Por isso, o sujeito de conceptualização está representado pelo negrito no diagrama abaixo, assim como o eixo vertical na construção do objeto de conceptualização. O tracejado é usado para servir de contraponto para o foco no sujeito de conceptualização. Segundo Silva (2008, p. 33), marcadores epistêmicos instanciam perspetivação subjetiva. Considera-se, neste trabalho, que os verbos das AFics apresentam natureza epistêmica. É preciso destacar que o discurso direto em autocitação pode abarcar casos em que o prefácio dicendi/sentiendi é feito via expressões ou perífrases verbais como pensei: "..." ou estava pensando: "...", ou até mesmo por meio de introdutores de espaço mental discursivo com o verbo elíptico, como aí eu: "...", e eu: "...", eu assim: "...", então eu: "...", e eu aí: "...", etc. Contudo, a delimitação fictiva necessita, como já foi mencionado, da discrepância de veridicalidade entre forma e significado, ou seja, "dizer" ou "falar" deve ser inserido no contexto e concebido apenas como pensamento. A seguir, a armação diagramática correspondente à AFic:


A figura 9 ilustra a perspectivação mais subjetiva de AFic com especial destaque para o sistema de Dinâmica de forças, que se configura de forma distinta nesse caso. A imposição do construal epistêmico torna a relação antagonista/agonista mais subjetiva; e, por conta disso, o antagonista age de modo a possibilitar que o agonista exerça sua tendência a se mover. Mesmo no caso da imposição de força mais objetiva e ativa por parte do antagonista (AFac), o agonista só se move, porque este já apresenta uma potencial disposição para o movimento. Em AFic, o antagonista abranda a imposição de força, no sentido de que a torna mais subjetiva, agindo de forma mais contemplativa sobre a tendência potencial de movimento do agonista, pois discursos podem ser escaneados e nem sempre movidos conceptualmente. Ocorre então um claro processo de subjetificação. AFic intensifica a subjetificação de AFac, visto se tratar de um fenômeno que:

(...) consiste em fazer passar a conceptualização de determinada relação particular de uma construção objectiva, isto é, sem qualquer referência ao respectivo ato de fala, para uma construção subjectiva, em que o falante (ou um outro elemento do acto de fala) passa a figurar como um dos elementos dessa relação (Silva 1999:85).

É uma noção alinhada à de Langacker, para quem a mudança da perspectivação objetiva para a perspectivação subjetiva constitui o que ele chama de subjetificação. No entanto, é preciso notar que a polarização objetivo/subjetivo não se aplica rigorosamente aos casos de AFac e AFic, mas sim, como já foi mencionado, a gradações mais ou menos objetivas ou subjetivas. O que importa ressaltar para o momento é que a expressão linguística da subjetividade é uma fronteira interessante, embora tênue, para desvelar a contiguidade factividade/fictividade. Em (g), por exemplo, o sujeito da conceptualização atua de forma a subjetificar fictivamente seu discurso de autocitação, estabelecendo um encadeamento de três AFics, inserido entre um prefácio interrompido de AFac, representada pela expressão "eu pensei", e uma AFac com complemento Oracional, "eu pensei se for consenso vai a Morango":

(g) Eu achava que fosse três votos do no Serginho, a casa fosse votar em mim. A o Fer Fernando o Kadu e a Lia fosse votar em mim. Três votos Serginho. Três votos em mim. O Dourado e a Maroca na Morango. Eu pensei, aí eu falei: bom vai ser três contra três e dois votos. Aí eu falei: o líder deve decidir quem vai pro paredão entre entre eu eu e o Serginho. Aí eu falei: agora se for consenso eu pensei se for consenso vai a Morango. Eu pensei porque a casa lá em baixo protege mais o Serginho e entre o Eli e o Alf entre eu e a Morango vai me proteger. Então vai a Morango que tá mais entre as duas casas mais neutra assim (dados extraídos do reality show Big Brother Brasil, 2010) 15 15 . Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=5bVtZv7pczA&feature=related [consultado em 01-03-2011].

Nesse exemplo, chama atenção a permuta discursiva online entre os verbos "pensei" e "falei", que podem ser tomados co-textualmente como sinônimos, embora perspectivizem conceptualmente o objeto "pensamento" de formas distintas. Essa operação comprova que o verbo "falar" pode virtualmente fazer as vezes do "pensar", sem estabelecer referência direta ao ato de proferir. Assim, lançam-se bases metonímicas e metafóricas para a fictividade na autocitação (Rocha 2006b), concebendo-se, respectivamente, FALAR POR PENSAR e/ou PENSAR É FALAR.

