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“Foi Deus que me colocou aqui”: Reflexões sobre a pena e o encarceramento em prisões femininas no Rio de Janeiro

“God put me here”: Reflections on sentencing and incarceration in women’s prisons in Rio de Janeiro

Resumos

A partir de uma pesquisa etnográfica realizada em unidades prisionais femininas no Rio de Janeiro, este artigo propõe uma reflexão sobre a maneira pela qual mulheres encarceradas compreendem o sentido da punição a elas imposta. De forma mais específica, trazendo relatos de campo, descrevo como algumas mulheres interpretam a punição no que diz respeito ao agente responsável pelo encarceramento. Minhas reflexões giram em torno da frase que intitula este artigo, “foi Deus que me colocou aqui”, registrada diversas vezes em meu caderno de campo durante a conversa com diferentes mulheres. Assim, considerando esses relatos, proponho discutir a seguinte questão: como as mulheres descrevem e conferem sentido ao encarceramento e à pena a elas imposta?

Palavras-chave:
pena; prisão; mulheres; encarceramento; etnografia


Based on an ethnographic research conducted in women’s prisons in Rio de Janeiro, this article reflects on the ways in which some incarcerated women understand the meaning of the punishment imposed on them. More specifically, from field reports, I describe how some women interpret punishment regarding the agent responsible for their incarceration. My reflections revolve around the phrase that titles this article, “God put me here,” recorded several times in my field notebook during conversations with different women. Considering these testimonies, I discuss the following question: How do women describe and give meaning to imprisonment and sentencing?

Keywords:
penalty; prison; women; incarceration; ethnography


Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida. Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.

Epístola aos Romanos 11,361

Introdução

Em mais um dia de muito calor no Rio de Janeiro, realizei o difícil exercício de vestir uma calça jeans e um tênis, roupa que virou quase um uniforme nas idas à prisão. Eram tantos insetos nos arredores do Complexo Penitenciário de Gericinó e dentro das unidades que deixar as pernas de fora não parecia uma boa ideia, muito menos o uso de sandálias para caminhar os 25-30 minutos entre a porta principal do Complexo e a entrada do Presídio Nelson Hungria, passando por poços malcheirosos e calçadas cheias de mato. O sol parece ser realmente mais forte em Bangu.

Naquela manhã do dia 12 de março de 2019, cheguei à portaria do Presídio Nelson Hungria, para, em poucos minutos e procedimentos depois, ser autorizada a entrar na unidade conhecida como Bangu 7. Ao ingressar, os agentes da entrada perguntaram se estava ali “para o evento” e respondi que, na verdade, era pesquisadora e não estava sabendo de nada especial, acrescentando que estava frequentando a unidade há alguns dias para entrevistar as internas.

Logo que atravessei o portão, como de costume, dirigi-me à sala da Defensoria Pública, onde costumava realizar entrevistas com as mulheres que estavam presas. Em seguida, pedi para uma agente que trabalhava na sala ao lado, na “classificação”2 2 Funciona como um cartório dentro das unidades prisionais, sendo o local onde estão arquivados os documentos e processos internos de cada pessoa presa. , que chamasse uma delas “para a entrevista com a pesquisadora”, depois de enunciar um nome específico. Alguns minutos depois, chegava minha interlocutora e nos encaminhamos juntas para a sala onde conversaríamos por mais ou menos uma hora. Ao fim de nosso diálogo, saí da sala em direção à classificação para pedir que outra mulher pudesse ser liberada para entrevista.

Até aquele momento, repetia toda movimentação que se passava durante a maior parte dos dias nos quais realizei uma pesquisa de campo no curso do meu doutorado, entre janeiro e agosto de 2019, não só no Presídio Nelson Hungria, mas também em outras três unidades prisionais femininas localizadas no Rio de Janeiro3 3 Foram elas a Cadeia Pública Joaquim Ferreira, a Penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, e o Instituto Penal Oscar Stevenson, no bairro de Benfica. Hoje, tanto o Joaquim Ferreira (Bangu 8) quanto o Nelson Hungria (Bangu 7) se tornaram unidades masculinas. O processo de autorização para todas essas unidades foi o mesmo, passando 7 meses pela SEAP até a sua concessão final. No entanto, as negociações com cada administração seguiam caminhos distintos, e, em algumas unidades, tinha mais facilidade de circular do que em outras, o que trabalhei a partir da categoria “questões de segurança” na tese (MARTINS, 2022). , entre uma sala geralmente reservada aos atendimentos de pessoas presas com a Defensoria Pública e seus corredores, pátios e áreas comuns. As entrevistas, como aquela que fizera assim que cheguei à unidade, ocorriam majoritariamente nessas salas, porque era o local disponibilizado pela direção para que eu pudesse conversar com as internas, embora eu não tivesse nenhuma relação com o órgão da Defensoria e não cruzasse com seus representantes durante a pesquisa - afinal, nos dias que eles estivessem na unidade, as diretoras pediam que eu não fosse à prisão exatamente pela ocupação da sala.

Essas entrevistas eram realizadas sem gravadores e serviam não só para que eu produzisse dados de pesquisa, mas também eram uma estratégia para que eu permanecesse dentro da prisão, espaço que dificilmente está aberto a receber pessoas na condição de “pesquisadores”, como foi meu caso, depois de passar por um processo burocrático de autorização de pesquisa pela própria Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro (SEAP-RJ). Inicialmente, realizava essas entrevistas de forma semiestruturada, e, posteriormente, quando boa parte das minhas interlocutoras já me conheciam como a “pesquisadora”, eu passei a fazer parte de uma rotina de diálogos dos mais diversos assuntos que me eram trazidos como “novidades” dos dias em que não estava na prisão.

Negociava, assim, minha presença e circulação nas unidades para produzir uma pesquisa etnográfica que teve por objetivo descrever como as mulheres privadas de liberdade faziam suas penas andarem, buscando compreender como elas viviam a experiência do encarceramento e como faziam para sobreviver à pena e sair da prisão. Ao campo de pesquisa carioca, acrescentou-se, em uma perspectiva comparada por contrastes (KANT DE LIMA, 1999KANT DE LIMA, Roberto. “Polícia, justiça e sociedade no Brasil: Uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, pp. 23-38, nov. 1999.), dados produzidos em Paris e em Marseille, na França, durante o período que realizei o doutorado sanduíche (entre 2021-2022), seguindo essa mesma questão.

Esse contraste realizado pelo percurso da pesquisa permitiu tornar evidente algumas nuances em relação ao andamento da pena antes não tão claras para mim, que tenho trabalhado a partir da categoria ritmo, no sentido de que a pena de prisão é compreendida pelas mulheres que passam por ela como possuidora de um ritmo distinto da rua. Ao mesmo tempo, se existe esse contraste sentido entre o dentro e o fora, cada cadeia possui um ritmo distinto, o que pode decorrer não só de distintas moralidades que a pena possui aqui ou na França - percebidas por meio de discursos que circulam nas prisões entre aqui e lá -, mas também pelo modo como ela é administrada, seus distintos níveis de porosidade, sua arquitetura, sua localização em relação aos centros urbanos, entre outras dimensões que modulam a pena e transformam a experiência da passagem pela prisão.

Não trabalharei todas essas dimensões neste artigo, nem descreverei os dados da pesquisa da França, mas destaco que, durante a pesquisa de campo, observei que havia uma centralidade discursiva distinta no que diz respeito aos sentidos atribuídos ao encarceramento nas prisões francesas e brasileiras a que tive acesso. Isso tudo considerando que, se estava interessada em descrever como as mulheres faziam suas penas andarem, era importante também compreender os sentidos que minhas interlocutoras atribuíam à pena de prisão em suas vidas. Nessa perspectiva, o que observei é que, enquanto na França o sentido atribuído à pena era pautado em um discurso psicológico/psiquiátrico, no Rio de Janeiro, as mulheres que conheci na prisão - mesmo as que não se identificavam como crentes - apontavam discursos religiosos em suas narrativas sobre o encarceramento.

Essa centralidade discursiva não exclui discursos religiosos nas unidades francesas nem psicológicos/psiquiátricos nas unidades cariocas. Por outro lado, ela aponta para alguns caminhos reflexivos a respeito da compreensão dos sentidos atribuídos à pena de prisão pelas pessoas presas em cada um desses contextos e, por sua vez, também indica aspectos sobre como a ressocialização é percebida nesses espaços. Pensando a partir dessa discussão, e estabelecendo como recorte o contexto carioca, meu objetivo neste artigo é exatamente descrever como esses discursos religiosos circulavam pela prisão no Rio de Janeiro, retomando os dados de pesquisa produzidos ao longo do doutorado.

Voltando ao dia que começo a narrar na abertura deste texto, esclareço que, na pesquisa de campo realizada no Rio de Janeiro, raramente era chamada para participar ou observar qualquer atividade que ocorresse dentro da prisão, e meu acesso mal se dava por toda “superfície” da cadeia (MALLART, 2019MALLART, Fábio. Findas linhas: Circulação e confinamento pelos subterrâneos de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.). No entanto, aquela manhã do dia 12 de março foi diferente, já que havia um grande evento na unidade do qual pude participar, depois da conversa que tive com a minha interlocutora na sala da Defensoria: a comemoração do Dia Internacional das Mulheres.

Participar daquele evento foi fundamental durante a pesquisa de campo, porque ele se tornou um caso “bom para pensar” questões que dizem respeito à circulação de discursos religiosos nas prisões cariocas e, ainda, às conexões realizadas por minhas interlocutoras entre Deus e o encarceramento descritas por elas na frase que intitula este artigo “foi Deus que me colocou aqui (na prisão)”. Nesse sentido, comecei a debruçar-me nas imbricações entre a igreja e a prisão, buscando refletir de que maneira essas articulações me davam pistas para pensar como minhas interlocutoras compreendiam a pena a elas imposta, nessa articulação feita entre a agência divina e o encarceramento.

