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USP: as curvas da modernidade

UMA VISÃO CRÍTICA

USP: as curvas da modernidade

Eduardo Portella

Os primeiros anos trinta, mesmo quando confrontam e contradizem a Revolução que os determina, estão marcados por uma decisão radical de mudança. A idéia que animou a criação da Universidade de São Paulo irrompe nesse quadro de transformações, sem disfarçar a sua predominante ascendência francófila, ilustrada, secular, liberal, sobre a qual o mínimo que se deve dizer é que foi oportuna e conseqüente.

A efervescência cultural precede, como costuma acontecer, às edificações acadêmicas. O Modernismo sulista e o Regionalismo nordestino são responsáveis diretos, através de suas diferentes manifestações, pela vontade instauradora que se dissemina nos quatro cantos do país. Os fundadores da USP e da UDF representam, com idêntico vigor, esse compromisso transformador. Caso contrário não teríamos hoje, diante do nosso olhar pretensiosamente avaliador, esse conjunto de realizações tão convincente. Uma Universidade é sempre a sua capacidade de transformar e de se transformar.

O projeto USP nasce sob o signo das humanidades, mas numa concepção larga, cuja primeira inscrição, logo à entrada do Decreto que a institui, programa: "a) promover, pela pesquisa, o progresso da ciência." E, em seguida, se acrescenta: "b) transmitir, pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito ou sejam úteis à vida; c) formar especialistas em todos os ramos de cultura e técnicos e profissionais em todas as profissões de base científica ou artística; d) realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres.

O caráter integrador se destaca desde esses primeiros dias, dissolvendo ou reencaminhando as dificuldades políticas persistentes. É um dos raros momentos de encontro do saber com o poder, numa síntese aberta em que se entendem, emblematicamente, Julio de Mesquita Filho e Paulo Duarte; e na qual Armando de Salles Oliveira comparece como a instância viabilizadora. O Estado de São Paulo compreende, pioneiramente, a importância dos investimentos educacionais como fator de qualificação do desenvolvimento econômico, o conhecimento como fonte de liberdade.

Atualidade das origens

Pode parecer um certo exagero historicista, ou simplesmente historiográfico, afirmar-se que a cinqüentenária Universidade de São Paulo tanto mais se afirma quanto mais se mantém fiel às suas origens. Quando delas se afasta, seduzida por filosofemas extremistas, projeta uma imagem pouco flexível, inesperadamente maniqueísta. O saber aqui já não é capaz de ver a realidade: apenas consome as suas representações ideológicas. E isto acontece toda vez que o autoritarismo, instalado à direita ou à esquerda, impõe o mito falacioso da revolução. Os processos ideológicos — os métodos também — se mostraram incapazes de superar as contradições. Sobretudo quando elas rebentam o cimento infra-estrutural.

É absurdo precipitar-se a conclusão, às vezes decorrente, de que a Universidade não deva ser um projeto político. Foi como projeto político destinado a formar uma elite nacional, conforme o melhor receituário iluminista, que a conceberam os fundadores da USP. Compreende-se, hoje mais claramente, depois de tantas ilusões perdidas, a recusa antecipadora da escola apenas profissionalizante. Mais do que tudo, convém registrar o destaque conferido à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras — à Faculdade de Filosofia enquanto a cabeça da Universidade.

Nestes tempos tão deceptados quanto decepcionados, em que velhas guilhotinas ideológicas continuam dedicando-se a suas tarefas habituais, é preciso voltar a pensar. E não será por meio da técnica, extraviada na tecnocracia, que recuperaremos esse lugar demarcado, com tanto rigor, pelos pioneiros da USP. Pelo contrário: é justamente a filosofia que poderá redirecionar o vôo cego da técnica. A vida da Universidade como Universidade da vida não perde por esperar esse reencontro.

