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Alfredo Bosi e as formas breves

RESUMO

Ao longo de sua produção crítica, Alfredo Bosi se debruçou com rigor sobre as formas breves, isto é, sobre o conto como forma. Estabelecendo não apenas um percurso crítico, mas deixando também duas antologias de contos que são referências até hoje. O texto propõe um itinerário pelos prólogos, prefácios e ensaios em que Bosi se dedica exclusivamente a esmiuçar e explicar as formas breves.

PALAVRAS-CHAVE:
Alfredo Bosi; Contos; Crítica literária

ABSTRACT

Throughout his academic production, Alfredo Bosi rigorously focused on short forms, that is, on the short story as a form. He not only established a critical path, but also left us two anthologies of short stories that remain a point of reference today. The article proposes an itinerary through the prologues, prefaces and essays in which Bosi dedicates himself exclusively to scrutinizing and explaining the short forms.

KEYWORDS:
Alfredo Bosi; Short story; Literary criticism

Refazer a experiência simbólica do outro cavando-a no cerne de um pensamento que é teu e é meu, por isso universal, eis a exigência mais rigorosa da interpretação.

(Bosi, 2010b_______. A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010b. p.479., p.479)

O legado intelectual de Alfredo Bosi é incomensurável. Último crítico a apresentar um panorama de conjunto da literatura brasileira, desde a colônia até os estertores do século XX, Alfredo Bosi escreveu uma dúzia de livros que são bibliografia indispensável para compreender a literatura brasileira de uma óptica histórica, sem perder a singularidade de cada criação. Esse crivo dialético, junto a conceitos-chave como os de contraideologia e resistência. permitiu ao crítico estabelecer uma visão de conjunto coerente e precisa. Introdutor do pensamento de Giambatista Vico e Benedetto Croce no Brasil; autor de textos fundamentais sobre Machado de Assis; intérprete atento e original do texto poético; autor de uma História concisa da literatura brasileira, que é referência obrigatória até hoje; leitor sagaz do romantismo; exegeta do padre Vieira, mas também de Leonardo da Vinci, Alfredo Bosi vai ganhando leituras e leitores. A crítica da crítica.1 1 1 Ver os textos reunidos sob o subtítulo “Leituras em diálogo” no livro homenagem: Reflexão como resistência (Massi et al., 2018).

Nestas linhas, queria me deter numa das tantas contribuições de Bosi para os estudos literários. Trata-se de sua leitura e teorização sobre o conto no Brasil. Bosi é um dos pioneiros nesse estudo analítico das formas breves. Num país de grandes contistas, são poucos os escritores que têm teorizado sobre o conto e seus arredores, destacando-se as menções en passant de Machado de Assis nas curtas introduções aos seus livros de contos. Diferente é a situação na América espanhola, onde grandes contistas também escreveram textos críticos e teóricos sobre o conto. No caso dos argentinos, Julio Cortázar, que escreveu diversos textos e ditou cursos sobre o conto; Jorge Luis Borges, em vários ensaios; Horacio Quiroga e seu decálogo do perfeito contista; ou Ricardo Piglia e suas “teses sobre o conto”. No Brasil, há consenso no predomínio do romance e da poesia, basta revisar as categorias com que a crítica especializada separa em gerações ou escolas a literatura brasileira: romance indianista, poesia parnasiana, poesia simbolista, romance de 40 etc., inclusive numa cultura em que a crônica tem um lugar de destaque, em que quase todos os grandes escritores incursionaram nessa forma entre literária e jornalística (Clarice, Machado, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meirelles, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrada, Nelson Rodrigues, Vinicius de Morais, e a lista prossegue), o conto fica em segundo plano nos livros de crítica literária brasileira.2 2 O próprio Bosi nos oferece um bom exemplo dessa tendência. Em 2005, a pedido do Museu da Língua Portuguesa, Alfredo Bosi escolheu “As 120 grandes obras da literatura brasileira”. Em toda lista, disse Borges, o primeiro que aparece são as omissões. Se deixarmos de lado as obras que Bosi escolheu para o “Brasil Colônia”, por motivos óbvios, que são apenas 19 (dos séculos XVI, XVII e XVIII), percebemos que das cem obras que sobram, apenas 9 são livros de contos: Papéis avulsos (1882) de Machado de Assis, Urupês (1918) de Monteiro Lobato, Os caboclos (1920) de Valdomiro Silveira, Contos gauchescos (1926) de Simões Lopes Neto, Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) de Alcântara Machado, Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, Laços de família (19) de Clarice Lispector (1960), Primeiras estórias (1962) de Guimarães Rosa e Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) de João Antônio.

