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Brasil na França: a Nitheroy e seus temas

RESENHAS

Brasil na França: a Nitheroy e seus temas

Gilberto Pinheiro Passos

"Para Jônatas de Freitas Talarico,

que gostava de verde, palmeiras e de fazer amigos."

A HISTÓRIA cultural tem seus cochilos ou caprichos, que a tornam sempre passível de retificações e questionamentos. É o caso da revista Nitheroy, curiosa publicação e marco inicial do romantismo brasileiro, movimento nacionalista, defensor de temas e motivos inspirados em nosso país, conforme nos ensinam os manuais de literatura. No entanto, ela não foi publicada no Rio de Janeiro ou São Paulo, mas em... Paris.

Na verdade, baseada no "amor ao país" ela se propunha "ser útil aos seus concidadãos", fazendo-os refletir a respeito de "objetos do bem comum e de glória da pátria". Era uma árdua tarefa dedicar-se à vida intelectual no Brasil, sobretudo no século XIX, quando o ensi-no universitário era incipiente e a vida cultural, restrita a pequenos núcleos, nem sempre conectados entre si. Já em 1833, a Revista da Sociedade Filomática, idealizada e escrita pelo esforço conjunto de professores e estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tentou reunir informações de interesse público. Seu cunho predominantemente literário, no entanto, levou-a ao fim prematuro (não mais do que seis números), pois, apesar de progressista em termos sociais, era absolutamente passadista no que diz respeito à literatura, terçando armas em favor de um neoclassicismo já sem razão.

Três anos mais tarde, um grupo de jovens bolsistas brasileiros do Instituto Histórico de Paris resolve arregaçar as mangas e, no mesmo espírito das revistas que buscavam os princípios liberais e modernizantes ligados ao pensamento da Ilustração, lança sua publicação com o título bastante sugestivo de Nitheroy, Revista Brasiliense.

A revista não estava só, pois o chefe do grupo, Domingos José Gonçalves de Magalhães, tinha a seu crédito Suspiros poéticos e saudades, que passou à história como o documento inicial do nosso romantismo, apesar de seu autor não se caracterizar por total adesão aos princípios da escola que, na França, já estava assente, com obras como Méditations poétiques (1820) de Lamartine, Les orientales (1830) e Les feuilles d’automne (1831) de Victor Hugo, além de romances como Notre-Dame de Paris (1831), também de Victor Hugo e Le père Goriot (1834) de Balzac, para ficarmos nas publicações de maior impacto junto ao público.

Desse modo, os jovens brasileiros que se encontravam em Paris tinham acesso às novidades retumbantes que viriam a pôr abaixo o vigoroso edifício neoclássico francês, de largo peso e influência na literatura ocidental, mas já cediço e atacado virulentamente, há algum tempo, por alemães e ingleses.

Esse é o cenário no qual se cria a revista que só teve dois números, conseguindo, no entanto, entrar para nossa história literária como um marco. Apesar disso, só conheceu uma reedição fac-similar, já de há muito esgotada, feita sob os auspícios da Academia Paulista de Letras, em 1978. Tal situação não poderia perdurar e, em 2006, por iniciativa da pesquisadora brasileira Ana Beatriz Demarchi Barel, em conjunto com o Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, publicou-se outra edição fac-similar, em CD-ROM, a partir do microfilme que é propriedade da Biblioteca Sainte-Geneviève de Paris.

Nesse caso, um pormenor ainda torna mais interessante, o esforço editorial: o fac-símile foi feito a partir de exemplar, oferecido por Manuel de Araújo Porto-Alegre, um dos articulistas, a Ferdind Denis, figura exponencial no que diz res-peito à integração – naquele momento – entre brasileiros e franceses.

Outro dado que chama a atenção e é decisivo quanto ao interesse para o leitor de hoje está no fato de a recente edição apresentar um pequenino livro, que serve de acompanhamento ao CD-ROM, com uma série de artigos escritos por especialistas, que se debruçaram sobre as peculiaridades da revista.

Desse modo, o público poderá compreender, com mais conhecimento de causa, alguns motivos que levaram os articulistas a refletir a respeito dos destinos do jovem país. A revista – no intuito de divulgar conhecimentos úteis – apresenta contribuições que vão do cultivo do açúcar até a literatura hebraica. Tal leque de interesses aproxima a Nitheroy de suas congêneres européias e ultrapassa largamente o domínio da literatura, já que ficamos sabendo algo sobre "cometas", "crédito público" e "relações comerciais entre o Brasil e a França", entre outros.

