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Cidades cognitivas: Utopia tecnológica ou revolução urbana?

RESUMO

Os avanços tecnológicos das últimas duas décadas, particularmente nos dispositivos eletrônicos e computação, abriram o caminho para uma extensa lista de potenciais aplicações, em diversas áreas, impactando decisivamente as ações humanas. A proliferação dos equipamentos eletrônicos, tanto de uso pessoal como de coletivo, e conectados de forma ininterrupta, favoreceu a criação e disponibilização de um extenso conjunto de informações, sobre demandas individuais e coletivas, podendo ser utilizadas para gerenciar uma estrutura urbana de forma mais eficiente e otimizada. Surge assim o conceito de estruturas urbanas com uma forma de inteligência subliminar, as cidades inteligentes. Um passo tecnológico complementar foi a proliferação dos gadgets e apps, permitindo um crescimento sem precedentes no volume de dados disponíveis, e que podem ser usados por algoritmos de inteligência artificial para tomar decisões autônomas em tempo real na gestão da infraestrutura urbana, as cidades cognitivas. Embora isso possa representar uma grande revolução urbana, com a melhoria na qualidade de vida nas cidades, o funcionamento de uma estrutura coletiva de forma totalmente autônoma traz consigo profundos questionamentos éticos e morais. Aqui, discutimos as tecnologias que levaram a essa revolução urbana, e os consequentes desafios da humanidade para estabelecer os parâmetros limitantes para o uso dessas tecnologias, e de como este novo cenário urbano resgata o debate sobre o papel da tecnologia na sociedade e no progresso da humanidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Cidades cognitivas; Cidades inteligentes; Inteligência computacional; Inteligência artificial; Sociedade e tecnologia

ABSTRACT

The technological advances of the last two decades, particularly on electronic devices and computer science, opened a wide range of potential applications. As a consequence, human actions in several fields have been decisively impacted. The proliferation of electronic devices, both of personal use as collective, and connected online, favored to provide an extensive piece of information. Individual and collective demands could be used to manage an urban infrastructure more efficiently. Therefore, the concept of urban structures with underlying intelligence emerges, the intelligent cities. A further step was the proliferation of gadgets and apps, which allow an unprecedented growth on the amount of available data. Once combined with artificial intelligence algorithms they support autonomous decisions in real time on the management of the urban infrastructure, the cognitive cities. This could represent a major urban revolution, with a major improvement on the quality of life. On the other hand, the management of this collective urban structure autonomously brings major ethical and moral questions. This investigation discusses the technologies that brought this urban revolution, and the challenges of humanity to establish the limiting parameters to use those technologies. Additionally, this investigation also addressees the new urban environment, discussing the role of technology in society.

KEYWORDS:
Cognitive cities; Smart cities; Computational intelligence; Artificial intelligence; Society and technology

Introdução

Estabelecer uma definição precisa para o conceito de cidades suscita intensos debates entre historiadores, antropólogos, sociólogos e urbanistas, mas seria consensual afirmar que elas se estabeleceram há mais de 10 mil anos como uma organização social eficiente. Três grandes temas sustentaram historicamente a formação e o desenvolvimento das cidades: o templo (aspectos religiosos), o forte (questões de defesa) e o mercado (troca de mercadorias) (Kothkin, 2005KOTHKIN, J. The City: A Global History. S. l.: Modern Library, 2005.). Desde os primórdios, as cidades têm sistematicamente mantido a mesma estrutura singular, combinando diversas características comuns, como especialização profissional, governo e gestão centralizados, recolhimento de tributos, relações comerciais e circulação intensiva de mercadorias, estabelecimento de infraestrutura pública e coletiva, dentre outras (Childe, 1950CHILDE, V. G. The Urban Revolution. Tow Planning Review, v.21, n.1, p.3-17, 1950.). As vantagens da expansão de uma cidade, em termos socioeconômicos, geralmente sobrepõem as suas desvantagens, caso contrário a cidade passaria por uma condição de estagnação ou entraria em declínio, podendo levar até ao seu desaparecimento. Dessa forma, o processo de adensamento das cidades geralmente é analisado num contexto competitivo, em termos do conceito de sucesso corporativo em uma economia de escala (O’Flaherty, 2005). No último século, apesar de uma acelerada expansão das cidades, manteve-se a mesma lógica da antiguidade de expansão populacional como mecanismo de otimização, mesmo que as grandes cidades da atualidade envolvam milhões ou dezenas de milhões de habitantes, trazendo consigo uma nova dimensão para os desafios urbanos.

Um dos principais desafios das cidades modernas é promover o desenvolvimento urbano de tal forma que a equação de adensamento populacional continue com a combinação de elementos favoráveis se sobrepondo àqueles desfavoráveis. Por outro lado, os desafios contemporâneos requerem que sejam considerados elementos muito mais complexos que na antiguidade, transcendendo a eficiência econômica e incluindo variáveis adicionais mais abstratas, como sustentabilidade, cooperativismo e bem-estar social. Com o passar dos séculos, incorporar esses elementos nas cidades vem se tornando sistematicamente mais desafiador. As cidades do século XXI demandarão estruturas urbanas consideravelmente mais complexas, desde concepção e planejamento até governança, para poder viabilizar efetivamente melhorias na qualidade de vida, se mantendo competitivas e ainda mais atrativas sob diferentes perspectivas (Da Fonseca; Mota, 2019).