Ora, na década de 1970, em dois prólogos para duas antologias de contos, Bosi estabelece uma baliza no estudo das formas breves. Trata-se de dois trabalhos realizados quase em uníssono, a antologia em espanhol dos contos de Machado de Assis para a coleção Ayacucho (Cuentos) (Bosi, 1978) e a antologia O conto brasileiro contemporâneo (Bosi, s. d.). No prólogo desse último, intitulado “Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo”, Bosi (s. d.) realiza dois movimentos indispensáveis para ler (e compreender) as formas breves no Brasil. O primeiro consiste num recorte temporal que abarca o Brasil como um todo, isto é, deixando de lado as segregações regionalistas ou os registros por estados. Recorte que coloca o conto contemporâneo como sucessor do modernismo: “Um olhar de relance dado a esta antologia basta para reconhecer alguns dos caminhos que os contistas percorreram entre nós depois que se calaram as vozes fortes do Modernismo ou dos seus arredores: Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Aníbal Machado, João Alphonsus” (Bosi, s. d., p.8). O segundo apresenta uma metodologia de leitura que parte da particularidade do conto, vai ao encontro do geral e contextual e volta à singularidade da criação.

A primeira frase, a primeira sentença, do prólogo, é uma declaração de princípios: “O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea” (ibidem, p.7). Essa afirmação se apoia na capacidade proteiforme do conto, na sua variedade, na sua quase impossibilidade de definição. O destino da ficção contemporânea - e devemos ler essa qualificação como trama que, levantando a voz após o silêncio do modernismo, continua a reverberar até hoje - está nas formas breves, na sua dificuldade de atingir uma forma, um tema e uma região fixos. É por isso que Bosi cuida de especificar o que (quase) é o conto: “Ora é o quase documento folclórico, ora a quase crônica da vida urbana, ora o quase drama do cotidiano burguês, ora o quase poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa votada às festas da linguagem” (ibidem, grifo meu). A densidade teórica do prólogo nos leva à tentação de quase glosá-lo. Se juntarmos essa primeira definição com a ideia seguinte que, ao comparar o conto à novela e ao romance, define que a narrativa curta “condensa e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção” (ibidem), obteremos um modo de ler as formas breves até hoje, como uma potência de quase ser documento, crônica, drama ou poema.

No apartado “O conto: Situações”, Bosi continua a teorizar, traçando uma gênese do conto. Começa pela “invenção temática”, partindo do modelo que Edgar Allan Poe propôs em 1842 para o conto de “efeito único” em que todas as partes, da primeira frase até o desfecho, giram em torno do final ou, nas palavras do Poe: “de um desígnio preestabelecido” (Poe apud Bosi, s. d.). Bosi dá mais um passo, não apenas com a explicação do processo da invenção, mas exemplificando com a própria literatura. Diz Bosi (s. d., p.9): “Da dupla operação de transcender e representar os objetos, que é própria do signo, nasce o tema. O tema já é, assim, uma determinação do assunto e, como tal, poda-o e recorta-o, fazendo com que rebrote em forma nova”, e ainda: “Durante esse processo de busca e invenção enfrentam-se o narrador e o fluxo da experiência: este acabará sendo a substância narrável, aquela “matéria vertente” de que fala Riobaldo no Grande Sertão. Na interpretação das formas breves, Bosi se vale das categorias da crítica de “narrador” e “fluxo da experiência” e dessa dialética extrai a síntese perfeita para, valendo-me do próprio Guimarães Rosa, decifrar as coisas que são importantes, pois a substância narrável está dada pela fórmula rosiana: “matéria vertente”, já não a vida.3 3 A referência à vida vem à tona pela famigerada citação de Guimarães Rosa em que se insere a “matéria vertente”: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente” (Rosa, 1986, p.93).

