Acessibilidade / Reportar erro

A desumanização do comer

Resumos

Considerando o "ato de comer" como ato humano e humanizador por excelência, este artigo procura traçar a trajetória histórica do fenômeno da refeição na tradição ocidental, partindo de referenciais culturais judaico-cristãos - a Bíblia - e helênicos - O banquete de Platão -, e analisar o processo de sua desumanização no contexto da sociedade industrial pós-moderna, assim como seus efeitos na cultura.

Alimentação; Refeição; História da alimentação; Humanização


Considering the "act to eat" as human act par excellence, this article looks for to trace the historical trajectory of the phenomenon of the meal in the occidental tradition, starting of cultural referenciais Jewish-Christians - the Bible - and Greek - Platos Symposium - and to analyze the process of its inhumanization in the context of the after-modern industrial society, as well as its effect in the culture.

Food; Meal; Feed; Food’s history; Humanization


ALIMENTAÇÃO E EDUCAÇÃO II

A desumanização do comer

Dante Marcello Claramonte Gallian

RESUMO

Considerando o "ato de comer" como ato humano e humanizador por excelência, este artigo procura traçar a trajetória histórica do fenômeno da refeição na tradição ocidental, partindo de referenciais culturais judaico-cristãos – a Bíblia – e helênicos – O banquete de Platão –, e analisar o processo de sua desumanização no contexto da sociedade industrial pós-moderna, assim como seus efeitos na cultura.

Palavras-chave: Alimentação, Refeição, História da alimentação, Humanização/desumanização.

EM TORNO do ato de comer, os homens, em inúmeras culturas e em todas as épocas, foram constituindo alguns dos procedimentos, rituais, imagens e símbolos mais fortes e eloqüentes da história da humanidade. A partir desse ato fundamental, fruto da necessidade mais premente da vida, desenvolveram-se práticas e costumes que muitas vezes fundam e dão identidade às diversas sociedades e tradições, o que permite traçar uma relação direta entre a essencialidade da vida individual e a essencialidade da vida coletiva ou da humanidade.

Desde os tempos mais remotos da história do gênero humano, o ato de comer esteve associado a múltiplos significados que transcenderam a mera satisfação de uma "necessidade fisiológica". Hoje, podemos dizer que comemos para sobreviver, mas, historicamente, em inúmeras tradições, comer sempre foi muito mais do que uma condição de sobrevivência.

É interessante notar que o ato que talvez mais nos aproxime dos outros animais seja exatamente aquele que recebeu, por parte de nossos antepassados, o maior cuidado, a maior importância ao longo da história. Nas cavernas pintadas pelos homens do Paleolítico, a representação de cenas de caça relaciona as origens da arte e da magia com a alimentação, e, nos cultos e rituais mais antigos dos quais temos notícias, o ato de comer desempenhava sempre um papel central. Foi comendo do fruto proibido que, segundo a tradição judaico-cristã, o gênero humano perdeu sua condição original de bem-aventurança, e é de novo sob a forma de comida que Deus oferece a reintegração, a salvação (cf. A Bíblia de Jerusalém, 1989).

Nos livros proféticos e sapienciais dessa mesma tradição, a lei muitas vezes é simbolizada por um livro que é comestível e que, por vezes, sabe a mel e, por outras, a fel, de acordo com a condição daquele que o saboreia. Visitando os mais diversos registros históricos de inúmeras tradições e culturas, pode-se perceber que comer sempre foi algo muito mais amplo e profundo do que simplesmente suprir uma necessidade fisiológica. E isso não só porque ao alimento se associaram sempre muito mais significados que os meramente físico-químicos, mas também porque ao ato de comer se associou sempre a idéia de refeição, de reunião.

