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P&D versus inovação

O medo da academia e os equívocos do setor produtivo

Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), que desde há alguns anos têm sido incrementados nas universidades brasileiras, assumem-se dissonantes dos objetivos inicialmente propostos, encontrando-se, assim, divorciados da geração de riqueza que se pretende para o nosso país.

Sendo fato confirmado que as universidades brasileiras melhoraram substancialmente o seu desempenho no panorama da ciência internacional, com reflexos importantíssimos na pesquisa que se faz dentro e fora do país, nomeadamente com um acréscimo acentuado de publicações científicas, também é fato que a academia se mantém estagnada em relação à sua participação na área da Inovação, com reflexo no reduzido número de patentes geradas nela, mantendo um esquizofrênico receio de se relacionar com a área produtiva (excetuando-se raros casos). Embora as ideias, os planejamentos e os discursos dos gestores das principais universidades públicas brasileiras insistam em apoiar e quiçá subsidiar essa relação, o certo é que a mensagem e o desejo manifestados não conseguem perpassar pela maior parte da restante comunidade universitária, principalmente por alguns núcleos de pesquisadores mais conservadores que ainda assentam sua cultura no medo de interagir com as empresas, arrastando e colocando os alunos nesse seu lastro.

Nas raras vezes, no entanto, em que esses atores abrem as portas ao setor produtivo, fazem-no protegidos com as mais tradicionais e obsoletas armaduras burocráticas usualmente utilizadas pelo Estado, provocando o natural desinteresse e frustração da comunidade empresarial. Inexplicavelmente, a cultura universitária mostra um pavor tremendo em repassar seu conhecimento ao setor produtivo, quando as fronteiras estão bem definidas – a Universidade cria a ideia, a tecnologia, enquanto o setor produtivo desenvolve o produto, com benefício para ambas as partes e, principalmente, para o país. Assim, a Universidade brasileira, como um todo, ainda navega basicamente isolada do sistema produtivo nacional, com consequentes prejuízos, remando na contramão da realidade mundial e unicamente incentivando áreas que, embora importantes no contexto geral, se apresentam apenas como coadjuvantes para a geração de riqueza nacional, como é o caso do agronegócio, que poucas vezes apresenta mão de obra altamente qualificada. O agronegócio é importante e necessário? Claro que é, e ninguém diz o contrário! No entanto, o argumento de que a soja, a carne, a laranja, e outros produtos básicos incorporam tecnologia, já que outros produtos podem comprar de uma fábrica de tratores, defensivos ou sementes, não se sustenta, pois a maioria desses suprimentos – ao contrário do que se possa inicialmente pensar – não são nacionais, já que grande maioria deles é importada. Quantos engenheiros, físicos, biólogos ou químicos encontramos nas mais diversas áreas do agronegócio, nos setores de P&D (quando existem)? Creio que muito poucos.

A maior parte das universidades dos Estados Unidos dá um exemplo concreto de sucesso, ao permitir que as empresas compartilhem seus espaços acadêmicos com o intuito de se trocarem e debaterem ideias rumo a pesquisas novas que levem ao desenvolvimento de novos produtos que serão comercializados no futuro. Não existem constrangimentos, muito pelo contrário. No Brasil, a maior parte das ideias que poderiam gerar inovação fica apenas registrada em montanhas de papel, que por sua vez ficam encerradas em gavetas e armários, não se concretizando na prática.

Quanto à indústria, a maioria dela insiste em trabalhar para suprir o mercado nacional, completamente iludida pela imagem de que o Brasil é um mercado enorme, de dimensões continentais, ficando assim susceptível às frequentes crises do mercado brasileiro. E de crise em crise, o Brasil vai ficando cada vez mais um país de serviços e menos industrializado. Mas é sabido que existe uma correlação forte e linear entre a industrialização e a riqueza de uma nação, bastando para isso ver que os países mais avançados no mundo são exatamente aqueles que estão mais industrializados. Como exemplo de visão empresarial internacional tomemos o caso australiano na área do setor tecnológico, que é deveras ilustrativo: as empresas sediadas na Austrália nunca pensam suprir prioritariamente o mercado interno, mas sim desenvolver e criar produtos que sejam consumidos no resto do mundo, o que faz que fiquem imunes a eventuais crises políticas ou econômicas domésticas. Contudo, nada falta na Austrália.

No Brasil, o grande foco deveria ser a exportação qualitativa de produtos, atendendo, em segundo plano, às necessidades internas. Nenhuma nação do mundo enriquece na base exclusiva de commodities ou de uma indústria que trabalha essencialmente para suprir necessidades domésticas, e, devidamente estruturadas e planejadas, as áreas industrial e tecnológica nacionais seriam certamente as que mais garantias dariam para a geração de empregos e de riqueza.

Não se deve, contudo, subestimar o fato de, recentemente, ter havido alguns – tênues – esforços no sentido de colocar o Brasil nos trilhos e interligar a P&D com a área de Inovação para atingir a aludida geração de riqueza para o país. Essa metodologia não é nova, podendo-se encontrar principalmente no exterior, tomando-se neste artigo, como mero exemplo, o fato de que dentre as maiores empresas do mundo, sete delas – em sua maioria com cerca de 30 anos de existência – estão inseridas na área de tecnologia, como são os extraordinários casos do Facebook e do Google, ambos nascidos na academia.

