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Traços da psicanálise “em duas figuras machadianas”

RESUMO

Este ensaio constitui mais uma homenagem a Alfredo Bosi por sua vasta obra e contribuição à literatura e à cultura brasileiras. Em razão disso, o foco será “Uma figura machadiana”, artigo em que ele analisa Memorial de Aires, valendo-se, entre outros saberes, da psicanálise. A leitura aqui proposta sublinha o papel de tal saber nesse romance de Machado de Assis e busca recobrá-lo a partir das ideias levantadas pelo crítico, ora as acompanhando, ora as perseguindo em outra vertente, mas sempre atentando para a força do traço psicanalítico na construção textual.

PALAVRAS-CHAVE:
Memorial de Aires; “Uma figura machadiana”; Psicanálise

ABSTRACT

This essay is a tribute to Alfredo Bosi and his vast work and contribution to literature and Brazilian culture. The focus is “Uma figura machadiana”, the article in which he analyzes Memorial de Aires, drawing on psychoanalysis, among other sources. The proposed reading emphasizes the role of these knowledge sources in the novel by Machado de Assis, and tries to redeem it as he follows and pursues certain ideas, always considering the force of the psychoanalytic trait in the construction of the text.

KEYWORDS:
Memorial de Aires; “Uma figura machadiana”; Psychoanalysis

O que não se apaga

Esta homenagem a Alfredo Bosi, tão justa e merecida, é mais uma na busca de elaboração de sua perda, recordando (no sentido etimológico dessa palavra, de lembrar de novo com o coração - cor, cordis - ou seja, afetivamente) sua expressiva contribuição tanto para o mundo acadêmico, quanto para a cultura brasileira em geral. Como sua obra é extensa, meu escrito enfocará, em particular, “Uma figura machadiana”, ensaio sobre o romance Memorial de Aires (Machado de Assis, de 1908), que ele compôs em 1978 mas publicou em 1979, em homenagem aos 60 anos de outro importante intelectual brasileiro, que também já partiu, Antonio Candido, no livro Esboço de uma figura e, depois, fez parte de duas coletâneas Céu, inferno, ensaios de crítica literária e ideológica (1988) e Machado de Assis. O enigma do olhar (1999).1 1 Todas as referências ao ensaio foram extraídas dessa edição (Bosi, 1999). Estabelece-se, assim, uma espécie de corrente de perdas e lembranças inesquecíveis de dois professores e críticos a quem devemos um grande tributo. Nesse sentido, antes de abordar seu ensaio propriamente, vou lembrar um momento mais pessoal de encontro com o professor Bosi, tomando-o, metaforicamente, como uma segunda figura machadiana por seu agudo olhar voltado para a obra do bruxo do Cosme Velho, já que a primeira será o Conselheiro Aires; em seguida, recobro passagens de alguns de seus textos, sustentados por leituras crítico-teóricas, que contemplam, sutilmente, minha linha de pesquisa, “Crítica literária e Psicanálise”.

Começo esclarecendo que, por ocasião dos 80 anos de Alfredo Bosi, redigi um texto (Massi et al., 2018MASSI, A. et al. (Org.) Reflexão como resistência. Homenagem a Alfredo Bosi. São Paulo: Cia. das letras; Sesc, 2018,, p.130-41) procurando apontar sua significativa contribuição para a psicanálise e o universo da crítica e cultura brasileiras, privilegiando as confluências entre “Crítica literária e Psicanálise”, algo a ser de novo aqui perseguido em certos artigos do crítico. Naquela época, reconheci que lhe devíamos muito pela formação acadêmica de várias gerações, inclusive a minha, pois fui sua aluna no quarto ano, na década de 1970 e, depois, ouvinte em cursos de pós. Agora, ao revisitar inúmeros escritos em que aspectos da psicanálise adentram suas leituras e, no sentido inverso, a maneira pela qual elas ampliam as confluências entre a obra literária e o saber psíquico, veio-me a lembrança responsável pela escolha do ensaio “Uma figura machadiana” para pequenos comentários, pequenos porque vários críticos já estudaram Memorial de Aires com profundidade.2 2 Entre outros, cito três textos que contêm expressivas reflexões sobre o romance, tangenciando algum traço psicanalítico. São eles: As sugestões do conselheiro (Passos, ano 2008), “Um aprendiz de morto”, de José Paulo Paes (1985), “O futuro abolido: anotações sobre o tempo em Memorial de Aires” (Monteiro, 2008).

Contudo, a lembrança pessoal se impôs forte em razão tanto da minha afinidade com esse romance, como a da relatada pelo professor Bosi, pois sempre me afetou bastante seu desenlace. Um dia, saindo algo acabrunhada de uma aula em que o havia discutido com os alunos, ressaltando a questão da memória e da velhice, deparei com o professor Bosi, que me revelou também se comover muito com tal desfecho. Tratar do Memorial de Aires (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.7-1693 3 Todas as citações do romance pertencem a essa edição (Assis, 1961). ) nesta homenagem é evocar um pouco esse encontro ocorrido num corredor das Letras que, como diria Aires sobre o desamparo final do casal Aguiar, o que consola agora é “a saudade de si mesmos”. Apropriando-me da frase: a saudade é de Bosi e de mim como sua aluna desde os 20 anos e, mais, de uma conversa de quando eu já era professora que nunca mais se repetirá. A obra sempre espelha algum de nossos traços e, no momento em que Outro revela igualmente afinidade com ela, a literatura se revigora e dá novo impulso à vida. Logo, se há algum consolo na perda de Alfredo Bosi é a lembrança do que não se apaga facilmente: seu legado sensível e crítico-teórico.

