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Mordida cruzada: a expansão de autores em artigos científicos

EDITORIAL

Mordida cruzada: a expansão de autores em artigos científicos

"A vaidade de muita ciência é prova de pouco saber."

Marquês de Maricá

Nesses tempos de "cienciometria", parece-nos prudente fazer uma reflexão sobre o número de autores que deveriam compor cada artigo científico. Mais profundamente, ainda, a reverberação, em cruzamento, sobre a neoformação moral e ética dos nossos jovens pesquisadores, consequente da expansão da autoria sem a efetiva participação no trabalho.

Faz pouco tempo, o Dental Press Journal of Orthodontics (DPJO) recebeu a submissão de um artigo com oito autores. A quantidade, por si, não permite qualquer conclusão apropriada: seria preconceito, na acepção exata do vocábulo. É comum em revistas como Nature e Science, dois dos mais importantes periódicos mundiais, a publicação de artigos com dezenas e dezenas de autores. Entretanto, seria ingênuo negar que a necessidade de publicação, decorrente da competição, tem tornado alguns cientistas menos sensíveis à ciência como esteio da verdade; menos ainda à ética como filosofia. Essa questão parece importante demais para ser mitigada e rija de menos para não ser mastigada.

O artigo em questão, submetido ao DPJO, apresentava dados sobre um ensaio laboratorial dos mais simples, entretanto, absolutamente nada justificava o número exagerado de autores. O conteúdo do artigo, por si, já o descredenciava para a publicação e o excessivo número de autores provocava a atresia na confiança sobre os propósitos do estudo. O artigo foi submetido por um jovem pesquisador e parece lógico acreditar que ele pode ter sofrido pressão para expandir a lista dos nomes na autoria, incluindo alguns de seus tutores. "O exemplo é sempre mais eficaz do que o preceito", escreveu o inglês Samuel Johnson. O jovem aproveitou e ativou um pouco mais a expansão, já em exagero, e acrescentou nomes dos seus colegas de (per)curso.

Seria essa uma condição da nossa cultura somatizada à necessidade da produção científica? Para buscar alguma informação, analisei os artigos originais publicados nas duas revistas de maior impacto na ciência ortodôntica mundial no ano de 2012. Observei que os artigos publicados por brasileiros incluem, em média, um autor a mais do que os artigos publicados por autores de outros países (p<0,01). Em média - em mediana, para ser mais exato -, os artigos publicados por brasileiros possuem cinco autores, enquanto entre os autores das demais nacionalidades a mediana é de quatro por artigo.

Por que, então, artigos publicados por ortodontistas brasileiros possuem, em mediana, um autor a mais? Uma justificativa plausível poderia ser sustentada pela dificuldade em escrever na língua inglesa. Assim, incluiríamos um autor com domínio do inglês. Essa explanação cai por terra se concordarmos que o nível de formação dos ortodontistas brasileiros que publicam nos periódicos com maior impacto científico é alto demais para se considerar a língua inglesa como uma barreira importante. Corrobora, ainda, o aumento no número de pesquisas, publicadas nesses periódicos, provenientes de países de língua não inglesa. Portanto, muitos pesquisadores da Turquia, Japão, China e de alguns países da Europa teriam, também, dificuldades para publicar na língua shakespeariana.

A inserção de autores sem o devido comprometimento com o estudo realizado constitui infração ética e é injusta no processo de competição com os profissionais que trabalham de forma virtuosa. Entretanto, é ingenuidade acreditar que essa prática seja exclusiva de alguns pesquisadores brasileiros. Na análise feita entre os dois principais periódicos da Ortodontia mundial, encontrei um artigo com nove autores. Trata-se de um ensaio in vitro analisando a força de adesão usando diferentes agentes condicionadores. Na minha concepção, nada que justifique o elevado número de autores.

Essa questão transfixa a Ortodontia. Mesmo periódicos de alto nível não estão imunes a esse problema. Em 2002, um em cada dez autores de artigos publicados no British Medical Journal (BMJ), e um em cada cinco autores do Annals of Internal Medicine possuíam crédito de autoria sem a devida justificativa1. Nesse último, estima-se que 60% dos artigos publicados tinham pelo menos um "falso" autor.

Segundo o Comitê Internacional de Editores de Periódicos Médicos (ICMJE), deve ser considerado "autor" alguém que fez contribuições intelectuais substanciais2. Algumas revistas solicitam e publicam informações sobre as contribuições de cada autor. Os editores têm sido fortemente encorajados a implementar uma política de identificação do responsável pela integridade do trabalho e o papel de cada autor na realização do estudo. Revistas como Nature, BMJ, The Lancet, PLOs e JAMA têm seguido essas orientações. Na Odontologia, assim como na Ortodontia, essa é uma prática pouco difundida.

No início de 2012, o DPJO iniciou a adoção da política de identificação de cada autor nos estudos submetidos. Hoje, o sistema de submissão aceita até quatro autores. Isso não impede que o autor correspondente insira mais nomes, porém, requer uma exposição ao editor sobre o papel de cada pesquisador na execução do estudo. O resultado dessa orientação já surte resultados expressivos e a expansão exagerada a que nos referimos já demonstra algum sinal de constrição. Nos anos mais recentes (2010 e 2011), cerca de 46% dos artigos publicados no DPJO possuíam cinco ou mais autores. Quase dez meses depois de realizado esse ajuste, apenas 7% dos autores correspondentes justificaram os motivos para inserção de mais que quatro autores.

O Comitê Internacional de Editores (ICMJE) divulga que todos aqueles que tenham contribuído para um estudo mas que não preencham os critérios de autoria devem ser listados na seção de agradecimentos. Pessoas que tenham proporcionado uma ajuda puramente técnica, revisão do texto ou colegas de departamento que tenham provido um suporte apenas de forma generalizada deveriam ser incluídos nessa seção. Nos meus editoriais, tenho contado com a ajuda do meu irmão, um cirurgião torácico também com extrema habilidade no corte e síntese das palavras. O meu "ghost-writer" tem despendido parte do seu exíguo tempo em me auxiliar na difícil tarefa de produzir um texto mais claro, objetivo e polido. Em mais esse editorial, por exemplo, ele teve função primordial no cuidado e delicadeza inerentes à aspereza do assunto. Sucede que alguns ferimentos poderiam ser expostos e o trato cirúrgico na condução das palavras tornaria o tema menos desagradável, visto que a dor parece inelutável. Por essa "textoplastia", se não lhe cabe a coautoria, deixar de agradecê-lo seria gesto menor, ingratidão.

David Normando - editor-chefe

davidnormando@hotmail.com

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Prof. Roger Normando pela análise crítica e sugestões na organização textual e gramatical.

REFERÊNCIAS

  • 1. Bates T, Anić A, Marusić M, Marusić A. Authorship criteria and disclosure of contributions: comparison of 3 general medical journals with different author contribution forms. JAMA. 2004 Jul 7;292(1):86-8.
  • 2
    International Committee of Medical Journal Editors. Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals: ethical considerations in the conduct and reporting of research: authorship and contributorship. [accessed on 2012 Oct 30]. Available from: www.icmje.org/ethical_1author.html.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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