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La flor, de Mariano Llinás: o cinema reencontra a literatura1 1 Este artigo é resultado de pesquisa financiada pela Fapesp na modalidade Auxílio Regular e pelo CNPq Bolsa Produtividade PQ-2.

RESUMO

O objetivo deste artigo é estudar a relação entre cinema e literatura no filme La flor (2018), do cineasta argentino Mariano Llinás. Ao utilizar a hermenêutica como metodologia de pesquisa, buscamos compreender as perspectivas interpretativas que emergem do filme e o modo como se relacionam com os recursos literários e cinematográficos empregados pelo cineasta, principalmente por meio do exercício do estilo e do uso do narrador extradiegético, responsável pela inflexão literária do filme. Os resultados da pesquisa mostram que, conquanto a relação entre cinema e literatura esteja presente na história do cinema desde seu início, ganha um novo contorno com essa obra.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema e literatura; Interpretação de filmes; Hermenêutica; Narrador extradiegético

ABSTRACT

The aim of this article is to study the relationship between cinema and literature in the film La flor (2018), by Argentine filmmaker Mariano Llinás. The method used is hermeneutics, by which we sought to investigate the interpretative perspectives emerging from the film and how they relate to the literary and cinematographic resources employed by the filmmaker, mainly through the exercise of style and the use of an extradiegetic narrator, responsible for the literary inflection of the film. Our findings show that, although the relationship between cinema and literature has been present in the history of cinema since the beginning, it gains a new contour in this film.

KEYWORDS:
Cinema and literature; Film interpretation; Hermeneutics; Extradiegetic narrator

Introdução

O primeiro grande desafio do cinema enquanto arte foi encontrar uma resposta para o vaticínio dos irmãos Lumière, seus inventores, de que aquele era um dispositivo sem futuro. Em busca de uma saída que o legitimasse enquanto entretenimento burguês e não como um simples divertimento de feira de atrações, expondo a imagem em movimento, ou como um dispositivo científico, o cinema procurou um vir-a-ser e a saída para esse impasse ocorreu com sua romancização, ou seja, o cinema tornou-se narrativo.

Para consolidar esse itinerário de formação não havia outro caminho ao cinema a não ser o de se aproximar da literatura e do teatro, tomando desses expedientes narrativos e aclimatando-os à especificidade do novo dispositivo. Contar histórias e não apenas mostrar ações do homem em movimento foi o primeiro grande desafio que o cinema se impôs nas suas primeiras décadas de existência.

George Sadoul (1983SADOUL, G. História do Cinema Mundial. Lisboa: Livros Horizonte, 1983.), em seu majestoso História do Cinema, lembra que o cinema francês na década de 1910 estava fadado ao fracasso e teve que recorrer a diretores e atores da Comedie Française, bem como adaptar escritores famosos, caso, sobretudo, de Emile Zola, em busca de um material que tornasse as películas mais consistentes e desta forma palatáveis para um público que via na nova arte um entretenimento menor.

Ismail Xavier (2003XAVIER, I. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p.66-7) explica esse momento de consolidação, não só na França, mas em todo mundo, lembrando que

[...] o movimento do cinema em direção ao narrativo-dramático, mais preocupado com mensagens, faz parte da luta pela legitimação do espetáculo popular, seu esforço de enobrecimento naquela conjuntura, o que de fato se ligou às mudanças na formação de público e à conquista de novas esferas da sociedade para além dos trabalhadores iletrados. Ao mesmo tempo, em que definiu uma inscrição mais decisiva do cinema no conceito de representação da tradição burguesa, de modo a instalar essa dimensão de continuidade que ata o cinema ao teatro.

No entanto, esse vir-a-ser narrativo do cinema em busca de um futuro não vislumbrado pelos seus inventores, que tornou os filmes um espetáculo industrializado de massa, tal como o conhecemos hoje, como aponta Flávia Cesarino Costa (2005COSTA, F. C. O primeiro cinema - espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005., p.59), “só pôde se generalizar depois de um período de aculturação, de transição”, ou seja, “quando a compreensão uniforme das imagens se tornou uma prioridade e o cinema deixou de ser uma atividade marginal”.

Ainda na década de 1910, o teórico italiano Riccioto Canudo, o primeiro a utilizar a expressão “sétima arte”, preconiza a necessidade de o cinema se libertar da literatura e do teatro. Os europeus deveriam abandonar, segundo suas palavras, os empréstimos narrativos colhidos da literatura, e um dos caminhos para isso era “voltar os olhos para o povo jovem, dos Estados Unidos, isento de todo o passado livresco ou cênico que nada tiveram que esquecer, enquanto nós devemos tudo esquecer, toda uma tradição espiritual de milênios” (Canudo apud Agel, 1982AGEL, H. Estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1982., p.10).

E de fato vêm dos Estados Unidos as experimentações que se constituirão na base da linguagem cinematográfica, principalmente com D. W. Griffith e sua organização simultânea de ações em uma mesma sequência dramática, com planos alternados e paralelos. Griffith promoveu, como explica Arlindo Machado (1997MACHADO, A. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus Editora, 1997., p.102), “a linearização do signo icônico e a construção de uma sequência diegética pelo desmembramento dos elementos da ação em fragmentos simples e unívocos, os planos”.

A partir de então, e não sem muitos percalços, o cinema seguirá sua própria história como uma arte autêntica e autônoma. É verdade que nunca deixou de dialogar com a literatura, seja por meio de numerosas adaptações de contos e romances, consagrados ou não, seja colocando em tela temas literários ou em diálogo com técnicas literárias, caso, por exemplo, dos filmes ensaios de Godard ou da polifonia de vozes literárias levadas às telas por Marguerite Duras.