Este artigo está organizado da seguinte forma. A próxima seção trata da conceituação das cidades inteligentes e cognitivas, apresentando as tecnologias a elas subjacentes. O caráter orgânico das cidades é tratado na seção que segue, discutindo como as tecnologias de suporte podem se ajustar ao crescimento urbano. A seção posterior discorre sobre as tecnologias usadas para a construção de sistemas de suporte às cidades cognitivas, discutindo suas características. A evolução urbana é indissociável do ser humano, de modo que a seção na sequência trata da relação dessas tecnologias com as organizações sociais e políticas coordenadoras do ambiente urbano, quando são discutidos os desafios sociais e políticos inerentes. Finalmente, reflexões sobre possíveis formas de estabelecimento desses novos contextos urbanos são objeto das duas seções finais.

Da cidade inteligente à cognitiva

Desde a antiguidade, a tecnologia tem sido o principal vetor de desenvolvimento e otimização das estruturas urbanas. Particularmente nos últimos 30 anos, a combinação de sistemas eletrônicos e tecnologias digitais passou a permear essas estruturas. Sistemas de informação, compreendendo sensores, atuadores e computadores interligados por sistemas de comunicação de alta velocidade, estabeleceram uma infraestrutura que permite otimizar diversos processos urbanos, como racionalização de serviços públicos, trânsito, mobilidade, logística, consumo energético, segurança, governança, dentre outras (Halegoua, 2020HALEGOUA, G. Smart Cities. Cambridge: The MIT Press, 2020.). Essa é a estrutura fundamental que se conceitua como cidade inteligente (Smart City) (Albino et al., 2015ALBINO, V.; BERARDI, U.; DANGELICO, R. M. Smart Cities: Definitions, Dimensions, Performance and Initiatives. Journal of Urban Technology, v.22, n.1, p 3-21, 2015.).

O número crescente de dispositivos funcionando como sensores ou atuadores dentro de um supersistema urbano interconectado, chamado Internet das Coisas (IoT, Internet of Things), abre novas possibilidades para a infraestrutura urbana (Bibri, 2018BIBRI, S. E. The IoT for smart sustainable cities of the future: An analytical framework for sensor-based big data applications for environmental sustainability. Sustainable Cities And Society, v.38, p.230-53, 2018.). Adicionalmente, com a disseminação de gadgets, como o smartphone, os cidadãos passaram a integrar organicamente toda essa infraestrutura. Em particular, o smartphone permitiu ao cidadão receber diversas informações e utilizar vários serviços, por exemplo por meio de aplicativos (apps). Além disso, o smartphone pode servir como um sensor fornecendo automaticamente informações dos cidadãos para a infraestrutura urbana, de forma conectada, ubíqua e em tempo real. O cidadão pode ainda usar esse mesmo dispositivo para emitir opinião sobre serviços urbanos, e até mesmo em decisões governamentais, ou seja, manifestar sua cidadania (Ruhlandt, 2018RUHLANDT, R. W. S. The governance of smart cities: A systematic literature review. Cities, v.81, p.1-23, 2018.). Assim, um conjunto substancial de informações sobre o organismo urbano fica disponível, podendo ser usado para aperfeiçoar a gestão da sua infraestrutura.

Com a disponibilização intensiva de dispositivos eletrônicos e, consequentemente, de substancial quantidade de informações proveniente desses dispositivos, ferramentas computacionais modernas de inteligência artificial e aprendizado de máquina podem ser usadas para identificar padrões de comportamento e de atividades e ações coletivas, de tal forma a ajustar e otimizar o uso do supersistema de infraestrutura urbana de modo autônomo e em tempo real, baseando-se naquelas informações. Assim, uma cidade pode funcionar num contexto ainda mais amplo, agora conceituada como cognitiva (Cognitive City) (Ahuja; Khosla, 2019AHUJA K.; KHOSLA, A. Driving the Development, Management, and Sustainability of Cognitive Cities. Practice, Progress and Proficiency in Sustainability Book Series, 2019.; Portmann et al., 2018PORTMANN, E.; TABACCHI, M. E.; HABENSTEIN, A. (Ed.) Designing Cognitive Cities. S. l.: Springer, 2018.).

A disponibilidade de informações sobre os mais variados processos da cidade cria um organismo coletivo urbano muito mais complexo, com capacidade cognitiva, capaz de aprender com as experiências passadas usando as informações disponibilizadas, e de levar a uma otimização evolutiva sem precedentes das atividades e processos coletivos e urbanos.

As cidades cognitivas (D’Onofrio; Portmann, 2017) se distinguem fundamentalmente das cidades inteligentes. Enquanto as cidades inteligentes dispõem de aparatos de apoio decisório inteligente, as cognitivas vão além, sendo capazes de explorar e compreender as intrincadas inter-relações nesse organismo social e, a partir disso, propor, testar e avaliar novos procedimentos de controle e ajuste da estrutura urbana de forma evolutiva, tudo isso em tempo real. Na medida em que os sistemas inteligentes podem, além de aprender, também se comunicar por meio da ampla rede conectiva existente, a infraestrutura urbana passa a ter um papel mais ativo e dinâmico na organização social. Por isso, o surgimento das cidades com elementos cognitivos aponta para uma revolução urbana, comparável às grandes revoluções tecnológicas da humanidade.

Embora as cidades cognitivas ainda representem uma utopia conceitual para a melhoria da qualidade de vida nos centros urbanos, diversas iniciativas do uso de tecnologias interativas e autônomas já permitem a otimização de alguns processos urbanos. É uma revolução em curso, com seu alcance, impacto e consequências ainda não bem compreendidos. Certo é que o estabelecimento das cidades cognitivas representa um passo inescapável para a consolidação das cidades como estruturas eficientes, no desenrolar do século XXI.