E, aí, está o ensaio sobre o Conselheiro Aires, no qual se reúnem aspectos histórico-sociais e psicanalíticos, conforme se verá. Mas, antes, cabe reconhecer, uma vez mais, que, quando eu ainda não sabia que minha mais significativa linha de pesquisa seria “Crítica literária e Psicanálise”, Bosi já recorria a ela, buscando enriquecer a compreensão da poesia ou da ficção, sem temer a palavra psicanálise nem o emprego de sua terminologia teórica. À guisa de exemplo, na mesma década de 1970, em um curso de pós-graduação, ao examinar “a poesia reflexiva e frequentemente negativa de Drummond” (Passos; Rosenbaum, 2014PASSOS, C. R. P.; ROSENBAUM, Y. Interpretações. Crítica literária e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014., p.21), ele convida o Dr. Durval Marcondes para discutir, com os alunos, a complexa questão freudiana da pulsão de morte - aliás, aqui fundamental - e recusada por alguns psiquiatras da época, mas bem aceita por Marcondes, cujo papel na fundação do movimento psicanalítico brasileiro foi fulcral, pois, ao lado de alguns pares, ele traz para o Brasil, em 1936/1937, a primeira psicanalista com formação reconhecida pela IPA (Sociedade Internacional de Psicanálise), Dra. Adelheid Lucy Koch, com a finalidade de iniciar as análises daqueles que instaurariam a psicanálise no país. Bosi já sugeria, igualmente, leituras de Freud para compreensão de alguns poemas de Jorge de Lima.

Sem a pretensão de rastrear todos os textos em que o saber psicanalítico tem função significativa em sua obra, levantamento em parte realizado no texto para seus 80 anos, é preciso mencionar alguns trabalhos em que aspectos sublinhados neste escrito em que abordo Memorial de Aires já são analisados, a saber, “Imagem, discurso”, primeiro capítulo de O ser e o tempo da poesia (1977), vários artigos de Céu, inferno (1988/2003), em especial “A interpretação da obra literária” e, mais recentemente, “Psicanálise e Crítica Literária - Proximidade e Distância” (Passos; Rosenbaum, 2014PASSOS, C. R. P.; ROSENBAUM, Y. Interpretações. Crítica literária e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014., p.19-28), no qual o crítico trata, de modo teórico, das relações entre os dois campos, além de relatar suas experiências pessoais e primeiras incursões em sala de aula sobre eles. Vale ainda reler “O Ateneu, opacidade e destruição” (Bosi, 2003BOSI, A. Céu, inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora 34, 2003., p.51-86) e sua discussão sobre o móvel do “processo existencial” da personagem que leva à pergunta especulativa: “sujeito ou sociedade?” (ibidem, p.64), pois, nele, afloram aspectos seletivos da memória, reconstruídos pelo adulto ao lado da “errância de um instinto de morte” (ibidem, p.64), o que demanda a presença das esferas psíquicas juntamente com as históricas e sociais, numa feliz crítica integrativa, na qual se mesclam lei e desejo. Cumpre esclarecer que o emprego do termo “instinto” no lugar de “pulsão” não diminui a relevância da perspectiva psicanalítica no entendimento do romance.

O já referido “A interpretação da obra literária” merece ser recobrado, porque Bosi destaca a importância das confluências tanto para o ato de interpretar, como para o de criar a obra literária, estendendo-as à recepção do leitor, ao sublinhar a coexistência entre o “sujeito que se revela e faz a letra falar” (Bosi, 2003, p.469) em que atuam a psicanálise e a “trama da cultura”. Analogicamente, o aporte psicanalítico aí colabora com a compreensão do sujeito (do inconsciente), de seus desejos, do princípio de prazer e das pulsões vitais, traços presentes no romance machadiano. Além disso, o crítico não ignora o apoio de tal aporte em escritos menos difundidos de sua produção, ou seja, em prefácios destinados a livros de outros autores. Cito dois deles relativos à crítica genética.

O primeiro, “Nos meandros do manuscrito” (Willemart, 1993WILLEMART, P. Universo da criação literária. São Paulo: Edusp, 1993.), Bosi volta a reiterar a importância da dialética do subjetivo e do público, reforçando que o processo de “criação de um texto literário é sempre uma história íntima [...] e uma história social” e atentando seja para questões da “não contradição” do inconsciente, de acordo com o pensamento freudiano, seja para a passibilidade do “gesto de obediência ao superego (moral, político, científico, religioso)” (Willemart, 1993, p.11) que atuaria no escritor e sua produção. Ele, ainda, ressalta um dado poético presente no ato de criar e na lembrança, dois aspectos que percorrem de modo (mais ou menos) sub-reptício Memorial de Aires, de grande interesse para esta leitura: “Como saber o que virá à memória do escritor entre um episódio e outro de seu relato, entre uma figura e outra de seu poema? Esse inconsciente germinador de imprevistos, segundo a leitura de Lacan, seria responsável por certos momentos originais e belos da escritura” (Willemart, 1993, p.14). Se estabelecermos relações analógicas com Aires, autor de um diário, é possível perceber que ao construir sua escrita, mimeticamente, escapam-lhe belas passagens que parecem imprevisíveis e são responsáveis pela revelação de seu desejo e do prazer de nossa leitura.

No segundo prefácio (Willemart, 1999_______. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras, 1999.), refletindo sobre a criação literária, Bosi faz considerações que podem ir além do ato criativo e da crítica genética, compreendendo o próprio trabalho crítico-interpretativo da obra publicada, ao afirmar:

[...] a psicanálise conjugada às teorias formais do texto literário não retrocede ante os mistérios formais da inspiração. A sua proposta é desvendar, analisando e reanalisando, com paciência e infinitos escrúpulos, a matéria que se fez forma, o plano que se fez escritura, o desejo que pulsa na espessura tantas vezes opaca do texto. (Willemart, 1999_______. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras, 1999., p.9)

Exatamente o que ocorre no Memorial de Aires, pois se buscará o desejo pulsante do Conselheiro, contagiado por lembranças, que atravessará a palavra opaca de seu diário.

