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A agropecuária brasileira e a crise

DOSSIÊ CRISE INTERNACIONAL II

A agropecuária brasileira e a crise

Guilherme Dias (Entrevista)

A AGROPECUÁRIA brasileira foi profundamente atingida pela crise econômica internacional. Em entrevista à ESTUDOS AVANÇADOS, o professor Guilherme Dias, renomado especialista nos problemas da agricultura e da pecuária do país, fez um balanço crítico dos principais problemas nesse setor, adiantando que "a crise determinará significativas mudanças tecnológicas", o que não será fácil em razão das divergências em nossos meios rurais. Dias chamou a atenção para os erros cometidos com a destruição de reservas internacionais de alimentos, em consequência da própria política da Organização Mundial do Comércio (OMS). Indicou a necessidade de modificar nosso comércio com a China e acentuou que estamos diante de modificações na produção de veículos automotores e dos combustíveis. Ele defendeu a produção de etanol desde que sejam respeitados impactos ambientais e sociais, e apresentou uma visão nova a respeito da expansão da fronteira agrícola na Amazônia, com o deslocamento para lá de 25 milhões de brasileiros.

Divulgamos, a seguir, um resumo das opiniões desse professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, expressas na entrevista concedida ao jornalista Marco Antônio Tavares Coelho, editor executivo da revista ESTUDOS AVANÇADOS.

ESTUDOS AVANÇADOS – Uma das causas dessa crise internacional foi a financeirização da economia. Como essa atividade repercutiu na agropecuária e quais foram seus impactos?

Guilherme Dias – Essa atividade financeira repercutiu profundamente na agricultura. Mas o Brasil quase ficou à margem disso. Todavia, como estruturas industriais utilizaram esse procedimento para obter fartos recursos financeiros, elas sofreram um golpe fatal. Isso porque estavam pautadas pelo modelo baseado na facilidade com que entraram nessa especulação, provocando esse mar de prejuízos para os investidores.

Durante vinte ou trinta anos, todo o mundo achava que aquela situação era muito boa porque a abundância de crédito era fantástica. Agora vamos testar os acordos internacionais de desenvolvimento e iremos viver dez anos ensaiando como fazer funcionar esse sistema financeiro. Ademais, como o crédito será menos abundante, vamos comprovar como nossa agricultura é muito vulnerável à restrição de crédito.

Vivemos até agora um ciclo de expansão da agricultura em que sempre o gargalo foi a expansão do crédito ligado ao plantio da safra futura. Esse sistema foi implantado porque a geração normal de crédito bancário não dava conta da demanda agrícola. Quando o governo se retirou do papel de criador da moeda (ao recorrer à inflação), não houve apoio do sistema financeiro para suprir as necessidades da agropecuária. Nos últimos dez anos, essa falta foi suprida pelo crédito fornecido pelos traders e pelas multinacionais de fertilizantes e defensivos. Mas essas receberam um golpe com a crise internacional.

Assim, a abundância de crédito para a agricultura foi cortada. Então, agora, a questão é saber quem irá cumprir esse papel. Ele terá de ser desempenhado pelo governo, pelo menos como interveniente nesse processo. No entanto, não estou vendo o interesse do governo nessa questão. Não sei, portanto, de onde virá esse capital de risco para a agricultura.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como o crédito chega aos produtores?

Guilherme Dias – Grosso modo, uma terça parte desses créditos era financiada pelo sistema bancário, outra igual pelo capital próprio dos produtores, e a parcela restante provinha do crédito privado, que há quinze anos era quase nada. Neste último período, esse capital privado representou um papel estratégico importante. Se ele desaparecer agora, haverá a necessidade de ser suprido por outra forma de crédito, como o das cooperativas, ou de outra estrutura desse tipo. Para tanto, porém, é indispensável algum incentivo. Em outras palavras, a intervenção governamental.