A construção com "eu pensei '...' " aciona direta, não-virtual e/ou factivamente o conteúdo pensado, enquanto a construção com "eu falei '...' " aciona indireta, virtual e/ou fictivamente o conteúdo pensado. Essa alternância de construal mais objetivo (factivo) para mais subjetivo (fictivo) ocorre não exclusivamente porque o sujeito da conceptualização promove uma autocitação de um conteúdo pensado, mas sobretudo porque o faz de forma a interferir na diretividade referencial com base em mecanismos de abstração. Dizer que pensamos algo é similar a dizer que objetivamente pensamos algo. Contudo, dizer que falamos algo que efetivamente pensamos é similar a dizer que esse algo está sendo conceptualizado como fala. Se o falante concebe o ato exclusivo de pensar como fala, ele não objetifica o objeto de conceptualização, mas o subjetifica, visto que cognitivamente interfere mais no ato de fala. Assim, constitui-se a natureza mais avaliativa que reportativa da AFic.

5. SUMÁRIO E DISCUSSÕES

A operação mental de seleção licencia ora a faceta fictiva ora a factiva de autocitação, estabelecendo-se uma relação de Figura e Fundo, dependente do Ponto de Vista no fluxo discursivo sinalizado por pistas co-textuais e contextuais, às vezes dêiticas, delimitando seu caráter subjetivo e objetivo. O conceptualizador abstrai essas modalidades, definindo a autocitação como uma categoria à parte, dentro dos moldes de discurso reportado. A dinamicidade aplicada à fictividade ou factividade da autocitação implicaria dinamizar objetos não-dinâmicos, "deslocados" conceptualmente para propósitos discursivos. Porém, a AFic é tomada como um processo de escaneamento sequencial/sumário, dado seu perfil contemplativo de pensamentos prévios; já a AFac perfila sobretudo movimento factivo, em virtude do fato de suscitar o deslocamento conceptual de pensamentos e discursivos prévios.

A Autocitação Fictiva e a Factiva podem ser dispostas como casos relativamente distintos de uma mesma estrutura argumental, que se apresenta basicamente como um tipo de construção semiaberta (EU) DIZER/FALAR X-Oracional (PARA Y), inserido em um discurso. A sobreposição dêitica entre o falante que se autocita e aquele que é citado, pois (EU) comprime dois conceptualizadores em momentos distintos, um ancorado num espaço passado e outro ao centro dêitico do discurso, não contribui para a distinção fictivo/factivo; entretanto, os respectivos graus de subjetividade e de objetividade sugerem distinções, entre valores prototípicos e não-epistêmicos do prefácio dicendi (objetividade máxima) e valores não-prototípicos e epistêmicos vinculados a um prefácio sentiendi (subjetividade máxima).

O conceito de zona ativa (Langacker 1991) se mostrou muito produtivo para separar uma leitura de outra, visto que a fictiva sugere uma incompatibilidade da predicação relacional com seus argumentos. No caso de "Eu disse/falei (com o pensamento - zona ativa): '...' ", a predicação relacional que perfilaria a interação entre trajetor e marco sinaliza incompatibilidade e fictividade, visto que "dizer" ou "falar" com o pensamento apresenta discrepância entre perfil e zona ativa, pois ninguém diz ou fala alguma coisa quando se encontra apenas pensando.

Considerando o sistema de Dinâmica de Forças, em AFac, o antagonista (EU) impele seu próprio discurso (agonista) a se mover metaforicamente, em direção à cena enunciativa atual, reificando-o como objeto conceptual factivo - como os usos dicendi de "dizer" e "falar" para reportar discursos concebidos como realmente proferidos. Já na versão AFic, a reificação do objeto é fictiva, uma vez que há um meio virtual que conduz o escaneamento do pensamento relatado, contemplativamente, como já foi mencionado. Contudo, a delimitação fictiva precisa da discrepância de veridicalidade entre forma e significado, ou seja, "dizer" ou "falar" deve ser inserido no contexto e concebido apenas como pensamento.