A seguir, essa matéria deverá, quão leito de Procusto, adequar-se a um “registro”: realista documental, realista crítico, intimista na esfera do eu (memorialista), intimista na esfera do Id (onírico, visionário, fantástico) ou experimental são algumas dessas formas. E aqui Bosi dá mais um passo, voltando a análise novamente para fora do conto e fechando o círculo interpretativo, pois a invenção “enquanto ato estético” supera as oposições externas, estabelecendo uma distância, uma quase independência do assunto (tema) a respeito de um “embate ideológico mal situado” (ibidem). Modo de manter a esfera literária ao abrigo de vícios interpretativos que a relacionam diretamente com embates políticos e sociais, como se não existisse autonomia da criação.

Há uma última premissa que Bosi levanta sobre o conto e que precisa ser ressaltada. A primeira parte dessa premissa ele compartilha com quase todos os grandes contistas que também escreveram sobre a arte de fazer contos. Trata-se do caráter indefinível do próprio conto como forma. Mário de Andrade (1972ANDRADE, M. de. Contos e contistas. In: ___. O empalhador de passarinho. São Paulo; Brasília: Martins; IML, 1972. p.5-8., p.5), na década de 1940, respondia a pergunta “O que é conto?” dizendo: “Em arte, a forma há de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto. O que esses autores, Maupassant e Machado de Assis, descobriram foi a forma do conto indefinível, insondável, irredutível a receitas”. Já Cortázar (1994CORTÁZAR, J. Algunos aspectos del cuento. In: ___. Obra crítica/2. Buenos Aires: Alfaguara, 1994. p.365-85., p.369) diz tratar-se de um “género de difícil definición, huidizo en sus múltiples y antagónicos aspectos, y en última instancia secreto y replegado en sí mismo, hermano misterioso de la poesía en otra dimensión del tiempo literario”. Bosi (s. d., p.7), por sua vez, além de coincidir no “caráter plástico” do conto, coincide com Cortázar em que “o mesmo modo breve de ser compele o escritor a uma luta intensa com as técnicas de invenção, de sintaxe compositiva, de elocução: daí ficarem transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o narrativo do lírico [...]”. A irmandade com a poesia em Cortázar, a fronteira transposta com o lírico, em Bosi. O conto vai ganhando contornos precisos de enfoque. Ler, diz Ricardo Piglia (1999PIGLIA, R. Tesis sobre el cuento. In: ___. Formas breves. Buenos Aires: Tema Grupo Editorial, 1999.), é colocar luz sobre certos aspectos, deixando outros de lado.

Até aqui, percebe-se o conciso e vigoroso escopo teórico do conto contemporâneo, postulados que não só explicam o panorama brasileiro, vale mencionar. Um dos poucos textos críticos sobre as formas breves: caráter mutável do conto, proteiforme, próximo da crônica, do drama, do lírico e documento etc. No que segue do prólogo, Bosi se volta ao caso brasileiro e à análise dos autores escolhidos para a antologia. Mas também se empenha em traçar a evolução das formas de narrar no Brasil. Uma vez reprimida a “bela empatia romântica com a vida agreste, restou uma atitude ‘objetiva’, que pretendia explicar o rústico e o arcaico em termos de atraso ou de decadência” (ibidem, p.11). Isso explica a irrupção do naturalismo, por um lado, e do regionalismo, por outro. Em termos cronológicos, vem o modernismo, mas vale uma menção sobre o “contemporâneo” do título da antologia e os modernistas paulistas. Num texto que é a transcrição do começo de um curso, o filólogo e filósofo italiano Giorgio Agamben se pergunta: o que vem a ser “contemporâneo”?

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a esse e, ao mesmo tempo, dele toma distância; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a esse adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a essa aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (Agamben, 2009AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009., p.59).

Desse modo, para o filósofo italiano, são raros os contemporâneos, pois precisam dissociar e se valer de anacronismos com o tempo. Mas essa relação aparentemente contraditória com o tempo ganha uma dimensão ainda mais singular, diz Agamben (2009AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009., p.69):

De fato, a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste [...] A distância que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente.

