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Novas faces de uma figura prismática

New faces of a prismatic figure

RESENHAS

Novas faces de uma figura prismática

Hélio Seixas Guimarães

Professor-doutor e pesquisador da Universidade de São Paulo, coeditor e membro da Comissão Executiva da Machado de Assis em linha – Revista eletrônica de estudos machadianos (Qualis, A1); membro da Comissão Editorial e Executiva de Teresa – Revista de literatura brasileira. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre e doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, tem pós-doutorado na University of Manchester, Reino Unido. @ – helioguim@gmail.com


Cinco meses antes de morrer, Machado escreveu ao amigo e crítico José Veríssimo, que lhe havia pedido autorização para publicar sua correspondência: "Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns".

Podemos dizer, machadianamente, que o escritor tinha e não tinha razão.

A correspondência de Machado de Assis pode ser lida como um enorme capítulo de negativas: não há revelação de grandes segredos íntimos, nem testemunhos sobre o modo de composição das obras, nem discussões filosóficas ou estéticas, nem comentários indiscretos sobre os contemporâneos. Boa parte da correspondência é protocolar, tratando de questões do dia, respondendo sucintamente a perguntas ou cedendo às insistências do interlocutor. Nesses escritos, a pena nunca parece correr solta, e sim presa ao controle severo de um homem que raramente deixou entrever sua intimidade.

Por sua vez, embora discreta e relativamente pouco numerosa, essa correspondência constitui também um farto e abundante manancial de informações sobre o escritor e as relações diversificadas que estabeleceu com correspondentes de várias idades, com os quais manteve distâncias sempre calculadas, mas muito variadas. Junto com o burocrata estritamente protocolar, quase seco, há também o homem com discretas expansões de afeto, reservadas aos velhos amigos, como Nabuco e Salvador de Mendonça, mas especialmente para os jovens cujas amizades cultivou na velhice, como Magalhães de Azeredo e Mário de Alencar.

Assim, se de fato são poucas as cartas que interessam isoladamente, o conjunto delas, que vem sendo reunido e anotado de maneira primorosa por Sérgio Paulo Rouanet, Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, representa documento valioso sobre o homem e o escritor.

O tomo mais recente dessa correspondência, o terceiro, inclui cartas escritas e recebidas entre 1890 e 1900. Esses são os anos em que a troca epistolar se tornou mais abundante e diversificada, o que também indica o prestígio crescente do escritor, que a essa altura trocava cartas com pessoas proeminentes da política e da diplomacia, como Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Oliveira Lima e o Barão de Rio Branco; do jornalismo, como Quintino Bocaiúva e Max Fleiuss; e das Letras, como Coelho Neto, Graça Aranha e Olavo Bilac. Neste terceiro tomo há 291 documentos e cerca de sessenta correspondentes, ao passo que nos anteriores (o Tomo I vai de 1860 a 1869; o Tomo II, de 1870 a 1889) cada década compreendia cerca de cem documentos, com um número de correspondentes significativamente menor.

A leitura das 658 páginas do volume publicado mais recentemente confirma em grande parte o que se notava nos volumes anteriores: as cartas recebidas por Machado são mais numerosas e mais extensas do que as que ele escreveu, algo que deixava exasperados seus interlocutores, que não raro se queixam dos longos períodos de silêncio, das respostas lacônicas ou das não respostas. Sobressaem mais uma vez aqui a polidez e a contenção de todo o conjunto, notáveis tanto na correspondência ativa (escrita por Machado) como na passiva (recebida por ele).

Desde os cabeçalhos e os vocativos até os cumprimentos de despedida, nos quais se percebe a distância afetiva que separa o escritor dos seus interlocutores, tudo está regido por uma retórica muito bem manejada por todos, sendo raros os momentos de destom. Ainda que os tamanhos dos textos variem muito, do lembrete ao bilhete e às longas cartas informativas, poucas vezes alguém abusa da paciência de Machado, e Machado não enfastia ninguém.

A normalidade e o equilíbrio do conjunto são rompidos raramente.

Nas cinco cartas que escreve a Machado, Graça Aranha é dos poucos a adotar outro tom, entre derramado e galhofeiro:

E entre aqueles que eu amo com um doido e decidido amor está Você, meu mestre de todos os momentos, meu confidente íntimo, meu guia, meu espelho. O que Você é lá dentro desta alma tão escondida, eu sei muito bem. A sua ironia, que não entendem bem, é uma forma superior de piedade, é um sorriso de desdém do sonhador profundo, absoluto, ferido pela triste contingência da Realidade, que ele não pode vencer. E exatamente neste ponto foi que se deu o nosso íntimo contato.1 1 Carta de Graça Aranha datada de 21 de julho de 1899, p.389.