Assim, pretendo neste artigo, privilegiando a perspectiva etnográfica, descrever o evento de comemoração do Dia Internacional das Mulheres para, em um segundo momento do texto, trazer as entrevistas realizadas com quatro interlocutoras de campo por meio de pequenos recortes de suas trajetórias. Busco, nesse sentido, compreender as seguintes questões: como essas mulheres descrevem o encarceramento e conferem sentido a ele? De que forma interpretam a punição em suas vidas? Como é possível compreender a noção da prisão como proteção a partir dos relatos dessas mulheres que fundem as noções de punição religiosa e punição criminal em suas falas?

Antes de passar à descrição, é importante pontuar três questões. A primeira é que o objetivo deste artigo não é descrever processos de conversão (CORRÊA, 2022CORRÊA, Diogo. Anjos de Fuzil: Uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus. Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.) em unidades prisionais (SCHELIGA, 2000SCHELIGA, Eva Lenita. “E me visitastes quando estive preso”: Sobre a conversão religiosa em unidades penais de segurança máxima. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.), tampouco refletir sobre como se dava a vivência religiosa das minhas interlocutoras na prisão, mas sim observar os discursos que circulavam nas unidades não só em eventos organizados pela igreja, como também nos relatos de mulheres presas. Sobre esse aspecto, esclareço também que não pude acompanhar muitas interações entre as igrejas e minhas interlocutoras, sobretudo em razão da dificuldade de livre circulação pelas unidades. Nesse sentido, enquanto alguns pesquisadores, majoritariamente em São Paulo, vêm apontando o ingresso em instituições religiosas como portas de entrada para a pesquisa prisional (GODOI et al., 2020GODOI, Rafael; CAMPOS, Marcelo; MALLART, Fábio; CAMPELLO, Ricardo. “Epistemopolíticas do dispositivo carcerário paulista: Refletindo sobre experiências de pesquisa-intervenção junto à Pastoral Carcerária”. Revistas de Estudos Empíricos em Direito, São Paulo, vol. 7, n. 1, pp. 143-158, abr. 2020.; PADOVANI, 2015PADOVANI, Natália Corazza. Sobre casos e casamentos: Afetos e amores através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.), meu encontro com tais instituições se deu durante a pesquisa de campo, e seus representantes eram um dos atores que circulavam cotidianamente nas unidades que frequentava.

A segunda questão é em relação à categoria nativa igreja acionada por minhas interlocutoras na prisão. Destaco que, apesar da pluralidade de denominações religiosas nas prisões, a igreja soava como uma categoria relativamente homogênea (DIAS, 2006DIAS, Camila Caldeira Nunes. “Conversão evangélica na prisão: Sobre ambiguidade, estigma e poder”. Plural - Revista do Curso de Pós-graduação em Sociologia da USP, n. 13, pp. 85-110, 2006.) durante a pesquisa para referir-se aos agentes religiosos que circulavam pelas unidades, em sua maioria pertencentes a uma denominação religiosa, católica ou evangélica, com predominância da última, sobretudo religiões neopentecostais. As denominações que se faziam mais presentes e tinham mais força de ação na prisão eram a Assembleia do Reino de Deus e a Universal do Reino de Deus, em particular a Universal nos Presídios, de que falarei mais no texto. Acrescento, ainda, que só havia uma única representante da umbanda que realizava visitas nas unidades femininas na época, e, quando a encontrei, ela me contou sobre as dificuldades que tinha para acessar as unidades, mas que algumas mulheres iam com frequência nas atividades que ela organizava.

Por último, pontuo ainda que, neste artigo, o foco da discussão que proponho é nos discursos religiosos, mas isso não significa que outros discursos não se façam presentes na prisão (FELTRAN, 2020FELTRAN, Gabriel. “Das prisões às periferias: Coexistência de regimes normativos na ‘Era PCC’”. Revista Brasileira de Execução Penal, Brasília, vol. 1, n. 2, pp. 47-71, jul/dez., 2020.), como, por exemplo, o das facções criminosas (BIONDI, 2010BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.), os mercados (BARBOSA, 2005BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: Biopolítica, sistema penitenciário e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.) ou, ainda, redes de afeto (PADOVANI, 2015PADOVANI, Natália Corazza. Sobre casos e casamentos: Afetos e amores através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.), que conectam, por sua vez, o dentro e fora da prisão, como trabalhei a partir da categoria ritmo na tese. No entanto, aqui gostaria de destacar a centralidade da circulação de discursos religiosos nas unidades prisionais femininas cariocas que, apesar de não serem uma particularidade do universo prisional e dos inúmeros “vasos comunicantes” da cadeia (GODOI, 2015GODOI, Rafael. “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: Entre dentro e fora das prisões de São Paulo”. Vivências, Revista de Antropologia, Natal, n. 64, pp. 131-142, 2015., 2017GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: A prisão em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017.), me parece que ganham ainda mais eco dentro de seus muros, sobretudo quando observada a presença constante de agentes religiosos na administração cotidiana prisional. Enfim, sigamos para o evento.

Um Dia Internacional da Mulher na prisão

Quando saí da sala para chamar outra interlocutora para entrevistar naquela manhã quente de verão, observei algumas pessoas que circulavam pelo pátio, e escutei alguém comentar que a igreja estava na unidade promovendo um evento “especial” para o dia das mulheres. Certamente, foi por isso que o agente na portaria me perguntou se estava na unidade para o “evento”. Interessada em saber mais sobre o que agitava a rotina das internas, já que não era sempre que tinha essa oportunidade, comecei a seguir os gritos eufóricos que vinham da quadra que ficava próxima ao pátio onde estava. Com passos tímidos e lentos, aproximei-me para conferir do que se tratava.

A semana, como descobriria em seguida, estava separada para comemorações especiais com o objetivo de celebrar o dia 8 de março, o Dia Internacional das Mulheres. Idas ao “salão de beleza”, desfiles em uma passarela improvisada, além de palestras especiais compunham a programação organizada basicamente por parcerias entre a administração da unidade e entidades religiosas que prestavam múltiplas assistências às mulheres nas unidades prisionais.

Naquela manhã, ao chegar na quadra, a primeira imagem que tive era dela lotada de cadeiras brancas de plástico, que formavam um semicírculo ao redor de uma passarela montada especialmente para a ocasião. A sensação era de que praticamente todas as agentes penitenciárias4 4 Hoje chamadas de policiais penais, após a publicação da Emenda Constitucional (EC) nº 104, de dezembro de 2019. e funcionárias da unidade estavam ali. Havia uma grande lona em cima das cadeiras e da passarela. Uma estrutura de som havia sido montada, com caixas amplificadoras e microfones. Eram em torno de 200 mulheres, aproximadamente metade do efetivo da unidade na ocasião. A maioria ocupava as cadeiras de plástico para acompanhar o desfile de dez internas. As dez estavam com vestidos longos e maquiadas caminhando, uma de cada vez, pela passarela, garantindo os gritos e aplausos eufóricos das demais. Reconheci uma delas, que costumava conversar comigo pelo pátio, vestindo sempre uma bermuda jeans e uma camisa verde. Ela estava animada com seu vestido de fora e aguardava a sua vez no desfile. As agentes, que estavam na entrada da quadra, observavam tudo e se divertiam. Funcionárias daquela e de outras unidades também estavam na plateia, todas de pé, em frente ao semicírculo formado pelas cadeiras brancas nas quais as internas estavam.

A esse ponto, eu já estava em pé ao lado das agentes e notei que a diretora me reconheceu. Em seguida, ela caminhou até mim, sorridente, explicando que aquele era um “dia especial, um evento para elas”, e que eu poderia participar da comemoração, “se quisesse”, porque era “seguro”. Agradeci, acrescentando que seria um prazer e que não estava com medo, e segui para uma das cadeiras de plástico, acomodando-me ao lado das internas que estavam sentadas no imenso semicírculo. Naquele dia, o ritmo parecia ser diferente de outros dias de pesquisa, já que estar entre 200 mulheres presas durante o evento não se apresentava como “perigoso”, como escutava em diversas situações ao tentar circular pela unidade e era impedida por “questões de segurança”.

Não era difícil distinguir quem era quem ali. As presas de short azul e camisa branca estavam todas sentadas nas cadeiras. As mulheres que organizavam o evento vestiam uma blusa branca com as iniciais “UNP”, que depois descobri que significava Universal nos Presídios, composto por um grupo de voluntárias associadas à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD, 2022IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS (IURD). UNP. Lisboa: Iurd, 2022. Disponível em: https://www.igrejauniversal.pt/universal-nos-presidios/. Acesso em: 25 nov. 2022.
https://www.igrejauniversal.pt/universal...
). As agentes, de preto, estavam em pé próximas à entrada da quadra. Funcionários da administração, sem uniforme, estavam ao lado das agentes. Eu, também sem uniforme, com um caderno e um lápis nas mãos, era desconhecida da maioria dos presentes e tentava não chamar muita atenção.