Se isso não acontecer, mergulharemos numa crise de endividamento do setor agrícola como a ocorrida em 1995. Doze anos depois, estamos vivendo uma situação semelhante, que ameaça paralisar a agropecuária. Por isso, vai ser indispensável uma renegociação das dívidas dos produtores. Mas essa renegociação precisa ser do tipo estruturante. Ou seja, o governo deverá regular e dizer para quem dará garantias e para quem não dará garantias e como irá funcionar todo o esquema.

No Brasil não há nenhuma estrutura sólida que possa resistir à crise do sistema financeiro mundial. Como ela está atingindo o Brasil, como daqui para frente atuará o sistema bancário no mundo? Quais serão as regras de prudência financeira que serão implantadas? Quando esse aparato regulador chegar aqui, haverá dificuldades na expansão do crédito? As multinacionais voltarão a buscar crédito barato lá fora a fim de emprestar no Brasil?

A abundância de crédito no exterior facilitou a estratégia dos traders e multinacionais entre nós, e aí foi aquela festa. Mas isso acabou e elas estão fazendo exigências para renovar os financiamentos. Em fevereiro e março de 2008, já tínhamos sinais claros de como o sistema financeiro internacional estava começando a apertar os freios em termos de garantia para a sustentação dos níveis elevados de financiamento. Tal processo antecedeu a crise de investimentos em setembro do ano passado. Na verdade, os quatro grandes investidores já estavam mudando de atitude e a disposição de assumir riscos no Brasil. O problema é que muitos produtores estão endividados e inadimplentes. Então, como esse problema será resolvido?

ESTUDOS AVANÇADOS – Qual foi o impacto da crise no agronegócio?

Guilherme Dias – O primeiro impacto foi a desaceleração da demanda, como sucedeu no conjunto da economia internacional. Sendo o agronegócio muito dedicado à exportação de produtos primários, ele está sofrendo diretamente, porque trabalha com uma cadeia de abastecimento em múltiplos países. Quando o agronegócio recebeu o choque de demanda, em primeiro lugar incentivou o consumo de seus estoques e os redistribuiu. Porém, o choque veio forte e acarretou uma queda no preço das commodities agrícolas.

Mas o prejuízo do agronegócio não ficará somente nisso. A dúvida é se o comércio internacional retornará àquela posição anterior tão destacada, crescendo duas ou três vezes mais do que a economia mundial. Os países consumidores nos próximos dois ou três anos buscarão explorar melhor sua economia interna. Vão tentar entender o acontecido e procurar obter novos acordos. Esse encaminhamento indicará que o crescimento anterior era insustentável e que havia uma série de combinações, por trás do processo, por trás das relações entre países, que permitiam que os preços das commodities fossem elevados de forma abusiva. Contudo, não se forçará mais a interdependência entre os sistemas produtivos como era o estilo nos anos 1990. Tudo isso atingirá as perspectivas do agronegócio.

A posição dos países líderes foi abalada, tanto em consequência da posição da China como da resistência da Índia em torno da Rodada de Doha, defendendo uma salvaguarda maior para os países produtores. Esses dois países gigantes, do ponto de vista de suas populações, não aceitaram e não aceitarão mais uma dependência alimentar muito forte. Nós estávamos contando com isso nos últimos anos, apostando que os superpopulosos iriam enfrentar a dependência no comércio de alimentos.

Mas diversos países não foram cautelosos nestes últimos anos no apoio à globalização. Agora serão mais cuidadosos, pois temos de trabalhar numa realidade diferente no comércio de alimentos. Ou seja, precisaremos reequacionar a exportação de nossos excedentes. Além disso, examinaremos se teremos sócios preferenciais nesse processo, se acentuaremos o grau de dependência em relação à China. E se reabriremos a linha de colaboração com a Índia, que interrompemos.

Os países não esquecerão a insustentabilidade daquela situação, com respeito à volatilidade dos preços, sobretudo entre 2006 e 2008. Não vamos chorar para esquecer, já que os preços estavam subindo e era fácil tirar vantagem naquele período. Mas os que estavam do outro lado do balcão tomaram um susto com a dependência e a volatilidade dos preços. Nossa situação era boa, estávamos descobrindo o pré-sal e tínhamos um belo horizonte pela frente. Todavia, agora o panorama é outro.