Alguns dos acontecimentos e idéias mais importantes e marcantes da história da civilização ocidental estão inseridos em contextos de refeições ou banquetes. Pensemos, por exemplo, na última ceia de Jesus com seus apóstolos, tal como está narrado nos Evangelhos (cf. Mt 26,26-28; Mc 14,22-24; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-25) e no Symposium ou Banquete de Platão (2001), onde algumas das idéias mais caras à filosofia ocidental estão sendo propostas. São dois marcos fundamentais na história da espiritualidade e do pensamento, e não se pode dizer que o fato de ocorrerem em meio a uma refeição seja mero acidente. De acordo com os relatos evangélicos, Jesus concebe aquela última ceia como um momento decisivo na transmissão de sua doutrina e na revelação da sua missão espiritual. É nessa ceia que ele lava os pés dos apóstolos e institui o ritual da eucaristia; despede-se de seus amigos e deixa seu testamento. E Platão recorre a esse contexto profundamente significativo para o homem helênico, pelo menos desde os tempos homéricos, para provocar a discussão sobre o tema antropológico fundamental: o amor.

O entrelaçamento dessas duas tradições, helênica e judaico-cristã, vai reforçar o papel proeminente que o banquete ou a refeição desempenhará na história da nossa cultura. Seja associada ao contexto religioso – a missa cristã, até os dias de hoje, não deixa de ser, fundamentalmente, um banquete, o banquete eucarístico – seja ao filosófico – os congressos e simpósios guardam essa mesma relação pelo menos no nome –, a refeição será sempre uma das formas mais recorrentes de congregação, de transmissão de idéias, valores, verdades, de comemoração. Ou seja, a refeição acabou por se constituir, em grande parte das culturas e civilizações, num espaço privilegiado de experiência do humano e de humanização. Isso porque no contexto da uma autêntica refeição, tal como ela foi se constituindo historicamente, propicia-se a possibilidade de um envolvimento integral da pessoa em suas mais amplas e diversas dimensões. Vejamos.

Em primeiro lugar, a refeição – ato de comer humanizado por excelência – envolve sem dúvida o corpo, na medida em que sua existência se deve ao seu serviço. A refeição existe para alimentar o corpo, mas não apenas de comida. Uma verdadeira refeição deve antes de tudo alimentar os sentidos: a vista, o olfato, o tato e, claro, o paladar. Ela deve, pois, envolver o corpo como um todo, convidando a experimentar sensações e provocando o exercício do discernimento. Nesse sentido, como bem apontam os antigos manuais de culinária e de cultura gastronômica, o banquete é sempre uma "escola dos sentidos". Antes de comer é preciso apreciar com os olhos, sentir o aroma, a textura e saborear, discernindo bem as características, os acidentes dos diversos ingredientes e condimentos. Toda verdadeira refeição, seja simples seja mais sofisticada, significa, comunica e evoca algo que é preciso decifrar e identificar.

E, nesse sentido, a refeição acaba por envolver também não apenas a dimensão da sensibilidade, mas igualmente a da afetividade e da inteligência humanas. Essa experiência de contemplação e de saboreamento levando ao movimento do discernimento envolve a memória, a imaginação; enfim, a inteligência como um todo, relacionando sabor à sabedoria em seu sentido mais amplo. É por isso que se pode dizer que comer é também uma forma de conhecer. Desde que se coma inteligentemente; humanisticamente, diria Montaigne.

Dentro desse contexto, é importante mencionar a relação intrínseca que existe entre a dimensão – podemos dizer – estética e a dimensão ética da refeição. De acordo com a máxima clássica, também no universo da gastronomia o belo e o bem andam sempre juntos: uma bela refeição deve necessariamente ser uma refeição saudável. Em O banquete de Platão, surge a inspirada sugestão de que se equilibrasse o consumo de comida e bebida com as exposições de discursos, para que uma atividade não prejudicasse a outra. E são muitas as prescrições que vamos encontrar em livros e manuais como os de Cassian (1985, cap.XXXI-XXXVIII), por exemplo, em que se recomenda não apenas a frugalidade nas refeições, mas também a presença de alimentos essencialmente benéficos para o corpo e para o espírito, facilitando assim a vida espiritual contemplativa.