As cidades cognitivas são organismos com maior autonomia, na medida em que observam, aprendem, se ajustam e podem tomar decisões ou sugerir ações em benefício de sua população. Mas como organismo, também interagem com seus cidadãos de múltiplas maneiras, propiciando um apoio sem precedentes, tanto na administração das urbes como em diversos aspectos de seu controle cotidiano.

O caráter orgânico é fundamental para a cidade cognitiva (Appio et al., 2019APPIO, F. P.; LIMA, M.; PAROUTIS, S. Understanding Smart Cities: Innovation ecosystems, technological advancements, and societal challenges. Technological Forecasting and Social Change, v.142, p.1-14, 2019.). É de fundamental importância uma boa aderência do aspecto concreto (corpo) da cidade ao seu aspecto cognitivo (mente). Como dois aspectos de um mesmo organismo, eles devem se completar, de modo que o lado cognitivo possa acompanhar naturalmente as transformações da cidade. E, dessa forma, possa continuar observando e controlando a cidade. Ou seja, deve haver uma simbiose entre o lado físico (corpo urbano) e o lado cognitivo (mente urbana), explorando um equilíbrio e uma coerência entre eles. Deve ainda haver um acoplamento e uma boa sinergia entre:

  • proposições de planejamento urbano: diretrizes, estratégias, planos diretores, dentre outros (caráter top-down);

  • acompanhamento do seu crescimento espontâneo, conduzido pelos seus habitantes: abertura de um novo comércio ou disponibilização de um serviço, ocupação habitacional, dentre outros (caráter bottom-up).

Não há como tratar do desenvolvimento urbano sem considerar esses dois aspectos, que se complementam no organismo urbano, de modo que o caráter mental deste organismo (a sua parte cognitiva) tem que ser perfeitamente ajustado a esse princípio.

Essa dualidade (planejamento e espontaneidade) é característica indissociável do conceito de cidades. Pela sua complexidade e pluralidade, elas demandam planejamento, coordenação e controle, ao menos sob alguns aspectos e normalmente com um caráter global (geral). Ao mesmo tempo, a cidade é um organismo vivo, se alterando constantemente e de forma muitas vezes espontânea e incontrolável, na medida em que tais variações decorrem de ações de seus habitantes. Isso pode ser observado na escolha de um local para habitar, pela decisão de que serviços utilizar, ou mesmo de que forma se locomover na malha urbana. E então a mente, que complementa o corpo da cidade, precisa ser capaz de reconhecê-lo (bottom-up) para então poder controlá-lo (top-down), e assim ser capaz de contribuir efetivamente para o oferecimento de um melhor espaço urbano a quem o habita. A cidade existe, e deve bem servir aos seus habitantes e visitantes, enfim a todas as pessoas que ocupem seu espaço em um determinado momento.

O organismo urbano tecnológico

A concepção de uma cidade inteligente remete diretamente aos recentes desenvolvimentos tecnológicos, como as redes de comunicação de dados de alta velocidade, computação ubíqua e extensiva presença de sensores e atuadores, que permitiram estabelecer uma infraestrutura urbana funcionando de forma autônoma. Entretanto, é possível vislumbrar um conceito ainda mais complexo para a cidade, agregando a ela um caráter mais orgânico, auto adaptado e com capacidade cognitiva. Nesse contexto, uma cidade pode ser classificada como um organismo vivo, considerando toda a sua complexidade e suas características de dinamismo, crescimento, cooperativismo, adaptabilidade, sustentabilidade, seleção natural, capilaridade, dentre outras. A cidade é um sistema dinâmico e evolutivo em diferentes escalas e agrupamentos, com alta granularidade, semelhante aos processos biológicos de um ecossistema contendo diferentes organismos interagindo entre si, tanto de forma cooperativa como competitiva.

Um organismo cognitivo biológico apresenta uma característica intrínseca, que é a reposição natural ou atualização continuada dos seus elementos constituintes. Assim, classificar uma estrutura urbana como orgânica requer a identificação desses mecanismos de atualização do sistema. As tecnologias correntes permitem a atualização dos programas e dados de forma automática, algo que segue esse preceito. Mas há ainda, inquestionavelmente, uma longa trajetória para que a interoperabilidade de dados e sistemas seja uma realidade. Isso fica ainda mais crítico num contexto de dados disponibilizados que ainda não estão estruturados completamente. Também vale para a expansão e reposição de componentes obsoletos ou danificados que compõem a infraestrutura urbana.

A capacidade cognitiva associada às cidades decorre da superposição de diversos serviços e processos inteligentes ou autoajustáveis. Embora vários aplicativos consigam integrar alguns desses serviços para fins específicos, ainda não há uma natureza totalmente orgânica permeando todo esse ambiente urbano, que atue em tempo real. Por exemplo, tais sistemas são geralmente desenvolvidos em uma estrutura top-down, o que é incompatível com os modelos dos sistemas biológicos, que geralmente evoluem seguindo uma estrutura bottom-up. Desse modo, ainda existe um longo caminho para que a capacidade cognitiva das cidades possa efetivamente seguir os preceitos de estruturas tipicamente orgânicas e evolutivas (Webb, 2007WEBB, R. The Urban Organism. Nature, v.446, p.869, 2007.).