No entanto, é preciso reiterar que o crítico recupera, em “A interpretação da obra literária”, a força do desejo na trama textual que, por sua vez, não prescinde da cultura. E a questão tem dupla mão, atingindo o autor que escreve e o leitor que interpreta, no caso, o leitor que interpreta Machado e compõe “Uma figura machadiana”. Assim, dos elementos formais do romance destacados por Bosi, interessa iluminar os psíquicos, em especial dois deles. Embora seu ensaio trate do desejo, das pulsões de vida e morte, da segunda tópica (“Id e superego”, literalmente expressos) etc., abordo tais noções quando relacionadas aos eixos da memória e do desejo, esclarecendo que a leitura de Bosi será sempre uma espécie de disparadora das ideias que poderão se adequar as suas ou ganhar outras vertentes.

Cabe, antes, pontuar os dois termos freudianos em relação à morte empregados pelo crítico: “instinto” - nos artigos citados “O Ateneu, opacidade e destruição” e “Uma figura machadiana” - e “pulsão”, em “A interpretação da obra literária”, indicando que essa noção teórica em psicanálise depende de traduções e, sobretudo, de concepções de diferentes seguidores de Freud. Reconhecendo a complexidade da questão, opto por “pulsão”, seguindo a abordagem de Lacan, já que o jogo entre as pulsões de vida e morte constitui uma das marcas responsáveis pelo ato da escrita que apreende a existência de Aires, juntamente com o gosto pelo contraste, presente tanto em cenas fulcrais, como nas menos importantes de seu cotidiano. A conferir mais adiante.

Uma rede de lembranças

É importante, primeiro, relembrar o enredo de Memorial de Aires. Sua forma memorialística interessa de perto à psicanálise, uma vez que a memória é um dos suportes desse campo teórico e clínico desde seu início.4 4 Vale sublinhar que já em suas primeiras reflexões teóricas sobre a histeria, Freud incorpora a importância da lembrança e a complexidade que envolve seu processo de esmaecimento, concluindo que “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” (Freud, 1983-1895, s.d.(b), p.22). Em linhas gerais, o romance se centra em uma aposta entre o narrador, o Conselheiro Aires, um diplomata sexagenário aposentado, e sua irmã Rita. Os dois discutem a fidelidade da jovem e bela viúva, Fidélia, vista ao longe, no cemitério. Aires diz que ela voltará a se casar, Rita discorda, pois a considera fiel ao marido morto; parecendo projetarem seus desejos no futuro da moça. A intriga se desenvolve, também, em torno do velho casal Aguiar que, sem filhos, adota afetivamente a viúva e já fizera o mesmo com Tristão, um jovem que, anos atrás, convivera com eles, mas partira para Portugal com os pais, prometendo retornar em breve, embora só volte adulto e se enamore de Fidélia. Os Aguiar acreditam que o casamento de ambos os reteria no Brasil, perto deles, que teriam então compensados anos de ausência de um e usufruído a presença querida da outra. Porém, ocorre o contrário e, para a tristeza dos velhos, inclusive de Aires, eles partem para Portugal, permitindo que o Conselheiro ganhe a aposta. Fica-lhe, porém, certa amargura e a frase irônica e paradoxal: “se os mortos vão depressa, os velhos vão mais depressa que os mortos...Viva a mocidade!” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.168).

O verso “Os mortos vão depressa”, relativo à parte introdutória da citação, aparece também em francês “Les morts vont vite” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.56), embora pertença à balada alemã, “Leonor”, escrita por Godofredo Bürger, compondo um conjunto no qual uma jovem, ansiosa pela ausência do noivo desaparecido na guerra, revolta-se contra os desígnios de Deus. Uma noite, o cavaleiro reaparece para levá-la. Cavalgam apressadamente por certas regiões e o guerreiro justifica a celeridade, entre outras falas, afirmando que os “os mortos vão depressa”. Chegam, então, a sepulcros onde ele retira suas vestes, desvendando o rosto, agora um crânio, e lhe diz que a sepultura é seu leito de noiva e de morte, algo resultante da blasfêmia a Deus.

Ora, em Machado, o verso é mencionado por Aires, em passagens iniciais da obra e retomado no fim, ironicamente reelaborado como se apontou. Do mesmo modo, desloca-se a acepção que se tem à primeira vista, na balada, segundo a qual os mortos se locomovem rapidamente pelo espaço, para dar lugar ao metafórico sentido de esquecimento, isto é, a lembrança dos mortos logo se esvai. De acordo com o ex-diplomata, os jovens deslembram os velhos com maior rapidez, reforçando-se tal ideia, na última cena, quando ele observa os Aguiar de longe, cogitando que lhes resta um consolo - aliás, é possível que também Aires se projete nesse doído consolo dos amigos, sem o verbalizar: “a saudade de si mesmos” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p. 168). Logo, permanece a dúvida: Ele sabe de sua projeção? Se sim, não o confessa. Simulação ou ignorância de si próprio?

E aí entra a relevância da forma diário na construção textual, reconhecida por Bosi, ao reafirmar que o Conselheiro continua a se abster de conflitos e que, aposentado, escrever para ele “é poder dizer o que pensa”, solitariamente, “aberto à sinceridade” (discutível, essa sinceridade...), pois, quando era diplomata, foi um “mediador por ofício e resignação” (Bosi, 1999, p.130). Não por acaso, Bosi vai pontuando palavras e expressões de dúvida, ambiguidade, rodeios, tais como: talvez, parece, acho, pode ser, creio etc., enquanto crítico, semelhante à pontuação de um psicanalista, com o intento de destacar a busca de Aires sobre o que Fidélia e Tristão (e outras personagens) ocultariam atrás dos semblantes ou ditos, sugerindo a persistência do Conselheiro em apreender sempre os dois lados das cenas presenciadas, análogo a um observador que, embora tente se mostrar imparcial, não o consegue inteiramente, já que não captura a alma alheia, e aqui acrescento, não captura a alma alheia sem projetar algo da própria no Outro e perpetrar esse roteiro “imaginário” (fantasmático), que condensa o que vê no Outro e a si próprio, ao escrever seu diário.