Encerrado o desfile, uma pastora chegou e, ao pegar o microfone, causou grande comoção entre todas. Não sabia quem era, mas depois descobri que se tratava de uma famosa cantora gospel, conhecida por todos os presentes. Ela estava com um vestido preto longo e uma bíblia pesada na mão. Falou por aproximadamente 20 minutos e leu alguns trechos da bíblia que se relacionavam com a prisão. A cantora contou histórias sobre milagres e falou que estava diante de “verdadeiras adoradoras”, pois “nada pode abalar um verdadeiro adorador”. Contou que estava escrevendo um livro e que ele era uma homenagem àquelas mulheres. Dizia que a prisão poderia estar “lá fora”, em muitas casas de luxo, porque a prisão está na cabeça e não nos muros. “Você pensa, você é”, ela acrescentava colocando as mãos primeiro na cabeça e depois no coração, indicando com gestos o sentido da frase. Falou da importância de aproveitar o tempo da prisão para fazer “algo de bom”, o que gerou a reação de uma interna que se levantou e disse que gostava de gastar seu tempo para compor “músicas de louvor” ali dentro. Por fim, ela cantou três músicas, duas delas pedidas pelas internas, que acompanhavam em coro, sobretudo o refrão. Em uma delas, ficaram todas de pé. Tudo lembrava bastante um culto, com direito a uma oração no final. Eu tentava seguir os movimentos de sentar-me e levantar, mas não conseguia acompanhar as músicas e a euforia das demais.

Durante o evento, a mulher que estava sentada ao meu lado se virou para mim, muito emocionada, e disse: “eles ajudam muito a gente aqui”, referindo-se à UNP. Como exemplo, ela contou que a igreja telefonava para familiares das mulheres presas e fornecia doações de materiais de higiene básicos. Ao mesmo tempo, algumas mulheres, com as mãos para o alto, choravam copiosamente durante as músicas.

Ao final, a diretora tomou o microfone para agradecer a cantora por ter dedicado “parte do seu tempo para estar ali”. Ela e algumas funcionárias da direção se encaminharam para o gabinete da diretora com a cantora. Fiquei ali por mais alguns minutos vendo tudo se desmontar. Uma agente penitenciária tomou a direção e rapidamente ordenou, aos gritos, que filas fossem formadas para que as mulheres regressassem às celas. O cenário se alterou em uma velocidade singular e tudo voltou a ser azul e branco.

Já passava da hora do almoço e, por ter agendado uma reunião com uma diretora de outra unidade, encerrei meu dia de campo naquele presídio com o fim do evento. Assim que recuperei meu celular na portaria, busquei saber quem era a cantora presente no evento e, no final do dia, encontrei uma postagem dela em uma rede social, na qual aparecia, sorrindo ao lado da diretora do Nelson Hungria, em frente à portaria da unidade com outras mulheres vestindo a camisa da UNP. O texto postado falava sobre a “tarde de testemunhos, fé, oração e o louvor que liberta!”, referindo-se ao evento do dia das mulheres, que traria “paz e organização ao ambiente carcerário” e, entre outras coisas, dizia que “o trabalho da igreja nos presídios é essencial”, por ser “[…] uma saída para serem recolocadas na sociedade. Porque se você não dá a opção e o incentivo para essas pessoas serem transformadas e restauradas, elas saem da mesma forma que entraram.”

Discutir se o trabalho da igreja nos presídios é “essencial” ou não para que as mulheres presas sejam “recolocadas na sociedade” não é meu objetivo neste artigo. No entanto, ignorar a presença de instituições religiosas nas unidades prisionais femininas cariocas seria deixar de lado boa parte da rotina que “organiza” o “ambiente carcerário”, para retomar a postagem da cantora acima, e traz outro ritmo para o cotidiano prisional. Quando falo em “organização”, talvez não esteja nomeando a mesma coisa que a pastora, mas destacando, por outro lado, a centralidade dos agentes religiosos no dia a dia das prisões, o que, como tenho pensado, parecer ser um dos caminhos possíveis para pensar o motivo pelo qual tantas interlocutoras que tive ao longo do trabalho de campo enunciarem “Deus” como o agente responsável pelo encarceramento em suas vidas.

Digo isso porque, ao longo de todo trabalho de campo, chamava minha atenção a quantidade de vezes que ouvia de minhas interlocutoras uma relação entre o encarceramento e a agência divina, descrita por meio da frase que intitula este artigo, “Foi Deus que me colocou aqui”. De início, imaginei que, por coincidência, estava entrevistando as mulheres da “cela evangélica” das unidades ou associadas a alguma religião. No entanto, a partir de determinado momento, percebi que meu esforço não fazia sentido e que era impossível ignorar a intensidade da presença de Deus nas falas das minhas interlocutoras, mesmo que elas não assimilassem a identidade de crente na prisão (DIAS, 2006DIAS, Camila Caldeira Nunes. “Conversão evangélica na prisão: Sobre ambiguidade, estigma e poder”. Plural - Revista do Curso de Pós-graduação em Sociologia da USP, n. 13, pp. 85-110, 2006.) e que não estivessem nas “celas evangélicas” das diferentes unidades.

Além disso, não foi difícil notar a presença constante de agentes religiosos nas unidades prisionais, que, apesar de não serem funcionários da unidade, são também chamados de agentes pela própria SEAP. Eles possuem não só carteirinhas específicas para entrar, à semelhança daquelas de amigos e familiares cadastrados como visitantes, mas também um livro de registro de entradas e saídas só para eles nas portarias das unidades5 5 O procedimento de cadastro de agentes religiosos é feito anualmente e suas instruções estão disponíveis no site da SEAP, no seguinte endereço: http://visitanteseap.detran.rj.gov.br/VisitanteSeap/credenciamentodeassistenciareligiosaseap/novasinstituicoes.html. Acesso: 14 nov. 2022. . Não era incomum observar uma agenda semanal de diferentes denominações que iriam realizar visitas afixada nas portarias das unidades. Assim, as idas à prisão deixavam claro para mim que os agentes religiosos faziam parte do cotidiano das unidades femininas e eram personagens importantes daquele cenário.

Outro aspecto que me chamou atenção foi o fato de que todas as grandes comemorações que presenciei - ou de que tive notícia - durante o trabalho de campo eram realizadas pela ou em parceria com a igreja, mesmo que não se tratasse de festas de cunho religioso. Um evento em comemoração aos 77 anos da Penitenciária Talavera Bruce, por exemplo, teve a decoração e o coffee break oferecidos pela Universal nos Presídios. O “Miss Talavera Bruce”, um evento anual conhecido por todos em unidades femininas - que não pude acompanhar, mas ouvi muito a respeito - é organizado também pela UNP. Por sua vez, o concurso “cela brilhante”, do Presídio Nelson Hungria, apesar de não ser realizado especificamente pela igreja, mas sim pela administração da unidade, também é um evento anual que consiste em uma competição pela cela mais decorada com enfeites natalinos e símbolos religiosos (ANDRADE, 2019ANDRADE, Betânia. Quando a cadeia balangar: A observação das práticas e dos conflitos no encarceramento feminino. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., p. 75). O prêmio do concurso, segundo minhas interlocutoras, era uma “reforma no banheiro” da cela, que poderia receber um vaso sanitário em substituição ao boi - buraco no chão usado para necessidades fisiológicas básicas quando não há um vaso.

Articulando o dentro e o fora da prisão, havia ainda o “Momento do Presidiário”, programa que me foi apresentado por algumas interlocutoras, transmitido diariamente (21h-22h) pela Rádio Aleluia, na estação 105.1 FM, também da IURD. Basicamente, seu formato segue um roteiro simples, no qual os(as) apresentadores(as) (pastores da igreja) abrem o programa com uma chamada para que os ouvintes aguardem até o final por uma mensagem especial - geralmente a leitura de um verso da bíblia. Os apresentadores atendem a telefonemas de familiares de pessoas presas que mandam a eles mensagens por meio do rádio e, ao final, realizam uma oração para “abençoar” os seus ouvintes de dentro e fora das prisões. Por meio dos telefonemas, são enviados beijos, abraços, saudades, confirmação de recebimento de cartas, informações sobre os processos e audiências, novidades - inclusive do falecimento de pessoas - além de mensagens de “perseverança e fé” de fora para dentro dos presídios, como “vasos comunicantes” (GODOI, 2015GODOI, Rafael. “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: Entre dentro e fora das prisões de São Paulo”. Vivências, Revista de Antropologia, Natal, n. 64, pp. 131-142, 2015.).

Durante a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, era evidente que praticamente todas as internas que ali estavam sabiam de cor as letras das músicas que foram cantadas e compartilhavam a euforia provocada durante o “culto”. A gratidão pela ajuda que a igreja oferecia e a emoção revelada em lágrimas e sorrisos durante o evento eram claramente notáveis para qualquer um que estivesse presente. Para a mulher que estava ao meu lado, a igreja era quem ligava para seus familiares e fornecia a ela e às demais internas itens básicos como absorventes e papel higiênico. A igreja também incentivava, por meio das palavras ditas pela cantora e pastora, que aproveitassem o momento da prisão “para fazer algo bom”.

Nesse sentido, por mais que a igreja não seja uma particularidade do universo prisional, ela possui um papel importante na “organização” dos presídios femininos cariocas, seja fornecendo lanches e agentes religiosos na preparação dos “eventos” comemorativos internos, seja no oferecimento de ajuda para as mulheres presas, tanto por meio de itens básicos de higiene não disponibilizados pela administração prisional quanto no contato entre o dentro e fora com familiares das internas - por meio de ligações ou na hora do programa de rádio “Momento do Presidiário”. Além disso, e considerando que não pude acompanhar muitos momentos de interação entre agentes religiosos e as mulheres presas pelas restrições de circulação nas unidades, destaco também como a igreja e seus representantes apareciam bastante nas entrevistas que realizei com as internas. A igreja, nessa perspectiva, fornecia elementos para dar sentido à pena de prisão imposta àquelas mulheres, o que analisarei nos tópicos seguintes a partir do meu diálogo realizado com quatro interlocutoras que estavam em diferentes unidades prisionais, selecionadas do total de 54 entrevistas, já que essa temática aparecia de forma mais evidente em nossas conversas.