Outro exemplo e mais recente é o cinema do argentino Mariano Llinás em La flor (2018FLOR, La. Direção: Mariano Llinás. Produção: El Pampero Cine. Argentina, 2018, 808 min.). Filme de 808 minutos (13h46min),2 2 Em termos de duração, o filme supera as 9 horas de Evolução de uma família filipina (2004), de Lav Diaz, O Tango de Satã (1994), de Béla Tarr, com suas 7h30 e Shoah (1985), de Claude Lanzman (9h26). Sua exibição em festivais tem se dado em três dias e as sessões têm intervalos. No Brasil, por exemplo, foi exibido em 2018 no 12ª Cine BH e no Indie Festival. Por conta da crise pandêmica do Covid-19, o filme foi disponibilizado em plataformas streaming em 19/03/2020, como Filmin (https://www.filmin.es) e Kabinett (https://www.wearekabinett.com), por tempo determinado e acesso gratuito. cujo caráter inovador não está somente na duração, mas justamente no modo como mescla recursos literários à configuração das imagens, narrativas e gêneros cinematográficos.

Dada a singularidade dessa obra e a articulação que promove entre literatura e gêneros cinematográficos, traçamos como objetivo deste artigo estudá-la à luz da hermenêutica (Ricoeur, 2008RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2008.), pela qual se busca a compreensão dos sentidos postos em circulação, bem como seus modos de produção. Num primeiro momento, faremos uma descrição fenomenológica do filme, esmiuçando seu esquema e os elementos narrativos postos em cena, com enfoque na exploração e na articulação dos recursos literários. Na sequência, serão evidenciadas suas possibilidades interpretativas, a partir dos fundamentos educativos do cinema (Almeida, 2017ALMEIDA, R. de. Cinema e Educação: fundamentos e perspectivas. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.33, 2017.), que consideram não somente os aspectos estilísticos do filme, mas também seu potencial formativo, numa dimensão mais ampliada dos efeitos do cinema. Por fim, retomamos a questão aqui esboçada da relação entre cinema e literatura para discutir a hipótese de que La flor revitaliza, com novos contornos, essa relação.

Esquema La flor

O filme começa com a presença do diretor Mariano Llinás que se senta a uma mesa ao ar livre, abre um caderno de capa vermelha e desenha o esquema do filme, uma flor composta de seis pétalas, isto é, seis episódios, cada um com uma narrativa e um gênero cinematográfico próprio, todos unidos pela presença de quatro atrizes: Valeria Correa, Elisa Carricajo, Laura Paredes e Pilar Gamboa. Enquanto desenha em seu caderno e nos explica o que é o filme, o diretor permanece de boca fechada, mas ouvimos sua voz, ou seja, sua voz é extradiegética e aparece como a voz do narrador, portanto, vindo de fora do filme.

O primeiro episódio, explica-nos o diretor, é um filme B, o “tipo de filme que os americanos sabiam fazer de olhos fechados, mas agora não sabem mais”. O segundo é um musical, com uma ponta de mistério. O terceiro episódio é sobre espiãs. O quarto episódio o próprio diretor diz não entender bem o que é. De fato, é uma homenagem ao surrealismo, mas também uma incursão metalinguística sobre os bastidores de um filme que nunca se acaba.

Esses quatro episódios, como explica o diretor, não têm final. O terceiro apresenta, em seu interior, quatro histórias, referentes a cada uma das espiãs, com começo e fim. O quinto episódio é uma homenagem ao cinema mudo, refilma o média-metragem Um dia no campo (1946), do diretor francês Jean Renoir, adaptação de um conto de Guy de Maupassant. Esse é completo, com começo, meio e fim. O último episódio é uma experimentação a partir do fragmento de um poema de Sarah S. Evans, escrito em 1900. Começa no meio e tem final.

Por último, o diretor nos diz que a graça do filme é que em todos os episódios estão as mesmas quatro mulheres, embora em distintos papeis: Valeria, Elisa, Laura e Pilar. “O filme é sobre elas quatro e para elas quatro”. Vale apontar que no quinto episódio nenhuma delas aparece, estando suas presenças assinaladas em negativo, já que a ausência não deixa de ser notada. Essa explicação inicial concedida pelo diretor não é sua única aparição. Ele retornará outras duas vezes para tecer comentários sobre o filme.

Figura 1
Mariano Llinás desenha o esquema do filme (fotograma)

O que é interessante nessa sua primeira aparição é o desvelamento do esquema do filme, a importância dada à forma como a obra será construída,3 3 Nesse ponto, é interessante o diálogo com textos da literatura contemporânea que assumem o processo de construção da obra como elemento narrativo estruturante destacando, para além do narrador e da narração, o autor no processo criativo. Entre vários autores e obras, para ficarmos no contexto latino-americano - e botânico -, podemos pensar na obra literária Bonsai, do chileno Alejandro Zambra (2012). colocando-a como um elemento tão importante quanto os outros elementos narrativos, sendo o desenho (quatro setas para cima, uma circular ao centro e a última para baixo) usado para explicitar a organização dos episódios em um diagrama que é a imagem metafórica de uma flor, La flor, o próprio filme, mas também a flor como símbolo do feminino, encarnado nas quatro atrizes, cuja presença é mais forte que as próprias personagens que representam. Protagonismo do feminino: um filme sobre elas e para elas.

Daí a inovação estilística se prolongar numa revisão de gênero, nos dois sentidos do termo, já que o gênero feminino se torna protagonista de gêneros cinematográficos historicamente protagonizados por homens, como é o caso do terror de baixo orçamento do primeiro episódio ou o suspense com espiãs do terceiro. Não à toa, elas desaparecem no quinto episódio, uma homenagem ao cinema mudo em que duas mulheres se convertem em objeto de disputa entre homens, representadas sob o signo da sedução. E retornam no último, que traz o texto de Sarah Evans, escrito em 1900, uma cativa que escapa do deserto da América do Sul e cujo teor reforça essa perspectiva.

Dando sequência ao esquema de La flor, tratemos mais detidamente do desenvolvimento de seus episódios.

O primeiro episódio dura 80 minutos e, como já dito, recupera aspectos de filmes B, assim designados a partir da década de 1930, em referência às unidades secundárias dos grandes estúdios hollywoodianos que rodavam fitas de faroeste, ficção científica ou horror. A narrativa gira em torno da maldição de uma múmia pré-colombiana que é encontrada em uma escavação arqueológica e levada a um laboratório isolado, administrado por três mulheres, afetadas de modo distinto pela múmia. A quarta mulher é uma especialista paranormal convocada para libertar as demais mulheres do feitiço. O registro sobrenatural é enfatizado por uma trilha sonora de presença constante, composta por Gabriel Chwojnik, e como indicado pelo diretor, no prólogo, não tem final.