Enquanto ele se retarda, a Universidade brasileira — a USP não escapa a essa regra geral — limita-se a recolher de volta, diariamente, o mesmo rosto com que contempla a crise nacional. É um círculo vicioso de difícil superação. Até porque, se as suas propostas mais dinâmicas, mais condizentes com os seus fins, deparam-se a todo instante com obstáculos quase intransponíveis, a política de meios que a circunda e domina permanece subordinada a um centro de decisão nunca verdadeiramente universitário. São contingências que se agravam, em meio à voracidade do expansionismo tecnocrático. E aí a Universidade se impacienta porque se reconhece como um espaço ameaçado ou condenado, que perdeu de uma só vez a legitimidade e a força legitimadora. O percurso inverso, a possível saída para o impasse, corresponderá à desincompatibilização de conhecimento e interesse. Não me parece que a USP de hoje, ainda dispersa por pequenas escaramuças ideológicas, esteja a caminho desse reencontro. A tecnocracia e o seu oposto, ou melhor, as tecnocracias, herdeiras diletas do triunfalismo, jamais vacilam em gritar, com os plenos pulmões da certeza, o perigo da dúvida. Como se não fosse ela, a instabilidade, e até a insegurança, o oxigênio da reflexão contemporânea, ao longo do trajeto sinuoso da modernidade.

Os fundadores da USP puderam falar nos chamados altos estudos desinteressados. Nós já não temos esse direito. Da Universidade, de suas ações-argumentativas, terá de sair o antídoto do Estado tecnocrático. E neste sentido, em que pesem iniciativas isoladas, ou esforços individuais, a Universidade meio-centenária reproduz, numa trajetória em que se alternam a opulência e a pauperização, a crise do poder recessivo instalado no país. A Universidade renuncia à sua condição de ponte entre a Cultura e a Educação, porque não consegue ou não pretende transpor as limitações do saber apenas instrumental.

O tecnocratismo, em vez de reprogramar, destrói as raízes liberais. O mandarinato acadêmico, obediente e zeloso, astuciosamente zeloso e obediente, investiu na formação de quadros tão fechadamente burocráticos quanto socialmente desfibrados. O gigantismo gerencial inibiu ou bloqueou chances de vida nova. A perplexidade dos setores virtuosistas se entregou, com alguma freqüência, à tagarelice dos discursos nostálgicos ou simplesmente memorialistas. Tentou legitimar, pela via exclusiva, e em alguns casos excludente, da tradição, em projeto cada vez mais necessitado de prospecção crítica. As boas intenções desse comportamento, todo vazado naquele humanismo que venho chamando de filantrópico, não dispunham de resistências mais sólidas para oporem à avalanche tecnocrática.

A agenda rasurada

O sonho liberal dos primeiros anos 30 sofre aqui os seus mais duros golpes. A agenda cuidadosamente elaborada pelos pioneiros se vê abruptamente rasurada pelo poder perverso, que se reflete na Universidade atoinstitucionalizada. O tecnocratismo, sócio do mando insular, ilhou ainda mais a Universidade. O fosso que se interpôs entre o trabalho acadêmico e a vida social assumiu proporções insuportáveis — em detrimento de ambos. A sociedade ignora a Universidade que a ignora. Com a orgia instrumental, a Universidade se nega enquanto motor do avanço social. O próprio desempenho pacifista, conquista do diálogo, fica comprometido. O saber prático só sabe praticar violência.

É quando a ciência econômica, aqui oca de sociabilidade e de subjetividade, aperfeiçoa os seus arsenais explicativos. Evidentemente uma justificativa monocórdia, um delírio monotemático, desdobrados sob os auspícios da econometria mais monetarista. O tema eleito por toda essa montagem explicativa foi a inflação. Um tema que, ao que tudo indica, não se dá bem com o fanatismo exegético. Quanto mais se vê explicada, tanto mais cresce.

A USP, mesmo levando em consideração a inigualável força de sua produtividade intelectual, terá sempre, daqui por diante, de se justificar perante a nação por haver fornecido a cobertura explicativa, com o correspondente sotaque autoritário, para a ditadura econômica que nos corrói por dentro e por fora.