Deus e a ressignificação dos infortúnios

Em mais um dia de campo, estava sentada sozinha na sala onde fazia entrevistas, na Penitenciária Talavera Bruce, após me despedir de uma mulher que voltava para sua cela, enquanto eu registrava nossa conversa em meu caderno. Algumas mulheres grávidas passaram por mim - pelo corredor - e uma delas me perguntou se eu era da Defensoria Pública. Respondi que não, acrescentando que era pesquisadora e estava conversando com mulheres que estivessem presas na unidade. Uma delas, com uma postura considerada ousada pelos olhares das demais que a acompanhavam, se aproximou de mim e se sentou na cadeira que estava em frente à mesa que usava de apoio para escrever: “eu quero falar, o juiz prendeu meu corpo, e não minha língua”. Conhecia, naquele momento, Carolina6 6 Todos os nomes neste artigo são fictícios. .

Estava grávida - uma gravidez de risco - e dividia uma cela especial com outras gestantes. Foram muitas as vezes, depois do dia em que a conheci, que encontrara com ela pelo corredor aguardando atendimento no ambulatório, indo para a igreja ou a caminho da psicóloga. Às vezes, conversávamos em pé nesse corredor ou também na sala da defensoria. “Elas falam que eu nem me sinto presa, sei que tô presa, presa para caralho, mas já estou num lugar muito negativo, não posso ficar com a cabeça mais negativa que o lugar”, ela me dizia explicando por que sempre estava transitando de um lado para outro na prisão e referindo-se às suas companheiras de cela. Carolina acreditava na importância de orientar seus pensamentos para coisas boas e que não deveria permitir que a negatividade da cadeia a dominasse: “Não vou deixar me abater, se a cadeia me abater, eu vou me afundar. Não deixo a cadeia me abater”.

Carolina já conhecia a cadeia, porque visitava, antes de ser presa, seu marido, mas dizia que a prisão feminina era muito pior. “Já fui visita, já vi os dois lados da moeda”, e agora dizia saber o que seu marido enfrentava. Era sua primeira passagem como interna e ainda aguardava julgamento, presa provisoriamente, por um roubo de celular. Em sua primeira audiência, apesar de sua primariedade e gravidez de risco, o juiz responsável compreendeu que ela deveria ser encaminhada à prisão preventivamente devido à sua “periculosidade”, em virtude da utilização de uma arma durante a abordagem do assalto pelo qual foi presa junto com outra mulher.

Foi seu primeiro - e único - roubo. A vítima também era uma mulher, porque Carolina teve receio de que se tentasse roubar um homem, pudesse apanhar. “Agora tô me sentido a bandidona, presa por um celular”, dizia achando graça de uma imagem que lhe foi atribuída que não acreditava ser adequada à sua postura. Não possuía qualquer vínculo com nenhuma facção e não se considerava criminosa, apesar de reconhecer que estava ali porque fez algo errado, “Deus me colocou aqui para eu aprender que isso não é vida para mim”. Ela se considerava evangélica, mas estava afastada da igreja quando foi presa.

Antes de sua Audiência de Instrução e Julgamento, ela contava-me sobre a expectativa que tinha em relação à decisão do juiz: “Que o Senhor toque o coração dela [vítima] para ela falar a verdade. Ela falou que eu bati nela e por isso não saí [da prisão], porque tô sendo [considerada] perigosa para a sociedade. Vou ser réu confesso, porque sei que vou embora. Vou assumir para mudar, sei que já paguei pelas coisas que fiz aqui dentro”. Carolina, com sua gravidez de risco, ansiava por essa audiência, que poderia conceder a ela ao menos mais uma chance de responder ao processo em liberdade.

Quando ficamos mais próximas, ela confidenciou para mim outras práticas que poderiam tê-la levado à prisão antes do roubo, acrescentando que Deus sabia de todas as coisas. Às vezes, ela sonhava que descobriam seu passado e que ela “ganhava mais um artigo” para o qual responder ao Judiciário - referindo-se, de forma metonímica, aos artigos do Código Penal que tipificam os crimes.

Em uma de minhas caminhadas pelo corredor da unidade, encontrei Carolina encostada na porta do ambulatório. Ao me ver, perguntou, sorrindo, se eu “estava presa”, porque vivia ali dentro. Também com um sorriso, respondi que não, mas que a pesquisa sempre me levava para aquele corredor. Nesse momento, seu semblante mudou e ela me contou que havia perdido seu filho. Recebi a notícia com muito pesar, porque sabia que já não era a primeira vez que tinha passado por isso. Sua gravidez era arriscada e sobreviver à estrutura de atendimento médico que possuía ali me parecia carecer de um milagre - para entrar na lógica do divino aqui presente. Foram muitas ocorrências de sangramento e idas à UPA de Gericinó, muitas delas em vão, “o médico nem tocou em mim” - uma frase comum a todas as mulheres que passavam por lá.

Carolina me narrou seu percurso até chegar a um hospital da rede pública de saúde, já em trabalho de parto, com um feto ainda em formação. Não havia muito a ser feito. Ela passou muito mal e teve diversos apagões no hospital. Seus olhos estavam marejados enquanto me relatava tudo isso. Disse ter sido muito bem atendida no hospital e teve a sorte de ser acompanhada por um agente do SOE-GSE (Serviço de Operações Especiais-Grupamento de Segurança e Escolta) que, em suas palavras: “em nenhum momento me chamou de presa, nem detenta ou interna. Ele me chamava pelo nome”.

Durante sua internação no hospital, esse mesmo agente perguntou a ela se estava afastada da igreja, ao que Carolina respondeu “tô afastada, mas tenho intimidade para falar com Deus”. Ela continuou narrando que seu interlocutor, naquele momento, falou para ela alguma coisa que a tocou e ali já soube que não estava mais afastada. “Ali, naquele leito, eu voltei à presença de Deus.” Diante da perda do filho, sentiu um conforto divino: “Quando Deus levou meu filho, antes de levar ele, Deus confortou meu coração”.

A frase com a qual ela se apresentou a mim parecia ganhar um tom perverso: o aprisionamento de seu corpo pelo juiz foi fatal para seu filho e sua vontade de falar aumentou. Após sua Audiência de Instrução em Julgamento, conseguiu um alvará de soltura para aguardar sua sentença em liberdade. Carolina, durante seus pouco mais de quatro meses na prisão provisória, “voltou à presença de Deus”, no lugar em que Deus a colocou para que aprendesse que “isso não é vida” para ela.

Minha interlocutora, ao narrar parte de sua trajetória pela prisão - ainda como “presa provisória” -, ressalta seu processo de retorno a Deus, de quem estava afastada. Ela não fala especificamente em “conversão”, mas sim em “volta à presença de Deus”. Nesse aspecto, acrescento novamente que outros pesquisadores já exploraram a conversão religiosa dentro de instituições de privação de liberdade. Eva Scheliga (2000SCHELIGA, Eva Lenita. “E me visitastes quando estive preso”: Sobre a conversão religiosa em unidades penais de segurança máxima. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000., p. 4, grifo nosso) aborda a conversão nos presídios como um “processo estratégico que promove uma ressignificação das práticas e, dessa forma, altera as relações entre os diferentes grupos de detentos e destes com o mundo”. Camila Dias (2006)DIAS, Camila Caldeira Nunes. “Conversão evangélica na prisão: Sobre ambiguidade, estigma e poder”. Plural - Revista do Curso de Pós-graduação em Sociologia da USP, n. 13, pp. 85-110, 2006., por sua vez, trata da conversão religiosa nas unidades prisionais paulistas descrevendo a posição que os convertidos ocupam no sistema social prisional. As duas autoras têm como foco os processos de conversão religiosa em unidades prisionais, havendo ainda outras pesquisas que tratam da interseção entre a conversão religiosa e o mundo do crime, não necessariamente a partir da prisão (CORRÊA, 2022CORRÊA, Diogo. Anjos de Fuzil: Uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus. Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.; TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. A construção social do ‘ex-bandido’: Um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011., 2013TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. A teia do bandido: Um estudo sociológico sobre bandidos, policiais, evangélicos e agentes sociais. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.).

Sem desconsiderar essas abordagens, destaco novamente que não tenho como objetivo descrever processos de conversão religiosa, uma cosmologia cristã, tampouco destacar o ponto de vista de agentes religiosos nas instituições prisionais, mas ilumino narrativas que convergem no sentido de atribuir o papel punitivo a Deus. Nesse sentido, estou interessada em descrever esse processo no qual as pessoas conferem sentido à pena, estando dentro de uma unidade prisional, olhando para o que as levou até ali e pensando no que virá em sua saída, articulando o passado e o futuro com o presente prisional.

Para isso, dialogo com Evans-Pritchard (1978)EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., em sua pesquisa com os Azande sobre a bruxaria, considerando essa aproximação pertinente para melhor compreender a relação entre Deus e o encarceramento apresentada nessas trajetórias descritas, tendo em vista que, para o antropólogo:

O conceito de bruxaria fornece a eles uma filosofia natural por meio da qual explicam para si mesmos as relações entre os homens e os infortúnios, e um meio rápido e estereotipado de reação aos eventos funestos. As crenças da bruxaria compreendem, além disso, um sistema de valores que regula a conduta humana (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 49).

Com isso, quero dizer que acredito que Carolina, ao afirmar que foi Deus quem as colocou na prisão, está “explicando para si” mesma uma relação entre elas e os infortúnios. No entanto, diferente da bruxaria para os Azande, aqui os infortúnios não são simplesmente adversidades, mas sim sofrimentos incumbidos a elas por Deus, pelos quais devem passar, para que, como Carolina me explica, aprendam que a vida que levavam lá fora não é vida para elas. Assim, os infortúnios, nesse caso o encarceramento ou o sofrimento para usar a categoria usada por elas, são oportunidades que Deus concede a algumas - mas não a todas - que estão na vida errada lá fora para mudarem de vida, como falarei no próximo tópico.

