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As políticas lingüísticas

RESENHA REVIEW

Resenhado por/by: Kanavillil Rajagopalan

UNICAMP. E-mail: rajagopalan@uol.com.br

CALVET, Louis-Jean 2007. As Políticas Lingüísticas. Florianópolis e São Paulo: Ipol/Parábola. 166 p.

Com o lançamento deste livro, a Editora Parábola demonstra mais uma vez seu afinco em manter-se à frente de tendências mundiais em matéria de reflexão sobre a linguagem. Como bem lembra Gilvan Muller de Oliveira, em seu prefácio, falar em política lingüística era, até recentemente, uma coisa quase impensável em centros de Lingüística. Eu iria um pouco mais adiante. Acredito que até hoje a Lingüística tem dificuldade em aceitar a questão de política lingüística como algo digno de ser pensado, muito menos incorporado à disciplina como assunto que merece destaque. Essa dificuldade não é nem momentânea nem fortuita. Há uma incompatibilidade radical entre a ciência da linguagem - a Lingüística - e questão de política lingüística (Rajagopalan, 2004). A primeira sempre alardeou sua suposta neutralidade política, ao passo que a segunda assume, em sua própria nomenclatura, seu caráter político. A primeira sempre fez questão de frisar o caráter descritivo de suas investigações, enquanto que a segunda é escancaradamente prescritiva e interventora. A primeira concentra seus esforços quase exclusivamente no oral, ao passo que a segunda se dirige à escrita, reconhecendo que qualquer repercussão na forma oral da língua ocorre como conseqüência.

O título de um livro publicado em 2006, da autoria de Joshua Fishman (2006), traz à tona a importante diferença entre a política lingüística e a forma como a disciplina da Lingüística se ergueu no cenário acadêmico: Do NOT Leave Your Language Alone. Ou seja, "não deixe sua língua desamparada". Para quem acompanha a história da Lingüística nestes últimos, digamos, 60-70 anos, é evidente que o título escolhido por Fishman se inspira no título de um best-seller, da autoria de Robert Hall Jr. Publicado no ano de 1950, o livro de Hall (1950) portava o título de Leave Your Language Alone.! (Deixe sua língua em paz). O próprio Fishman se refere a esse fato logo no início de seu Prefácio ao livro. Diz ele:

Nos tempos idos e mais inocentes, acreditava-se em larga escala que as línguas, como no caso de qualquer outra dádiva de Deus, não devem ser nem "planejadas" nem "melhoradas". Como aqueles tempos chegaram ao fim, houve uma tentativa do Prof. Robert A. Hall (1950) no sentido de promover o total desaparecimento de planejamento lingüístico por meio de crítica ferrenha, desencorajando interesse de estudiosos nesse sentido. Seu livro

Leave Your Language Alone!

desponta hoje em dia como um monumento a uma época passada.

O título Leave Your Language Alone! sintetiza muito bem o pensamento prevalente no auge de estruturalismo. As línguas são objetos estruturais, e uma estrutura não admite ingerências do lado de fora. A marca registrada de uma estrutura é clôture. Interferir no rumo de uma língua natural é brincar com a própria natureza. Logo, a melhor coisa que se pode fazer é deixá-la em paz. Nas palavras do gramático Evanildo Bechara (2000) e membro da Academia Brasileira de Letras, o ímpeto por traz dessa atitude

se baseia na idéia muito divulgada no século XIX, e vigente em alguns lingüistas de hoje, segundo a qual, sendo a língua um organismo vivo em perpétua mudança, ninguém deve perturbar essa mudança, mas, ao contrário, deve deixá-la livre em plena liberdade. É o que insinua, por exemplo, o livro do lingüista norte-americano Robert Hall, em 1950,

Leave your language alone (Deixe sua língua em paz)

.

Quem diria! Até que enfim a Lingüística vem reconhecer que o gramático tradicional tem toda a razão quando pleiteia intervenção proposital nos rumos de uma língua que hoje se conhece sob o rótulo de "política lingüística". Dito de outra forma, começa a brotar o reconhecimento que a tão vilipendiada "gramática tradicional" era apenas uma forma de intervir na língua, uma forma de praticar a política lingüística. Aqueles lingüistas que hoje se sentem à vontade ao falar em política lingüística devem reconhecer que antes precisam abdicar um dos postulados da própria disciplina.

Na verdade, muitos dos supostos postulados da lingüística nem sequer são postulados; são reivindicações feitas por indivíduos que se destacaram como pais fundadores da disciplina. E muitas dessas reivindicações atendiam a interesses políticos do momento ou eram interessantes do ponto de vista do "marketing" de uma disciplina acadêmica ainda em fase de luta pelo reconhecimento. Como diz Milroy (2004: 99-100)

É que muitas das reivindicações "científicas" que os lingüistas defendem não são realmente científicas. Considere-se, por exemplo, a afirmação de que a língua "pode tomar conta de si mesma". Esse fato nunca foi demonstrado por uma análise científica objetiva, e evidências indiretas parecem favorecer a visão contrária - de que as línguas não conseguem necessariamente "cuidar de si mesmas".