Não tem sido possível, à Universidade de São Paulo, desenvolver o modelo talvez misto — sólidamente ancorado no porto seguro da filosofia, das ciências e das letras —, que se delineou naquelas horas matinais. Á prescrição e obstrução ceifaram ou desestimularam cabeças que se fortaleceriam nestas duas décadas. Diversificadamente. Mesmo porque um país é também o elenco de temas de que dispõe. E nós ficamos reduzidos a um tema obsessivo-compulsivo, naturalmente cercado pelos seus correlatos: a inflação. Sob a sua égide se cometem aberrações, porém sem desviar-se do rumo mitigado do capitalismo tardio no Brasil recessivo. Quem sabe se a USP das humanidades, que por razões óbvias é a que acompanho mais de perto, não poderá abrir frestas inadiáveis nesse nevoeiro tecnocrático? Ou até recambiar o barco extraviado? A contribuição da USP para o ensino de Letras, por exemplo, é fundamental para todo o país.

Os álibis de que se serve a impostura tecnocrática giram em torno das promessas de modernização. Mas a modernização é decorrência da democracia. A argúcia crítica de Octavio Paz, reafirmada na sua mais recente obra, Tiempo Nublado (1983), já se encarregou de nos lembrar que "a modernização sem democracia tecnifica as sociedades mas não as transforma". O pique transformador da modernidade é tanto maior quanto mais intenso for o impulso democrático. A Universidade, à medida que não consegue alargar o seu espaço democrático, seja em nível da gestão administrativa, seja em nível da instauração do saber — e essas duas vertentes se implicam ostensivamente —, registra uma espécie de recaída arcaizante, imobilista pela sua própria natureza. Como a USP responderia hoje a essa questão formulada insistentemente pelos tempos modernos? Octavio Paz certamente diria: pelo nosso tempo nublado?

A modernidade cindida, na qual a pessoa humana e o seu contorno natural e social como que se desgarram para sempre, vem se revelando incompetente diante desse desafio que se avoluma. A modernização dependente, ou linearmente mimética, se equivoca redondamente quando supre que pode percorrer um caminho construtivo deixando de lado as suas obrigações democráticas e democratizantes. É quando modernizar passa a ser sinônimo de tecnocratizar, e Michel Leiris se sente autorizado a falar em modernité-merdosité.

Em nenhuma época se moderniza se não se democratiza. O índice precário de democratização expõe a insuficiência modernizadora da Universidade. E os seus habitantes, os professores, os alunos, os funcionários, experimentam uma incômoda sensação de que foram indexados como peças de museu. Talvez até tombados pela nossa política acanhadamente patrimonial.

A estrutura universitária vigente não quis, não soube, ou não pôde, ampliar a esfera de sua legitimidade. Permanece apegada a um formalismo anacrônico, impermeável socialmente. Desenraizado, portanto. Por isso a instituição universitária deve procurar reerguer-se evitando, a uma só vez, o perigo corporativista e a tentação anárquica. O que somente será viável dilatando o seu horizonte intersubjetivo. E provável que venha a sair de dentro dela — desde que se reencontre criticamente com as suas raízes —, do interior de sua radicalidade democrática, alternativas modernizadoras genuínas. Caso contrário, ingressaremos na pós-modernidade — nós, os retardatários —, sem que tenhamos vivido, ou esgotado, a modernidade.

O salto arriscado

Todo salto traz consigo o risco do fracasso: jamais como intimidação, porém como repto. O salto é a razão de ser do saltador. As tarefas do conhecimento, que também se processam através de saltos, convivem com o risco sem o menor constrangimento. E pelo que vejo, os núcleos renovadores da USP — e eles existem em proporções reanimadoras, em meio a conhecidas dificuldades institucionais —, conduzem esse risco de modo criativo. Não quero dizer com isto que tudo são flores no percurso da USP. De maneira alguma. O próprio reencaminhamento do humanismo, um dos seus cavalos de batalha, continua submerso em prolongado impasse. O salto do humanismo transcendental para o novo humanismo (ver revista Tempo Brasileiro nº 73,1983) não se consumou satisfatoriamente. Ou porque preservou as superstições do humanismo filantrópico, ou porque denegou peremptoriamente o consciencialismo, em função de um cotejo sistêmico, supervalorizador da objetividade. As estratégias do humano afundam na vala comum das impugnações epistemológicas. As visões paleo ou neo positivistas, porque escamoteiam a realidade privilegiando ou arredondando fatos que são apenas fatias, alimentam uma idéia preconceituosa do fragmentário — o não-sistema que se confundiria, indevidamente, com o anti-sistema.