Outro exemplo que se deve ter em linha de conta é o da empresa Apple – igualmente criada na academia há pouco mais de 40 anos –, que atualmente está avaliada em 700 bilhões de dólares, valor que corresponde a cerca de um terço do PIB do Brasil. Comprovadamente, vê-se através desses exemplos o quanto as Universidades têm o poder de mudar o mundo econômico e de gerar riquezas para seus países. Comparativamente, chegamos à conclusão que a universidade brasileira, como um todo, ainda navega isolada do sistema produtivo nacional, com consequentes prejuízos. Muitos empreendedores, principalmente aqueles que emergiram das universidades brasileiras, têm tentado criar empresas de alta qualidade e de base tecnológica inovadora, com o intuito de alavancarem o Brasil na direção certa. Contudo, muitas vezes essas apostas não têm dado certo, principalmente pelas dificuldades resultantes de políticas equivocadas instituídas pelo Estado e pelas próprias empresas, uma legislação defasada, lenta e limitadora, a alta carga tributária ou ainda a falta de apoio concreto para que elas sobrevivam e prosperem e sejam uma mais valia para o estado. O exemplo da Opto-Eletrônica (empresa de tecnologia no ramo de optoeletrônica, com atuação nas áreas médica, aeroespacial e de defesa), fundada em 1985 por pesquisadores e alunos da Universidade de São Paulo, do Instituto de Física de São Carlos, é um dos casos mais notórios, tendo em vistas que ela foi, por volta do ano 2010, uma das empresas mais consistentes e de sucesso no panorama produtivo nacional dentro de suas áreas de atuação. Com cerca de 450 funcionários, onde 75 deles pertenciam à área de P&D da própria empresa – entre mestres e doutores –, ela faturava R$ 100 mi por ano, com um lucro anual estimado em cerca de 30%, um porcentual que era integralmente investido no desenvolvimento de novos projetos e produtos. Essa empresa – da qual me orgulho de ter sido o empreendedor e sócio –, teve a audácia e a competência de concluir um de seus mais extraordinários trabalhos, fruto de dez anos de pesquisa e aplicação, ao enviar no mês de junho de 2014, para a China, a câmera MUX para o programa CBERS-4, constituindo grande parte da contribuição brasileira no programa espacial conjunto entre China e Brasil (CBERS – China-Brazil Earth Resources Satellite), tendo seus componentes sido integrados ao satélite sino-brasileiro que hoje já se encontra em órbita terrestre. Por outro lado, justamente esse, que foi um dos grandes feitos tecnológicos da Opto, se tornou seu algoz, levando a empresa a um alto endividamento bancário e tributário para cumprir o compromisso de prazo assumido, mesmo sem receber os recursos governamentais devidos. As especialidades da empresa estavam no desenvolvimento, a baixo custo e em padrão internacional, de hardwares e softwares que integrassem tecnologias de óptica, laser e eletrônica adequadas, tanto às vertentes médicas quanto às áreas aeroespaciais, contando, inclusive, com a mais sofisticada sala limpa brasileira para montagem e integração de sistemas, uma sala escura para testes ópticos de precisão e uma ampla gama de instrumentos para desenvolvimento de testes e validação de sistemas optoeletrônicos embarcados em missões críticas. Sensivelmente a partir de 2013, a empresa “sentiu o cheiro” da crise econômica e política e isso fez que ela desabasse em curto espaço de tempo, sem que ninguém se importasse com isso: o P&D dela, neste momento, é zero e a Opto-Eletrônica encontra-se em estágio letárgico. Uma empresa de base tecnológica tem sempre o seu percurso normal traçado por altos níveis de alavancagem (bancos, investidores etc.), mas com faturamento extremamente crescente, pelo que quando surge uma crise econômica ou política, de espectro nacional, resulta sempre em uma redução do faturamento, enquanto o endividamento, esse não cessa: isso, para uma empresa, assume-se como um completo desastre e o início do caminho para fechar suas portas e lançar no desemprego seus colaboradores. É por essa razão que uma atuação no mercado global é importante, conforme já explicitado anteriormente.

Finalmente, outro fator que merece atenção é na internacionalização das empresas, que passa, necessariamente, pelo investimento que deverá ser feito na internacionalização de seus quadros, visando a criação de projetos inovadores e a venda de produtos de altíssima qualidade para o exterior. Não podemos esquecer que, por exemplo, os mercados dos Estados Unidos e da Europa são altamente exigentes e profissionais, tendo, por isso, alguma relutância em aceitar o Brasil como principal parceiro, devido, principalmente, às normas que vigoram atualmente no país, que promovem produtos e serviços sofríveis, mas que são considerados “muito bons” internamente. Programas governamentais de incentivo à internacionalização como o “Ciência sem Fronteiras”, ou mesmo de incentivo a viagens internacionais – mesmo que a passeio –, expõem os cidadãos brasileiros a economias mais exigentes e trazem ao país uma cultura de primeiro mundo que, no mínimo, estabelece padrões mais exigentes na população em geral. A abertura de importações de produtos de qualidade, em vez da importação de “bugigangas chinesas”, também tem o papel de elevar os padrões de exigência do mercado interno e, consequentemente, dos produtos que aqui são desenvolvidos e produzidos.

Muito há ainda a fazer, portanto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2017
  • Aceito
    17 Jul 2017
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