Uma das características fundamentais dos seres vivos é exatamente a capacidade de disporem de mecanismos de continuada reposição ou reparação de suas estruturas, de tal forma a estender a sua vida. Esse conceito pode então servir como principal indutor para o desenvolvimento de tecnologias computacionais que tenham qualidade ou estrutura equivalentes, que possam continuamente atualizar ou reparar seus módulos, ajustar seus parâmetros e executar o que for necessário para manter o organismo cognitivo atualizado e servir de forma apropriada ao seu propósito de apoio ao controle do ambiente urbano, em suas várias perspectivas. Adicionalmente, na medida em que a cidade cresce e se transforma, as tecnologias que controlam a sua infraestrutura precisam acompanhar esse processo nos mesmos moldes, para evitar a sistemática de obsolescência das tecnologias urbanas. Isso se torna ainda mais crítico na atualidade, em que as tecnologias evoluem rapidamente e uma infraestrutura urbana pode ficar obsoleta em poucos anos, e sua substituição representar custos insustentáveis para toda a coletividade. Cidades cognitivas deverão ser capazes de estabelecer prioridades, de forma autônoma, sobre quais de suas partes precisam de reparos ou reposições, antecedendo o momento em que falhas levariam a uma indisponibilidade ou ineficiência dos serviços urbanos.

Tecnologias subjacentes nas cidades cognitivas

O estabelecimento das cidades inteligentes e cognitivas somente pode ser viabilizado com o aprimoramento das tecnologias de dispositivos eletrônicos, redes de comunicação de banda larga e sistemas computacionais. No que concerne aos dispositivos eletrônicos, houve grande desenvolvimento de sensores, que permitem obter dados das mais diversas naturezas, como localização espacial com grande precisão, condições climáticas, velocidade, diagnósticos ambientais, dentre tantas outras informações. Mais importante ainda, grande parte dos dispositivos eletrônicos, se esses estiverem interligados em rede, pode servir como sensores, disponibilizando uma extensa lista de informações para análise de aspectos coletivos. A corrente tendência de grande granularidade de dispositivos conectados em rede permite se obter informações gerais e especificas com grande aderência às realidades do ambiente urbano. Da mesma forma que uma alta granularidade de sensores, também é válido para os atuadores, que podem modificar as condições da infraestrutura urbana a nível localizado ou global.

Enquanto sensores e atuadores dão conta de identificar e alterar as condições da infraestrutura urbana, cabe aos processos que ficam no interstício entre eles manipular tais informações e tomar decisões. As redes de comunicação e os sistemas de análise, tomada de decisão e controle têm assim papel destacado nessa revolução urbana.

A presença intensiva de dispositivos sensores, incluindo aparelhos eletrônicos, veículos, dispositivos fixos de infraestrutura, smartphones, dentre outros, gera uma quantidade monumental de dados dos mais diversos tipos. Num futuro próximo, essa dimensão de sensores vai aumentar substancialmente, no contexto da internet das coisas (IoT). Com os sensores ligados às redes de comunicação (em redes locais ou globais) e sistemas de armazenamento de dados em nuvem, uma quantidade gigantesca de dados pode ser disponibilizada. Entretanto, essa informação é armazenada de forma desestruturada, e consistindo numa ampla gama de informações de diferentes tipos, naturezas e formatos. No campo de Big Data, o Data Analytics (Hurwitz et al., 2015HURWITZ, J. S.; KAUFMANN M.; BOWLES, A. Cognitive Computing and Big Data Analytics. S. l.: Wiley, 2015.; Lim et al., 2018LIM, C.; KIM, K. J.; MAGLIO, P. P. Smart cities with big data: Reference models, challenges, and considerations. Cities, v.82, p.86-99, 2018.) representa a área da computação cujas ferramentas recentemente desenvolvidas permitem a extração de dados para identificar, agrupar, catalogar, selecionar e correlacionar informações disponibilizadas, ou seja, transformar informações sem formatação em informações com significado preciso e utilidade (Townsend, 2013TOWNSEND, A. M. Smart Cities: Big Data, Civic Hackers and the Quest for a New Utopia. New York: WW Norton, 2013.). Diversas técnicas modernas, como aprendizado de máquina (machine learning) e redes neurais (neural networks) (Glassner, 2019aGLASSNER, A. Deep Learning: from basics to practice. S. l.: Imaginary Institute, 2019a. v.1., 2019b), podem ser usadas para extrair informações qualificadas, particularmente na identificação de padrões que possam ser úteis para a tomada de decisão no uso da infraestrutura urbana.

O Deep Learning (Lecun et al., 2015LECUN, Y.; BENGIO, Y.; HINTON, G. Deep Learning. Nature, v.521, p.436-44, 2015.; Sejnowski, 2018SEJNOWSKI, T. J. The Deep Learning Revolution. Cambridge: The MIT Press, 2018.), por categorizar as informações a partir de um enorme conjunto de características, permite que a questão do entendimento da mobilidade urbana possa ser codificada em tamanha diversidade de parâmetros, que os padrões, que seriam de difícil medida por outras técnicas, são facilmente identificados com essas tecnologias. Essas técnicas computacionais podem identificar eventuais comportamentos urbanos coletivos com precisão, mesmo em situações em que ainda não são totalmente compreensíveis ou quando não há dados disponíveis para isso (sem previsibilidade). Mas por ter condições de reconhecer esses efeitos, se tornam capazes de prever situações prováveis e, com isso, estabelecer ações antecipadamente para mitigar os efeitos indesejados que não tenham sido previstos.