O ato do aprisionamento, por sua vez, não coincide necessariamente com a mudança de vida, mas é ele que é acionado como o ponto de virada para que a oportunidade de uma nova vida seja possível. Assim, essa relação entre agência divina e o encarceramento não foi necessariamente costurada quando Carolina foi presa na rua. Ao contrário, foi dentro da prisão que o sentido do encarceramento foi atribuído a Deus, pela “volta à presença de Deus” testemunhada por um agente do SOE.

Ela, inclusive, além do infortúnio do encarceramento, perdeu o filho enquanto aguardava seu julgamento presa provisoriamente. Nesse caso, acompanhar a gravidez de risco de minha interlocutora foi um evento dramático no sentido de que as condições nas quais ela se encontrava não me pareciam possíveis para um desfecho distinto do ocorrido. Carolina já havia passado por outras interrupções espontâneas de gravidez e sua situação necessitava de uma atenção maior do que a “cela especial” para grávidas onde se encontrava. Por especial, entenda-se uma cela onde somente pessoas grávidas eram alocadas, um acesso um pouco maior do que o das demais internas ao ambulatório (o que não chega a ser um privilégio, considerando que, em regra, necessitam de mais consultas médicas de rotina) e um pão a mais no café da manhã do que as outras7 7 Carolina descreve: “A primeira refeição é às 8h: 3 pães e um café com leite. Por volta de 11h-12h, é servida a brilhosa, que é a quentinha com feijão, arroz, frango, carne, ovo ou chinelão [uma espécie de nugget de frango, cujo formato lembra um “chinelo”] e, às vezes, salada. E depois, entre 15h e 16h, mais uma brilhosa.” .

Para ir à UPA em virtude de um sangramento, Carolina - e todas as outras pessoas grávidas que conheci na prisão - deveria mostrar para as agentes penitenciárias de plantão o sangue na calcinha. Muitas vezes, eram acusadas de estar mentindo para querer sair da cela, por isso, as agentes alegavam a necessidade de comprovação do sangramento. O procedimento padrão apontado por todas as pessoas que me relataram o atendimento na UPA não contemplava o toque nos pacientes. Outro relato comum era de que para muitas questões de saúde, o remédio receitado era o Buscopan, indicado para diminuir a dor causada por desconfortos abdominais. Carolina, em suas diversas idas à UPA, passou alguns dias lá “em observação” e, em alguns desses, em vez de ficar em uma maca, teve de dormir no chão: “Esqueceram minha comida. Fiquei em observação. Eu e mais três. Nem fui atendida, o médico passou pela cela e me perguntou como eu estava”.

O parto das pessoas grávidas no sistema prisional não ocorre - ou não deveria ocorrer - na UPA, mas sim em um hospital de referência - no caso, o Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo - para o qual presos e presas são encaminhados quando os médicos da UPA entendem que há necessidade. Carolina, em sua última ida à UPA, foi para lá encaminhada, depois de conseguir a vaga zero (nome dado à vaga de quem aguarda um leito disponível estando na prisão), já em trabalho de parto. No hospital, pariu um feto ainda não completamente formado e que permaneceu vivo por não mais de dez minutos. Ela, por sua vez, passou muito mal e chegou a perder a consciência algumas vezes durante a internação. Foi nesse momento crítico, quando “Deus levou seu filho”, que ela sentiu o conforto divino. “Naquele leito”, acompanhada por uma agente do SOE religioso, Carolina diz ter “voltado à presença de Deus”.

Enfim, o que quero destacar ao trazer as condições enfrentadas pela minha interlocutora e retomando seu relato já descrito anteriormente é que os infortúnios de Carolina - a perda do filho durante a prisão provisória - não são situações atípicas na prisão. Ao contrário, não é novidade o número altíssimo de pessoas presas sem sentença condenatória no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. De acordo com o Infopen (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Justiça. Infopen: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2019. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2020. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZWI2MmJmMzYtODA2MC00YmZiLWI4M2ItNDU2ZmIyZjFjZGQ0IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 16 nov. 2022.
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), em 2019, dos 50.822 presos em unidades prisionais no estado do Rio de Janeiro, 19.752 eram provisórios, ou seja, 38,86% do total. Além disso, o acesso ao sistema de saúde na prisão é apontado como um dos principais problemas das prisões cariocas (MEPCT, 2018MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA DO RIO DE JANEIRO (MEPCT/RJ). Sistema em Colapso: Atenção à Saúde e Política Prisional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: MEPCT/RJ, 2018. Disponível em: http://mecanismorj.com.br/relatorios/. Acesso em: 16 nov. 2022.
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). Nesse sentido, o que quero pontuar aqui é que os infortúnios de Carolina, mais do que uma exceção, são partes constitutivas do cotidiano prisional brasileiro.

Nesse sentido, e retomando os pontos centrais deste tópico, Carolina, mesmo que atribuísse os infortúnios pelos quais passou a Deus - com o objetivo de que ela se afastasse da vida que levava - não desconsiderava a relação entre o acesso precário à saúde na prisão e a interrupção de sua gravidez antes da formação completa de seu filho. Inclusive, quando a encontrei após o ocorrido, muito magoada, ela me dizia que queria “processar a UPA e a prisão” pela não atenção dada à sua gravidez. Além disso, ela também não desconsiderava a atuação de um juiz na responsabilização pela sua prisão, inclusive mantendo-a privada de liberdade por sua “periculosidade”, que ela não reconhecia como um atributo seu. No entanto, Deus, ao que me parece, à semelhança do que Evans-Pritchard (1978)EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. observou entre os Azande, opera como a “segunda lança”8 8 “Quando os Azande matam a caça, há uma divisão da carne entre o homem que primeiro atingiu o animal e o que lhe cravou a “segunda lança”. Esses dois são considerados os matadores do animal, e o dono da segunda lança é chamado o umbanga. Assim, se um homem é morto por um elefante, os Azande dizem que o elefante é a primeira lança, que a bruxaria é a segunda lança, e que, juntas elas o mataram” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 55). , isto é, o juiz, o sistema precário de saúde e Deus, juntos, atuam para que os infortúnios ocorram.

Segundo o autor, para o zande “[…] os fatos não se explicam a si mesmos, ou fazem-no apenas parcialmente. Eles só podem ser integralmente explicados levando-se em consideração a bruxaria” (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 54). Portanto, o que quero afirmar aqui, a partir desses pontos, é que, apesar de o juiz e o sistema de saúde precários serem responsáveis pelos infortúnios de Carolina, sem Deus, a “cadeia causal” (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 52) não estaria completa. E, mais do que isso, Deus transforma esse sofrimento em uma oportunidade de mudança de vida.

O relato de Vanessa, outra interlocutora, traz ainda outra dimensão dessa “cadeia causal”. Para ela, Deus a colocou na prisão para que ela mudasse a vida de sua filha. Conheci Vanessa quando estava no Instituto Penal Oscar Stevenson, onde cumpria sua pena em regime semiaberto. Quando perguntei à Vanessa se já tinha sido presa, ela me respondeu que aquela era sua primeira e última passagem pela prisão. Não morava na capital e foi presa por associação e tráfico de drogas, tendo recebido uma pena inicial de onze anos, que foi reduzida para oito por recursos apresentados por sua defesa.

Nunca tinha sido traficante e não se considerava criminosa: “Eu não me vejo no mundo de cadeia, de bandidagem”. Foi presa porque a polícia havia encontrado maconha no quintal de sua casa, pertencentes ao seu genro, que vivia em sua casa e era traficante. Quando a polícia chegou, ele pulou o muro do quintal e deixou a carga ali para dispensar o flagrante. Vanessa assumiu para si a posse das substâncias e não entregou seu genro, atribuindo a ela própria a responsabilidade pelo ocorrido: “Eu aqui por conta de um erro, por ter deixado meu genro frequentar minha casa sabendo o que ele fazia”.

Com sua prisão, pouco tempo depois, sua filha descobriu que seu namorado - genro de Vanessa - havia engravidado outra menina e se separaram. Apesar de tudo isso, Vanessa não tinha raiva ou qualquer mágoa e não se arrependia de não ter entregado seu genro. Para ela, seu encarceramento foi o responsável pela mudança da vida de sua filha: “Deus que me botou aqui dentro, mudei a vida da minha filha. Se eu não tivesse vindo para cá, ela poderia estar visitando ele [genro] na cadeia ou ter filho com pai morto”.

Vanessa avaliava sua passagem pela prisão não só como a salvação de sua filha, mas também como um momento de aprendizado: “Aprendi a dar valor a pequenas coisas, um pedaço de papel pequeno como esse [segurou o pequeno papel que eu havia deixado na mesa e me mostrou]. Aqui, você aprende que não tem amigos, só para beber. Só seus pais estão do seu lado”. Ela ainda tinha alguns anos pela frente para acabar de cumprir sua pena e tinha receio de retomar uma vida lá fora depois da prisão. Para Vanessa, o pior era o preconceito: “eu mesmo estou com preconceito de mim mesmo, de sair na rua”.

Nesse sentido, observo as múltiplas possibilidades dessa relação de causalidade, que podem abranger, inclusive, familiares das pessoas presas. Vanessa não se considerava da bandidagem, mas aceitou o sofrimento conferido a ela, porque errou ao deixar seu genro traficante frequentar sua casa. Por essa razão, ela pôde mudar a vida de sua filha. Se não fosse a sua prisão, como ela diz, sua filha poderia estar ainda se relacionando com o ex-genro de Vanessa, visitando-o na cadeia, ou ter tido um filho “com pai morto”.