José Paulo Paes já retirara de Esaú e Jacó a preciosa informação de que Aires tem “sede de gente viva”, sugerindo que a pulsão de vida se sobrepõe à de morte ao longo dessa obra que traz o Conselheiro como personagem e justifica o paradoxo de ele falar mais do outro do que dele mesmo. Paes ressalva também que, embora dissimulado, o Memorial tem sua dose de “confessionalismo”, manifestado obliquamente (Paes, 1985). A partir da leitura dos dois críticos, reitero, então, que ao produzir o diário Aires revive o que já viu e lhe ficou como traço de lembrança, e acrescento, misturado a associações de imagens recentes. Ele revive, pela letra, cenas em favor da vida que já foi e, pela letra, busca escamotear a morte e permanecer. É ainda Bosi que destaca em outro contexto: “a imagem [...], uma vez dita, já não [pode] mais apagar-se” (Bosi, 1999, p.134).

Não por acaso, o Conselheiro escolhe a forma diário, sabendo que, sobretudo em sua idade, viver cada dia é aceitar e reter a brevidade do tempo, algo que significa sabedoria. E, mais, reter tal vivido no papel evidencia outro intuito: o de escapar o que lhe for possível das lacunas da memória, ou seja, ele intenta dar forma ao que lhe é possível apreender e reviver o que lhe interessa. Aires tem noção aguda tanto do passado, distante ou atual, como de sua própria finitude. Contudo, pode-se recobrar a observação de Bosi, na esteira de estudiosos, sobre a falta de transparência da palavra, já que nela aflora o que Aires quer revelar e o que pensa ocultar.

Nesse sentido, ele insiste à irmã e a si mesmo que seu interesse por Fidélia é apenas por sua figura humana, descartando, camufladamente, qualquer ponta de desejo ou amor, porém a obra revela o contrário. O crítico já assinalara que sua moral ensina “a convivência dos opostos e atenuação das negativas” (Bosi, 1999BOSI, A. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999., p.131). Socialmente sim, afetivamente negar está a serviço da dissimulação. Em um trecho, no qual Aires conversa com o pai da moça, dela afastado por ter sido contra seu casamento, o ex-diplomata evita mencionar a filha, mas se o fizesse “diria mal dela com o fim secreto de acender mais ódio” para impossível reconciliação entre ambos, bem como a volta da viúva à província, afirmando, então, que o intuito é não perder “seu objeto de estudo” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.50). Ora, passagens depois, ao saber que a jovem tem um pretendente, sonha com ela e, o mais significativo, narra o sonho enquanto parte de um acontecimento de 24 de maio, datado, semelhante a outros momentos do diário, dando-lhe a força do vivido.

É conhecido que, para Freud, o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido, recalcado) (Freud, 1900/s.d.(a), p.115) e o de Aires confirma a noção, ao começar a contar seu sonhado ao leitor de modo factual. Destaca que, naquela manhã, como lembrasse do moço enamorado pela viúva, a própria viera consultá-lo se devia casar ou não - atente-se que ele narra com diálogos explícitos, tornando a cena onírica a mais fidedigna possível. Ao responder à moça que era melhor não fazer “nem uma coisa nem outra” (“atenuação” social), ela lhe pede para não zombar da questão e o Conselheiro retruca que não zomba, mas, casamento, só com ele (na brincadeira do onírico, a verdade do desejo, negada socialmente). Escuta, então, verbalizado seu desejo: Fidélia lhe diz, com todas as letras, que pensara “justamente” nele (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.56-7).

O relato do sonho ganha forma escrita para que o instantâneo do desejo realizado não se perca e seja revivido. Após a confissão da jovem e a participação de Aires no jogo amoroso, tomando-lhe as mãos e mencionando a troca de olhares entre os dois, ocorre o despertar por meio do olhar do narrador que desliza da nuca da mulher (no sonho) para o canapé, aliado ao som prosaico e costumeiro do vendedor de vassouras na rua (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.57), rompendo desejo e poesia, traços recuperados apenas pela escrita, modo de reconstrução das lembranças em meio ao cotidiano.

A busca da reelaboração mnêmica

A percepção fulcral desse trabalho de reelaboração é igualmente sinalizada por Bosi, embora em outro viés interpretativo. Sem o explicitar, ele aproxima seu ensaio da psicanálise e o próprio Machado de Freud. Aliás, pode-se aventar que, se esse não parece ter sido lido por aquele, ambos efetuaram leituras comuns, entre elas Schopenhauer e Hartmann. Aliás, desde seu Ressureição, Machado se preocupa com questões psíquicas, não ignorando as sociais. Na “Advertência” dessa obra anuncia: “Não quis fazer um romance de costumes, tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro” (Assis, 1969_______. Ressurreição. São Paulo: Cultrix, 1969., p.32). No Memorial, aproximar o autor brasileiro do psicanalista se sustenta, por exemplo, no trecho em que Aires prefere deixar para o dia seguinte a transcrição do que escutara, e Bosi seleciona com precisão sua justificativa: “fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memória o que vale a pena guardar” (Assis, 1961, p.35), uma vez que o crítico considera: “é preciso deixar que as coisas passem, e só depois, e de longe, tomá-las por matéria da escrita” (Bosi, 1999, p.132).

Na citação, a referência analítica destaca ainda “o papel estruturador do diário” e a “função intermediante da consciência” (Bosi, 1999BOSI, A. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999., p.132), responsáveis por reflexões importantes que podem nos levar a incorporar outras instâncias psíquicas, além de reiterar a (re)construção da memória, tão cara à psicanálise, presente no “só depois” ou “a posteriori” (“nachträglich”), noção freudiana fundamental. Vale marcar aí nossa impossibilidade de reviver o passado como tal, só restando (re)construí-lo, sublinhando que não só Aires recria os fatos vividos, mas que também, no momento da escrita, os fatos recentes são contagiados por impressões passadas, isto é, as lembranças se misturam, se encobrem e recobrem, insinuando que a verdade sempre se mostra velada e nunca inteira.