De fato, a narrativa é um elemento secundário, subordinado ao arranjo estético que, além da já mencionada trilha sonora, lança mão de elementos visuais que saltam aos olhos, como o primeiríssimo plano e o plano detalhe, que se concentram no rosto, nos olhos, na boca das personagens, e que se tornam mais evidentes pelo contraste com planos aberto que valorizam a paisagem árida e diminuem o espaço ocupado por veículos e pessoas. Esse efeito complementa-se com um outro, que desfoca a profundidade de campo e, a depender da cena, alterna o foco. Um procedimento parecido ocorre com a busca da personagem pelo foco, que permanece parado no mesmo ponto, inicialmente desfocado, como se em vez de lançarmos o olhar para a personagem fosse a personagem que buscasse entrar em nosso campo de visão. O efeito desses procedimentos desnaturaliza o cinema e sequestra a atenção para a dimensão estética do filme, mais do que para a narrativa.

O segundo episódio tem duração de 130 minutos e transcorre como um melodrama sobre os bastidores das celebridades musicais, revelando não apenas as tensões amorosas entre os protagonistas como também a ação de um misterioso grupo viciado em toxina de escorpião. A trama, como anunciada, fica sem solução, o que não prejudica o desenvolvimento do episódio, que mobiliza uma série de procedimentos estilísticos para construir uma estética que oscila entre o drama e a comédia, o kitsch e o pastiche, o sublime e o vulgar.


Cartaz do filme Lá Flor, do diretor argentino Mariano Llinás.

O ponto central é a separação de Victoria e Ricky, que além de casal formavam o Siempreverde, uma dupla musical semelhante ao Pimpinela. Com a separação do casal, a dupla se desfaz e Ricky se alia a uma parceira mais nova. A pressão comercial para a retomada da dupla põe em relevo a construção do imaginário do amor romântico em contraposição ao que de fato ocorre nos bastidores, na chamada vida real. Nesse sentido, o flashback que ocorre no início do episódio é lapidar: Victoria pergunta para sua secretária se ela sabe como conheceu Ricky. Ela diz saber o que está nas matérias publicadas em revistas de variedades e no livro que conta a história da dupla. Enquanto a secretária narra a versão conhecida pelo público, assistimos às cenas: Victoria e Ricky são os últimos a sair de uma casa de show e, por conta da chuva forte, optam por esperar. Enquanto esperam, conversam. Quando a chuva cessa, seguem caminho pela noite úmida e enluarada, até que se descobrem apaixonados e, ao amanhecer, à beira do lago, compõem a canção com a qual ficarão conhecidos. Victoria narra então a sua versão dessa noite. Eles já se conheciam e o relacionamento não ia bem. Ela o via como um sujeito fraco e egoísta, ainda assim percebe que o ama e que viveria o resto da vida com ele. Quando chegam em casa, ele vai dormir, ela então sai e compõe sozinha a canção, à beira do lago, decidida a tomar as rédeas não só da relação, como também da carreira. A partir dessa situação, clichês são assumidos, explorados e subvertidos, numa mescla de estilos cinematográficos que não evitam nem o drama nem a comédia, por meio do kitsch (extravagâncias melodramáticas) e do pastiche (imitação de telenovelas como as mexicanas). No entanto, o que é vulgar por vezes se converte em sublime, não pelo tema em si, mas pelo modo como é filmado, que põem em relevo a intencionalidade e a originalidade da direção. O que seria convenção (melodrama) transforma-se em celebração (homenagem ao cinema).

O terceiro episódio é o mais longo de todos, com 313 minutos. Suas mais de 5 horas de duração é uma homenagem aos filmes de espionagem, que se popularizaram a partir dos anos 1960, especialmente com James Bond. Com uma narrativa poética, tanto em termos textuais quanto visuais, o episódio de desenvolve em 10 capítulos a partir de uma trama principal que se abre para histórias dentro da história. O suspense inicial envolve as quatro atrizes numa missão ordenada por Casterman, chefe de um clã de agentes secretos. Após sequestrarem um cientista sueco, elas se descobrem metidas numa emboscada criada pelo próprio chefe, o que enseja um ensaio sobre o tema da traição no universo da espionagem, tratado como mais um trabalho alienado entre outros tantos do mundo moderno. Os agentes secretos, com o passar do tempo, já não sabem mais a que causa servem; a fragmentação das ações as torna sem sentido e mudar de lado não implica em mudança alguma, já que as ações seguem as mesmas. Subjaz aqui uma crítica às ideologias, como as envolvidas na guerra fria, cujas diferenças de ideias são anuladas por práticas semelhantes, ou por uma ausência de princípios, uma espécie de acaso originário, absurdo constitutivo da existência que anula qualquer tentativa de justificar a espionagem e, consecutivamente, os ideais que a promoveram. Ao cabo da reflexão ensaística conduzida pelo narrador, não sobra nenhum glamour, nenhuma glória, nenhuma grandeza no universo da espionagem. Mas se não sobra nada que salve a espionagem em si, resta, no entanto, o interesse nas espiãs, nas pessoas por trás das ações. E é aqui que o episódio se expande, ao investir na narrativa das quatro personagens centrais, os filmes dentro do filme.

A primeira narrativa é a da espiã muda (Pilar Gamboa) que opera como agente dupla entre Londres e Berlim. A segunda apresenta Elisa Carricajo, que chefia um alto departamento de espionagem da União Soviética e, em determinado momento, se vê obrigada a viajar pela Rússia em busca de um espião infiltrado; a missão dura tanto tempo que, ao cabo, já não existe mais União Soviética. Valeria Correa, a terceira, é uma ex-guerrilheira da América do Sul com complexo de Joana D’Arc; embora lute desde adolescente pela causa defendida por seu pai, termina mudando de lado e matando aqueles que antes defendia. Por fim, Laura Paredes protagoniza uma bela história romântica ao lado de um espião que fazia o papel de marido nas missões; embora não demonstre seus afetos, o parceiro envia sinais que provam seu amor e também a salvam, ainda que nunca mais possam se ver.