Essa definição de contemporâneo encaixa perfeitamente com a que Bosi tem dos modernistas, ponto de inflexão de toda a produção artística no Brasil, no mesmo prólogo. Se os regionalistas recaíam no folclore e na patologia, estagnados num presente em que o discurso evolucionista invadia todas as esferas, o modernismo paulista de 1922:

[...] não centrou seus interesses na formação de uma poética regionalista; foi em direção a mitologias globais, chamadas Pau-Brasil, Retrato do Brasil, Macunaíma, Antropofagia e Martim Cererê, que se articulou a sua relação estética com o espaço nacional. Era o momento áureo do primitivismo como eixo artístico da cultura brasileira. (Bosi, s. d., p.12)

Ou seja, o modernismo é contemporâneo, não em termos cronológicos, mas anacrônicos, na busca do espaço nacional nas mitologias globais, os modernistas mergulharam na origem, no primitivismo, fazendo saltar o continuum temporal para explicar a sua relação com o presente. Desse modo, é possível ler, e seria produtivo em termos não revisionistas, mas dissociativos, o modernismo como contemporâneo daqueles autores que Bosi juntou sob tal rótulo. Por exemplo: “Com Guimarães Rosa parece que cessa a urgência desse diálogo [com o presente]” e logo: “A palavra nova [Em Guimarães Rosa] não é puro neologismo, pois retoma um processo de formação que vem de longe, de muito longe; assim de um salto, o tempo é abolido, e o signo - arcaico ou moderno - simula o eterno presente” (ibidem, p.13).

Atento à especificidade de cada autor escolhido, Bosi faz uma análise lúcida e precisa de cada conto da antologia, valendo-se como mediador, isto é, como intérprete crítico, na esteira de Panofsky, Croce, Spitzer e de Auberbach, dos conceitos de perspectiva, tom, motivo dominante.4 4 Ver a respeito o ensaio “A interpretação da obra literária” (Bosi, 2010b, p.461-79). Desse modo, o olhar do crítico sobre os contos, uma vez apresentadas as suas caraterísticas como gênero moderno, recai sobre os textos escolhidos e a teoria se torna prática.

Já no prólogo à antologia de contos de Machado, “Situaciones machadiandas”,5 5 O texto foi publicado anos depois, com algumas alterações, como capítulo do livro (Bosi,2007, p.73-124). Bosi não teoriza sobre a forma, mas reúne os contos escolhidos por tema e tom. A apresentação avança em razão da análise dos contos escolhidos em relação com os romances de Machado. Se em O conto brasileiro contemporâneo identificava-se um “conto espectral” (Murilo Rubião) ou um “conto anfíbio” (J.J. Veiga), em Machado, a chave será o “conto-teoria”, nos quais o tom não é “el sarcasmo del satírico, ni la indignación, la santa ira del moralista, ni la impaciência del utópico. Diría, más bien, que es la amargura de quien observa la fuerza de una necesidad objetiva que une el alma mudable y débil de cada hombre al cuerpo, uno, sólido y ostensible, de la Institución” (Bosi, 1978, p.XV).

Não cabe aqui indagar os diversos caminhos críticos que Bosi realiza ao longo de sua produção para analisar a obra de Machado de Assis, a quem dedicou dois livros e uma dúzia de ensaios e artigos,6 6 Remeto o leitor ao trabalho de Hélio Guimarães sobre tal itinerário (Guimarães, 2018, p.360-71). mas é necessário ainda desvendar as operações críticas que realiza sobre as formas breves no prólogo. A esse respeito, resgato duas menções metodológicas do Bosi. A primeira é sobre a coincidência que, ao menos em dois momentos, ele tem com as “Tesis sobre el cuento” de Ricardo Pilgia, escritas vinte anos depois dos prólogos de Bosi. Ao se debruçar sobre as formas breves, o escritor argentino chega a duas teses sobre o conto, a primeira: “Un cuento siempre cuenta dos historias” (Piglia, 1999PIGLIA, R. Tesis sobre el cuento. In: ___. Formas breves. Buenos Aires: Tema Grupo Editorial, 1999., p.92), isto é, uma história que transcorre na superfície e outra, profunda e secreta. A segunda tese diz: “La historia secreta es la clave de la forma del cuento y de sus variantes” (ibidem, p. 95). Por último, a conclusão: “El cuento se construye para hacer aparecer artificialmente algo que estaba oculto. Reproduce la busca siempre renovada de una experiencia única que nos permita ver, bajo la superficie opaca de la vida, una verdad secreta” (ibidem, p.100). Alfredo Bosi, na sua leitura do conto “O alienista” chega, numa iluminação, a se adiantar às teses de Piglia:

Es verdad que, ya que el núcleo de la trama [de “O alienista”] es la escisión entre razón y sinrazón, la historia toma el aspecto divertido de una comédie d’erreurs en la cual subsiste siempre la sugerencia de que el alienista es el único alienado. Y ese es el efecto de superficie, la paradoja que Machado sostiene desde el comienzo hasta el final del cuento. (Bosi, 1978BOSI, A. Situaciones machadianas. Prólogo. In: MACHADO DE ASSIS, J. Cuentos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978., p.XVI, grifos nossos)

E não fica apenas ali a análise, pois umas linhas depois, Bosi desvenda a estrutura profunda do conto. Porque o Dr. Simão Bacamarte, sendo o detentor do poder, pelo seu status, está longe de ser ele mesmo um alienado. Assim, o eixo do conto é “la arbitrariedad del poder más que el capricho de un psiquiatra de ojo metálico” e conclui: “El hospicio es la Casa del Poder: Machado lo sabía muy bien antes que lo proclamase la antipsiquiatría” (ibidem, p.XVII).

Essa distinção entre as duas histórias também está sugerida no prólogo a O conto brasileiro contemporâneo. Ao analisar dois contistas da antologia, Bosi escreve que nestes

O fantástico irrompe como o intruso no ritmo do cotidiano; e o evento novo, que poderia soar apenas imprevisto e aleatório, passa a exercer, na estrutura profunda da trama, a função de revelador de um processo inexorável na vida de um grupo (“A Usina atrás do morro”, de J.J. Veiga), ou na vida de um homem (“A flor de Vidro”, de Murilo). (Bosi, s. d., p.14, grifo nosso)

Ou seja, Bosi identifica (diria que verifica antecipadamente) no fluxo narrativo, ao menos de alguns contos, as teses de Piglia, mostrando como convergem as duas histórias nos contos de acordo com a perspectiva de cada autor.

Por último, Alfredo Bosi nos oferece um procedimento brilhante, exercício de análise literária, no prólogo aos contos de Machado. Trata-se de um modo de ler como o faria certa linha crítica, a qual ele mesmo não adscreve, mas que, contudo, desenvolve. O crítico se debruça sobre um dos últimos contos do Machado, “Evolução”, comparando-o com “A teoria do medalhão”, na sólida carreira que o deputado Benedito obtém com uma ideia alheia, uma única ideia. Nessa altura da comparação, Bosi (1978, p.XXXII) diz “si yo fuera estructuralista, diría que el sistema de este cuento se disloca alrededor de un eje pronominal: tu-nosotros-yo”. Porém, o condicional não fica por aí, já que, não por força de ironia, mas por capacidade analítica, Bosi faz a crítica como um estruturalista o faria.7 7 O leitor pode verificar tal análise em “A máscara e a fenda”, ensaio incluído em Bosi (2007, p.118). Procedimento que repete, sem desenvolver plenamente, no prólogo ao livro de contos de Lygia Fagundes Telles, A estrutura da bolha de sabão:

A tentação imediata que ronda o crítico que pretende, como dizem vertentes pós-modernas, desconstruir a narrativa de Lygia é fazer, em primeiro lugar, uma leitura psicanalítica. Rejeição uterina, identificação com o pai mal-amado, perversão assumida, ódio entre mãe e filha, solidão desesperada de ambas, vingança: eis a fenomenologia que salta à vista da leitura de “A medalha”. A leitura sociológica não deixará de colher algum traço da sociedade tradicional paulista em declínio, flagrada, por exemplo, nas alusões aos preconceitos raciais da mãe, ambiguamente partilhados pela filha. (Bosi, 2013_______. A decomposição do cotidiano em contos de Lygia Fagundes Telles. In: ___. Entre a Literatura e a História. São Paulo: Editora 34, 2013. p.113-21., p.113-14)

O crítico deixa tudo nas mãos do leitor: “Tudo depende da intencionalidade do olhar do leitor” (ibidem, p.114), mas avança a análise do conjunto de contos do livro com seu método dialético de interpretação, sempre ressaltando a singularidade de cada forma breve, para chegar ao geral e iluminar, assim, o particular.8 8 Esse exercício crítico, que se vale dos preceitos de diversas linhas de análise literária, mostra não apenas a destreza do intérprete que entende (e às vezes avança) as diversas abordagens, ou pontos de vista de leitura, mas também a largueza de recursos do Alfredo Bosi. Por exemplo, no ensaio “O duplo espelho em um conto de Machado de Assis”, diz Bosi (2017, p.20): “Permito-me, nesta altura da interpretação, esboçar uma leitura de cunho existencial”.