Há inúmeras passagens nas quais o Imaginário do Conselheiro aflora no momento em que cenas vistas durante o dia ganham forma textual e retomam impressões de outrora. Dentre elas, duas merecem relevo: no dia 30 de setembro do diário, Aires escreve sobre simetrias da vida e dores no joelho, suas e de Dona Carmo. O transcendente e o corriqueiro. Das dores comuns, as do joelho, ele passa para as mais complexas: as da alma, refletindo que D. Carmo, tem marido e filhos postiços, já ele, “com a mulher embaixo do chão de Viena”, sem filhos, está “só, totalmente só”, relendo seus escritos e “parecendo um coveiro” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.104). Ou seja, aquele que vive a enterrar vidas e, em sua história singular, aquele que sobra lendo linhas mortas porque, aparentemente, destinadas a serem lidas só por ele.

O segundo exemplo é mais amplo, assinalando uma das funções fulcrais do diário: passada a impressão, ficará o que for passível de ressignificação na escrita e, ao construir as lembranças, o ex-diplomata acaba, pouco a pouco, reelaborando seu interesse inicial pela viúva, despertado pelo Simbólico, ou seja, pela palavra provocadora da irmã Rita que sugere um casamento entre ele e Fidélia. Seu interesse por ela é sempre denegado, mas insistente, conforme o sonho já revelou; no entanto, o Conselheiro sabe que está do lado dos velhos e Fidélia dos moços; sua vida se esvaindo e a dela florescendo.

Essa percepção do gosto pelos contrários da existência se evidencia também em ponto menor, no universo miúdo do romance, quando o Conselheiro descreve, por exemplo, uma das amigas dos Aguiar, D. Cesária, cuja maior característica é tecer comentários sub-reptícios e ácidos sobre as personagens de seu meio. Ora ela fala mal de D. Carmo para Aires, ora a trata com “alvoroço e doçura” ao saber do casamento de Tristão e Fidélia; as duas passagens são selecionadas pelo Conselheiro por considerar “a propriedade deste mundo” e concluir que “Deus vencia aqui o Diabo, com um sorriso manso e terno que faria esquecer a existência do imundo consócio”, deduzindo, em seguida que “o marido daquela dama não seria capaz de tamanho contraste”, pois lhe faltava “disposição” e “maneiras” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.154). Irônico, o sabor pelo contraste já se manifestava na aposta com a irmã a respeito da fidelidade ou não da viúva desde as primeiras linhas da obra, sinalizando que conduziria o olhar de Aires de modo recorrente.

Nessa direção, um dos traços constitutivos de seu perfil é ressaltado por Bosi (1999BOSI, A. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999., p.131), a saber, sua “vocação de descobrir e encobrir”, presente desde Esaú e Jacó, para em um “último movimento, deixar sobrepostos o rosto e a venda”, efeito buscado em relação às personagens com as quais convive. A isso se soma o já referido termo “atenuação”, empregado em vista do “modo pelo qual vai se moldando a perspectiva” desse narrador que inventa “mecanismos do disfarce e do desvio” (ibidem, p.133), trabalhando com o “dizer sem dizer” pelo emprego de “formas resvaladiças” da língua (ibidem). De fato, tais mecanismos são persistentes, contudo, a meu ver, rosto e venda não se separam em função da letra viva.

Esclarecendo melhor: diplomático, aposentado do ofício e do amor, sempre comedido, não fica bem ao Conselheiro ter sonhos amorosos com Fidélia. Logo, seu argumento de segui-la é dissimulado pela aposta, pela curiosidade, pelas negativas ou, de maneira enviesada, pelo aspecto cultural, sustentado na recusa de um amor que, socialmente, talvez não seja bem-visto ou não correspondido por ela. E o leitor atento percebe o jogo entre velar e desvelar, perseguindo passo a passo as palavras, que não são “diáfanas”, gestando na escrita “campos de força contraditórios” (Bosi, 2003BOSI, A. Céu, inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora 34, 2003., p.461) a serem interpretados.

Vale lembrar que, no sonho de Aires, é Fidélia quem toma a iniciativa de se declarar seriamente a partir da zombaria dele, ou seja, o ex-diplomata se resguarda, graças ao humor, de qualquer desconforto de seu desejo até na construção onírica. Na viúva, recobra-se a mítica sugestão do feminino ser ativo e o masculino passivo no amor.5 5 Cabe assinalar, com a crítica, que há fortes personagens femininas em Machado, tais como Capitu (Dom Casmurro), Virgília (Memórias póstumas de Brás Cubas), Quintilha (“A desejada das gentes”) e a própria Fidélia. Elas comportam resquícios de algo iniciado pelo mito de Aporia que, desperta e desejante, engendra o Amor com Poros, adormecido. De fato, a moça se mostrará ativa na construção de sua história amorosa. Quanto a Aires, não se poderia retomar o verso-véu de Shelley: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor... (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.31-2), invertendo a situação e gerando a questão: será que ele não pode dar amor? Ou seria a jovem que não lhe corresponderia? E, se assim fosse, ele saberia sustentar a angústia de se expor?

Sintomaticamente, na passagem em que surge o verso, o Conselheiro o repete como a se convencer de sua impossibilidade de dar amor; primeiro o menciona em inglês (“I can give not what men call love”), em seguida, em prosa, traduzindo-o para o português. E o cita logo após descrever a viúva, no momento em que a revê e a elogia, mas, até para si mesmo, ele o faz de forma sinuosa, mitigando o encantamento pela mulher por meio da negação: “não a achei menos saborosa”, “nem menos vistosa” que na ocasião do cemitério ou em casa de Rita. Alude, igualmente, a sua pele macia e clara e a sua “figura interessante no gesto e na conversação” (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.31). A descrição é parte do episódio das bodas de prata dos Aguiar e, nele, Aires segue para a mesa dando o braço a D. Carmo “como se fosse para um jantar de núpcias”, enquanto Aguiar conduz Fidélia. A ambiguidade é iluminadora: de que núpcias se tratam? As dos Aguiar ou, imaginariamente, as de Aires e Fidélia, levados: ela, pelo pai adotivo, ele, pela amiga maternal?