A grande exceção do conjunto, no entanto, é mesmo a correspondência com Magalhães de Azeredo, que neste terceiro tomo soma noventa documentos, o que representa quase um terço do total das cartas escritas e recebidas em onze anos. Essa correspondência se destaca não só pelo número de cartas e pela extensão delas (as de Magalhães de Azeredo sempre significativamente mais longas que as respostas de Machado), mas também pela marca nitidamente mais pessoal, que ressalta quando comparada com o tom adotado por Machado no trato com a maioria dos outros interlocutores.

Assim, para um homem que quase nunca falou diretamente de si, é surpreendente lê-lo fazendo menção à proverbial timidez e ao temperamento melancólico em declarações como esta:

A parte relativa ao que se achou de humorismo e pessimismo nos últimos livros é tratada com fina crítica, e acerta comigo, cuja natureza teve sempre um fundo antes melancólico que alegre. A própria timidez, ou o que quer que seja, me terá feito limitar ou dissimular a expressão verdadeira do meu sentir, sem contar que a experiência é vento mais propício a estas flores amarelas...2 2 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 10 de maio de 1898, p.308.

Para um escritor que também contou tão pouco sobre o seu processo de criação e composição, é precioso vê-lo declarando que não escreve à noite,3 3 Carta a Magalhães de Azeredo datada de dezembro de 1900, p.531. que quando padeceu de retinite teve em Carolina a sua leitora e chegou a ditar para ela "meia dúzia de capítulos" das Memórias póstumas de Brás Cubas,4 4 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 2 de abril de 1895, p.72. informações que deram tanto pasto às hipóteses dos biógrafos e críticos. Ou então vê-lo admitir que é parco em descrições e na pintura dos quadros da natureza, sendo o homem sua preocupação exclusiva, o que talvez, ainda segundo Machado, sirva para disfarçar "uma virtual incompetência técnica".5 5 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 2 de fevereiro de 1898, p.290-1.

Também é fascinante acompanhar o escritor soltando a conta-gotas informações sobre um livro que já escrevia em maio de 1895, durante as horas que lhe sobravam do trabalho administrativo. Hesitante quanto ao título, revela trabalhar de maneira intermitente, com grandes intervalos de dias, e até de semanas, naquilo que viria a ser, cinco anos mais tarde, Dom Casmurro.

O cuidado do escritor com a recepção da sua obra também é uma constante. Ele sempre agradece a leitura e os comentários elogiosos que recebe, neste volume em relação a Quincas Borba, Várias histórias, Histórias sem data e Dom Casmurro.6 6 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 9 de dezembro de 1895, p.129. Quando esses comentários vêm de um desconhecido, vemos um Machado quase efusivo. Numa carta a Belmiro Braga, é notável sua satisfação diante das manifestações elogiosas do jovem poeta mineiro, que o cumprimenta pelo aniversário de 56 anos, ainda que nem se conheçam pessoalmente:

Pelo que me dizes em vossa bela e afetuosa carta, foram os meus escritos que vos deram a simpatia que manifestais a meu respeito. Há desses amigos, que um escritor tem a fortuna de ganhar sem conhecer, e são dos melhores. É doce ao espírito saber que um eco responde ao que ele pensou, e mais ainda se o pensamento, transladado ao papel, é guardado entre as coisas mais queridas de alguém.7 7 Carta a Belmiro Braga datada de 24 de junho de 1895, p.90.

Mas nem tudo são elogios e entusiasmos nesses anos. Na virada de 1897 para 1898, Machado será surpreendido por dois reveses: a reforma administrativa do governo Prudente de Morais, que o põe por quase um ano na condição desconfortável de adido da repartição em que trabalhava, e as críticas mais duras que teve de ler sobre o seu trabalho, que vieram na forma dos ataques demolidores de Sílvio Romero. Nas linhas e entrelinhas da correspondência é possível perceber o quanto as acusações de Romero surpreenderam e aborreceram Machado.

Para quem já conhece todo o desenrolar da história, surpreende a falta de prevenção de Machado em relação a Romero. O crítico sergipano já o atacara duramente em 1882, logo depois da publicação de Brás Cubas, que qualificara como "bolorenta pamonha literária". Apesar disso, em plena década de 1890, Machado ainda parecia ter expectativas positivas sobre os juízos de Romero. Aparentemente sem suspeitar da agressividade que encontraria nas páginas de Machado de Assis – estudo comparativo de literatura brasileira, em dezembro de 1897 menciona para José Veríssimo a publicação recente de um livro de Sílvio Romero a seu respeito. Dias depois, comenta com Magalhães de Azeredo:

aparece aqui um livro do Sílvio Romero, com o meu nome por título. É um estudo ou ataque, como dizem pessoas que ouço. De notícias publicadas vejo que o autor foi injusto comigo. A afirmação do livro é que nada valho. Dizendo que foi injusto comigo não exprimo conclusão minha, mas a própria afirmação dos outros; eu sou suspeito. O que parece é que me espanca. Enfim, é preciso que quando os amigos fazem um triunfo à gente (leia esta palavra em sentido modesto) haja alguém que nos ensine a virtude da humildade.8 8 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 7 de dezembro de 1897, p.273.