O equacionamento de alguns produtos

ESTUDOS AVANÇADOS – Professor, quais são os problemas na produção e na exportação de produtos agrícolas?

Guilherme Dias – Os chineses são grandes compradores de soja. Mas, se desejamos um entrosamento melhor com a China, devemos dizer a eles que o caminho não é apenas por um acordo com a OMC, onde eles criam dificuldades no mercado de carnes, enquanto facilitam transações com matérias-primas. Não é possível nosso comércio com a China limitar-se a transações com matérias-primas, mesmo porque essa exportação está sujeita à frequente volatilidade de preços. Esse não é um caminho positivo para o Brasil. Pretendemos um grande acordo com a China, e não somente exportar produtos primários.

O quadro do mercado de carnes é dinâmico. Aproveitamos os desarranjos nesse setor, entre 2000 e 2008, em face de uma sucessão de febres. A febre suína entrou na Europa e, de repente, explodiu a aftosa na suinocultura a 60 quilômetros de Londres, espalhando-se rapidamente pelo norte da França, Bélgica e Holanda, assustando sua vigilância sanitária. Essa vigilância é eficiente e abafou a epidemia, mas não abafou o susto, porque entenderam que segurança europeia falhou numa questão vital, apesar de há vinte anos na Europa destinarem imensos recursos para essa defesa.

Colocaram de volta no mercado aquela carne bovina e em menos de dois anos reapareceu o surto da "vaca louca". Quando todos supunham que ela havia acabado, os ingleses violaram o cumprimento das regras de controle dessa doença e comercializaram ossos, restos de cérebros e de medula dos animais infectados, com o objetivo de aproveitá-los nas rações. O resultado foi o reaparecimento dessa doença no Canadá e nos Estados Unidos, aplicando um duro golpe no sistema que gera excedentes de carne. Trata-se de uma doença que é pesquisada há trinta anos, mas ainda não foram descobertas suas causas, embora o risco da epidemia seja terrível, porque o animal vivo ou morto pode estar passando a doença para os seres humanos.

O sistema norte-americano de carnes continua gerando excedentes, mas quando diminuiu sua oferta aproveitamos a oportunidade para colocar nossos produtos. Exportamos para os países que possuem um sistema de proteção com menores exigências, como o Oriente Médio. Expandimos por aí e começamos a entrar na Europa. Podemos, portanto, ocupar um papel significativo no abastecimento mundial de carnes.

A produção eficiente de frangos é facilmente organizada em vários países, desde que tenham abastecimento para garantir rações de soja, trigo e milho. O mesmo não sucede com a reprodução do gado bovino. O sistema da pecuária é mais seletivo e a criação de gado exige investimentos elevados. A África tem boas pastagens em savanas e campos, mas não possui um sistema de produção apropriado à pecuária.

Possuímos o maior rebanho de gado bovino do mundo e temos uma rede de frigoríficos. Mas eles estão passando por uma crise de gestão e terão de proceder a uma reestruturação. Esse setor, porém, enfrenta questões ambientais e terá de refazer seu modelo de crescimento, que se baseia na ocupação de novas áreas. Daí o conflito permanente entre os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. O fato é que temos tecnologia para a pecuária crescer de forma diferente, apoiada em estudos da Embrapa, ou no modelo da pecuária tropical, adaptado à nossa estrutura.

A tecnologia desenvolvida há mais de vinte anos mostra claramente que os níveis de produtividade da lavoura e da pecuária intensiva podem evoluir conjugados. Ou seja, um não precisa substituir o outro. Existe um sistema de longo prazo muito importante usando a rotação de áreas. O produtor utiliza áreas para a pecuária durante cerca de quatro anos; depois, nela coloca lavouras por seis, sete ou oito anos. Assim, é estabelecida uma sinergia que favorece o equilíbrio do solo, de nutrientes e de material orgânico, tudo no mesmo sistema, inclusive do ponto de vista sanitário.