O quarto episódio é metalinguístico, acompanha a saga de um diretor que filma suas quatro atrizes (as mesmas quatro) há seis anos, embora prefira filmar árvores. Constantemente indagado pela equipe e pelas atrizes sobre seus intentos, responde invariavelmente com um “não sei”. Com duração de 184 minutos, o episódio sofre uma reviravolta quando as atrizes se assumem bruxas, voam em vassouras e enfeitiçam a equipe de realizadores. O carro deles vai parar misteriosamente em cima de uma árvore, o diretor desaparece e os demais membros da equipe ficam loucos e são internados num hospício. Surge então um investigador norte-americano que passa a tratar do caso e a enviar relatórios por meio de seu computador. Num registro surrealista que equilibra investigação policial e nonsense, a maior parte do filme é narrada por meio desses relatórios e das idas e vindas do investigador ao hospício. Lá está encerrada uma curiosa figura, um homem com mais de cinquenta anos que age como Casanova, seduzindo todas as médicas e enfermeiras, que se mostram apaixonadas por ele. O investigador descobre então um episódio apócrifo do livro de memórias de Giacomo Casanova e, novamente, surge um filme dentro do filme, agora em registro de época, narrando justamente essa história desconhecida do famoso libertino do século XVIII.

O episódio também não tem propriamente um fim e, pelo modo como se apresenta, traz à linha de frente o aspecto experimental da película, que se dispersa por registros cinematográficos, técnicas de filmagem, códigos de gênero sem abandonar os traços estilísticos que caracterizam a obra do diretor e conferem um caráter autoral à película. O espectador não é captado pelo interesse na trama ou na história, como na recepção cognitiva estudada por Bordwell (1996BORDWELL, D. La narración en el cine de ficción. Barcelona; Buenos Aires; Cidade do México: Paidós, 1996.), mas pela recorrência das atrizes, único elemento unificador dos episódios, e pelo estilo do diretor, o modo como alia narrativa literária por meio de vozes múltiplas e em off (às vezes vindas da figura do narrador, outras de um personagem envolvido na história) com os recursos já apontados de primeiríssimo plano e alternância de foco, além de outros mais alinhados com a gramática consolidada do cinema.

A quinta pétala de La flor, com duração de 41 minutos, foi filmada em preto e branco e não tem nenhum som, nem ambiente, nem falas, nem trilha sonora, com exceção de alguns poucos minutos, quando ouvimos o áudio de um filme de Renoir e assistimos à apresentação aérea de uma esquadra de aviões, que se intromete no meio do episódio sem qualquer justificativa ou relação com a trama. Nesse episódio, explora-se a linguagem e o humor do cinema mudo, a partir da refilmagem de Um dia no campo (1946), de Renoir. É o único episódio com começo e fim e também o único em que as quatro atrizes se fazem presentes por sua ausência. Somos obrigados a invocar sua lembrança, o que reforça a ideia de que estamos vendo um modo de ver cinema que não existe mais, já que o advento do som e das cores, além de outras inovações técnicas, mudaram o modo de se fazer e se assistir a filmes. Nesse sentido, o episódio é uma homenagem não apenas a uma era (cinema silencioso) ou a um país (a França) ou a um diretor (Jean Renoir) ou a um gênero (a comédia), mas ao cinema como um todo. Quando as primeiras imagens irrompem, absolutamente sem qualquer som (e sabemos que o cinema silencioso é acompanhado de música), o espectador é levado a perceber o quanto a experiência cinematográfica depende da sinergia de sentidos, já que é uma arte que congrega outras artes.

A última pétala da flor é curta, dura 23 minutos e explora aspectos experimentais, como o uso de cartelas com texto e trilha sonora, além de um véu sobre a lente da câmera que causa um efeito visual semelhante a traços de uma pintura impressionista. O episódio baseia-se em excertos de Recuerdos de una inglesa cautiva en las llanuras de la América del Sur, escrito por Sarah S. Evans e publicado em 1900 no Reino Unido. Trata-se da experiência de uma mulher que reconquista a liberdade após ser sequestrada por indígenas e das mulheres que partilharam essa experiência com ela. Novamente, o aspecto literário se faz presente, embora de maneira distinta, já que os fragmentos de texto são expostos por escrito e não narrados. Essas cartelas ora são mostradas diretamente na tela, como letreiros, ora são introduzidas por uma mão que, ao se fazer presente, assume o caráter artificial de uma arte que se pauta pelos efeitos de ilusão.

Essa política do cineasta de assumir desde o início que o filme é um filme e não uma representação, aspecto evidenciado quando comparece fisicamente para explicar o que é o filme que estamos vendo, mantém-se até o final, quando o véu é retirado revelando a presença de uma câmera escura. Enquanto os créditos são apresentados, ao longo de nada menos que 37 minutos, assistimos à equipe desmontando o set, com a imagem de ponta-cabeça. A trilha sonora embala essa movimentação final, que já não é mais filme, mas que de certo modo é filme ainda, pois revela as condições materiais e técnicas que envolvem a realização das filmagens.

Nesse sentido, é interessante observar como as canções que acompanham os créditos seguem o mesmo registro de desnudamento dos bastidores, já que o cantor interrompe sua própria execução para corrigi-la, comportamento comum aos ensaios que precedem as gravações e apresentações. Para manter a metáfora da flor, é como se o diretor nos desse a ver também as raízes subterrâneas que sustentam o caule e, assim, ao expor os bastidores, ao se valer da metalinguagem (ou metacinema), ao recorrer à literatura, ao brincar com gêneros cinematográficos, propicia uma experiência cinematográfica renovada e autoconsciente, como se estivéssemos num festival de música, acompanhando a montagem e desmontagem do palco para a entrada das bandas, numa experiência espectatorial ampliada. Aliás, é essa a metáfora que o próprio diretor utiliza para tratar sua película, que, ao fim e ao cabo, é como um festival de filmes numa só obra cinematográfica.