Assim, pontuo neste tópico a maneira pela qual minhas interlocutoras explicam o encarceramento em relação à agência divina. Nesse sentido, a vida errada, o pecado, o crime podem ser transformados, por meio do sofrimento, da punição divina, do encarceramento, para que uma nova vida seja possível. Voltarei, nas considerações finais, a esses pontos, mas antes destaco a categoria “prisão” a partir dos relatos de Nilza e Júlia.

A prisão como proteção

Júlia se tornou minha interlocutora durante as refeições que eu fazia no Instituto Penal Oscar Stevenson. Ela era uma das meninas da cozinha, onde trabalhava para remir parte do tempo da pena que ainda tinha a cumprir. Foi lá que começamos a conversar, quando ela pediu que eu a chamasse “para a entrevista” para me contar “sua história”. Assim o fiz, durante o intervalo do seu trabalho, quando me contou o contexto no qual havia sido presa, há “7 anos, 6 meses e 7 dias pagos para o sistema”, contados um a um, e acrescento que não conheci ninguém que não se lembrasse da data precisa de sua prisão, mesmo que algumas não soubessem exatamente quantos anos tinham.

A história que Júlia queria me contar partiu dela sem que eu houvesse feito nenhuma pergunta. O que tinha a dizer para a “pesquisadora” era que ela havia sido presa quando estava a caminho de um casamento em uma cidade distante de onde morava: “Estava indo com a família toda para um casamento. Tava levando droga para usar para o casamento. Cocaína, maconha para fumar. Droga para curtição. Não tava nem traficando. Tava toda preparada, embalada para usar”. Parada em uma blitz policial, foi presa e condenada a treze anos e seis meses de prisão por tráfico e associação, descritos na Lei nº 11.343/2006 nos artigos 33 e 35. Segundo ela, o “promotor de acusação ainda fez questão de acusar mais. Hoje olho para trás e entendo que foi necessária essa prisão”.

Já na unidade provisória, Júlia conheceu uma senhora que deu a ela uma explicação sobre o motivo pelo qual ela havia sido presa: “O Senhor utilizou uma senhora que nunca tinha visto, uma que conheci no Joaquim Ferreira, uma serva de cristo, uma serva de Deus, e ela disse que minha prisão foi um livramento para mim, porque íamos todos morrer num acidente de carro”. A partir daí, Júlia, que havia me dito que as drogas que estavam no carro quando ia ao casamento eram para curtição, acrescentou que “Tudo que ganhei no tráfico, tudo que o diabo dá com uma mão, ele toma com as duas. [Aqui] tive a oportunidade de conhecer Jesus. Minha mãe era espírita, mas deixou a gente escolher. Fui batizada em 2013, lá no Talavera Bruce, pela Assembleia de Deus”. Seu batismo na Penitenciária Talavera Bruce se deu em uma “piscina na igreja”, aqui se referindo à construção física, em uma obra realizada pela união de diferentes denominações religiosas. Lá no “Talavera”, de “segunda a sexta tinha culto”.

Minha interlocutora, ao longo de nossa conversa, não afirmou que era envolvida com o crime, ao contrário, ela disse que, ao ser presa, estava com “drogas para curtição”. No entanto, quando fala de sua “conversão”, de seu “encontro com Jesus”, ela me diz que tudo que havia ganhado no tráfico, o dinheiro dado com uma mão pelo “diabo”, era tomado por ele “com as duas”. Nesse ponto, acrescento que meu objetivo não é analisar versões “verdadeiras” ou não do que aconteceu, mas chamar atenção para o momento no qual Júlia explicita seu “envolvimento com o crime” em contraposição ao momento de sua prisão, quando só estava com “drogas para curtição”.

Júlia me dizia que “só tá na cadeia quem ainda tem propósito, quem Deus ama”, logo, aquela blitz policial foi uma “oportunidade para vir para cadeia, ouvir do amor de Deus. Deus tá dizendo: estou te dando oportunidade”. Curiosa em saber como minha interlocutora havia tido contato com esses “ensinamentos” perguntei a ela sobre isso, ao que ela respondeu que “tudo eu aprendi na cadeia, ouvindo as pregações, lendo a bíblia; a verdade que nos liberta” e acrescentou: “aprendi aqui que Deus me colocou aqui porque ele me ama e me colocou aqui para eu não ser levada sem ele lá fora (morta)”. A gratidão não era só por Deus a ter colocado na prisão ou pelo livramento de sua eventual morte, mas também à igreja pela ajuda oferecida a ela e a suas companheiras na prisão - “quando a cadeia não dava, alegando que estava em crise, quem ajuda a gente é a igreja.”

Nilza, outra interlocutora que conheci na mesma unidade onde Júlia estava, diferente dela, estava em sua segunda passagem pela cadeia, e ao todo já se iam quase 15 anos presa. Já havia passado diversas vezes por instituições de internação em sua infância e adolescência, ora por colégios internos administrados por freiras, ora pelo sistema socioeducativo, quando era pega “fazendo alguma coisa errada” na rua. Em sua primeira passagem pela prisão, há muitos anos, teve sua filha, que ficou sob a guarda de sua irmã.

Tive a oportunidade de conversar com Nilza antes e depois de ela ter passado sete dias na rua em virtude do benefício de Visita Periódica ao Lar (VPL), conquistado com a progressão de regime e o seu bom comportamento. Eram anos sem pisar no extramuros e ela estava ansiosa para sair, mesmo que só por uns dias. Quando voltou e nos encontramos na cadeia novamente, ela me disse que ficou “meio perdida” na rua e acrescentou que não havia reconhecido direito o lugar onde morava, porque havia muitas mudanças.

Nilza vem de uma região da cidade do Rio que tem sido marcada por muitas operações policiais com o uso, inclusive, de helicópteros, o que para ela era uma novidade em termos de intensidade de ocorrência: “na época que estava na rua não tinha tanta operação como tá tendo hoje”. Não saiu da casa da irmã nos dias fora da prisão, (“quando saí, fui só na igreja dar um testemunho”), porque tinha medo de ser baleada na rua ou ser reconhecida pela polícia como presa e perder o seu benefício: “cheguei lá e já tinha um morto sendo velado, não fui nem ver”. Sua narrativa sobre sua ida para casa se resumia a tiroteios, morte, medo e operações - “Quem mora em comunidade, é por necessidade. Dou graças a Deus por ter aquele lugar cheio de bala lá”.

Esses relatos dolorosos não vinham sem algumas risadas que marcavam o senso de humor aguçado de Nilza. O assunto sobre os dias em casa caminhou para uma comparação com a prisão na qual ela ressaltava um caráter protetivo da cadeia, “a verdade é que aqui a pessoa está guardada, não vai ter bala perdida, a polícia não vai sair atirando lá do alto pra cá” e acrescentou: “Deus escolheu para vir para cá para nos guardar. Deus mandou fazer a cadeia. Tudo para mim é inspirado na bíblia. Só vem para cá quando Deus permite que você venha para cá. Lá fora, você não pode nem olhar de certa forma para as pessoas, aqui elas não têm arma, no máximo um estilete”.

“No mundo do crime, só há duas saídas, a morte ou a prisão”, essa foi uma das frases que Nilza, assim como outras tantas interlocutoras, em diversas variações, me enunciaram desde que comecei a fazer pesquisa em espaços de privação de liberdade, quando interlocutores de pesquisa alertavam para a impossibilidade de uma terceira saída do crime para além da cadeia ou da morte. Apesar de acreditar que as prisões brasileiras são produtoras de mortes, em diálogo com outros pesquisadores (MALLART, 2019MALLART, Fábio. Findas linhas: Circulação e confinamento pelos subterrâneos de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.; MALLART; ARAÚJO, 2020MALLART, Fábio; ARAÚJO, Fábio. “Causa mortis determinada: A prisão”. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 29 abril 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/causa-mortis-determinada-a-prisao/. Acesso em: 16 nov. 2022.
https://diplomatique.org.br/causa-mortis...
), a partir desses relatos de Nilza e Júlia, busco compreender de que maneira é possível compreender a prisão como um lugar para serem “guardadas” ou, ainda, como um livramento de uma vida de “erros” ou da própria morte.

Como destaquei no último tópico, a responsabilidade pelo encarceramento, segundo os relatos que descrevo aqui, é atribuída, mesmo que não exclusivamente, a Deus. No entanto, como também já mencionei, esses infortúnios (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.) são vistos não só como um sofrimento, mas também como uma oportunidade para mudar de vida, ou, ainda, como um ponto de virada para uma nova vida. Nesse sentido, a prisão é o local onde esses ensinamentos são aprendidos e, por meio do sofrimento que ela confere, torna-se também um lugar onde essa oportunidade de mudança se concretiza.

Júlia, na cadeia, conheceu outra interna que disse a ela que sua prisão foi um livramento. Ao ser parada na blitz, quando se deslocava para o casamento com “drogas para curtição”, Júlia deixou de sofrer um acidente que a mataria. Assim, sua saída do “mundo do crime”, no qual ela ganhava dinheiro pelas “mãos do diabo”, não se deu por intermédio da morte. A ela foi dada a oportunidade de ir para a cadeia, “ouvir do amor de Deus”. Para Júlia, Deus tinha um propósito, já que estava na cadeia e não havia sofrido um acidente. A prisão era um livramento, uma segunda chance, uma oportunidade.