Mas, nem mesmo ao diário o ex-diplomata tem a coragem de confessar seu desejo. Reiterando tal defesa, sua linguagem parece constituir uma espécie de venda. Um exemplo se constata na alegação desviante: “Escrevo estas indicações sem outra necessidade mais que a dizer que os dous cônjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidélia e por mim” (ibidem, p.32.). Ora, para o leitor perspicaz, a venda traz sempre uma revelação, daí venda e rosto não se desassociarem. À primeira vista, a expressão “sem outra necessidade” aparenta sublinhar apenas as posições dos dois casais, sem comportar outro interesse. Todavia, ela sublinha o contrário disso, ou seja, tem também a função de ocultar o desejo impossível do Conselheiro que participa de uma cena só realizável no contexto das bodas alheias. Corroborando essa interpretação, dias depois, ele anota:

Escuta papel. O que me atrai naquela dama Fidélia é principalmente certa feição de espírito, algo parecido com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e quê - e pouco mais. (ibidem, p.48)


Machado de Assis (1839-1908).

Os termos desejo e/ou amor estão ausentes, deslocados pela expressão “feição de espírito” que protege Aires de si mesmo, ele desenha a viúva com o perfil de uma figura quase pictórica, quase angelical, seja pela “feição” incorpórea - que barraria o desejo? -, seja pelo sorriso inapreensível. O traço misterioso do “sorriso” atua como uma espécie de estratégia de sua encenação investigativa, sugerida pelo verbo “estudar”, e o “tempo” se, de um lado, é breve pela idade, de outro, é vasto pela ausência de ocupações; pois as expostas são precárias. Resta ainda uma dúvida: no episódio, Aires não estaria restaurando, novamente e de modo camuflado, ressonâncias do verso de Shelley que, por sua vez, pode evocar o diálogo de Platão sobre o amor?

Lembre-se de que, no Banquete, Sócrates considera que amar é dar o que não se tem, e Lacan (2006_______. O Seminário. Livro 12 Problemas cruciais para psicanálise (1964-65), Recife: Publicação não comercial exclusiva para os membros do centro de estudos freudianos do Recife, 2006., p.224) o retoma para pontuar com o filósofo que “nenhuma ciência é acessível a todos”, acrescentando: “a única coisa que ele [Sócrates] sabe, é a natureza do desejo e que o desejo é a falta”. As reflexões se afinam com Aires. Enviesadamente e sem confessar que as pessoas lhe faltam, mas sempre procurando por elas, o Conselheiro não estaria se igualando a qualquer sujeito e relativizando paixões por meio de negativas? Parece faltar-lhe, sobretudo, o amor e, embora a completude seja ilusória, o vivo interesse por Fidélia espelha essa falta inconfessa. Não haveria aí o “véu da incerteza do sujeito”, apontado no ensaio de Bosi, que se estende ao longo do romance?


Dedicatória de Machado de Assis ao escritor José Verissimo (1857-1916).

Formas simuladas do desejo e do saber

Se Aires reconhece impossível sua demanda amorosa, não abdica inteiramente dela nem de seu desejo, que passam a se manifestar de outras formas, ou seja, pelo olhar e pelo ouvir. Surgem, assim, as implicações do amor e do desejo e uma delas é a busca do saber, o saber de Fidélia, que camufla o “saber de si mesmo”, sublinhando-se nesse jogo a presença do Imaginário a sustentar sua vida e a escrita contínua do diário. Nessa direção, manifestam-se, respectivamente, as pulsões escópica e invocante, cabendo, uma vez mais, citar Lacan, para quem: “no nível escópico, não estamos mais no nível do pedido, mas do desejo, do desejo do Outro. É o mesmo no nível da pulsão invocadora, que é a mais próxima da experiência do inconsciente” (Lacan, 1964/2003, p.102). Olhar e ouvir deslocam o (im)possível toque do corpo da moça, substituindo-o metaforicamente com o intento de preservar-se o desejo e, ao mesmo tempo, manter-se o distanciamento.

A menção ao “inconsciente” implica, inclusive, relações de amor e morte, evocando um traço do Conselheiro vinculado a esta última, o tédio. A crítica o notara e Bosi conclui certeiramente: “Aires é uma corda esticada entre o instinto de morte (que é análise e é tédio) e o desejo indestrutível de beleza que vive e de amor. Observador, mas também personagem, voyeur que vive vicariamente o namoro de Tristão e Fidélia [...]” (Bosi, 1999, p.142-3). Sobre esse tédio, sua marca é, ainda, a repetição: o ex-diplomata vivera, reiteradamente, viagens e diferenças culturais, porém, para ele, parecem alterar pouco (ou nada?) sua existência. Nesse sentido, a seguinte observação contida no diário, e recobrada por Bosi, pode ser lida em outro viés:

A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto. (Assis, 1961ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961., p.104)

Assim, o resto”, cabe pontuar. Se, em seu artigo, Bosi relaciona a citação à história, aqui o intento é insistir em algo que ele e a crítica já assinalaram, ou seja, o Conselheiro vê a vida alheia, analisando-a, enquanto a sua se esvai, encaminhando-se para o fim. Há, portanto, no tédio a sugestão da proximidade da morte por meio da reiteração dos mesmos passos: visita à mana Rita e visita a amigos, sobretudo, os Aguiar, pois, com eles está Fidélia e a configuração do contraste de que tanto aprecia: a jovem sintetiza as pulsões de vida e morte e a luta entre ambas. De um lado, a lealdade ao marido morto, as idas ao cemitério, as perpétuas que enfeitam o túmulo, de outro, os miosótis que lhe enfeitam o vestido, a aceitação de novo amor e a ideia de que nada permanece. Aires aposta exatamente na segunda possiblidade, ainda que lhe doa perder o prazer de olhar a viúva, um dos prazeres que também sustenta grande parte da matéria de seu diário, encerrado após a partida da moça, revelando o que lhe resta: a melancólica cena final da solidão dos Aguiar; no fundo, sua própria solidão.