O modelo de construal oferecido por Verhagen (2005, 2007) permitiu inferências em torno dos fenômenos estudados a partir do momento em que:

(i) Admite a inserção de dois conceptualizadores em coordenação atencional que podem imprimir construals alternados e discrepantes a uma mesma base formal; ou seja, "disse" e "falei" como "pensei" ou "proferi", sinalizando cognitivamente uma base que licencia o pragmatismo de uma escolha e outra, sem que isso possa ser ou não checado como "verdade" proferida ou pensada;

(ii) O modelo de Dinâmica de Forças aplicado à proposta de Verhagen (2005, 2007) nos permite compreender a distinção entre o movimento conceptual factivo, ou seja, avaliado como mais verídico, para os casos de AFac, e o escaneamento conceptual promovido pelas construções de Autocitação Fictiva, como contemplação avaliativa de algo pensado previamente, mas atualizado discursivamente na cena presentificada;

(iii) A determinação de uma perspectiva mais subjetiva para a AFic e uma mais objetiva para AFac sugerem a importância do conceito de subjetificação (cujo conceito será apresentado mais adiante) aplicado a esses casos, fenômeno que, com base na Teoria Geral da Fictividade, pode promover processos de gramaticalização sutilmente detectáveis, nos quais uma forma canônica de discurso reportado em autocitação desemparelha-se de sua função dicendi, para agregar-se a um construal alternativo mais epistêmico e sentiendi;

(iv) A imposição de um construal mais ou menos factivo também depende do conceptualizador ouvinte, apesar dos sinais emitidos pelo conceptualizador falante em reportação monológica ou dialógica. Pelo fato de que muitas vezes o ouvinte não checa se o falante proferiu mesmo o discurso que diz ter proferido, a avaliação fictiva ou factiva da autocitação torna o fenômeno pragmática e potencialmente questionável, porém inquestionável quando o silêncio do ouvinte ignora a necessidade de polarização. O que passa a importar discursivamente é que o ouvinte, no conflito de discrepâncias cognitivas, pode estar apenas apreciando uma avaliação emitida por seu co-específico com recursos virtuais de acesso ao referente, mesmo que ele seja apenas mentalmente real.

O fato de o discurso direto apresentar instâncias factivas de seus tipos comunicativos como diametralmente opostas, mas contíguas, às suas instâncias fictivas, sugere que a noção de contínuo é gerenciada pelas operações ora mais subjetificantes, ora mais objetificantes no estabelecimento do construal.