Por sua vez, o relato de Nilza é ainda mais potente no que diz respeito à prisão como uma proteção. Moradora de uma favela do Rio de Janeiro, quando Nilza passa os sete dias da VPL na casa de familiares, depois de anos presa, assusta-se com a intensificação dos tiroteios, sobretudo aqueles vindos dos helicópteros. O medo de ser baleada não era à toa e a presença da morte se deu logo quando chegou e “já tinha um morto sendo velado”. Por isso, na prisão, ela estava guardada de “bala perdida”, porque os policiais não iriam atirar “lá do alto para cá”. Deus havia permitido e escolhido que Nilza fosse à cadeia para ser protegida e ser ameaçada “no máximo por um estilete”.

Nesse aspecto, é interessante observar os parâmetros pelos quais Nilza classifica a prisão como um local onde a possibilidade de ameaças se dá “no máximo por um estilete”. Operações policiais com o uso de helicópteros não são novidades no Rio, mas Nilza se assusta com a sua intensidade quando passa uma semana na rua. É difícil saber exatamente quais critérios ela utiliza para qualificar a violência na rua ou a violência na prisão, mas a questão aqui é que seu relato problematiza o próprio conceito de violência ao minimizar o uso do estilete em relação às balas disparadas “lá do alto”.

Nesse ponto, dialogo com Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2008)OLIVEIRA, Luis Roberto Cardoso de. “Existe violência sem agressão moral?”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, n. 67, pp. 135-146, jun. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/YmSpRVMkLsSTJW5Kdf6bLdB/. Acesso em: 20 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/YmSpRVM...
ao trabalhar o conceito de violência relacionada à dimensão moral de uma agressão. Segundo o autor, talvez não seja adequado falar em “violência” sem agressão moral:

Embora a violência física, ou aquilo que aparece sob este rótulo, tenha uma moralidade incontestável e a dimensão moral das agressões (ou dos atos de desconsideração à pessoa) tenha um caráter essencialmente simbólico e imaterial, creio que a objetividade do segundo aspecto ou o tipo de violência encontra melhores possibilidades de fundamentação do que a do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausência da ‘violência moral’, a existência da ‘violência física’ seria uma mera abstração (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, Luis Roberto Cardoso de. “Existe violência sem agressão moral?”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, n. 67, pp. 135-146, jun. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/YmSpRVMkLsSTJW5Kdf6bLdB/. Acesso em: 20 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/YmSpRVM...
, p. 135).

Nesse sentido, para ele, a dimensão moral das agressões ou a “violência moral” é uma chave de leitura para a configuração da própria violência física. Por sua vez, Nilza, ao problematizar o conceito de violência, não me parece estar sublinhando a dimensão moral dos tiros e do estilete, mesmo que esteja presente nelas. Sua problematização, a meu ver, está relacionada à dimensão da previsibilidade e da autoria da violência.

Alguns pesquisadores vêm mostrando a potencialidade da prisão brasileira como um lugar de produção de vidas piores do que a morte (MALLART, 2019MALLART, Fábio. Findas linhas: Circulação e confinamento pelos subterrâneos de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.), onde se está, apenas para citar como exemplo, vinte oito vezes mais suscetível à infecção de tuberculose do que fora dela (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf. Acesso em: 17 nov. 2022.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
), ou, para mencionar o contexto atual da pandemia do novo coronavírus, em um local onde foi registrada uma morte a cada 45 horas (MEPCT, 2020MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA DO RIO DE JANEIRO (MEPCT/RJ). Boletim Covid-19 no sistema prisional atualizado até o dia 21 de agosto de 2020. Rio de Janeiro: Alerj, 2020. Disponível em http://mecanismorj.com.br/wp-content/uploads/MEPCT_RJ-Boletim-COVID-19-no-Sistema-Prisional.pdf. Acesso em: 17 nov. 2022
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). Nesse sentido, a morte na prisão está relacionada às condições precárias impostas aos presos que estão mais suscetíveis a doenças e onde o acesso ao sistema de saúde é ainda mais complexo. Nilza não desconsidera esse cenário - inclusive bastante associado à dimensão do sofrimento que tratei no último tópico -, mas menciona, para fazer comparação com os tiros de fora, o uso do estilete.

O estilete ao qual Nilza faz referência foi bastante mencionado por outras interlocutoras ao descreverem o limite das brigas entre as internas, que se dão por “mulher, droga ou celular”. “Mulher” diz respeito às relações sexuais e afetivas entre as presas, que, por ciúmes, términos ou conflitos de relacionamento, podem acabar em discussões acaloradas ou disputas físicas; “droga” ou “celular” referem-se à possibilidade de uma parte disciplinar9 9 Partes disciplinares podem ser punições da própria administração, como ficar alguns dias no isolamento, ou pode também virar um novo processo criminal, com uma nova pena a ser cumprida. ou um novo processo penal por parte da administração ou do Judiciário. Sobre o uso do estilete, nesse contexto, ele pode estar relacionado às disputas nos relacionamentos ou a cobranças por parte de outras presas em razão de dívidas contraídas pela compra e venda de “drogas” ou de “celulares”.

Enfim, o uso do estilete se dá nos conflitos entre as próprias presas e não por parte da administração ou das forças policiais, como é o caso dos tiros “lá do alto”. Por sua vez, ele é mais previsível do que os disparos que vem de cima, porque, além de raros, só ocorrem no limite de conflitos internos já estabelecidos. Por mais que muitas mulheres tenham mencionado o estilete para mim, não conheci ninguém que tenha feito seu uso ou sofrido alguma agressão com ele ao longo da pesquisa, constituindo-se mais como ameaça do que como uma realidade cotidiana.

Ao mesmo tempo, em relação aos tiros, não há como ignorar também a intensificação do número de homicídios provocados por policiais, sobretudo no ano de 2019, com a eleição de governos que abertamente defendem que “abater” bandidos é uma política eficaz no “combate ao crime”. Como exemplo, menciono aqui o ex-governador do estado do Rio, Wilson Witzel, afastado definitivamente em 2021, ao afirmar que, como uma política de segurança pública, “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”. Enfim, por mais que existam grandes lacunas em relação aos dados sobre operações policiais no Rio, sabe-se que, em 2013, segundo os dados oficiais, as polícias eram responsáveis por 13% dos homicídios da cidade; já em 2019, quando Nilza sai pela primeira vez da prisão depois de 13 anos, esse número passou a 40% de todas as mortes registradas (GRILLO; HIRATA, 2020GRILLO, Carolina Christoph; HIRATA, Daniel. “Operações policiais no Rio de Janeiro: Da lacuna estatística ao ativismo de dados” Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 30 jan. 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/operacoes-policiais-no-rio-de-janeiro-da-lacuna-estatistica-ao-ativismo-de-dados/. Acesso em: 16 nov. 2022.
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). Logo, a sensação de Nilza ao sair da prisão de que as operações haviam se intensificado, depois de tantos anos presa, encontra ligação com os números apontados.

O que quero pontuar ao trazer esses dados e retomar a narrativa de Nilza de que a prisão foi criada por Deus para proteger quem ele permitiu que fosse preso não tem somente relação com uma “cadeia causal” entre uma agência divina e o encarceramento, mas também está ligada a políticas de segurança pública adotadas com cada vez mais intensidade em determinados territórios da cidade e com o tipo de violência física praticada dentro da prisão com o uso de estiletes. Com isso, não afirmo aqui que na prisão há menos chances de morrer do que fora dela, sobretudo se considerarmos os casos de acesso à saúde mencionados acima por outros pesquisadores. No entanto, destaco a conceituação de Nilza em relação às categorias de proteção e livramento para pensar na própria dimensão da violência por ela ressaltada: a primeira, vem do alto, nos tiros dados pelas forças de segurança pública; a segunda, vem do lado, “no máximo um estilete” utilizados por pessoas presas dentro da prisão.

Assim, para que a prisão seja classificada como um local de proteção é preciso também olhar para esse cenário extramuros e para as políticas de segurança pública praticadas para além da prisão, marcadas por violências cotidianas. O sofrimento não deixa de existir quando se classifica a prisão como um local de proteção, mas a ele é adicionada outra camada a partir da descrição da Nilza sobre os muros que a protegem de uma morte por “bala perdida”. Como já dito, isso não significa que não se possa morrer na prisão, mas há uma diferença na produção de mortes dentro e fora dela, o que permite Nilza modular e classificar essas possibilidades.

Algumas considerações finais: entre Deus, a prisão e a ressocialização

Este artigo teve como objetivo descrever de que maneira as mulheres presas que conheci durante a pesquisa de campo atribuem sentido à pena e ao encarceramento em suas vidas. Nessas últimas considerações, e com o objetivo de pensar em outras aproximações entre Deus ou a igreja e a prisão, proponho ir além e pensar em que sentido essa relação opera na maneira pela qual minhas interlocutoras olham não só para o momento de entrada na prisão, mas também para a sua saída. Se por um lado Deus te coloca lá dentro, é também Deus que pode te tirar dali. Ter na liberdade é fundamental para sair, mas além disso é importante que as presas demonstrem que querem mudar de vida para ter oportunidade de trabalhar e diminuir a pena, para ganhar benefícios em sua execução, para não tomar uma parte disciplinar, e, no limite, para sair da cadeia.

Quando minhas interlocutoras relacionam a agência divina ao encarceramento, como trabalhei aqui em diálogo com Evans-Pritchard, não me parece haver um deslocamento da compreensão do poder estatal, neste caso representado pelos juízes de execução penal, de aplicação da pena ou do encarceramento. Ao contrário, me parece haver um acoplamento de entes abstratos (Estado/Deus), que resultam em assimilações entre diversos processos que culminam numa aproximação entre salvação divina e ressocialização. Explico melhor: quando o divino aparece como agente responsável pela colocação das mulheres na cadeia, há uma aproximação entre as noções de “crime/encarceramento/ressocialização” com as de “pecado/punição divina/salvação”. Esse processo de aproximações ocorre em diferentes instâncias que dividiria em dois aspectos, o material e o moral. Os dois são indissociáveis entre si, mas somente para facilitar a exposição tratarei de cada um deles separadamente.

