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Quatro poetas atuais

CRIAÇÃO / POEMAS

Quatro poetas atuais

Murilo Marcondes de Moura

NUM MOMENTO em que se observam o surgimento de antologias (por exemplo, Esses poetas, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda) e a atuação de editoras preponderantemente voltadas para a poesia (como a Sette Letras), a brevíssima seleção aqui apresentada é muito oportuna e suscita alguns comentários. De início, os 12 poemas publicados chamam a atenção pela presença marcante da experiência imediata (a amizade, o desencontro amoroso, a paisagem da infância...) e também por uma regularidade formal, discreta mas básica (a estrofação em quadras, tercetos, dísticos...). Pelo menos três dos quatro poetas - Alberto Martins, Augusto Massi e Fernando Paixão, todos praticamente da mesma idade -, poderiam ser aproximados ainda por uma espécie de produção serial, ou pelo menos pela forte concentração em torno de unidades temáticas; mesmo os poemas de Alcides Villaça, que não demonstram essa preocupação, poderiam ser agrupados pela pesquisa comum da memória. Além do mais, os quatro poetas aqui selecionados já foram editados em livro pelo menos uma vez, publicaram em diversos jornais e revistas, participaram de inúmeros encontros e debates sobre poesia, e têm, ainda, uma atuação destacada, em universidades ou em editoras.

Contudo, as diferenças são muito mais flagrantes e incisivas do que qualquer semelhança. Ao invés da impressão de se estar lendo um único poema difuso, separado por seqüências ou movimentos autorais, que é, muitas vezes, a sensação experimentada diante de amostras semelhantes a esta, impõe-se aqui a variação de vozes, em que cada individualidade se destaca com nitidez. Esses traços singularizadores têm naturalmente um lastro que deve ser recuperado, ainda que de modo muito genérico.

Alberto Alexandre Martins aprofunda o seu trabalho de decantação paciente, já presente em seu livro de estréia Poemas (1990), adensado, quem sabe, pela sua atividade de artista plástico, na qual talvez seja mais claro o sentimento de que a forma nasce do domínio progressivo sobre a matéria. Em parte de seu trabalho poético atual, os dados sensíveis da paisagem de Santos, sua cidade natal, assim como algumas referências históricas (natureza e cultura) são singularmente filtrados - o concreto sofre um tratamento abstratizante, e os poemas parecem propor uma síntese entre olhar afetivo e visão analítica.

Alcides Villaça, o mais veterano dos quatro é também o mais bem humorado (pelo menos tendo em vista este breve mostruário), mas é humor que deve ser entendido em sentido largo, como "sentimento do contrário", capaz de escavar o azul já encoberto pela sépia, ou de contrapor ao inelutável crescimento da memória a consciência individual sempre renovada. Dos quatro poetas, talvez seja aquele em que mais se afirma o trabalho rítmico na composição dos poemas, tendência já perceptível nos livros O tempo e outros remorsos (1975) e Viagem de trem (1988).

Em Augusto Massi, o deslocamento em relação ao primeiro livro (Negativo, 1991) é sensível, mas não se trata de um abandono de posições. Trata-se, antes, de, conservando o mesmo apuro da linguagem, conquistar a expressão direta, quase brutalista. O conflito é aqui a matéria prima, e a poesia lírica está submetida à notação agressiva das experiências do sujeito, fraturadas e contaminadas pelo sentimento de coisificação. Tal conflito está instalado no próprio interior da expressão poética, em que a diferença individual surge do emaranhado de lugares comuns.

Os poemas de Fernando Paixão, por sua vez, assumem uma feição francamente memorialista, quase banida da fenomenologia de Fogo dos rios (1989), mas já presente em 25 azulejos (1994). O memorialismo adquire aqui sentido amplo, em que a busca das origens é também a busca do prestígio da palavra poética, como se o retorno imaginário ao momento de descoberta do mundo engendrasse também as fontes da linguagem. Fernando Paixão é, dos quatro poetas aqui apresentados, aquele que mais força a linguagem para o campo da imagem, extraindo desse movimento os seus melhores resultados.

Murilo Marcondes de Moura é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e autor do livro Murilo Mendes: a poesia como totalidade, Edusp/Giordano, 1995.

Madrugal paulistano

When I fall in love na Alameda Glete

tocava na vitrola aquele hit do Nat

Magnólia, de flor, virou menina Mag.

O pisca azul-néon colhia-se na janela.

Não interessa o azul da adolescência breve?

Não vá morrer em sépia o que era cor mais leve.

São Paulo já foi nuvem, meu coração foi outro:

por que não repor Mag em sua primavera?

When I fall in love it will be forever

no primeiro Hi-Fi do último Telefunken:

nossas mãos se postavam para o faustoso Gênesis

em que o ânimo de Deus encorajasse as águas.

Uma luz de outro anjo, tão vaga, se quedava

no mundo silencioso da carne telepática.

O estrabismo de Mag era um charme tão fino

na conjunção do olhar aceso azul abismo.

O suor das mão extáticas

fechava-se numa audácia apenas enlaçada.

Penumbra azul, néon no parapeito.

Santa Cecília em luz na mag-madrugada.

Alcides Villaça

A costureira

Que me quer a memória, a costureira?

Vale-se de meus dedos para sonhar,

e quando acordo mal me vejo.

Que me quer com retalhos

de um manto que nunca usei?

Vale-se de meu sonho para o trajar.

Quem pula em meu quintal às horas mortas

e me põe trêmula ogiva sob a pálpebra,

coração de um azul que não pedi?