Perspectivas interpretativas

Recorremos, para traçar linhas interpretativas do filme, aos fundamentos educativos do cinema, os quais se assentam na articulação de dois polos: o do discurso e o da recepção, o que significa que a arte cinematográfica é um dispositivo que, de um lado, sem deixar de ser imagem, é também imagem de algo, como janela que recorta o mundo e o mostra como um ponto a ser visto (discurso); de outro lado, esse dispositivo que expressa um mundo, o mundo do filme, também recebe o olhar de um espectador que se compreende (Ricoeur, 2008RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2008.) diante do filme, que se projeta no filme e com ele se identifica como se olhasse num espelho (Morin, 2014MORIN, E. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações, 2014.), isto é, que interpreta o filme a partir de suas próprias referências, numa espécie de espelhamento hermenêutico (Almeida, 2020_______. O imaginário trágico de Machado de Assis: elementos para uma pedagogia da escolha. 2.ed. São Paulo: Feusp, 2020.). O espelhamento hermenêutico - processo interpretativo em que se compreende uma obra a partir de modos particulares de a olhar - é o que estimula a crítica e o debate, uma vez que uma obra permanece aberta (Eco, 1985ECO, U. Pós-Escrito ao Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.) a leituras distintas, por vezes complementares, outras dissonantes.

Enquanto os fundamentos do cinema estão voltados para a constituição da linguagem própria do cinema, seu modus operandi, envolvendo desde os elementos básicos até os mais complexos - enquadramento, composição, corte, montagem, produção etc. -, os fundamentos educativos miram para fora, buscam outros efeitos para o cinema, efeitos que estão ligados à leitura de mundo, ou seja, o reconhecimento de que “o cinema que ‘educa’ é o cinema que faz pensar, não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco” (Xavier, 2008­_______. Um cinema que “educa” é um cinema que (nos) faz pensar. Entrevista. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v.33, n.1, p.13-20, 2008., p.15). O que Ismail Xavier está propondo é que os filmes podem provocar a reflexão, isto é, fazer pensar. A partir dessa potencialidade, o cinema abre-se então em perspectivas, em pontos de vista, em miradas, as quais podem ser arroladas como fundamentos: cognitivo, filosófico, estético, mítico, existencial, antropológico e poético (Almeida, 2017ALMEIDA, R. de. Cinema e Educação: fundamentos e perspectivas. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.33, 2017.).

Em linhas gerais, essas perspectivas iluminam aspectos que estão mais ou menos presentes nos filmes. No caso em questão, a película La flor põe em jogo os fundamentos estético, mítico, antropológico e poético. O cognitivo, que diz respeito às operações, por parte do espectador, de antecipação, de elaboração de hipóteses e expectativas, as quais são confirmadas ou frustradas à medida que o filme avança, pouco é acionado em La flor, já que mesmo o episódio das espiãs é econômico na geração de expectativas. Embora estejam de algum modo presentes - queremos saber o que acontecerá com as espiãs, se elas escaparão ou não à armadilha de Casterman -, são ralentadas pelas histórias individuais de cada uma das protagonistas, cujos aspectos descritivo e simbólico são enfatizados em detrimento do eventual suspense que se esperaria no desenvolvimento tradicional desse gênero de filmes. Não à toa ele dura mais de cinco horas; se insistisse nas operações cognitivas de organização das informações, poderia cansar o espectador, que eventualmente perderia o interesse em repetir o processo de elaboração de hipóteses, operação típica do aspecto cognitivo. Outro indício é que o episódio não termina. Se a operação cognitiva tivesse relevância, o espectador terminaria frustrado pela interrupção que deixa o episódio sem conclusão. As mesmas observações valem para o primeiro e o segundo episódios, no que tange os mistérios que os envolvem e que ficam sem solução.

As outras duas perspectivas pouco ou nada exploradas são a filosófica e existencial. Primeiro porque os episódios, em conjunto ou separadamente, não defendem uma tese, não se constituem num pensamento, não põem em jogo personagens conceituais (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 2010.) ou ideias (Badiou, 2004BADIOU, A. El cine como experimentación filosófica. In: YOEL, G. (Org.) Pensar el cine 1: imagen, ética y filosofía. Buenos Aires: Manantial, 2004.), como se esperaria numa obra que provocasse a reflexão filosófica. Por essas mesmas razões, também não estimula a reflexão de si, que justificaria lançar mão do fundamento existencial.

Desse modo, resta-nos analisar a película sob o prisma da intersecção dos fundamentos estético, mítico, antropológico e poético.

O estético se realiza na fusão entre o cinematográfico (imagens em movimento) e o literário (arte da palavra), sem que uma linguagem se subordine à outra. Dessa junção é que emerge o poético, cujo efeito se obtém também pela música de Gabriel Chwojnik, que traz uma textura densa e dramática, que se vale de códigos minimalistas, clássicos, orquestração, instrumentos tradicionais, registro folclórico e comercial, transitando pelos gêneros e registros musicais que vão do erudito ao popular.

Desse modo, o filme direciona o olhar do espectador para o fenômeno estético, deslocando o eventual interesse pela história, como nas abordagens mais transparentes (Xavier, 2005_______. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.), para o modo como se produzem as imagens. O enquadramento, o foco, a montagem, a direção de arte, a mudança de países, idiomas, períodos históricos, enfim, o tratamento das imagens não buscam o que é da ordem da representação, como se intentasse mostrar uma realidade, mas são da ordem da re-apresentação, com seu propósito de retomar crítica e ironicamente procedimentos cinematográficos próprios de determinados gêneros e épocas, como é o caso dos filmes B hollywoodianos ou dos filmes de espião.

Desse modo, uma característica predominante de La flor é o apelo às sensações e às sinestesias, obtidas de maneira pouco usual, já que são produzidas por meio de um texto literário que, interpretado extradiegeticamente pelo narrador-autor-cineasta, desloca os sentidos das cenas e seus encadeamentos, provoca interrupções de fluxo, altera a percepção primeira das imagens, enfim, tona ambígua a experiência da assistência, já que insere camadas de sentidos, muitos dos quais díspares. Um exemplo pode ser colhido do segundo episódio, que investe no visual kitsch, brega, cafona, mesclando melodrama com trama policial, repleto de clichês, que são desconstruídos de maneira irônica, mas jamais depreciativa. A cultura pop é aceita pelo que é, mas sua presença no filme é estetizada, já que a complexidade dos discursos, o inusitado da trama, a sobreposição de gêneros e o tratamento estilístico do filme escapam ao repertório popular e solicitam um público mais familiarizado com as experimentações e inovações do cinema contemporâneo.