No contexto das cidades cognitivas, uma vez identificados os padrões nos dados coletados, a inteligência computacional (computational intelligence), a inteligência artificial (artificial intelligence) e a computação cognitiva (cognitive computing) (Netto, 2007NETTO, M. L. Computação Evolutiva e Cognitiva - Simulação em Vida Artificial e Cognição. São Paulo, 2007. Tese (Livre Docência em Engenharia Elétrica) - Escola Politécnica, Universidade de São Paulo.) entram em cena para a supervisão e tomada de decisão, em tempo real, com mecanismos adaptativos autônomos (Malone; Bernstein, 2015MALONE, T. W.; BERNSTEIN, M. S. Handboolk of Collective Intelligence. Cambridge: The MIT Press, 2015.). Com a tomada de decisão, instruções de controle são, assim, enviadas para os atuadores da infraestrutura urbana. Embora os sistemas concebidos tenham autonomia, suas decisões seguem preceitos previamente definidos e programados, para assim atuar para otimizar o uso da infraestrutura urbana, para o bem-estar coletivo, melhorando a mobilidade, o atendimento de demandas sociais, sistemas de saúde, dentre tantas outras funções para as quais tenham sido concebidos. Dessa forma, esses sistemas podem ser caracterizados como sistemas cognitivos artificiais (artificial cognitive systems) (Vernon, 2014VERNON, D. Artificial Cognitive Systems - A Prime. Cambridge: The MIT Press, 2014.), onde a computação adquire o caráter cognitivo.

Complementarmente, muitas vezes, a base de dados disponível não permite cobrir a totalidade de situações possíveis das demandas à infraestrutura urbana para permitir a previsão de eventos futuros. Ou ainda, a base não tem densidade de dados associados a certas situações, o que poderia levar a previsões imprecisas sobre certas situações. Para essas situações, simulações computacionais podem ser usadas para construir um cenário mais geral e extenso das condições de contorno da infraestrutura urbana, de forma a melhorar a qualidade da tomada de decisão para a otimização do sistema.

Desafios sociais e políticos de uma cidade cognitiva

Num contexto em que se discute o estabelecimento de novas tecnologias autoadaptadas para a gestão e otimização dos processos urbanos, emerge novamente a percepção do determinismo tecnológico. Essas novas tecnologias apontam para o estabelecimento de um organismo coletivo urbano autônomo e autossustentável, validando a tese do determinismo, ainda mais quando envolve um processo evolutivo intrínseco. Por outro lado, o dinamismo das inter-relações sociais e elementos culturais amortece substancialmente o impacto determinístico de qualquer tecnologia, outorgando um controle decisório maior da sociedade sobre essas tecnologias, mesmo sobre aquelas tecnologias que possam assumir uma estrutura orgânica própria (Bijker et al., 2012BIJKER, W. E.; HUGHES, T. P.; PINCH, T. The social constructions of technological systems. Cambridge: The MIT Press, 2nd edition, 2012.; Williams; Edge, 1996WILLIAMS, R.; EDGE, D. The Social Shaping of Technology. Research Policy, v.25, n.6, p. 865-99, 1996.).

À primeira vista, uma estrutura urbana autônoma pode provocar uma grande ansiedade na sociedade, que poderia se sentir, de alguma forma, numa condição passiva, ou até subjugada, quando inserida num contexto tecnológico muito mais extenso e autossustentável, como se a tecnologia pudesse evoluir ao ponto de governar de forma autônoma as estruturas coletivas urbanas. Entretanto, é passo fundamental para o estabelecimento das cidades cognitivas criar as condições favoráveis para que a sociedade supere esses temores, que poderiam comprometer todas os potenciais benefícios da aplicação dessas tecnologias.

Mesmo assim, a sociedade também precisa manter-se vigilante da sua ascendência sobre as tecnologias autossustentáveis. A sociedade não ficará, de forma alguma, passiva perante as tecnologias implementadas nas cidades cognitivas. Dessa forma, um ponto importante aqui é a hierarquia na gestão da infraestrutura urbana, a cognição abstrata dessas cidades não pode, de maneira alguma, desafiar a cognição de um cidadão ou de uma coletividade. Ou seja, as tecnologias precisam servir para otimizar as atividades humanas em aglomerados urbanos. A garantia desses preceitos pode facilitar a aceitação coletiva de uma estrutura de cidade cognitiva (Townsend, 2013TOWNSEND, A. M. Smart Cities: Big Data, Civic Hackers and the Quest for a New Utopia. New York: WW Norton, 2013.).

Para assegurar o controle sobre os sistemas artificiais, devem ser construídos sistemas supervisores de maior abrangência, para que eventuais fugas da região de segurança sejam detectadas e bloqueadas, evitando ações que se constituam em perigo, ou sejam inoportunas por ferirem preceitos éticos ou morais. Não há nada mais humano do que a construção de valores éticos e morais, e ao subjugar os sistemas autônomos a esses valores, a ascendência humana sobre eles é garantida. Novamente, de acordo com Fan (2019FAN, S. “What Does Ethical AI Look Like? Here’s What the New Global Consensus Says”, 2019. [Online]. Disponível em: < https://singularityhub.com/2019/09/10/what-does-ethical-ai-look-like-theres-now-a-global-consensus/>.
https://singularityhub.com/2019/09/10/wh...
), são cinco os pilares éticos a serem observados: responsabilidade, privacidade, transparência, proteção e justiça. Para que cada um deles seja efetivamente garantido pelo ferramental cognitivo, é necessário que tais sistemas tenham sido concebidos com tais premissas.

