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Eduardo de Oliveira França: um professor de História

DEPOIMENTOS

Eduardo de Oliveira França: um professor de História

Estudos Avançados — Como foi seu ingresso na Faculdade de Filosofia e por que se tornou um historiador?

Eduardo de Oliveira França — Eu era estudante da Faculdade de Direito, quando foi fundada a Universidade, criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e contratados para esta um grupo de professores estrangeiros. Havia uma natural curiosidade em torno desses professores e uma grande efervescência cultural em São Paulo depois da Revolução de 32, da qual participei. Por achar que poderia fazer mais um curso e aproveitar melhor meu tempo de estudante decidi matricular-me na nova faculdade.

Por que preferi História? Sempre gostei de História desde a meninice. Quando resolvi entrar na Faculdade de Filosofia — e podia me matricular sem prestar o vestibular, porque já o havia feito para a Faculdade de Direito — hesitei bastante entre os cursos de História, Ciências Sociais e Filosofia. Afinal, optei por História porque estava mais próxima da linha de meus interesses, das minhas leituras e das lembranças do ginásio, onde tive bons professores da disciplina. Além disso, certamente, houve a influência de colegas da Faculdade de Direito, que já estavam seguindo o curso de História — notadamente Eurípedes Simões de Paula e Astrogildo Rodrigues de Melo. Eles, que haviam ingressado na primeira turma, elogiaram muito a faculdade recém-instalada em São Paulo.

Fiz o curso por paixão. Meu interesse era principalmente pelas lições dos professores estrangeiros que transformavam o nível das coisas que ouvíramos no ginásio. E com essas revelações estavam infundindo em nós, estudantes, a idéia de uma missão a cumprir — difundir a cultura geral e as ciências humanas pelo Brasil.

EA — Que professores mais o impressionaram na Faculdade de Filosofia e como era o ambiente que nela existia?

EOF — O ambiente era bem diferente daquele que eu conhecia na Faculdade de Direito. Entre outras coisas porque os professores estrangeiros eram mais ligados aos alunos. O docente que mais me impressionou foi o professor Fernand Braudel — que se tornaria o grande historiador da França na segunda metade do século vinte.

Todos assistiam às aulas do professor Braudel e mereciam a sua atenção. Mas aqueles que ele entendia serem os seus alunos recebiam atenção especial. Eram convidados a almoçar em sua casa e para longas conversas até o anoitecer. Era o grupo dos alunos dele. Lembro-me bem que afirmava ter poucos alunos e, quando eu retrucava que não, porque no curso havia um número razoável de estudantes, Braudel balançava a cabeça para manifestar sua discordância. Para ele, alunos, eram somente os que elegia. Tive a sorte de estar entre esses, aos quais Braudel proporcionava uma convivência a que não estávamos acostumados.

Na Faculdade havia bom relacionamento dos alunos com os mestres, o que reclamava de nós um acompanhamento da vida cultural e a leitura de livros citados na bibliografia do curso. O ambiente convidava à reflexão, aos trabalhos do espírito. O professor Braudel não foi o único que me impressionou, pois o mesmo sucedeu com o professor Pierre Monbeig no campo da Geografia.

Lições de Braudel

EA — Antes de passar para outros professores, tenho duas perguntas sobre o professor Braudel: quando veio para cá, em 1935, j A era o grande nome da historiografia? Ele também colocava a pesquisa como essencial no estudo de História?

EOF — O professor Braudel, quando veio, era o que se chama na França de agrégé , isto é, recém-formado de mérito, e havia feito concurso para ingressar no magistério secundário. Portanto, já se destacara e fora designado para o Liceu de Constantina e depois para o de Argel (sua esposa era uma francesa argelina). Representava, digamos assim, uma esperança para a historiografia francesa e fazia o doutoramento com Lucien Fabvre. Creio que já havia ministrado aulas na Universidade de Argel, mas não era ainda um professor universitário, como de resto a maior parte dos professores franceses aqui chegados em 1935. Ao contrário dos que vieram no ano anterior, os da turma de 35 ficaram por mais tempo, como Braudel, que, da primeira vez, ficou entre nós três anos, retornando posteriormente por mais um ano.

Braudel interessava-se tanto pela docência como pela pesquisa. Constantemente indicava o que deveríamos fazer quando fôssemos professores, pois a Faculdade de Filosofia fora criada para formar docentes para o ensino secundário. Esse era seu objetivo precípuo. Como outros mestres franceses contratados, Braudel se esforçou para que esse objetivo fosse plenamente atingido. Dava-nos conselhos, transmitindo sua experiência no magistério. Era um professor maravilhoso! Suas aulas não se arrastavam, o tempo passava sem que percebêssemos, porque era um encantamento ouvir suas exposições. Foi ele quem nos informou sobre a escola dos Annales, que tanto mudara a historiografia de então.