Antes de tratar de cada um dos aspectos, pontuo que é evidente que há uma separação entre Deus e igreja, mas, ao mesmo tempo, estão intimamente relacionados. De forma semelhante ao que Kurtz (2001)KURTZ, Donald. “Anthropology and the study of the state”. In: Political anthropology: Paradigms and power. Boulder: Westview Press, 2001, pp. 169-188. afirmou ao dizer que o Estado não existe de forma apartada daqueles que o usam, Deus aparece nas falas das minhas interlocutoras como uma entidade que se materializa nas prisões, sobretudo, pela presença de agentes religiosos que representam a igreja e promovem a circulação dessas crenças e discursos. O evento que descrevo na parte um deste artigo revela uma convergência entre o que a cantora fala para as mulheres e os relatos de suas trajetórias. O discurso religioso, por sua vez, é expressivo nas unidades que conheci, o que tem relação com a presença massiva de agentes religiosos nelas, além de possíveis agentes penitenciários evangélicos.

Por essa razão, acredito que é possível compreender a igreja como parte responsável por políticas públicas nas unidades prisionais, estreitando a aproximação entre igreja e as prisões principalmente se considerarmos uma perspectiva antropológica de como o “Estado se constitui” (MIRANDA, 2005MIRANDA, Ana Paula Mendes. “Antropologia, Estado Moderno e Poder: Perspectivas e desafios de um campo em construção”. Revista Avá, Posadas, n. 7, pp. 128-146, jun. 2005., p. 12), ou de olhar para o que seriam “políticas governamentais”:

Se considerarmos o momento histórico presente, sugerimos ainda que as políticas governamentais devem ser entendidas como planos, ações e tecnologias de governo formuladas não só desde organizações administrativas de Estados nacionais, mas também a partir de diferentes modalidades de organizações que estão fora desse âmbito, mas que exercem funções de governo. Pensamos aqui em ONGs e movimentos sociais, assim como em organismos multilaterais de fomento e de cooperação técnica internacional para o desenvolvimento (LIMA; CASTRO, 2015LIMA, Antônio Carlos de Souza; CASTRO, João Paulo Macedo e. “Notas para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s)”. Revista Anthropológicas, Niterói, ano 19, v. 26, n. 2, pp. 17-54, 2015., p. 35).

Dito isso, retomo os dois pontos que propus acima, começando pelo que chamei da dimensão material. Absorventes e roupas doadas pela igreja, ligações para familiares, organização de eventos, desfiles, tudo isso ocupa um espaço fundamental na vida de mulheres presas, sobretudo considerando que a maioria não possui visita constante de familiares que possam levar suprimentos básicos de saúde e higiene não fornecidos de forma suficiente pela administração. Nesse sentido, compõe-se a ajuda de que minhas interlocutoras falam, além de impor-se um ritmo no espaço prisional.

Indo além, quando Nilza fala sobre o fato de se sentir mais protegida na prisão porque lá a polícia não atiraria do alto para baixo, a dimensão material ocupa um espaço mais sensível que diz respeito à manutenção da própria vida. O aspecto protetivo é associado por ela à construção de prisões por Deus, não somente no sentido de espaços para punir, mas também de locais que possibilitem a recuperação das pessoas para mudar de vida e não serem mortas lá fora. O que antecipa o aspecto moral que trago a seguir.

O encarceramento é o momento em que ocorre uma classificação institucional de alguém como criminoso. Estar presa é ter sido considerada responsável pela autoria de um crime. No entanto, a dissociação identitária dessa categoria não ocorre de forma simultânea com o início ou o fim da prisão. Sair do mundo do crime (FELTRAN, 2011FELTRAN, Gabriel. Fronteira de tensão: Políticas e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) tem mais a ver com a construção de outra identidade, e nesse ponto se insere a dimensão moral. A igreja, neste ponto, promove não só uma assistência material, mas uma partilha moral de pertencimento a outra identidade. Ser da igreja, mudar de vida e ser perdoada são categorias de reconhecimento e de exclusão (PITA, 2005PITA, María Victoria. “Mundos morales divergentes. Los sentidos de la categoría familiar en las demandas de justicia ante casos de violencia policial”. In: TISCORNIA, Sophia; PITA, María Victoria (eds.). Derechos humanos, tribunales y policía en Argentina y Brasil: Estudios de antropología jurídica. Buenos Aires: Antropofagia, 2005.) de um engajamento no “mundo do crime” para as minhas interlocutoras (TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. A construção social do ‘ex-bandido’: Um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011., 2013TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. A teia do bandido: Um estudo sociológico sobre bandidos, policiais, evangélicos e agentes sociais. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.).

A prisão é considerada, assim, como sofrimento e, ao mesmo tempo, oportunidade, ao cumprir a punição/encarceramento pelo pecado/crime, de ser salvo/ressocializado. Além da salvação da própria vida, a prisão pode ainda salvar a vida de seus familiares, como narra Vanessa - que sequer havia cometido crimes e relacionava o mudar de vida de sua filha à sua prisão. Num movimento de afastamento de uma imagem de criminosa, Vanessa se dizia uma nova pessoa de um passado que ela sequer pertenceu.

Nesse aspecto, no limite, a imagem da própria instituição prisão está intimamente ligada à igreja como produtora de “políticas governamentais” (LIMA; CASTRO, 2015LIMA, Antônio Carlos de Souza; CASTRO, João Paulo Macedo e. “Notas para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s)”. Revista Anthropológicas, Niterói, ano 19, v. 26, n. 2, pp. 17-54, 2015.). Nesse sentido, destaco que parece haver um acoplamento entre representantes estatais como o juiz ou promotores e Deus, como ente abstrato que ganha corpo pela presença constante da igreja ou de agentes religiosos na prisão (ou ainda de agentes penitenciários religiosos). Isso parte do enunciado “Deus me colocou aqui”, que, como expliquei, apesar de Deus não ser sinônimo de igreja, está intimamente relacionado por fazer parte de uma maneira de dar sentido ao mundo, mais especificamente, à pena e ao encarceramento.

Assim, Deus, como a “segunda lança” (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.), por meio da presença de agentes religiosos na prisão, fornece um repertório discursivo para dar sentido a esse momento de ruptura entre uma vida fora e uma vida dentro da cadeia, seja no movimento de entrada seja no movimento de saída, incorporando a categoria de ressocialização. Isso porque a passagem pela prisão promove um ponto de inflexão, um “choque carcerário” (MARTINS, 2022MARTINS, Luana. Fazer a pena andar: Uma etnografia sobre o cumprimento de pena em unidades prisionais femininas entre o Rio de Janeiro, Paris e Marseille. Tese (Doutorado em Sociologia e Direito) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.), e, por sua vez, uma reflexão sobre o que se está vivendo por meio de discursos que circulam entre seus muros e que possibilitam dar sentido à pena.

Notas

  • 1
    Inscrição da parte interna do muro da entrada do Presídio Nelson Hungria, junto a uma pintura de uma praia com palmeiras.
  • 2
    Funciona como um cartório dentro das unidades prisionais, sendo o local onde estão arquivados os documentos e processos internos de cada pessoa presa.
  • 3
    Foram elas a Cadeia Pública Joaquim Ferreira, a Penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, e o Instituto Penal Oscar Stevenson, no bairro de Benfica. Hoje, tanto o Joaquim Ferreira (Bangu 8) quanto o Nelson Hungria (Bangu 7) se tornaram unidades masculinas. O processo de autorização para todas essas unidades foi o mesmo, passando 7 meses pela SEAP até a sua concessão final. No entanto, as negociações com cada administração seguiam caminhos distintos, e, em algumas unidades, tinha mais facilidade de circular do que em outras, o que trabalhei a partir da categoria “questões de segurança” na tese (MARTINS, 2022MARTINS, Luana. Fazer a pena andar: Uma etnografia sobre o cumprimento de pena em unidades prisionais femininas entre o Rio de Janeiro, Paris e Marseille. Tese (Doutorado em Sociologia e Direito) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.).
  • 4
    Hoje chamadas de policiais penais, após a publicação da Emenda Constitucional (EC) nº 104, de dezembro de 2019.
  • 5
    O procedimento de cadastro de agentes religiosos é feito anualmente e suas instruções estão disponíveis no site da SEAP, no seguinte endereço: http://visitanteseap.detran.rj.gov.br/VisitanteSeap/credenciamentodeassistenciareligiosaseap/novasinstituicoes.html. Acesso: 14 nov. 2022.
  • 6
    Todos os nomes neste artigo são fictícios.
  • 7
    Carolina descreve: “A primeira refeição é às 8h: 3 pães e um café com leite. Por volta de 11h-12h, é servida a brilhosa, que é a quentinha com feijão, arroz, frango, carne, ovo ou chinelão [uma espécie de nugget de frango, cujo formato lembra um “chinelo”] e, às vezes, salada. E depois, entre 15h e 16h, mais uma brilhosa.”
  • 8
    “Quando os Azande matam a caça, há uma divisão da carne entre o homem que primeiro atingiu o animal e o que lhe cravou a “segunda lança”. Esses dois são considerados os matadores do animal, e o dono da segunda lança é chamado o umbanga. Assim, se um homem é morto por um elefante, os Azande dizem que o elefante é a primeira lança, que a bruxaria é a segunda lança, e que, juntas elas o mataram” (EVANS-PRITCHARD, 1978EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 55).
  • 9
    Partes disciplinares podem ser punições da própria administração, como ficar alguns dias no isolamento, ou pode também virar um novo processo criminal, com uma nova pena a ser cumprida.

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2022
  • Aceito
    10 Jun 2023
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