Com toda certeza, pode-se concluir o seguinte: se precisasse apontar um ponto negativo no livro sob o holofote nessa resenha, talvez devêssemos dizer, logo de início, que se trata da impressão errônea que o autor acaba passando para os leitores incautos que a política lingüística pode ser vista como uma decorrência natural dos avanços alcançados na lingüística teórica. Oliveira, em seu Prefácio, atribui o surgimento de interesse em política lingüística ao "panorama das reivindicações dos movimentos sociais" (p. 10) que, nos últimos anos, deu realce à existência de línguas minoritárias no Brasil, forçando os estudiosos a reconhecer "a realidade plurilíngüe do país", a qual teria sido camuflada pela "ideologia da 'língua única'" existente "desde tempos coloniais" (p.9). Quanto ao próprio autor do livro, após conceder que

A intervenção humana na língua ou nas situações lingüísticas não é novidade: sempre houve indivíduos tentando legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da língua. De igual modo, o poder político sempre privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa língua ou impor à maioria a língua de uma minoria. (p. 11)

silencia-se diante da questão de como o assunto veio a ser considerado digno de estudo acadêmico. Além disso, ao colocar no mesmo grupo atividades como "legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da língua", dá a impressão ao leitor que legislar e intervir na língua são tão objetáveis quanto ditar o uso correto, que, vale a pena lembrar, por muito tempo serviu como principal queixa dos lingüistas contra os assim-chamados "gramáticos tradicionais".

Da mesma forma, ao se referir a Punya Sloka Ray, critica-o duramente, desqualificando sua abordagem instrumentalista (p. 26), mas ao mesmo tempo passa em branco a expressão "lingüística prescritiva" tal qual ocorre no titulo do seu livro Language Standardization: Studies in Prescriptive Linguistics (Ray, 1963), sem se impressionar pelo fato de que ela constitui uma gritante contradição em termos, segundo uma das crenças nutridas a respeito da ciência lingüística. Pois, quando se fala em política lingüística estamos nos referindo a uma atividade essencialmente normativa, prescritiva, diferentemente da Lingüística que pode se dar ao luxo de se autocaracterizar como um empreendimento rigorosamente descritivo e fustigar impiedosamente aqueles que procuram prescrever ou proscrever determinados usos.

O livro contém 5 capítulos, seguido por uma conclusão. Os capítulos são: 'Nas origens da política lingüística', 'As tipologias das situações plurilíngües', 'Os instrumentos do planejamento lingüístico', 'A ação sobre a língua (o corpus)', e 'A ação sobre as línguas (status)'. Como um livro introdutório, o livro é altamente recomendável. Os capítulos são redigidos numa linguagem acessível aos iniciantes. O autor ilustra cada caso com ajuda de exemplos concretos colhidos de países ao redor do mundo. Encontram-se discutidos casos como os da China, Mali, Turquia, Noruega, Tanzânia, Indonésia, Suíça, Marrocos, Tunísia, Argélia, entre outros. Salta aos olhos a ausência de uma discussão detalhada da Índia - um verdadeiro caldeirão de multilingüísmo, com 1652 línguas identificadas além de 527 ainda não classificadas (Mallikarjun, 2004), das quais 22 são hoje reconhecidas pela constituição daquele país, graças à mobilização política dos seus respectivos falantes. Também chama atenção a ausência de qualquer menção à situação lingüística nos países como Estados Unidos e Grã Bretanha, o que pode dar a impressão errônea de que a política lingüística é assunto de interesse principalmente para os países do terceiro mundo e alguns outros paises (que seriam apenas exceções que comprovariam a regra!).

Mas nada do que apontei nos parágrafos anteriores como sendo questões pontuais que deixaram a desejar no tratamento que Calvet dá ao tópico subtrai do mérito do seu livro importante, publicado originalmente em francês em 1966 e traduzido por Isabel de Oliveira Duarte, Jonas Tenfen e Marcos Bagno, com revisão de Telma Pereira. O livro vem ao mercado brasileiro em um momento muito oportuno, marcado por aquilo que Oliveira (2007) chama de "a virada político-lingüística" atualmente em curso e contribui significativamente para a "utilidade ou relevância social dos estudos lingüísticos".

Recebido em outrubro de 2007

Aprovado em janeiro de 2008

  • BECHARA, Evanildo. 2000. A norma culta face à democratização do ensino. Disponível em http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20000704.htm (acesso em 15 de agosto de 2007)
  • FISHMAN, Joshua A. 2006. Do Not Leave Your Language Alone. Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers.
  • HALL, Robert A. 1950. Leave Your Language Alone Ithaca: Linguistica.
  • LOPES DA SILVA, Fábio e RAJAGOPALAN, Kanavillil (orgs.) 2004. A Lingüística que Nos Faz Falhar São Paulo: Parábola Editorial.
  • MALLIKARJUN, B. 2004. Indian multilingualism, language policy and the digital divide. Language in India Vol. 4. no. 4. (disponível gratuitamente em http://www.languageinindia.com/april2004/kathmandupaper1.html)
  • MILROY, James. 2004. O lingüista e as atitudes públicas frente à linguagem. In: LOPES DA SILVA, Fábio e RAJAGOPALAN, Kanavillil (orgs.). pp. 97-100.
  • OLIVEIRA, Gilvan Müller de 2007. A 'virada político-lingüística' e relevância social da lingüística e dos lingüistas. In: CORREA, Djane Antonucci (orga). A Relevância Social da Lingüística: Linguajem, Teoria e Ensino São Paulo: Parábola Editorial. pp. 79 - 93.
  • RAJAGOPALAN, Kanavillil. 2004a. Línguas nacionais como bandeiras patrióticas, ou a Lingüística que nos deixou na mão. In: LOPES DA SILVA, Fábio e RAJAGOPALAN, Kanavillil (orgs.). pp. 11 - 38.
  • ______. 2004b. Resposta aos meus debatedores. In: LOPES DA SILVA, Fábio e RAJAGOPALAN, Kanavillil (orgs.). pp. 166 - 231.
  • RAY, Punya Sloka. 1963. Language Standardization: Studies in Prescriptive Linguistics. Haya: Mouton.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2008
  • Data do Fascículo
    2008
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