Além dos prólogos para as antologias e para o livro de contos de Lygia Fagundes Telles, Bosi prefaciou o livro de contos Abraçado ao meu rancor (1986), de João Antônio, que é a exceção que confirma a regra. Nesse prefácio intitulado “Um boêmio entre duas cidades”, Bosi não examina as singularidades dos contos em separado, mas apenas do conto que dá título ao conjunto: “Abraçado ao meu rancor”, nome de um famoso tango argentino. O prefácio vai da comparação do autor com Lima Barreto às citações do conto que delineiam os contornos da cidade de São Paulo e seus subúrbios onde aparecem, pela primeira vez nos contos do João Antônio, personagens da classe média (“classe mérdea” como grafa o autor), alternados com os humilhados e ofendidos de sempre.

Esse recurso parece surgido de uma recomendação que Mário de Andrade (1972ANDRADE, M. de. Contos e contistas. In: ___. O empalhador de passarinho. São Paulo; Brasília: Martins; IML, 1972. p.5-8., p.6) anunciava, indiretamente e de forma irônica, em “Contos e contistas”, escrito em 1938: “A leitura de vários contos seguidos, nos obriga a todo um esforço penoso de apresentação, recriação e rápido esquecimento de um exército de personagens, às vezes abandonados com saudade”. De fato, além do conto de João Antônio, Bosi dedica um ensaio a um conto de Mário de Andrade (“Nízia Figueira, sua criada”) e ao já citado de Machado de Assis (“O espelho”), além de um conto de Pirandello (“Alguém está rindo”).

No caso do conto de Mário, a análise parte do geral para recavar na singularidade do “foco narrativo” que se centra nas duas personagens mulheres, íntimas e carregadas de assimetrias (sociais, étnicas, psicológicas). O pano de fundo, começa Bosi (2013_______. A decomposição do cotidiano em contos de Lygia Fagundes Telles. In: ___. Entre a Literatura e a História. São Paulo: Editora 34, 2013. p.113-21., p.83), é: “a capital provinciana que se ia formando, aos pedaços, com gente que foge da desintegração da sociedade escravista, onde só o grande fazendeiro iria vencer, cercado de colonos italianos e de ex-escravos já amarrados à condição de lúmpen ou de agregados”. Repassando o “naturalismo bruto” de Mário, Bosi analisa a distância e a proximidade que definem a relação entre as personagens, Nízia e a prima Rufina; e também aqui abre o leque (embora o feche de imediato) intuitivo: “A análise estrutural, tão amiga de disjunções [refere-se à assimetria das personagens], teria aqui muito o que distinguir”. E se na trama dessa relação (o particular) Bosi distingue que “o que a classe e a cor separam, o sentimento pode juntar” (ibidem, p.84) consegue fechar o círculo interpretativo voltando ao geral: “E aí temos corpo e sociedade ora unidos, ora apartados, no balé brasileiro da intimidade assimétrica” (ibidem, p.85).

No caso de Pirandello, há uma leitura que parte das particularidades estilísticas do conto (“traços expressionistas”, “realismo vertical do narrador”), que Bosi (2010a_______. Alguém está rindo; A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010a., p.317) classifica de perfeito “ao representar as formas culturais e as formas naturais que ora se fundem ora se repelem na existência em sociedade”, para desvendar, logo, na trama da festa que reúne as personagens, “o ritual das constrições fascistas, que transformam em funeral antecipado a vida em sociedade”. A disseminação do medo por meio do riso, o medo que “precipita-se em ódio [...] e exige castigo exemplar” (ibidem, p.318). Das singularidades do conto às especificidades do contexto, para voltar ao diagrama formal do texto. Esse é o itinerário crítico percorrido por Bosi, de conto em conto, de obra em obra.


Alfredo Bosi (1936-2021).