Não é nova a ideia de que ele mantém a repetição de sua vida, pois, como diplomata, sempre conciliava, aceitando os contrates sem se posicionar. Agora faz o mesmo. Na repetição da existência atual está a pulsão de morte e, ainda, ao escrever refaz o que viu, submetendo-se de novo à repetição e a certo prazer que esta lhe traz. Prazer e desprazer: algo do gozo psicanalítico aí se instaura. A literatura pode propor tal paradoxo, reafirmando-se que, ao escrever, desponta em Aires o Imaginário ao lado da reconstrução da memória - ato a favor da pulsão de vida. Esclarecendo melhor: sobra ao diplomata aposentado o Imaginário e o devanear sobre a viúva e os amigos que lhe permitiam, dissimuladamente, inserir-se no sonho acordado pela letra, por meio do visto e ouvido (que rompem a monotonia do viver), além acordar algumas recordações particulares.

Das três paixões discutidas por Lacan, o ódio, o amor e a ignorância (Lacan, 1979LACAN, J. O Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.), o amor e a pulsão escópica (o olhar) surgem intensas, já se destacou. Aires captura em primeiro plano, Tristão e Fidélia, paixão florescente, de futuro enigmático; em segundo, Aguiar e Dona Carmo, amor terno, duradouro e leal; por fim, mana Rita amor (ou gozo?) da velha e eterna viúva, fiel ao marido. É sempre graças ao viver de outrem que o ex-diplomata enreda o seu. Para ele, a paixão da ignorância atrela-se ao saber do Outro. Sem realizar desejo e paixão amorosa, entrega-se ao desejo de saber destes por via das vivências dos demais. Permanece, assim, a questão: escrever o diário, tendo como foco contar a vida alheia, afasta-o de saber sobre si no presente ou ao contrário (sempre o contraste) é um modo de saber de si, embora ele o faça, sem o saber (conscientemente), pela mediação do Outro? Ou ainda as duas hipóteses são relevantes?

Ao longo do romance, uma das funções do diário parece ser a de dar forma velada ao sonho, ao devaneio e, paralelamente, trabalhar sua impossibilidade de realizá-los até a chegada de Tristão, quando o desejo poderia deslizar, encontrando um modo diverso de configuração, ou seja, o de Aires projetar-se paternalmente no jovem, semelhante aos outros velhos da obra. Nesse caso, ele não sublima seu desejo. Aceita, como diplomata que foi desde a infância, ser padrinho de casamento de Tristão; contudo, não prazerosamente. O fino Conselheiro, que sempre soube seu lugar, exercerá esse papel; aliás, com todas as letras, “sem grande gosto”. E será o responsável pelo fechamento doído dos olhares sonhadores (seu, das personagens e do leitor) sobre Fidélia, ao interromper o diário.

Por sua vez, os jovens nunca abdicaram de seus desejos. Se parte da crítica tem analisado Fidélia a partir de “Leonor” e Beethoven (Fidélio 6 6 O próprio Aires se pergunta de onde viria o nome da viúva, relacionando-o à história da ópera de Beethoven: “Mas Fidélia? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como forma feminina de Fidélio, em homenagem a Beethoven? Pode ser, mas eu não sei se ele teria dessas inspirações e reminiscências artísticas” (Assis, 1961, p.44). Relações com essa ópera não serão abordadas aqui porque já o foram pela crítica. ), é possível pensar, graças à psicanálise, que seu nome não está só ligado à fidelidade ao marido morto, mas, sim, que ela sempre foi fiel a seu desejo e sujeito dele, embora discreta. Seus pares são objetos desse desejo. Não se submeteu ao pai em seu primeiro casamento, deixa os Aguiar e o tio, substitutos paternos, que desejavam sua permanência no Brasil, e parte com seu segundo parceiro. Seu desejo se desloca e, embora se repita a situação já vivida, a repetição é diferente: a moça conta com os Aguiar em suas núpcias e convida-os para acompanhá-la na viagem. A separação é triste, mas não conflituosa. De maneira análoga, ainda menino, Tristão abandona os Aguiar, vai para Portugal, repetindo o ato quando adulto, em busca da política e leva Fidélia, em nome de seu desejo. A repetição de ambos se realiza não em função da morte, mas da vida.

E, ainda, as coisas, ao se tornarem matéria de escrita, trarão algum prazer por meio de tal prática e serão transformadas em outra impressão nesse momento, pois, como se reafirmou, Aires reconstrói sempre o vivido, com maior ou menor distanciamento, através do filtro do olhar e, sobretudo, respeitando a ambiguidade e desconfiando das personagens com “lucidez de lâmina” (Bosi, 1999BOSI, A. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999., p.135). Todavia, se lúcido em relação a seu entorno, não o é quanto a seu desejo. O diário bem o desvela. Ao escrever a respeito dos jovens, ele pode reencontrar afetos não vividos, e experimentá-los de longe e de perto pela recriação verbal do já visto. Nem mesmo com sua mulher, enterrada em Viena, há lembranças de entregas tão intensas quanto as de Fidélia que deixa a família original e a província pelo primeiro marido e a adotiva e o Brasil pelo segundo. Há algo de cegueira em tais entregas amorosas, uma vez que elas se sobrepõem à segurança social e familiar, impostas por mudanças de hábitos e cultura. Fidélia também repete; porém, nela, a repetição comporta algo de novo, certa postura desejante firme e corajosa. Se escrever, para Aires, constitui um modo de escapar da repetição, pois ele pode reelaborar o visto e o vivido, o diário revela a contínua negação de seu desejo e demanda amorosa. Ou seja, o Conselheiro preserva o prazer da escrita como uma outra forma de apartar-se de qualquer implicação afetiva que possa, eventualmente, ser dolorosa ou fracassada.