É nesse sentido que a dimensão estética do cinema instaura uma descontinuidade entre obra e fruição. Seu poder reside justamente em um buraco, em uma fenda entre os filmes e seus efeitos. Não há passagem ideal entre o que um filme quer dizer e a experiência que se faz com esse filme. Tal descontinuidade é própria a um certo regime de imagens que o filósofo francês Jacques Rancière chamou de regime estético das artes. Este regime insere o espectador em um processo em que a fruição passa por uma recepção de signos heterogêneos, elementos que se negam, somam, dialogam, mas que não organizam o mundo a partir de um conhecimento que antecede a própria aparição das imagens. Uma tensão entre signos que esvazia a própria centralidade do autor como aquele que domina os sentidos e efeitos da obra. Ou seja, a experiência que podemos ter com o cinema é da descoberta do mundo e da invenção deste, uma vez que o cinema nunca é o mundo e nunca deixa de sê-lo. (Migliorin, 2015MIGLIORIN, C. Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá́. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015., p.37, grifo do autor)

Desse modo, os procedimentos estilísticos do filme

[...] funcionam como interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido. Uma espécie de jogo com os acontecimentos, de táticas que exploram ocasiões que o sentido emerge através de dicções e timbres, nas formas não nos conteúdos. (Favaretto, 2010FAVARETTO, C. F. Arte xontemporânea e Educação. Revista Iberoamericana de Educación, n.53, p.225-35, 2010., p.232)

Esse efeito disruptivo é obtido justamente pela tensão entre texto literário (narrador extradiegético) e texto imagético, cuja sinergia nos impede de contemplá-los individualmente. De fato, o filme funciona ao investir nessa fusão entre literatura e cinema, cuja força está em reconsiderar a herança de um imaginário alimentado tanto pela literatura quanto pelo cinema e que pode ser agora deslocado, ressignificado e reutilizado de maneira original. É exatamente esse modo de operar que define, nas palavras de Umberto Eco (1985ECO, U. Pós-Escrito ao Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.), o pós-moderno: retorno irônico, ou não inocente, ao passado, retorno que não ocorre pela imitação ou repetição do passado, mas por sua recontextualização irônica. Em vez de ruptura, mistura e dissolução.

É da mesma forma - um olhar não ingênuo ao passado - que podemos compreender o vínculo do filme ao fundamento mítico, que se faz presente precisamente pelo seu caráter narrativo. O mito é compreendido aqui como uma narrativa dinâmica de símbolos (Durand, 1997DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.). Nesse sentido, os episódios operam como narrativas que atualizam os mitos fundantes do cinema. O episódio 5, por exemplo, é cinema silencioso, refilmagem de Renoir. O episódio 1 é sobre os filmes B hollywoodianos, que misturavam arqueologia com magia, terror psicológico com fenômenos sobrenaturais. O episódio 2 é um musical, o terceiro sobre espiãs.

Entre as funções do mito, segundo Campbell (2010CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. São Paulo: Palas Athena, 2010., p.20-1), estão a reconciliação da consciência com o mistério do universo e a aparição de uma ordem moral, dois efeitos que o filme promove às avessas, disruptivamente, pois os mistérios, conquanto sejam reiteradamente apresentados pelos episódios, permanecem inacessíveis e irreconciliáveis. Do mesmo modo, a ordem moral não é imposta ou afirmada, mas desconstruída, como fica claro no episódio das espiãs, que mudam de lado sem que isso resulte numa inversão de vetor, ou seja, não há bem nem mal, certo ou errado, mas ações erráticas cujos propósitos se perderam no processo histórico.

Esse caráter mítico, propriamente humano, evoca o fundamento antropológico, trabalhado no filme por meio dos atravessamentos de culturas, línguas (russo, francês, inglês, alemão, sueco e o próprio espanhol) e de países (Argentina, França, Bélgica, Inglaterra e Rússia). Também são atravessados tempos distintos, com o filme situando-se ora nos anos 1980, ora nos 2000, ora no século XVIII, ora no final do XIX. Há também uma espécie de etnografia, evidentemente com traços de exagero, o que provoca deliberado humor, mas que também investiga o modo de vida dos espiões (interessante notar que trocam de lado sem mudar de vida...), das celebridades musicais (episódio 2), do investigador (episódio 4). Nesse sentido, é curiosa a passagem no hospício, com a personificação dos deuses (manias, sintomas) e a atualização de Casanova, que termina por aparecer num registro histórico (filme de época), por meio de uma narrativa apócrifa de Casanova, em procedimento que em tudo faz lembrar o escritor Jorge Luis Borges.

Esses aspectos estéticos, míticos e antropológicos presentes no filme culminam num efeito poético muito particular. O fundamento poético tem a ver com a educação da sensibilidade, com o que Merleau-Ponty (1983, p.115) chamou de “máquina de linguagem”, que não consiste na descrição didática de ideias, mas na fabricação de “determinado estado poético”. O poético, no filme, é precisamente o efeito que as linguagens em jogo propiciam, que não se limita a essa ou aquela emoção, mas surge da contemplação das linguagens e seus modos de articulação. Em outras palavras, o poético em La flor não está na capacidade de a história emocionar, o que por vezes pode ocorrer, mas no modo como as linguagens são acionadas, articulando recursos literários, imagéticos, estéticos, evocando e misturando gêneros, valendo-se também da interpretação das mesmas quatro atrizes que se revezam em diferentes papéis. Enfim, há um alargamento da experiência fílmica que desloca o olhar da narrativa para os modos de narrar, da visualidade para os modos de ver, da encenação para os estilos de filmar. Esse é o grande trunfo do filme, não fazer do metacinema um estudo descritivo ou metafórico da linguagem cinematográfica, mas desnudá-la, na intersecção com a literatura, para tornar visível sua poética (processos de criação) e promover estados poéticos (sensação).