Uma última menção ao trabalho sobre as formas breves que Alfredo Bosi manteve desde o início de sua obra consistiria no ensaio dedicado ao conto regionalista. No capítulo III do livro O pré-modernismo, intitulado “O conto regionalista e a prosa de arte”, Bosi (1973, p.55) estabelece uma série de operações interpretativas que identificam dentro do aglomerado chamado “regionalismo” um que ele define de “sério”, para distingui-lo de um regionalismo “de fachada, pitoresco e elegante” (ibidem). Colocando o conto regionalista de autores como Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto, como uma narrativa que “supera seus avatares românticos” (ibidem), Bosi conclui que: “Em outro momento de nossa história literária, esse conjunto de narradores poderia ter assumido papel renovador se não revolucionário [que o crítico lhe reserva aos autores do Modernismo] [...] porém [eles] careciam de uma dimensão, a da consciência histórica, que teria dado outro lastro ao descritivismo sentimental em que se moviam” (ibidem, p.57). Eis o pensamento crítico histórico em funcionamento: a linha que começa nos autores (avatares) românticos, superados pelos regionalistas que, contudo, careciam de consciência histórica, contemporâneos dos modernistas que revolucionam o fazer artístico e, finalmente, as formas breves do Guimarães, da Clarice, do Murilo Rubião, do João Antônio, do Rubem Fonseca etc.


Luigi Pirandello (1867-1936).

Desse modo, Alfredo Bosi foi um dos poucos críticos que se debruçaram sobre as formas breves, com uma teoria que permite ler qualquer conto contemporâneo dentro e fora do Brasil, cá e lá. Distinguindo-se, assim, de certa tradição crítica na qual o próprio Bosi se inscrevia. No caso de Araripe Júnior (1963ARARIPE JÚNIOR. Teoria do conto. In: ___. Obra crítica. v.III. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 1963. p.157-66., p.158), por exemplo, nota-se uma inclinação a diminuir o conto: “a maioria deles romances abortados”, dizia o crítico no fim do século XIX. Essa tradição interpretativa recaía na diminuição do valor literário das formas breves porque aludia ao conto como estória, causo, anedota sempre de feição oral, o conto pretérito, que vai do Decameron e As mil e uma noites até os apanhados dos irmãos Grimm. No Brasil, curiosamente, há uma tradição de contistas que tomaram a oralidade como matéria do conto. Será Guimarães Rosa, e antes dele, Mário de Andrade, quem levará a oralidade para dentro da própria estrutura do conto. Isso também, no caso de Guimarães Rosa, Bosi conseguiu entrever, deslindar.

Alfredo Bosi é um dos mais lúcidos intérpretes das formas breves no Brasil, tanto nos prólogos às antologias quanto nos prefácios aos livros de Lygia Fagundes Telles e João Antônio, e, ainda, nas análises dos contos de Mário, Pirandello e “O espelho” de Machado. Em termos metodológicos, ambas as abordagens, tanto nas que o crítico se concentra apenas num único conto quanto nas antologias em que analisa o conjunto, há uma coerência entre a individualização da criação literária e o conjunto, partindo de uma visão geral para atingir o particular, avançando dialeticamente, isto é, um enfoque histórico que não perde de vista as singularidades do conto nem o contexto em que se inscreve, fechando o círculo hermenêutico de interpretação.

Além de ter deixado um apanhado de contos indispensáveis de Machado de Assis para o leitor de língua espanhola, Bosi escolheu de modo certeiro a constelação de autores do conto contemporâneo brasileiro, basta repassar os nomes que compõem a antologia para entender quantos deles (diria que a imensa maioria) continuam a ser estudados e lidos até hoje: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Murilo Rubião, Osman Lins, Dalton Trevisan, João Antônio, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Moacyr Scliar, Otto Lara Resende, J.J. Veiga, entre outros. Por meio do conceito de situação, presente em ambos os títulos (“Situação e formas do conto brasileiro” e “Situaciones machadianas”) e uma vigorosa análise literária, Alfredo Bosi oferece várias iluminações para os intérpretes das narrativas curtas. E mais, refaz a experiência simbólica de cada escritor, oferecendo-nos não só uma interpretação sagaz, mas ferramentas teóricas para abordarmos criticamente a criação das formas breves.