Já em seu tempo se cogitava da criação do curso de pós-graduação na Faculdade de Filosofia. Eu ia fazer o doutoramento com ele, mas não deu tempo e acabei me doutorando com o professor Eurípedes Simões, um dos sucessores de Braudel. Uma das marcas dos professores franceses era a preocupação com o destino daqueles alunos que poderiam vir a desempenhar papel de relevo na USP. Eles se empenhavam nisso, dando preferência a alguns alunos e a esses assistiam com atenção especial. Esse foi um dos aspectos mais positivos da missão francesa na USP.

EA — O senhor falava sobre os outros professores, inclusive o Pierre Monbeig...

EOF — O professor Monbeig era o mais jovem de todos, tinha vinte e poucos anos quando chegou a São Paulo. Era também agrégé e, com o mesmo cuidado de seus colegas, cogitou formar os que iriam sucedê-lo em nossa Universidade. Quando não mais estivesse aqui, quem estaria em seu lugar?

O professor Monbeig é um dos criadores da Geografia de alto nível no Brasil. Suas aulas eram criativas, vibrantes. Na época se propalava que a contratação de professores franceses era um erro pois poderiam desnacionalizar nossa cultura. Ora, sucedeu exatamente o contrário, porque acima de tudo induziram e ajudaram o estudo dos problemas brasileiros, estimulando uma cultura com raízes na própria terra. Esse foi outro aspecto muito positivo da missão francesa.

Atuação como docente

EA — Como o senhor se tornou assistente do professor Braudel?

EOF — O professor Braudel fez uma partilha da cátedra. Ele era o docente de História da Civilização — desde a História Antiga até à Contemporânea, o que era algo positivamente absurdo, mas compreensível àquela altura. Escolheu seu futuro sucessor — Eurípedes Simões; Astrogildo de Melo ficaria com História Ibérica e à Branca da Cunha Caldeira foi entregue História Americana. Entretanto, Branca, que obtivera uma bolsa de estudos na França, não foi aproveitada. Eu ficaria, mais tarde, com História Moderna e Contemporânea na partilha que se fez ao tempo do professor Jean Gagé. Tal preocupação com os substitutos na cátedra foi benéfica, mas não foram só os professores de História que assim procederam. Em outros departamentos o mesmo ocorreu: os professores franceses cultivaram seus sucessores. Fui assistente dos professores Eurípedes, Braudel e Emile Leonard, antes de alcançar a regência da cadeira.

EA — E sua trajetória, como docente e pesquisador?

EOF — Fui um aluno razoável porque era apaixonado pelos estudos de História e pela docência. Comecei como assistente da Educação, como se dizia, à época dando aulas na Escola Normal Padre Anchieta, pois era formado também pelo Instituto de Educação. Em seguida, iniciei minha carreira na Faculdade de Filosofia, como assistente, mas recebia o ordenado como professor daquela Escola Normal, porque a Faculdade não dispunha de recursos para a contratação de assistentes para todos professores. Aliás, a prática da assistência nas disciplinas de Ciências Humanas foi inaugurada pelos professores estrangeiros, e não era fácil para eles terem dois ou três assistentes. Posteriormente, quando a FFCL conseguiu ampliar suas verbas passei a receber dela meus vencimentos e assim afastei-me da Escola Normal. Era também professor do Colégio Universitário.

Tornei-me assistente do professor Braudel quando ele veio pela segunda vez ao Brasil. O sucessor dele na cátedra foi então o professor Emile Leonard, que me conservou no posto. Quando este se retirou, depois de dois anos, era prevista a vinda de outro professor francês. Mas a direção da Faculdade achou melhor que eu assumisse a regência. Algum tempo depois, ao invés de inscrever-me para a livre-docência, fiz concurso para catedrático e fui aprovado.

Atraso na modernização

EA — Na sua opinião, qual foi o papel e o impacto da criação da Faculdade de Filosofia nas pesquisas historiográficas brasileiras?