É em sua dimensão ética que a refeição entrelaça as diversas esferas da experiência humana individual – a experiência dos sentidos, dos afetos e da inteligência – e, ao mesmo tempo, se apresenta também como espaço de encontro, de transcendência dessa mesma experiência individual. Aqui a experiência do humano, da humanização se completa e se abre. Isso porque, na autêntica refeição, se compartem não apenas os alimentos, mas também e principalmente as experiên-cias, as impressões, as idéias; enfim, as próprias pessoas que dela fazem parte.

Voltemos aos exemplos citados, referenciais na história do Ocidente. Como vimos, é durante um banquete em homenagem a um poeta que Platão expõe e confronta, por intermédio dos diversos comensais que dele fazem parte, as principais idéias e valores a respeito de Eros, permitindo, por meio dessa estratégia, firmar a concepção socrática – ou melhor, platônica – desse tema fundamental. Durante o Symposium as diversas personagens entregam o melhor de si, o que de mais profundo e essencial guardam em seu interior. E, enquanto alimentam o corpo, os comensais de Platão alimentam também e principalmente o coração e o espírito.

Na ceia de Jesus com os apóstolos, tal dimensão se torna ainda mais eloqüente, pois, além de alimentar os discípulos com palavras, o Mestre se dá a si mesmo como alimento, entregando sua carne em forma de pão e seu sangue em forma de vinho. A partir de então, será quase impossível desvincular a imagem do banquete, da refeição da idéia de entrega e compartilhamento. A refeição desenha-se como um encontro; um encontro em que não apenas se vem para tirar, mas também para se dar.

São essas, sem dúvida, as imagens arquetípicas que, pelo menos na tradição ocidental, acabariam por configurar a concepção da refeição familiar e da refeição de amizade, a refeição entre amigos.

Durante muitos séculos e até nossos dias – infelizmente cada vez menos –, a refeição apresenta-se como o centro essencial da vida familiar. É em torno da mesa da cozinha ou da sala de jantar que a vida familiar costumava girar. Em torno da mesa, por ocasião da refeição, todos os membros se reuniam, e enquanto se serviam e se alimentavam da mesma comida, serviam uns aos outros de suas histórias, experiências, idéias. Era nesse momento e nesse contexto que se estreitavam os laços ou se explicitavam as distâncias. Era o momento de os mais velhos destilarem seus conselhos, transmitirem seus valores, e os mais jovens contarem as últimas novidades. Eis por que o momento das refeições estava revestido de um caráter central e solene na vida familiar. Era um dos poucos eventos, talvez o único, que tinham hora certa, pelo menos para começar. Invariavelmente era longo – e quanto mais longo, melhor. Os pratos iam se sucedendo assim como os assuntos e as conversas. Boa parte das memórias afetivas daqueles que vivenciaram esse tipo de contexto familiar estão vinculadas a esses momentos transcorridos em torno da mesa.

Analogamente, assim também se pode dizer das refeições entre amigos. Ainda hoje o encontro de amizade se associa quase invariavelmente com a refeição, assim como o encontro amoroso. Continua presente em nossos hábitos convidar para um almoço aquele grande amigo com o qual gostaríamos de estar mais amiúde, para podermos desafogar nosso coração e também enchê-lo com suas palavras e conselhos. E, da mesma forma, o jantar a dois ainda segue sendo a fórmula mais apreciada para a troca de confidências e declarações amorosas, seja no início do namoro seja para comemorar longos anos de união matrimonial.

Espaço privilegiado de experiência integral do humano no plano individual – na perspectiva dos sentidos, dos afetos, da inteligência e da vontade – e também no plano relacional, a refeição apresenta-se, portanto, como evento humanizador por excelência. Escola dos sentidos, a refeição se constitui também em escola de relacionamento, de convivência.

Toda essa realidade, entretanto, vem se modificando rápida e profundamente. O desenvolvimento do capitalismo industrial, financeiro e empresarial, repercutiu fortemente nos costumes e hábitos sociais, principalmente nos grandes centros urbanos. A conversão do tempo em dinheiro e da vida em um circuito fechado de produção e consumo tem determinado um processo radical de desumanização. Para manter a produção em massa em escala crescente, é preciso uma massa consumidora não só cada vez maior, mas também cada vez mais automatizada. Nesse sentido, comer, que, como vimos, historicamente foi se constituindo num ato humanístico e humanizador por excelência, no contexto da sociedade capitalista pós-moderna, foi se transformando em um ato de consumo. Comer, além de se constituir numa necessidade de sobrevivência – imprescindível para manter a máquina de produção e consumo funcionando –, apresenta-se agora também e fundamentalmente como um grande negócio; um "hábito" capaz de gerar milhões e milhões em lucros e dividendos.