Desses reveses, Machado será consolado pelos jovens Magalhães de Azeredo e Mário de Alencar, que seriam os dois interlocutores privilegiados nas últimas décadas de vida.

Azeredo considera que "sempre lhe faltou [a Romero] a principal virtude do crítico – a serenidade, sem a qual não há verdadeira lucidez de espírito", prevendo que "as conclusões desse crítico serão recusadas pelos vindouros".9 9 Carta de Magalhães de Azeredo datada de 27 de dezembro de 1897, p.279. Mário de Alencar observa que a sina dos grandes homens é sofrer a injustiça dos contemporâneos. E diz a Machado: "Faltava-lhe isso para que o Senhor não fizesse exceção à lei das compensações humanas".10 10 Carta de Mário de Alencar datada de 1º de janeiro de 1898, p.283.

Em 10 de janeiro de 1898, Machado de fato se pronuncia a respeito do livro:

Creio que já lhe falei no livro que o Sílvio Romero publicou a meu respeito. Não ouso dizer que é um éreintement, para não parecer imodesto; a modéstia, segundo ele, é um dos meus defeitos, e eu amo os meus defeitos, são talvez as minhas virtudes. Apareceram algumas refutações breves, mas o livro aí está, e o editor, para agravá-los, pôs-lhe um retrato que me vexa, a mim que não sou bonito. Mas é preciso tudo, meu querido amigo, o mal e o bem, e pode ser que só o mal seja verdade.11 11 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 10 de janeiro de 1898, p.287.

A defesa virá de um desconhecido, que mais tarde revelará ser Lafaiete Rodrigues Pereira, que sob o codinome de Labieno refuta as críticas de Sílvio Romero em quatro artigos publicados no Jornal do Comércio em janeiro e fevereiro de 1898. Entretanto, o consolo maior nesses últimos anos vem mesmo dos amigos e admiradores mais jovens: "A minha fortuna tem sido que me entendam as novas gerações".12 12 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 5 de novembro de 1900, p.515.

Impressiona também neste terceiro tomo a compenetração do escritor em relação à morte, que passa a se tornar assunto recorrente a partir de 1895, quando escreve a Magalhães de Azeredo: "Não sou dos que dão para octogenários... não me demorarei muito por este mundo".13 13 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 3 de setembro de 1895, p.112. Daí em diante, até 1908, quando efetivamente morre, testemunhamos Machado perdendo as forças e morrendo aos poucos também em sua correspondência:

Os anos, meu amigo, de certo ponto em diante andam muito depressa. Sabe quantos conto já? Entrei nos sessenta. Não escrevo em algarismo para me não afligir a vista. Ponha sobre isto o constante e crescido trabalho administrativo, e diga-me se pode haver nestes ossos muito que espremer para a literatura. Feliz ou infelizmente, como é vício velho, vou cachimbando o meu pouco.14 14 Carta a Magalhães de Azeredo datada de 7 de novembro de 1899, p.434.

O pouco de Machado, felizmente, era muito, pois ele nos daria ainda as Poesias completas, Esaú e Jacó, Relíquias de casa velha e o Memorial de Aires. E escreveria muitas outras dezenas de cartas, que a Academia Brasileira de Letras deve publicar em breve como o quarto e último tomo da Correspondência de Machado de Assis, um conjunto publicado pela primeira vez de maneira tão completa e criteriosa.


Assim como ocorre nos romances e contos, também na correspondência as lacunas, os silêncios e os interditos muitas vezes dizem mais do que aquilo que está escrito, desafiando o leitor a ligar pontos para tentar recompor a figura prismática de Machado de Assis. As anotações copiosas e excelentes dos organizadores da correspondência, bem como a apresentação de Sergio Paulo Rouanet, servem de guia seguro e oferecem estímulo para a recomposição da trajetória desse escritor que – parafraseando aqui Drummond – continua a revolver em nós tantos enigmas.

Notas

  • 1
    Carta de Graça Aranha datada de 21 de julho de 1899, p.389.
  • 2
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 10 de maio de 1898, p.308.
  • 3
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de dezembro de 1900, p.531.
  • 4
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 2 de abril de 1895, p.72.
  • 5
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 2 de fevereiro de 1898, p.290-1.
  • 6
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 9 de dezembro de 1895, p.129.
  • 7
    Carta a Belmiro Braga datada de 24 de junho de 1895, p.90.
  • 8
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 7 de dezembro de 1897, p.273.
  • 9
    Carta de Magalhães de Azeredo datada de 27 de dezembro de 1897, p.279.
  • 10
    Carta de Mário de Alencar datada de 1º de janeiro de 1898, p.283.
  • 11
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 10 de janeiro de 1898, p.287.
  • 12
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 5 de novembro de 1900, p.515.
  • 13
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 3 de setembro de 1895, p.112.
  • 14
    Carta a Magalhães de Azeredo datada de 7 de novembro de 1899, p.434.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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