Nesse sentido, são muitas as perspectivas interpretativas que podem ser acionadas para a compreensão da experiência promovida por La flor, especialmente quando o espectador deixa-se seduzir pelos artifícios criados pelo filme para mostrar-se como artifício, deslocando o foco da história para o modo de narrá-la, aspecto válido tanto para sua dimensão literária, cujo trabalho textual é primoroso e patente, quanto para sua dimensão cinematográfica, visual, imagética.

Um novo capítulo na relação entre cinema e literatura?

Iniciamos o artigo constatando o longo diálogo da arte cinematográfica com a literária, a partir da dependência inicial até a conquista de sua autonomia, o que não interrompeu os empréstimos entre as artes. De um lado, a literatura influenciou o cinema - o próprio Griffith se inspirou em Charles Dickens para a organização dos planos paralelos, sem contar outros numerosos empréstimos, sendo o mais importante a vocação narrativa -, de outro, o cinema também influenciou a literatura, que passou a se valer de uma visualidade até então desconhecida, incorporada de formas distintas, inclusive na descrição de cenas como vistas num filme, além de recursos de corte e montagem tomados de empréstimo.

Outro aspecto desse diálogo, evidentemente, são as adaptações de livros, sobre as quais não tratemos aqui, mas que são de suma importância para a história do cinema. Há os casos de escritores que também são cineastas, como Paul Auster ou Marguerite Duras. Há também, como já mencionamos, as cinebiografias de escritores, que envolvem seus modos de produção. Outros filmes exploram a intertextualidade, valendo-se de personagens célebres da literatura, mas em outros contextos, como O homem que matou Dom Quixote (2018) de Terry Gilliam ou Gemma Bovery - a vida imita a arte, de Anne Fontaine. Há ainda os casos em que a literatura é assunto dos filmes, como em Dentro da casa (2012) de François Ozon, Paterson (2016) de Jim Jarmusch, ou Vidas duplas (2018) de Olivier Assayas.

Todos esses exemplos, longe de esgotar o profícuo diálogo entre literatura e cinema, mostram que são muitas as formas pelas quais se relacionam, mas poucas se assemelham ao modo como Mariano Llinás as fundiu em seu La flor (2018FLOR, La. Direção: Mariano Llinás. Produção: El Pampero Cine. Argentina, 2018, 808 min.). Seu caráter inovador reside no estilo próprio que ele encontrou de fazer cinema, tornando-o limítrofe com a literatura, como já havia feito em seu filme de estreia Histórias extraordinárias, com suas mais de quatro horas de duração. E usamos o termo inovador no sentido dado por Mark Cousins (2013COUSINS, M. História do Cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno. Trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p.8), para quem “a inovação impulsiona a arte” em oposição ao “belo, popular ou comercialmente bem-sucedido”. Assim, os inovadores se confundem com os independentes, vanguardistas, radicais e dissidentes do cinema. Ao focar seu interesse na “grandeza do meio e as mudanças súbitas pelas quais passou” (ibidem), Cousins não isola a inovação das demais variáveis que envolve o cinema, mas a destaca e a hierarquiza, colocando de lado seu aspecto industrial e comercial. Nesse sentido, a figura do diretor - ou do réalisateur - ganha relevância, por reunir as várias peças criativas de um filme - roteiristas, compositores, editores etc. -, supervisionando “a alquimia pela qual as palavras do roteiro ganham vida” (ibidem, p.9).

Llinás assume em seus filmes, para além da autoria, a condição de narrador, emprestando sua voz à narração extradiegética, mas de um modo que foge da função usual do narrador - geralmente “articulada com a ‘mostração’” (Aumont; Marie, 2003AUMONT, J.; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2003., p.208) - de fornecer elementos contextuais para melhor compreensão da história, quase como um elemento neutro, sem subjetividade. O narrador aqui não só assume sua subjetividade, a qual se confunde com a do cineasta, como tece comentários sobre o filme, explica-o, interpreta-o e nele se insere como autor. Além de sua voz, por vezes o vemos em cena, sentado num parque, ao ar livre, desenhando em seu caderno, dirigindo-se diretamente ao espectador, e não sem ironia, como fariam um Machado de Assis ou Jorge Luis Borges.

Recorrendo à linguagem literária - e por vezes de maneira poética -, Mariano Llinás coloca-se como autor da trama, por vezes tratando-a metalinguisticamente, desnuda o interior das personagens, justifica suas ações, prepara ganchos etc. Mais do que a ação das personagens, é a voz do narrador que conduz o enredo, antecipa acontecimentos e faz ligações entre eventos. Não se trata, portanto, do uso convencional do narrador extradiegético, embora também não se constitua num uso ingênuo ou simplificador, em que o narrador explicaria em vez de mostrar. A qualidade de seu texto é outra, pois o investimento está no estilo.

Para Nietzsche (2008_______. Ecce Homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008., p. 48), estilo é “comunicar um estado, uma tensão interna do pathos mediante signos, e inclusive o ritmo de tais signos”. É exatamente o que faz Mariano Llinás ao transpor, por meio do narrador, o pathos em linguagem literária. Nesse sentido, a contribuição de Deleuze ao tema é instigante: “É um agenciamento, um agenciamento de enunciação. Conseguir gaguejar em sua própria língua, é isso um estilo. [...] Ser como um estrangeiro em sua própria língua” (Deleuze; Parnet, 1998, p.4). Em outras palavras, o estilo é o que se atém a determinados processos e formas de proceder em detrimento de outros, e os repete (gagueja), de modo a intensificá-los, até o ponto de se constituir como estilo. Na perspectiva cinematográfica, estilo é um sistema que mobiliza componentes - usos específicos de técnicas fílmicas - segundo princípios de organização; faz parte, portanto, do meio e interage com o argumento ao decidir como mostrar determinado evento (Bordwell, 1996BORDWELL, D. La narración en el cine de ficción. Barcelona; Buenos Aires; Cidade do México: Paidós, 1996.).