No processo de contínuo ajuste tecnológico aos anseios da população, debates são fundamentais, e devem tratar, dentre outras coisas, da adequação e aceitação dessas tecnologias como formas de sustentação das estruturas urbanas. É um processo cíclico e continuado por parte dos cidadãos, de reflexão, questionamento, aceitação, revisão, ajustes e correções dessas tecnologias para atender às demandas da cidade. Essas novas tecnologias permitem que esses ajustes possam ocorrer em escalas temporais consideravelmente menores e de forma automática, mas não descartam o objetivo final de, ao fazer uma gestão otimizada da infraestrutura urbana, atender aos anseios da coletividade por uma melhoria na qualidade de vida.

É natural que, nesse momento, seja colocado em questão como estabelecer os critérios norteadores para a implementação dessas tecnologias, para permitir avaliar e estabelecer formas de implantação de sistemas inteligentes cujas decisões não venham a resultar em erros que tragam prejuízos sensíveis a alguns cidadãos, ou que venham a violar preceitos éticos e/ou morais que permeiam aquela sociedade.

Os mecanismos cognitivos artificiais que estão despontando no cenário tecnológico ainda dependem da intervenção humana, e nem parece ser o objetivo almejado eliminar a supervisão humana. Seja pela complexidade das atividades urbanas, seu planejamento e administração, seja pela necessidade de manter a humanidade no controle daquilo que é de seu interesse, a gestão urbana requer pessoas com características específicas. Dessa forma, é necessário pensar no aparato tecnológico como um suporte sofisticado para orientar o planejamento estratégico e apoiar a observação e o controle do ambiente urbano, que continuará sob a gestão de pessoas específicas, geralmente eleitas para tal, com suporte de equipes com formação técnica altamente qualificada e preparadas para realizar a gestão usando essas novas tecnologias.

O uso das tecnologias, que são sistematicamente desenvolvidas para endereçar problemas correntes na sociedade, leva ao surgimento de novos problemas e desafios. Isso requer uma ação continuada e intensiva de diversos setores, desenvolvendo novas soluções e novas formas de atuação, para manter os progressos da sociedade. Uma questão fundamental é a da competência, da integridade e dos valores dos cidadãos eleitos para a gestão urbana, particularmente para gerenciarem todos os processos de atualização tecnológica. Não apenas essas pessoas, mas toda a comunidade a que irão servir devem poder ter meios eficientes e genuínos para apoiar suas iniciativas. Considera-se aqui a possibilidade tecnológica suportada pela ciência de dados para prover uma vasta gama de informações, apresentadas de maneira clara, objetiva e verdadeira, que sirvam para que as comunidades possam entender o que se passa no âmbito de suas cidades (propostas, planejamentos estratégicos, realizações, custos, avaliações sob diferentes métricas e critérios). Dashboards associados a sites e Apps podem manter tais informações atualizadas continuamente, sendo um painel de informações objetivas (reportando fatos). A esses se somam naturalmente outros meios para estimular e suportar discussões para contrapor opiniões, realizar debates, e assim servir para apoiar a população no acompanhamento das ações dos gestores urbanos, bem como para sustentar uma discussão política para novos pleitos e eleições.

Enfim, as novas tecnologias devem servir de apoio para o acompanhamento da realidade urbana, e das propostas que devam ser discutidas no âmbito de toda a comunidade, para que os caminhos tomados estejam de acordo com a vontade manifesta de seus habitantes. Os mecanismos tradicionais de eleições em sistemas democráticos (tipicamente quadrienais) têm esse propósito, mas são insuficientes e imprecisos, considerando a velocidade e o dinamismo das novas tecnologias.

A maior transparência das informações e ações (razões que embasaram as escolhas, os critérios usados para tal, os mecanismos que permitiram as decisões, como ocorre nas licitações) é fundamental para otimizar a gestão da municipalidade. A boa política deve ser estimulada, aquela em que opiniões divergentes são debatidas, mas cujo propósito deve ser o do bem-estar da coletividade. A má política deve ser reprimida, e nesse sentido novas tecnologias, devidamente ajustadas a esse propósito, podem servir como ingrediente facilitador para o acompanhamento dos fatos.

O caminho para as cidades cognitivas

Este trabalho discute a incorporação de novas tecnologias na gestão das cidades, particularmente no contexto da computação cognitiva num ambiente urbano de caráter orgânico, avaliando suas potencialidades e limitações, bem como estimulando a reflexão sobre o desenrolar futuro nesse cenário. Todas essas novas tecnologias vão impactar decisivamente não somente a infraestrutura urbana, mas também todas as relações sociais dentro desse ambiente.

O objetivo aqui não é propor explicitamente soluções para as cidades, e de fato nem mesmo há como fazê-lo pela diversidade de caminhos para isso, mas promover uma discussão e reflexão sobre o impacto dessas novas tecnologias nas atividades e manifestações humanas. Nesse sentido, duas perspectivas importantes: o dia a dia e o planejamento estratégico.

No contexto urbano, os cidadãos deverão ter a sua disposição aparatos (especialmente smartphones) com contínuo aperfeiçoamento, e para os quais novos Apps continuarão a surgir. Há aqui um cenário que se apresenta como autossustentável, em que a possibilidade de acompanhar fatos e de interagir com o meio interfere no que vier a ocorrer. Um bom exemplo são aplicativos de trânsito que servem para acompanhar a tráfego urbano e orientar os motoristas nos melhores caminhos a serem seguidos a cada momento. Ou seja, são sistemas de caráter instantâneo de acompanhamento dos fatos e de intervenção no sistema na medida em que determinam (ou sugerem) os caminhos a serem seguidos. Com isso, propiciam um autoajuste do tráfego urbano às condições existentes a cada momento, ajudando a melhor distribuí-lo, reduzindo assim em média os tempos de viagem.