Nesse contexto, a experiência da refeição vem se modificando fortemente. Já não há mais tempo para preparar e muito menos para saborear os alimentos, portanto a dinâmica agora é "mandá-los goela abaixo" o mais rápido e o menos refletidamente possível. Na "refeição" fast food não há o que discernir ou adivinhar; ela não é mais uma "escola dos sentidos", nem muito menos uma "escola de relacionamento". Ela nada mais é do que o produto de uma cadeia industrial, onde os ingredientes industrializados são combinados de forma padronizada por máquinas e operários absolutamente impessoais, que não querem nem podem comunicar ou significar nada a não ser o consumo pelo consumo. O ambiente pseudo-acético, destituído de acolhimento, com ruído em vez de música ambiente, convida não ao encontro de pessoas e idéias, mas de estômagos e de compulsões juvenis que rapidamente se saciam. Em vez de "escola", a "refeição" fast food é bem mais um "campo de treinamento", muito adequado, aliás, para a tarefa de alienação necessária para a manutenção de uma sociedade de consumo indiscriminada.

Tal experiência desumanizadora do comer se projeta dos "campos de treinamento" para as casas, para a intimidade dos lares, onde também se pode observar esse fenômeno de embrutecimento e automatização. A refeição agora, em vez de se dar em torno da mesa, dá-se em torno da televisão. A comida, antes preparada, é simplesmente aquecida e tem sempre o mesmo sabor – o que, aliás, não faz diferença alguma, pois nesse processo o sabor não desempenha mais um papel desafiador. A refeição deixou de ser escola e deixou de ser encontro. O comer se desumanizou, para se tornar um ato de consumo automatizado.

Diante de tudo isso, não são poucos aqueles que se alçam e denunciam todo esse processo desumanizador e suas conseqüências desastrosas do ponto de vista da cultura e da saúde pública. Além dos adeptos da alimentação saudável, apresentam-se também os defensores da alimentação humanizada e humanizadora, porém é preciso analisar toda essa movimentação com olhar crítico. Os gourmets e os propagandistas do slow food, cada vez mais em moda, nem sempre estão conscientes de como, muitas vezes, acabam reproduzindo a dinâmica consumista travestida de sofisticação. A refeição humanizadora não se identifica ou se reduz ao refinamento, apanágio dos setores mais privilegiados da sociedade. Ela, como vimos, demanda a participação do homem todo e por isso pressupõe um processo educativo. Mas tal educação não pode nem deve ser elitista. Ela deita raízes profundas na cultura e na civilização e está profundamente ligada à constituição dos laços mais elementares entre os indivíduos. Insistir no resgate e na revitalização do comer humanizado, da refeição humanizadora, é trabalhar e investir em prol não apenas da saúde dos indivíduos e das sociedades, mas da própria humanidade. Reumanizar o ato de comer na refeição apresenta-se, portanto, como tarefa essencial no exigente e amplo esforço de reumanização da cultura.

Recebido em 7.5.2007 e aceito em 21.5.2007.

Dante Marcello Claramonte Gallian é doutor em História Social pela FFLCH-USP, docente e diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Unifesp e professor visitante no Centre de Recherches Historiques da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, France. @ – dante.cehfi@epm.br

  • A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista. São Paulo: Paulinas, 1989.
  • CASSIAN, J. Conferences Transl. and pref. by Colm Luibheid; introd. by Owen Chadwick. New York: Paulist Press, 1985.
  • PLATÃO. O banquete Lisboa: Edições 70, 2001. (Coleção Clássicos Gregos e Latinos).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007

Histórico

  • Aceito
    21 Maio 2007
  • Recebido
    07 Maio 2007
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br