Assim, podemos entender o porquê de nos vermos às voltas com o açúcar, que representava, na época, um elemento econômico considerável e carecia de novos modos de produção. Nesse sentido, é elucidativo o artigo de Carlos de Almeida Prado Bacellar e Rafael de Bivar Marquese ("A produção açucareira nas páginas da Nitheroy") sobre a colaboração ou não do artigo da revista para o incremento da atividade açucareira no Brasil.

É importante observar que – lastreada nos ideais igualitários – nossa publicação oitocentista não busca atender ao interesse mais forte da classe dominante brasileira, estribada no trabalho escravo, pois um dos artigos de fundo da Nitheroy é exatamente "Considerações econômicas sobre a escravatura", em que o autor, Francisco de Sales Torres Homem, vergasta a instituição servil, considerada improdutiva economicamente e nefasta moral e politicamente.

Como o espectro de temas é vasto, o caminho do leitor passa por manifestações mais etéreas, contempladas, por exemplo, com um artigo de Gonçalves de Magalhães sobre filosofia da religião, um de Araújo Porto-Alegre sobre a música, particularmente no Brasil, o que mereceu um pertinente estudo de Maria de Fátima Dias Duarte em "Primórdios do nacionalismo musical", onde a pesquisadora coimbrã esmiúça elementos romântico-nacionalistas nas opiniões do articulista.

O tom pré-romântico inclui uma curiosa investida no campo da narrativa e poetização das viagens constante de "Contornos de Nápoles" também de Porto-Alegre, a demonstrar a força do tema ligado a regiões em que ruínas imemoriais, templos antigos e evocações de figuras históricas pontuam a inexorável passagem do tempo.

A literatura se vê aquinhoada, também, com mais dois artigos, o de Pereira da Silva, "Estudos sobre a literatura", e o famoso "Ensaio sobre a história da literatura do Brasil", de Gonçalves de Magalhães, no qual nosso autor, baseado no ecletismo, propõe estudar os antigos, mas faz valer nossa natureza e seu selvagem. Desse modo, o Brasil, "filho da civilização francesa", poderia seguir as idéias e a prática de um Ferdinand Denis, inserindo-se o tema nacional no rol das preocupações fundamentais daqueles que, de fato, amparados no "gênio" e seu "vôo arrojado" escapariam à imitação clássica e ilustrariam a literatura brasileira.

O espírito de grupo reaparece de modo evidente na seção "Bibliografia", que contém a recensão crítica da certidão de batismo do nosso romantismo, Suspiros poéticos e saudades. Redigida por Torres Homem, busca evidenciar a grandiosidade da inspiração cristã e histórica do poeta, em meio a ponderações desairosas sobre a situação cultural do país.

A edição fac-similada, publicada pela MinervaCoimbra, traz, como vimos, um apanhado analítico de alguns aspectos da publicação de 1836, perfazendo uma contribuição valiosa para o estudo – que ainda não se esgotou – dessa preciosidade de nossa história. Seguramente, a visão que se depreende da leitura do conjunto é o da necessidade de se repensar a tarefa árdua dessa geração, que marcava uma constante na cultura brasileira: a relação umbilical com o que se passava na França.

A esse respeito, convém sublinhar o trabalho de Ana Beatriz Demarchi Barel, que, já em 2002, lançava seu Um romantismo a oeste: modelo francês, identidade nacional (Annablume), onde estudava dados retirados da Nitheroy. Sempre bem-vinda é a perspectiva que busca tentar estabelecer as condições em que o fato emerge e o porquê do surgimento de tal ou tal tendência, suas implicações e repercussão. Assim foi com a Nitheroy, baliza inicial do movimento literário que buscou ampliar e aprofundar a visão que os brasileiros tinham do país irmanado à França de tantos exemplos e modelos, mas também possibilidade de temas e experiências formais confirmados pelo tempo, graças a autores do porte de um Gonçalves Dias ou José de Alencar.

Daí o interesse da publicação, centrada não apenas na reprodução do texto da revista, mas também na tentativa de elucidação de circunstâncias, motivações e desdobramentos do pensamento desse grupo de brasileiros. Assim se faz a história da cultura de uma nação e assim se estabelece um corpus crítico de inegável interesse para futuros pesquisadores.

Gilberto Pinheiro Passos é professor do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. @ – gipipas@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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