Referências

  • AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
  • ANDRADE, M. de. Contos e contistas. In: ___. O empalhador de passarinho. São Paulo; Brasília: Martins; IML, 1972. p.5-8.
  • ARARIPE JÚNIOR. Teoria do conto. In: ___. Obra crítica. v.III. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 1963. p.157-66.
  • BOSI, A. Situaciones machadianas. Prólogo. In: MACHADO DE ASSIS, J. Cuentos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978.
  • _______. Um boêmio entre duas cidades. In: ___. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.238-43.
  • _______.­ A máscara e fenda. In: ___. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.73-124.
  • _______. Alguém está rindo; A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010a.
  • _______. A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010b. p.479.
  • _______. A decomposição do cotidiano em contos de Lygia Fagundes Telles. In: ___. Entre a Literatura e a História. São Paulo: Editora 34, 2013. p.113-21.
  • _______. O conto regionalista e a prosa de arte. In: ___. O pré-Modernismo. São Paulo: Cultrix, 1973.
  • _______. O duplo espelho num conto de Machado de Assis. In: Três leituras. Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • _______. Situação e formas do conto brasileiro. Prólogo. In: ___. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, s. d.
  • CORTÁZAR, J. Algunos aspectos del cuento. In: ___. Obra crítica/2. Buenos Aires: Alfaguara, 1994. p.365-85.
  • GUIMARÃES, H. de S. Uma genealogia dos escritos de Alfredo Bosi sobre a obra de Machado de Assis. In: MASSI et al. (Org.) Reflexão como resistência. Homenagem a Alfredo Bosi. São Paulo: Sesc; Cia. das Letras, 2018. p.360-71.
  • MASSI, A. et al. (Org.) Reflexão como resistência. Homenagem a Alfredo Bosi. São Paulo: Sesc; Cia. das Letras, 2018.
  • PIGLIA, R. Tesis sobre el cuento. In: ___. Formas breves. Buenos Aires: Tema Grupo Editorial, 1999.
  • ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Notas

  • 1
    1 Ver os textos reunidos sob o subtítulo “Leituras em diálogo” no livro homenagem: Reflexão como resistência (Massi et al., 2018).
  • 2
    O próprio Bosi nos oferece um bom exemplo dessa tendência. Em 2005, a pedido do Museu da Língua Portuguesa, Alfredo Bosi escolheu “As 120 grandes obras da literatura brasileira”. Em toda lista, disse Borges, o primeiro que aparece são as omissões. Se deixarmos de lado as obras que Bosi escolheu para o “Brasil Colônia”, por motivos óbvios, que são apenas 19 (dos séculos XVI, XVII e XVIII), percebemos que das cem obras que sobram, apenas 9 são livros de contos: Papéis avulsos (1882) de Machado de Assis, Urupês (1918) de Monteiro Lobato, Os caboclos (1920) de Valdomiro Silveira, Contos gauchescos (1926) de Simões Lopes Neto, Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) de Alcântara Machado, Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, Laços de família (19) de Clarice Lispector (1960), Primeiras estórias (1962) de Guimarães Rosa e Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) de João Antônio.
  • 3
    A referência à vida vem à tona pela famigerada citação de Guimarães Rosa em que se insere a “matéria vertente”: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente” (Rosa, 1986, p.93).
  • 4
    Ver a respeito o ensaio “A interpretação da obra literária” (Bosi, 2010b, p.461-79).
  • 5
    O texto foi publicado anos depois, com algumas alterações, como capítulo do livro (Bosi,2007, p.73-124).
  • 6
    Remeto o leitor ao trabalho de Hélio Guimarães sobre tal itinerário (Guimarães, 2018, p.360-71).
  • 7
    O leitor pode verificar tal análise em “A máscara e a fenda”, ensaio incluído em Bosi (2007, p.118).
  • 8
    Esse exercício crítico, que se vale dos preceitos de diversas linhas de análise literária, mostra não apenas a destreza do intérprete que entende (e às vezes avança) as diversas abordagens, ou pontos de vista de leitura, mas também a largueza de recursos do Alfredo Bosi. Por exemplo, no ensaio “O duplo espelho em um conto de Machado de Assis”, diz Bosi (2017, p.20): “Permito-me, nesta altura da interpretação, esboçar uma leitura de cunho existencial”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2023
  • Aceito
    04 Maio 2023
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