Recebido em outubro de 2011

Aprovado em julho de 2012

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    Este artigo é um dos produtos intelectuais resultantes do projeto de pesquisa
    Construções gramaticais de conversa fictiva: convergências entre frames cognitivos e interacionais (bolsista da CAPES - Processo: BEX 4084/10-1), desenvolvido durante cumprimento de estágio pós-doutoral (2010-2011), sob supervisão do Prof. Dr. Augusto Soares da Silva, em regime de colaboração com o Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos da Universidade Católica Portuguesa (CEFH-UCP), Centro Regional de Braga (Portugal), no âmbito da linha de investigação
    Estudos Linguísticos e Literários e do projeto
    Linguística Cognitiva do Português: semântica e gramática.
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    Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (FALE-UFJF), Minas Gerais, Brasil. E-mail:
    luiz.rocha@ufjf.edu.br. Página de entrada do PPG-Linguística:
  • 1
    .
    Corpus do português brasileiro desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), no âmbito do Projeto Norma Linguística Urbana Culta - RJ (
    http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/ [consultado em 11-03- 2011]).
  • 2
    . Conceito vinculado à predicação relacional central feita por verbos e preposições. Zona ativa é a área focal da interação relacional. As porções de um trajetor ou marco que participam diretamente de uma dada relação são referidas como sua zona ativa. No exemplo,
    Seu cachorro mordeu meu gato, o trajetor "cachorro" participa do processo designado como "morder" focalmente com os dentes, e o "gato" (marco), com a área afetada. É possível explicitar as zonas ativas, assinaladas em negrito, quando se diz:
    Seu cachorro,
    com os dentes bem afiados
    , mordeu meu gato
    no rabo
    .
  • 3
    . Langacker (2008:7) explica que "o participante mais proeminente, chamado
    trajetor (tr), é a entidade construída como sendo localizada, avaliada ou descrita. De modo impressionístico, pode ser caracterizada como
    foco primário dentro da relação perfilada. Frequentemente, um outro participante se torna proeminente como
    foco secundário. Desse modo, é chamado de
    marco (m)".
  • 4
    . "Cognitive linguistics has shown time and again that fictivity is absolutely fundamental in thought and language. It is generally assumed that linguistic expressions are only indirectly linked to their intended referents and that non-veridical scenarios are often introduced by language users in order to gain mental access to actual ones" (Pascual 2006:246).
  • 5
    . Segundo Langacker (2008), falante e ouvinte são conceptualizadores por natureza pela capacidade de apreensão do significado das expressões linguísticas.
  • 6
    . Sugere-se que "partidas advindas da descrição direta da EFETIVIDADE são ubíquas e fundamentais em linguagem" (Langacker 1999:78) - "[...] departures from the direct description of ACTUALITY are ubiquitous and fundamental in language" (Langacker 1999:78).
  • 7
    . Opto por traduzir o termo
    actual (oposto de
    virtual em Langacker 1987, 1999 e 2008) por "atual" ou "efetivo". O termo "real" seria admitido apenas no sentido de realidade como conceptualmente reificada. O conceito de
    fictividade (Talmy 1996; Langacker 1987) é análogo ao de
    virtualização, de Pierre Lévy (1996/2009), em que virtual se opõe ao atual por se tratar de um complexo problemático que invoca uma atualização, isto é, invenção ou criação de uma solução potencialmente exigida pelo virtual, como a árvore que está virtualmente na semente, cujo "problema" é brotar; ou ainda, o meio virtual da ultrassonografia que permite o interior "passar" ao exterior permanecendo no interior, como na descoberta do sexo do bebê. Através do virtual, acessamos o atual, elemento vigente ou presente.
  • 8
    . [...] a speaker who accurately observes the spatial distribution of certain stars can describe them in many distinct fashions: as a
    constellation, as a
    cluster of stars, as
    specks of light in the sky, etc. Such expressions are semantically distinct; they reflect the speaker's alternate construals of the scene, each compatible with its objectively given properties (Langacker 1991:61).
  • 9
    . Verhagen (2007) afirma que, acerca das operações de perspectivação conceptual, há uma considerável sobreposição entre a proposta de Langacker e Talmy, salvo a questão da Dinâmica de Forças, ausente da classificação de Langacker. O sistema de Dinâmica de Forças recobre a representação estrutural de duas entidades que interagem fortemente em relação à oposição a uma força, à resistência a uma oposição, à superação de uma resistência, incluindo também forças de bloqueio, apoio e causação (Talmy 2000).
  • 10
    . Na tipologia de Talmy (2000), a fictividade geral está submetida à categoria de
    Dinâmica de Forças.
  • 11
    . Segundo Silva (2008:32): "Mesmo na ausência de um dos sujeitos de conceptualização - ou o locutor, como num texto antigo, ou o interlocutor, como num diário pessoal - qualquer enunciado pressupõe a configuração representada na
    Figura 2". Em outros termos, pode-se partir do princípio de que ninguém constrói sentidos em si mesmos, mas sempre para um outro, mesmo que esse outro seja o próprio enunciador.
  • 12
    . Aqui é entendido como sendo relativo a
    ground, termo usado em Gramática Cognitiva para indicar um evento discursivo, seus participantes, sua interação, bem como suas circunstâncias imediatas, por exemplo, tempo e lugar de enunciação (Langacker 2008).
  • 13
    . Segundo Croft (2004), como inventário estruturado de convenções de determinada língua, as construções apresentam níveis distintos de esquematicidade, generalização e idiomaticidade, sendo, por ele, divididas da seguinte forma: (i) construções abertas, altamente abstratas, pois permitem elevado grau de preenchimento; (ii) construções semiabertas, com nível de preenchimento intermediário; e (iii) construções cristalizadas, totalmente preenchidas.
  • 14
    . O modelo da
    Dinâmica de Forças advém de trabalhos de Talmy (1988 e 2000). Trata-se de um subtipo de
    construal, em que há uma generalização da noção de causação em torno de processos conceptualizados, envolvendo tipos diferentes de forças que atuam de modos distintos sobre os participantes do evento. No que diz respeito a movimento, o
    antagonista pode forçar o
    agonista a se mover (e.g
    Ele chutou a bola), o
    antagonista pode impedir o
    agonista de se mover (e.g.
    Ele segurou a bola) ou o
    antagonista age de forma a permitir que o
    agonista exerça sua tendência de se mover (e.g.
    Ele deixou a bola cair).
  • 15
    . Disponível em
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Out 2011
    • Aceito
      Jul 2012
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