Outro projeto importante de mudança tecnológica é o cultivo mínimo e direto na agricultura. Os que se interessam pelo tema procuram se aprofundar nessa questão e acreditam nesse caminho. Porém, esses desafios tecnológicos não são aceitos por todos e muitos deles não conseguem encarar esse tipo de atuação. Devido a isso, é difícil se adotar uma decisão política, pois os produtores tradicionais resistirão a tais mudanças. Então, de certa forma estamos patinando, pois essa tecnologia existe há mais de cinco anos. Essa transição será traumática, mas isso é um elemento da dinâmica de impedir a expansão da fronteira agrícola na Amazônia. No mundo rural já existe uma corrente comprometida com essa pressão. Muitos pecuaristas estão entendendo os desafios. Todavia, o conjunto ainda não está preparado para a efetivação dessas mudanças e uma crise mais longa pode desestabilizar a estrutura atual de produção.

Mudanças tecnológicas

ESTUDOS AVANÇADOS – Considerando a profundidade da crise, qual a possibilidade da implantação de mudanças tecnológicas?

Guilherme Dias – As crises são uma oportunidade para se retirar projetos das prateleiras e se apostar em novas tecnologias no setor agrícola. Há muitas críticas ao modelo convencional dominante nos últimos trinta ou quarenta anos, em consequência de questões ambientais, do problema das mudanças climáticas e da necessidade de um crescimento mais sustentável do ponto de vista ecológico.

Essa crítica é lançada com agressividade e algumas até de forma pitoresca e desnorteada. (Como aquela queima em pesquisas de transgênicos.) Mas acho que há também uma crítica séria e consolidada. Por exemplo, há fundamento em se criticar os riscos da tecnologia química, além de questões relacionadas com o movimento dos solos, em razão do uso de máquinas e outras coisas desse tipo.

Mas a agropecuária brasileira está evoluindo. Diante dessas críticas já foi iniciado um processo positivo. Primeiro, é a rapidez como vem sendo adotado o plantio direto, o que é uma grande vitória. Além disso, temos no Brasil boas experiências da agricultura orgânica, ou, como denominam agora, biodinâmica. Outras iniciativas são adotadas para aumentar a fertilidade do solo, assim como para o melhoramento genético de plantas, visando a produtividades surpreendentes e menos agressivas ao meio ambiente.

Ao lado disso, temos o esforço para implantar a rotação da pecuária e da agricultura, o que demanda transformações tecnológicas. Tudo isso corresponde à busca de um caminho sustentável em termos do desenvolvimento, mas sem expandirmos a fronteira agrícola. Essa questão é básica porque nosso modelo de crescimento agrícola até hoje é dependente dessa expansão da fronteira.

Daí a importância da consolidação de mudanças no paradigma tecnológico. As inovações tecnológicas estão à nossa disposição. Não estão prontinhas para ganharmos um Prêmio Nobel, mas os avanços que fazemos nessa direção são fortes e precisamos divulgá-los. Contudo, essa modernização tecnológica depende de capital e de modificarmos a mentalidade dos empresários agrícolas.

ESTUDOS AVANÇADOS – Como o senhor analisa a expansão da fronteira agrícola no norte do país?

Guilherme Dias – A aposta que é feita na valorização das terras e na ideia da expansão da fronteira agrícola ainda consome energia de grupos econômicos poderosos. Eles estão ainda apostando na nova fronteira e investiram nesses empreendimentos. Então, deve-se afirmar: "Não vamos mais apoiar esse caminho".

O governo tem de intervir nessa questão. Tenho ouvido ideias que surgem nos meios governamentais e estou convencido de que neles não há compreensão da absoluta necessidade de acabar com os investimentos do sistema tradicional na aposta da fronteira agrícola. Aí estão os acontecimentos no Pará e os conflitos em outros lugares que nem chegam ao conhecimento da opinião pública. O pior é que esses que não são propalados são os que estão recebendo investimentos. Essa questão está enraizada no mundo agrícola brasileiro, sendo muito complexa.