É fácil contudo perceber, entre os pesquisadores das ciências histórico-hermenêuticas (continuo falando daquela área da qual, suponho, me chegam informações mais precisas), a superação da postura onisciente, ainda persistente da Universidade brasileira. Nesta hora se destaca a função precipua da Universidade em épocas transitivas: manter vivo o saber e a vontade de saber — o saber por saber. Essa proposta nada teórica, descontínua e fragmentária, tem a vantagem de reconhecer a desproteção da Universidade no conjunto da vida do mundo. £ evitar que se insista em pedir a ela o que ela não nos pode dar.

Com o esfacelamento da vida privada na cultura moderna, com a falência da particularidade, com o advento do homem sem atributos ou sem qualidades — para dizer com Robert Musil —, se oferecem como saídas alternativas, diferentes modalidades comunicativas, sem que os ganhos objetivos deixem de corresponder, necessariamente, a perdas simbólicas.

A democracia em curso, que não se resume no desempenho intelectual consagrado, terá de ser buscada dentro e fora dos campi. No campo aberto da sociedade civil. E provavelmente por intermédio de uma consciência comunicativa. A pedagogia extramuros da USP parece apontar nesta direção.

Aventura prospectiva

Mesmo admitindo a aventura prospectiva como o desdobramento inevitável dessas anotações, não será de todo improcedente pensar que o caminhar futuro da USP passa pelo seu passado. Criticamente. Essa prospecção consistiria em enfrentar o retorno às origens, olhando para a frente. Sem esquecer que toda Universidade constitui uma elaboração cotidiana. A Universidade que se pressupõe de todo, que de todo é dada de antemão, repete tão-somente as quimeras do transcendentalismo. Da mesma forma com que o conhecimento nunca precede aos materiais que se acham ao seu alcance, ou que podem ser por ele alcançados, no vaivém incessante que o identifica. Daí que o pluralismo crítico, jamais confundido com a heterodoxia teoricamente ingênua, se destaque como o seu combustível de todas as jornadas; força motriz de uma reflexão talvez utópica, porém concretamente utópica, em nada semelhante às crenças abstratas dos novos ricos do progresso: aqueles que se abandonaram ociosamente à fatalidade da evolução. Os progressistas de agora não pensam; confiam: piamente.

A Universidade se debilita sempre que se afasta da teoria crítica da sociedade para, no seu lugar, entronizar os atos subseqüentes da razão opulenta, monótonamente idêntica a si mesma. Incapaz de compreender que os papéis habituais das figuras do conhecimento podem ser a qualquer momento remanejados, e as distâncias convencionais, entre a ficção e o saber científico, por exemplo, amanhecerão subvertidas.

E não há muito o que estranhar: é perfeitamente possível divisar, ainda próximas, as curvas da modernidade, que a USP acompanhou, nos seus mínimos movimentos.

Eduardo Portella é diretor geral adjunto da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) desde 1988. Foi ministro da Educação e Cultura (1989-80) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor, entre outros, de Retrato falado da educação brasileira, O intelectual e o poder e Democracia transitiva.

Texto publicado no suplemento Folhetim, do jornal Folha de S. Paulo, de 22 janeiro de 1984.

Aos LEITORES

Para transmitir aos leitores informações sobre a fase inicial e a evolução da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,

foram colhidos depoimentos de alguns docentes que se formaram em suas

primeiras turmas, em entrevistas dadas ao editor-executivo de Estudos

Avançados, jornalista Marco Antônio Coelho (na entrevista com o professor

Marcelo Damy participou também o professor Alberto Luiz da Rocha

Barros). Esses depoimentos, revistos pelos entrevistados, completam-se com as

entrevistas dos professores Crodowaldo Pavan, Antônio Brito da Cunha e

Erasmo Garcia Mendes — da antiga seção de História Natural (Biologia)

—y publicadas no número 18 de Estudos Avançados. Sobre Mário

Schenberg, no número 11, p. 195, encontra-se um artigo do professor

Alberto L. da Rocha Barros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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