Não deve ser esperado que os sistemas autoajustados apresentem eficiência plena em quaisquer situações, de modo que intervenções são certamente necessárias. O gestor urbano deve intervir, orientando o comportamento da dinâmica urbana, de acordo com planejamentos estratégicos (médio e longo prazos), bem como monitorando e controlando a operação do sistema. Nesse contexto, e aproveitando o exemplo anterior (aplicativos de apoio aos motoristas), cabe à municipalidade a gestão da orientação do tráfego urbano, por exemplo mediante ajustes on-line nos planos semafóricos, ou de adequação dinâmica da malha viária para melhor atender ao fluxo em diferentes períodos ao longo do dia. E ambos devem se beneficiar das tecnologias inteligentes de suporte disponíveis.

Ainda nesse caso, é possível afirmar que a superposição de duas estratégias parece ser a que leva aos melhores resultados. Por um lado, ferramentas de inteligência computacional são capazes de entender a dinâmica urbana (tráfego, por exemplo) e se antecipar realizando ações corretivas com bases nas previsões feitas. As atuais ferramentas de deep learning permitem um conhecimento profundo da natureza dessas questões, algo associado a uma assinatura que bem representa o objeto tratado. Por outro lado, é possível superpor a essas decisões ajustes instantâneos resultantes de observações em tempo real de situações imprevisíveis, como acidentes, ou impactos de eventos meteorológicos.

De forma equivalente, é possível identificar que, qualquer que seja a dimensão do assunto em questão, ela passa pela participação e envolvimento dos cidadãos, atores no cenário urbano, e como tal contribuindo com as diretrizes e estratégias da evolução urbana. Essa componente tem um aspecto naturalmente bottom-up e que, portanto, tem que ser considerada no conjunto. As tecnologias cognitivas nesse sentido servem para perceber a manifestação dos habitantes e apoiar ou auxiliar nas suas ações, respeitando suas posições e opiniões individuais, de modo a tornar mais claro o anseio coletivo, ao qual deve dar ampla divulgação. E cabe aos gestores da municipalidade, com apoio de outras ferramentas cognitivas e de manipulação de dados, IoT e ciência de dados oferecer a cidade orientações com caráter top-down.

Reflexões sobre as tecnologias autônomas nas cidades

O estabelecimento das cidades cognitivas é um processo em andamento globalmente, com muitos exemplos de implementações de sucesso para diversas funções urbanas. Entretanto, questões envolvendo essas tecnologias continuam a permear toda a sua implementação, e o sucesso dessas tecnologias depende de uma atenção apropriada a tais questões. Vários temas merecem uma reflexão:

  • As tecnologias devem estar a serviço do ser humano, de modo que o caráter cognitivo das cidades deve estar inserido neste propósito. Deve ser capaz de auxiliar as pessoas, orientando-as, mas também levando em consideração suas opiniões.

  • A democratização tecnológica deve ser promovida e não inibida. As cidades cognitivas devem corresponder a este anseio, mas há o risco da segregação tecnológica com impacto na diferenciação social. Dessa forma, é importante que as tecnologias urbanas estejam à disposição de todos, sendo acessíveis, tanto do ponto de vista dos custos para o cidadão, como da disponibilização da infraestrutura. Portanto, cabe aos governos municipais desenvolver políticas públicas inclusivas e implantar infraestruturas cuja cobertura se estenda por toda a área urbana. Além disso, cabe à municipalidade, em parceria com empresas de tecnologia do setor privado, criar mecanismos facilitadores para o acesso aos serviços e dispositivos digitais, a custos acessíveis, combatendo, desta forma, a exclusão tecnológica.

  • Toda tecnologia tem por propósito superar desafios correntes. Mas como sempre na história da humanidade novas tecnologias geram mecanismos irreversíveis. Novas tecnologias, ao resolverem alguns problemas, geram novos problemas e desafios que devem ser, na medida do possível, antecipados e mitigados. Por outro lado, não há como identificar os caminhos decorrentes das novas tecnologias. Novos problemas surgirão e terão que ser tratados.

  • Otimismo e competitividade são fatores marcantes da humanidade, e devem ser explorados a favor do desenvolvimento tecnológico, reconhecendo que se por um lado as pessoas têm a tendência de aceitar e incorporar as boas novidades, elas também têm que aprender a lidar com as consequências advindas desse processo. O principal meio para prover acesso a todos e condição de uso eficiente das tecnologias é dar a todas as pessoas uma melhor educação, que garanta a todos a competência para poder continuar aprendendo e se adaptando a um mundo cada vez mais tecnológico e virtual.

  • Em contrapartida, a tecnologia não pode ser percebida de forma messiânica, como algo capaz de resolver todos os problemas.

  • A tecnologia não pode servir a um desgoverno, onde a naturalidade de um serviço automático e ubíquo leve as pessoas a acreditarem que tudo está sob controle. É necessário evitar a situação em que se tenha a falsa percepção de que os governos se tornam desnecessários, sendo substituídos por uma gerência baseada estritamente na tecnologia, quando passaria a haver uma ditadura tecnológica.

  • Os sistemas cognitivos urbanos, na medida do possível, devem ser capazes de realizar autoajustes para sua própria preservação, de modo a se adaptar à natural alteração e evolução do cenário urbano, bem como à sua condição altamente dinâmica. E, dessa forma, manter sua capacidade de prestação dos serviços para os quais tenham sido concebidos.