O movimento político que realizamos, com a Constituição de 1988, com a transformação de todo aquele território, com o deslocamento de 25 milhões de brasileiros para lá, complicou extraordinariamente a equação política. São 25 milhões de brasileiros apostando no desenvolvimento daquela região, mas dentro de um modelo que eles conheceram no passado. E eles estão lá! São 25 milhões num outro cenário político, que tem o mesmo peso na representação parlamentar dos outros Estados da Federação. Com aquela ideia de que a Segurança Nacional precisava encher de gente aquele imenso território, foi deslocada para a Região Norte uma população com uma expectativa de desenvolvimento nos moldes antigos. E aquela parcela imensa de brasileiros espera que a fronteira agrícola chegue até ali.

A crise mundial dos alimentos

ESTUDOS AVANÇADOS – Como o senhor analisa a crise de alimentos no mundo? O que o Brasil pode fazer nessa questão?

Guilherme Dias – O crescimento acelerado que aconteceu no mundo no início dos anos 2000 ficou insustentável, isso é o que essa crise atual demonstrou. Não será possível crescer da mesma maneira. Os países superpopulosos do mundo, como a China e a Índia, acertadamente se assustaram com a volatilidade dos preços dos alimentos depois de 2006. Essa situação também se aplica ao Paquistão e aos outros países populosos do Sudeste Asiático – Indonésia, Tailândia, Filipinas, Malásia etc. Esses países, incluindo a China, necessitam alimentar sua população, e por isso necessitam fazer crescer sua agricultura. Há uma recomposição mundial de alianças em torno desse processo. Nele não se exclui o Brasil, porque podemos e devemos ser exportadores de alimentos. Mas temos de encarar esse processo de uma maneira diferente.

Há, porém, um aspecto básico na questão de alimentos no mundo que não está sendo analisado pela imprensa. Trata-se do ocorrido na Rodada Uruguai do Gatt, ao decidir a liberalização do comércio internacional de produtos agrícolas. Desapareceram os incentivos para a formação de estoques. Diante disso, nenhum dos grandes países geradores de excedentes agrícolas encontra justificativa para manter estoques elevados de alimentos. Transferiu-se para os países consumidores esse encargo.

Dentro da lógica do acordo estabelecido para a entrada da China na OMC, ela deveria ajustar sua política doméstica diante dessa equação do abastecimento mundial. Por isso foi reduzindo seus estoques, a partir de 1992. Olhando as estatísticas, constata-se que ela reduziu à metade suas reservas de alimentos. Assim, cabe aos países consumidores e dependentes da importação de alimentos a responsabilidade de acumular estoques. Nem a China nem a Índia aceitam o encargo de manter essas reservas, levando em conta a volatilidade dos preços dos alimentos e os encargos financeiros dessa função.

No tempo da guerra fria, os Estados Unidos mantinham estoques imensos porque temiam um conflito bélico. Isso funcionou muito bem para os norte-americanos, e os soviéticos tinham de mendigar aos Estados Unidos fornecimento de trigo. Então, esses estoques sempre foram usados pelos norte-americanos como um instrumento de pressão política. Hoje os norte-americanos não sentem mais a necessidade de manter essas reservas.

Pelas regras atuais, globalizadas, uma organização como a OMC pune o Brasil se elevarmos os preços de arroz, milho, soja etc. acima dos vigentes no mercado internacional com o objetivo de formar estoques. Ora, o Brasil não tem recursos suficientes para arcar com esses custos. Só elevando os preços desses produtos é que poderíamos arcar com essa função. Mas os outros países certamente protestarão contra essa política.

Os Estados Unidos têm uma boa produção de milho e resolveram usá-la para produzir etanol. Não se preocuparam com a carência de milho no mundo. Temos também o caso da Argentina com a produção de trigo. Nossos vizinhos não têm interesse em conservar estoques de trigo e até suspenderam a exportação desse produto. Resolveram não carregar o mundo nas costas.

Não há nenhuma organização mundial que decida a respeito de estoques de alimentos, A FAO (Food and Agriculture Organization) não tem instrumentos. A OMC tem de repensar essa questão, porque não há regras mundiais relacionadas com o comércio de produtos vitais para a sobrevivência da sociedade humana. No entanto, essa questão não pode ser resolvida na base de preços vigentes no mercado, porque isso pode dizimar pela fome populações dos países pobres.