Quem se finge morrer, para cerzir

na sombra a própria sombra - e some

à prima luz?

Quem costura alta noite, quem pedala

as correias à ré, e me abandona

às figuras de gelo?

A costureira com seus figurinos

volta páginas e páginas, num contínuo

desfile de moldes agulhados.

Que me quer a mulher? Gargareje

seus préstimos, quando queira,

só não me assalte o escasso tempo

que me costuro eu mesmo enquanto esqueço

o som da máquina extinta, e me recreio

com o corpo que tenho e o sopro ausente.

Alcides Villaça

Aviso

Para João Luiz Lafetá

O sonho tinha um bar: conversávamos.

Cerveja para quatro: conversemos.

Seria infinita a conversa mas

teu amigo tem que viajar

e tu calculas no relógio

que é tempo de embarcá-lo.

Nossa amiga e eu esperaremos.

O estoque deste bar é confortável,

mil garrafas douradas no porão.

Vais contrafeito pois apenas

a meio vai teu copo de espuma,

mas tu calculas no relógio.

Antes da porta te viras:

nossa amiga e eu sentimos

a declaração solene

que os olhos, mais que a boca,

sabem sentenciar:

- Ninguém mexa no meu copo!

E ficamos a rir

das cautelas mineiras,

eu e nossa amiga,

aguardando tua volta.

Alcides Villaça

Canção do exílio

É verdade. Andei meio sumido.

Mudei de casa, mulher, amigos.

De repente, a barra ficou pesada

e não foi fácil encontrar abrigo.

Recolhi meu time de campo,

tresli versos de Drummond:

- Fique torto no seu canto.

Confesso que até foi bom.

Levei a vida de um clandestino,

no começo, doeu pra burro.

Depois compreendi: meu destino

era caminhar pelo lado escuro.

Fui posto em xeque, à prova

concha ambígua do ostracismo.

Mas, construí uma vida nova

sem rancor, surto, onanismo.

Hoje, novamente, me recifro,

nesta antiga canção do exílio.

Sob o forte sol do isolamento,

viso os territórios do princípio.

Augusto Massi

Separação

Eu me separei do meu passado

Eu me separei da primeira pessoa

Eu parti partido e me reuni à parte.

Eu me separei do gran-finale

Eu me separei do mundo caduco

Separei a pessoa do personagem

Eu me separei do crochê da vingança

Eu me separei de velhos inimigos

Eu me divorciei da culpa

Rompi com os movimentos separatistas

Minha cabeça resolveu me dar as costas

Meu corpo pediu separação de corpos

Eu me separei da casa própria

Eu me separei do nome próprio

Eu me separei da própria idéia de separação

Augusto Massi

Ponto morto

A minha primeira mulher

se divorciou do terceiro marido.

A minha segunda mulher

acabou casando com a melhor amiga dela.

A terceira (seria a quarta?)

detesta os filhos do meu primeiro casamento.

Estes, por sua vez, não suportam os filhos

do terceiro casamento da minha primeira mulher.

Confesso que guardo afeto pelas minhas ex-sogras.

Estava sozinho

quando um de meus filhos acenou para mim no meio do engarrafamento.

A memória demorou para engatar seu nome.

Por segundos, a vida parou, em ponto morto.

Augusto Massi

Aldeia * * Estes poemas pertencem ao conjunto Poeira de aldeia, que integra o livro de mesmo nome, ainda inédito.

1

A noite é uma fruta costumeira

que sai das mãos maternas.

Aos poucos aparece crescida

nos hábitos da casa.

Certa vez entrou pela janela.

A passos largos distendeu

em vermelho

um sem-número de cavernas.

Mas terminou resignada

igual às outras:

pálpebra escura e grave

sobre as casas.

Fernando Paixão

2

Quintal de quatro bicos:

meu segredo são as pedras

cada uma com sua voz

no bater às coisas.

Posso dividir em quadrados

os barulhos do mundo.

Sentado na soleira de casa

(sombras suicidas sob os pés)

o mundo acontece nos dedos:

desenho fresco na terra.

Fernando Paixão

3

Nas margens do rio agitam-se

mulheres de muitas saias.

Esposas de homens com botas negras

enamoram-se das águas.

Líquido infindo

o rio.

Vão para lá os meninos atiçados

de manhazinha vão nus

atravessam alegres a trilha

que finda no arrepio da pele.

Quando se atiram na água

os vapores sobem.

O rio parece um guardado de almas.

Fernando Paixão

História

A princípio, serras altíssimas

várias ilhas no mar.

A costa incisa

num verde-fumo.

A fome é uma verruma.

A luz esconde tudo o mais.

*

Prima hipótese: ilha.

Mas como a linha se estende

muitas milhas além

do tiro do olhar

no intervalo da maré

alguma terra deve estar.

Alberto Martins

Daqui até a África

Nenhum esteio.

Só a sombra imprevista

de um cardume

ou o tosco de uma nuvem

caindo em cheio.

Só o arremedo de uma onda

a tentar a travessia

- mar, quantas quilhas!

Alberto Martins

Boto

Suíno do mar,

chamava-o Thevet

- talvez por seu ronco

ou, provavelmente,

o focinho.

Seja como for,

o triângulo dorsal

o salto cristalino

sabem a mistura dos mares:

um doce

outro salino.

Ó faro e guia dos caminhos

aproxima-te da borda

e ensina a um pobre homem

tua alegria aérea, sub

marina.

Alberto Martins

  • *
    Estes poemas pertencem ao conjunto
    Poeira de aldeia, que integra o livro de mesmo nome, ainda inédito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
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