  • O ser humano deverá estar sempre no comando, de modo a poder acompanhar e gerenciar as tarefas executas pelos sistemas de apoio computacional da cidade cognitiva, intervindo sempre que necessário, seja para reparos pontuais, seja para substituição de uma tecnologia por outra que venha a sucedê-la por se mostrar melhor, mais avançada ou mais eficiente.

  • A obsolescência é parte desse processo. Sistemas artificiais construídos pelo homem tendem a se tornar obsoletos, ou seja, inadequados às demandas. Atualmente, em face das importantes questões de sustentabilidade, as tecnologias devem, ao ser concebidas e implantadas, prever qual a expectativa de seu tempo de vida, e que mecanismos irão oferecer para ser mais facilmente descartadas ou reintegradas, de modo a mitigar o impacto que possam ter no mundo físico. Ou seja, a sociedade deve ter uma postura que exija que os aspectos de sustentabilidade estejam sempre sendo considerados e respeitados, e o governo e as empresas devem se empenhar para garantir isso.

  • Sistemas artificiais podem apresentar defeitos, em decorrência da sua obsolescência, ou de falhas no seu projeto. A engenharia trata dessas questões procurando minimizar os problemas que possam advir desse fato, e isso vale para as cidades cognitivas.

  • As cidades cognitivas são unidades em que o sistema de amparo computacional opera em prol da cidade. É necessário considerar, como em organismos vivos, a interação entre as cidades, ainda que limitada a alguns fatores. As pessoas se deslocam entre diferentes cidades, veículos trafegam de uma para outra, de modo que uma compatibilidade entre elas, ao menos em alguns aspectos, é necessária, devendo ser procurada e implantada. Embora o desenvolvimento de cada cidade seja único, deve-se na medida do possível seguir padrões definidos para interoperabilidade desses sistemas. Por exemplo, um veículo ao estacionar numa vaga pública deve ser automaticamente reconhecido para a cobrança do serviço, evitando que seja necessária a aquisição ou uso de sistemas específicos em cada cidade. Isso também vale na questão da inteligência que progressivamente será atribuída aos veículos, permitindo um trânsito mais seguro e eficiente. Os mecanismos usados devem transcender as cidades, tendo validade nacional ou mesmo global.

  • Deve-se procurar harmonizar possibilidades de integração entre os modelos distribuídos (nas mãos dos usuários finais) e centralizados (sob controle das administrações municipais) de modo a explorar o melhor que cada um possa oferecer. Cabe lembrar que pela natureza orgânica e dinâmica dos sistemas urbanos, não será possível, e nem mesmo conveniente propor sistemas fechados, proprietários, e que não permitam interlocuções entre seus diversos componentes.

Finalmente, cabe ressaltar a frase expressa por Willian Bruce Cameron (1967CAMERON, W. B. Informal Sociology: A Casual Introduction to Sociological Thinking. New York: Rabon House, 1967.) a respeito da relação entre dados e sociedade: “nem tudo que importa é representado por dados, e nem tudo que é representado por dados importa”. Embora tenha havido desde então um enorme avanço na capacidade de coleta e tratamento de dados, o conceito persiste. Há que reconhecer os limites da capacidade de observação e controle que podemos esperar de uma cidade cognitiva, bem como de qualquer sistema de grandes dimensões e complexidade. Nem todos os aspectos urbanos podem (e nem sequer precisam ou devem) ser observados ou controlados. Há, portanto, uma limitação inerente ao caráter mental da cidade cognitiva, que não permite (e nem deve permitir) a ela ter todo o controle sobre seu lado corporal, aquele que sempre existiu, e que continuará existindo, afinal as cidades são o corpo, a infraestrutura física. A mente vem se tornando e deverá ser cada vez mais poderosa como um apoio para o melhor funcionamento deste corpo, com o que, se espera, seus habitantes possam desfrutar de melhores condições de vida, o meio ambiente possa ser mais bem preservado, o espaço urbano possa ser mais resiliente, agradável e seguro, enfim, o futuro urbano possa ser mais promissor.

Há também que se ter cuidado com abusos e exageros (Anthoupoulos, 2017ANTHOUPOULOS, L. Understanding Smart Cities: A tool for smart government or an industrial trick? S. l.: Springer International, 2017.). A fácil disponibilidade de dados e informações leva a sociedade a ser cada vez mais dependente tanto do seu consumo como de sua produção, numa espiral que possa consumir além do que seja plausível. Tanto a geração como o uso da informação são altamente recomendáveis e trazem benefícios evidentes, mas não é necessário saber tudo a respeito de qualquer coisa. Na sociedade moderna, cujas tecnologias propiciam isso a um custo mínimo e em volumes estratosféricos, o benefício do acesso à informação pode facilmente passar a ser um problema em si mesmo, na medida em que os cidadãos fiquem presos à necessidade de se manterem constantemente informados sobre tudo. Isso tem sido observado no uso dos smartphones. E deve servir de lição para que não se almeje construir sistemas cognitivos de apoio ao ambiente urbano que procurem observá-lo e controlá-lo além do necessário. Esse sistema será incompleto e inconsistente, mas servirá para propiciar uma vida melhor àqueles a que servir.

Diversos elementos ainda precisam ser superados para que cidades cognitivas se tornem realidade, por exemplo questões éticas, como a privacidade e individualidade de cada cidadão, e as ferramentas de tomada de decisão e arbitragem, principalmente em situações conflitivas entre diferentes grupos sociais (Van Zoonen, 2016).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2021
  • Aceito
    20 Abr 2021
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