É indispensável não estimular determinados programas, como o da produção de etanol, em vista da crise de alimentos? A resposta a essa crise deve ser a criação de incentivos a países que podem produzir excedentes de alimentos, a fim de assumirem a responsabilidade de manter estoques. Para tanto, é urgente estabelecer a cooperação internacional nessa questão. Em sendo assim, todas as vezes que esse estoque mundial baixar de certo nível, em relação ao consumo, deve haver uma salvaguarda, uma regra para recompor os estoques, acabando com os sustos diante da questão. Portanto, essa competição entre biocombustíveis e alimentos se tornaria um problema menor do que foi apresentado pelos alemães em 2007.

A questão dos biocombustíveis

ESTUDOS AVANÇADOS – Qual a sua opinião a respeito da controvérsia entre os biocombustíveis e a produção de alimentos?

Guilherme Dias – Minha opinião sobre os biocombustíveis tomou um rumo diferente, no final de 2007, com aquele relatório dos alemães colocando em questão a mudança de uso do solo em consequência da produção de etanol. Aquele documento influenciou a opinião mundial. Veio à baila a necessidade de examinar problemas ambientais e sociais, assim como a sustentabilidade da fabricação de etanol, como também mudanças na natureza dos solos e os custos dessa modificação. Mas a pesquisa revelou que os dados não são ruins para essa produção, diferentemente do propalado naquele relatório dos técnicos alemães. Contudo, o documento demonstrou a necessidade de haver limitações na fabricação de etanol, evidenciando também que pode ser estimulada em certos países, enquanto em outros não deve ser impulsionada. Em resumo, no Brasil a produção de etanol, usando a cana-de-açúcar, merece apoio.

O essencial, acima de tudo, é entender que o problema dos veículos e dos combustíveis não pode ser resolvido por um único caminho. Isso porque pode haver uma grande transformação nos automóveis com motor a explosão, o que determinará mudanças na demanda de combustíveis líquidos. Esse é um cenário novo em que se encaixa o problema. Não será num cenário do passado em que encontraremos um substituto para o petróleo. Há vários indícios de que poderemos seguir um paradigma tecnológico novo nessa questão. Portanto, é um equívoco pensar que tudo ficará como no passado.

A grande virada tecnológica são as pesquisas feitas nos últimos dez anos, que irão dar o sinal de como essa questão poderá será resolvida. Devemos por isso esperar uma definição sobre combustíveis. E tudo dependerá do volume de investimentos aplicados nessa viabilização de alternativas.

Com as experiências feitas na Califórnia, com o híbrido ali implantado (carros movidos a eletricidade e gasolina), temos pelo frente uma boa perspectiva. Trata-se de um carro com um pequeno motor a explosão que gera eletricidade e força, carregando uma bateria. Uma espécie de locomotiva diesel-elétrica.

Nessa pesquisa já existem cerca de dez mil veículos funcionando. Ali os fabricantes (inclusive a Toyota) receberam incentivos fiscais para o lançamento desses modelos. Agora começa a ser quebrada a resistência de consumidores ao uso desse híbrido. A maior parte desses modelos utiliza gasolina, com um consumo baixíssimo. Mas esse modelo ainda é muito caro.

Os centros de renovação tecnológica estão testando esse carro elétrico e o carro híbrido. O combustível desses veículos (células elétricas) está indicando uma significativa mudança tecnológica, relacionada com a crise de energia e com o problema do aquecimento global do planeta. Em sendo assim, essa inovação modificará o peso do setor metal mecânico, dando à indústria química um papel novo.

E se o problema for substituir o motor de explosão pelo hidrogênio, com a adoção da célula elétrica? Qual combustível irá funcionar? Então, a lógica do processo se modificará completamente. Portanto, perde sentido ficarmos somente apegados ao petróleo, tentando encontrar um substituto para ele, quando o barril do óleo negro custa mais de cem dólares.

Professor Guilherme Dias – @ - guildias@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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