Não por acaso, refletindo a respeito da repetição, Bosi finaliza seu artigo argumentando que há, no Memorial, “um tempo cíclico”, responsável por “uma História tecida de atos recorrentes, se não simétricos” (Bosi, 1999, p.147). De fato, Fidélia, os Aguiar e mana Rita vivenciam situações recorrentes, ainda que com diferenças, ao experimentarem perdas e buscas de certa recuperação. Fidélia se casa de novo, os Aguiar suportam, entre si, a tristeza pela falta de filhos, Rita se mantém fiel a sua condição de viúva, amparada pelo costume social. E Aires? Conforme se percebe, ele não escapa da repetição, precisando da matéria viva para sustentar sua escrita e tal matéria determina o que lhe resta: olhar/ouvir paixões e/ou perdas do Outro, tal como espelha o solitário e melancólico desfecho da obra, suspensa pela partida de Fidélia.


Alfredo Bosi (1936-2021), destacado estudioso da obra do escritor Machado de Assis no Brasil.

Enfim, a leitura aqui proposta de Memorial de Aires deve muito ao artigo de Bosi, voltado para desejo e consciência que se expressam e se fazem escrita, algo que se manifesta em outras narrativas machadianas, ecoando e se refletindo, de alguma maneira, no trabalho do crítico em relação a sua própria produção, perspicaz e lúcida ao abordar outras obras machadianas. E não só elas. O traço especular se revela nas escolhas textuais e na captura de temas insistentes, como o olhar, o enigma, a máscara social, etc., constituindo determinadas constantes, singularmente engendradas a cada leitura de diferentes autores. Essas constantes são enfocadas não apenas do ponto de vista histórico-social, mas também marcam o aflorar do sujeito e, aí, a contribuição da psicanálise se mostra de grande valia. Guardadas as devidas proporções entre as duas vertentes - a primeira mais explícita do que a segunda - Bosi procura a complementaridade necessária à interpretação de perfis humanos distintos em contextos variados. Acompanhar essas relações despertam, no leitor, a busca de reviver o prazer experimentado pelo crítico diante da obra literária, objeto de seus ensaios, bem como o desejo de rastrear e iluminar novos fios interpretativos. Em sua produção, há sempre um aspecto enunciado ou sugerido a merecer continuidade crítico-teórica, o que confirma a ideia inicial da mistura dos tempos que moveram este escrito: o de lembrar e o de agradecer, ainda uma vez, seu fino e amplo legado.

Referências

  • ASSIS, J. M. M. de. Memorial de Aires. São Paulo: Cultrix, 1961.
  • _______. Ressurreição. São Paulo: Cultrix, 1969.
  • BOSI, A. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
  • BOSI, A. Céu, inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora 34, 2003.
  • FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, s.d. (a)
  • _______. Estudos sobre histeria (1893-1895). v.II. Rio de Janeiro Imago, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, s.d. (b)
  • LACAN, J. O Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
  • _______. O Seminário Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
  • _______. O Seminário. Livro 12 Problemas cruciais para psicanálise (1964-65), Recife: Publicação não comercial exclusiva para os membros do centro de estudos freudianos do Recife, 2006.
  • _______. O Seminário. Livro 20. Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2021.
  • MASSI, A. et al. (Org.) Reflexão como resistência. Homenagem a Alfredo Bosi. São Paulo: Cia. das letras; Sesc, 2018,
  • MONTEIRO, P. M. O futuro abolido: anotações sobre o tempo em Memorial de Aires. Machado de Assis em linha, ano 1, n.1, junho 2008.
  • PAES, J. P. Gregos & baianos São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • PASSOS, C. R. P.; ROSENBAUM, Y. Interpretações. Crítica literária e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
  • PASSOS, G. P. P. As sugestões do conselheiro: a França em Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. São Paulo: Edus; Nankin, 2008.
  • PLATÃO. Diálogos. Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro: Editora Globo, s.d.
  • WILLEMART, P. Universo da criação literária. São Paulo: Edusp, 1993.
  • _______. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras, 1999.

Notas

  • 1
    Todas as referências ao ensaio foram extraídas dessa edição (Bosi, 1999).
  • 2
    Entre outros, cito três textos que contêm expressivas reflexões sobre o romance, tangenciando algum traço psicanalítico. São eles: As sugestões do conselheiro (Passos, ano 2008), “Um aprendiz de morto”, de José Paulo Paes (1985), “O futuro abolido: anotações sobre o tempo em Memorial de Aires” (Monteiro, 2008).
  • 3
    Todas as citações do romance pertencem a essa edição (Assis, 1961).
  • 4
    Vale sublinhar que já em suas primeiras reflexões teóricas sobre a histeria, Freud incorpora a importância da lembrança e a complexidade que envolve seu processo de esmaecimento, concluindo que “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” (Freud, 1983-1895, s.d.(b), p.22).
  • 5
    Cabe assinalar, com a crítica, que há fortes personagens femininas em Machado, tais como Capitu (Dom Casmurro), Virgília (Memórias póstumas de Brás Cubas), Quintilha (“A desejada das gentes”) e a própria Fidélia. Elas comportam resquícios de algo iniciado pelo mito de Aporia que, desperta e desejante, engendra o Amor com Poros, adormecido.
  • 6
    O próprio Aires se pergunta de onde viria o nome da viúva, relacionando-o à história da ópera de Beethoven: “Mas Fidélia? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como forma feminina de Fidélio, em homenagem a Beethoven? Pode ser, mas eu não sei se ele teria dessas inspirações e reminiscências artísticas” (Assis, 1961, p.44). Relações com essa ópera não serão abordadas aqui porque já o foram pela crítica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2023
  • Aceito
    02 Maio 2023
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