O estilo de Mariano Llinás, em La flor, se constitui pelo modo inovador de organizar as técnicas fílmicas em convergência com os recursos literários, repetidos e intensificados ao ponto de se tornar um filme estrangeiro dentro do cinema. Isso não significa que o cinema de Llinás seja menos cinema ou contenha algo estranho ao cinema, mas que seu modo literário, ao impregnar o estilo cinematográfico, empresta contornos únicos que refresca a experiência promovida por essa forma de arte.

É sobre essa experiência que nos detivemos ao estudar o filme sob o enfoque hermenêutico das perspectivas interpretativas, com interesse nos possíveis efeitos provocados pelo filme. A perspectiva, como a utilizamos, remete ao perspectivismo nietzschiano, que pode ser compreendido como uma posição antidogmática que considera os fatos como interpretações, isto é, não existe uma realidade objetiva em si, uma visão neutra ou totalizante, mas pontos de vista, “apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo” (Nietzsche, 1998NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Cia. das Letras, 1998., p.109).

Como consequência, o conhecimento não é a expressão de verdades, mas a produção de perspectivas, de interpretações, daí a necessidade de uma abordagem hermenêutica, que buscasse as (im)possibilidades de compreender agenciadas pelo filme. É nesse sentido que usamos o termo efeito, o modo como o espectador é impactado por um filme. De acordo com Bordwell (1996BORDWELL, D. La narración en el cine de ficción. Barcelona; Buenos Aires; Cidade do México: Paidós, 1996., p.47), os filmes de ficção mobilizam nossas capacidades sensoriais para que traduzamos os dados recebidos em história. Muitas vezes essas histórias reforçam esquemas prévios de entendimento, outras despertam nossas expectativas para então frustrá-las, de todo modo traduzem um modo de ver cinema.

Em La flor, embora como espectadores sejamos mobilizados pela narrativa, não é a compreensão da história o efeito mais potente, mas justamente a compreensão dos modos de narrar, de filmar, de encenar. Não à toa, o cineasta, revestido da figura do narrador, explica-nos o filme, desenha suas pétalas, antecipa a ausência de desfecho, homenageia as atrizes, cuja recorrência é o único fio que costura os episódios, enfim, traz para dentro do filme o processo criativo, os bastidores, sua opção por homenagear o cinema recorrendo ao pastiche, à mescla, à releitura de gêneros.

À guisa de conclusão, constatamos, ao estudar La flor, que o cinema proposto por Llinás está ancorado na fusão de recursos literários e cinematográficas, os quais fazem o filme se distender no tempo. Como o foco está justamente nos recursos empregados na narrativa, esses recursos estilísticos vão se repetindo ao longo dos episódios, assim como as atrizes que incorporam diferentes papeis. Os episódios narrados, conquanto sejam diferentes entre si e de certa forma secundários diante dos propósitos do filme, não deixam de agenciar perspectivas, dentre as quais destacamos a estética, mítica, antropológica e poética. O diálogo entre literatura e cinema, atravessado por essas perspectivas, ganha, portanto, novo fôlego com La flor. É cedo para saber quais frutos poderá render, se o filme influenciará outras produções cinematográficas, se seu estilo será novamente exercitado pelo diretor ou se se encerrará em si mesmo; de todo modo, na perspectiva da história do cinema considerada pelo critério da inovação, não teria La flor escrito um novo capítulo na relação entre cinema e literatura?

Referências

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  • ZAMBRA, A. Bonsai. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Referências cinematográficas

  • DENTRO da Casa. Direção: François Ozon. Produção: Mandarin, Mars, France 2 Cinéma. França, 2012, 105 min.
  • DIA no campo, Um. Direção: Jean Renoir. Produção: Panthéon. França, 1946, 40 min.
  • EVOLUÇÃO de uma família filipina. Direção: Lav Diaz. Produção: Sine Olivia, Paul Tañedo, Ebolusyon. Filipinas, 2004, 540 min.
  • FLOR, La. Direção: Mariano Llinás. Produção: El Pampero Cine. Argentina, 2018, 808 min.
  • GEMMA Bovery - A vida imita a arte. Direção: Anne Fontaine. Produção: Albertine Productions, Ciné@, Gaumont. França / Reino Unido, 2014, 99 min.
  • HOMEM que matou Dom Quixto, O. Direção: Terry Gilliam. Produção: Alacran Pictures, Tornasol Films, Entre Chien et Loup. Espanha / Bélgica / França / Reino Unido / Portugal, 2018, 132 min.
  • PATERSON. Direção: Jim Jarmusch. Produção: K5 International, Amazon Studios, Inkjet Productions, 2016, 118 min.
  • TANGO de Satã, O. Direção: Béla Tarr. Produção: Mozgókép Innovációs Társulás és Alapítvány, Von Vietinghoff Filmproduktion, Veja Film. Hungria / Alemanha / Suiça, 1994, 439 min.
  • VIDAS Duplas. Direção: Olivier Assayas. Produção: CG Cinéma, Vortex Sutra, Arte France Cinéma. França, 2018, 108 min.

Notas

  • 1
    Este artigo é resultado de pesquisa financiada pela Fapesp na modalidade Auxílio Regular e pelo CNPq Bolsa Produtividade PQ-2.
  • 2
    Em termos de duração, o filme supera as 9 horas de Evolução de uma família filipina (2004), de Lav Diaz, O Tango de Satã (1994), de Béla Tarr, com suas 7h30 e Shoah (1985), de Claude Lanzman (9h26). Sua exibição em festivais tem se dado em três dias e as sessões têm intervalos. No Brasil, por exemplo, foi exibido em 2018 no 12ª Cine BH e no Indie Festival. Por conta da crise pandêmica do Covid-19, o filme foi disponibilizado em plataformas streaming em 19/03/2020, como Filmin (https://www.filmin.es) e Kabinett (https://www.wearekabinett.com), por tempo determinado e acesso gratuito.
  • 3
    Nesse ponto, é interessante o diálogo com textos da literatura contemporânea que assumem o processo de construção da obra como elemento narrativo estruturante destacando, para além do narrador e da narração, o autor no processo criativo. Entre vários autores e obras, para ficarmos no contexto latino-americano - e botânico -, podemos pensar na obra literária Bonsai, do chileno Alejandro Zambra (2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2021
  • Aceito
    27 Ago 2021
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