EOF — Comparado, por exemplo, ao que sucedeu com a Geografia, em nosso campo foi menor o impacto causado pela criação da Faculdade de Filosofia. Em nosso país havia uma historiografia tradicional e nossa pesquisa teria naturalmente de se desenvolver em História do Brasil. Ora, na Faculdade foram professores de História do Brasil, historiadores brasileiros — Afonso Taunay e Alfredo Ellis Júnior —, afeiçoados a uma orientação tradicional. Somente mais tarde o professor Sérgio Buarque entrou como docente na Faculdade. Assim, a influência modernizadora dos professores estrangeiros foi neutralizada por aqueles historiadores brasileiros comprometidos com uma visão mais tradicional da História. E a explicação que tenho para o retardamento do influxo da modernização em nossa historiografia.

Era de se esperar que Faculdade de Filosofia influenciasse de forma mais profunda a área de História. Nesse sentido, os professores estrangeiros, particularmente o professor Jean Gagé, ajudaram a criar uma associação de historiadores distinta do Instituto Geográfico e Histórico, para contrabalançar as tendências dominantes na historiografia brasileira. Essa associação teve curta duração e veio a ser substituída, bem mais tarde, pela Associação de Professores Universitários de História. Esta, com a participação de historiadores de outras regiões do país, contribuiu de forma acentuada para a renovação dos estudos de História.

Creio, portanto, que a historiografia brasileira se atrasou em sua renovação. Respondendo por um de seus setores, deparei-me com certa incompreensão de alguns colegas, porque sempre recomendei a meus alunos que se dedicassem à História do Brasil, quando outros entendiam que a pesquisa dos nossos professores de História Moderna não deveria ser concentrada em História do Brasil. Ciúmes atrasaram a renovação.

A repressão policial

EA — O senhor teve um papel relevante também na qualidade de diretor da Faculdade de Filosofia, numa época muito conturbada. Poderia falar sobre isso?

EOF — Não digo que tenha tido um papel relevante, mas a minha geração — e eu com ela — sempre entendeu que a Faculdade de Filosofia era um campo de batalha e de luta cultural, mesmo quando dentro da própria Universidade se relutava em aceitar o tom cultural que a caracterizava. Quando cheguei a diretor da Faculdade de Filosofia, depois de representá-la no Conselho Universitário, entendia como entendo, que sem liberdade de pensamento a Universidade perde a sua função social, o seu sentido, a possibilidade de criticar, de criar, de renovar.

A época era realmente difícil, tempo de repressão, de cassações. A Faculdade de Filosofia tinha fama de vermelha, embora fosse multicolor. Havia professores de esquerda, mas a maioria não o era. Ela era objeto de uma vigilância especial, mas o diretor tinha o dever de zelar pela liberdade de seus professores e alunos. Procurei desempenhar essa função com a discrição que se impunha naquela conjuntura. Constantemente tinha de procurar saber a situação dos alunos e professores perseguidos. Por parte da Reitoria havia compreensão, quando eu apelava para ajudar algum aluno ou docente visado. Pressionado para participar da repressão, sempre me recusei, com toda a veemência de minhas convicções.

A passagem mais difícil foi a minha demissão, em 1973, de diretor da Faculdade. O Secretário da Segurança do Estado, coronel Erasmo Dias, tivera ordens para acabar com os protestos dos estudantes, que, para ele, eram liderados por alunos da Maria Antônia. Essa autoridade acusou a Faculdade de Filosofia de ser complacente com a agitação, pedindo a minha colaboração, ou seja, denunciar professores e alunos. Como respondi que essa não era minha função, o coronel Erasmo afirmou que "assim não servia". Por isso, pedi demissão ao Reitor, professor Orlando Marques de Paiva. Os estudantes pretendiam fazer uma greve de protesto, mas não concordei a fim de preservar a Faculdade de Filosofia. Na verdade, eu temia que a faculdade fosse fechada, tal era então a hostilidade dos poderes políticos e militares. Nossa escola era relativamente nova e suscetível de ser ainda mais perseguida, como ocorrera com a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Alguns colegas foram cassados, a Reitoria era vigiada de dentro e nela havia agentes da repressão. Essas foram as razões do meu pedido de demissão e tais fatos explicam por que fui diretor por menos de dois anos — com grande pesar meu. Hoje, reafirmo, assim agiria outra vez, porque entendo que o professor que respeita a sua universidade e a si próprio não pode ser conivente com a política de restrição da liberdade de pensamento e expressão, pois essa condição é vital para a própria existência da universidade.

EA - Como foi sua passagem pela Escola de Comunicação e Artes?

EOF — Tanto quanto sei, a EGA não deve sua existência à Faculdade de Filosofia. Ela nasceu por um imperativo do tempo, quando certos campos da cultura (cinema, teatro, música, radio etc) reclamavam uma escola para a formação universitária daqueles que impulsionam essas atividades. A ECA estava naquela situação de escola nova que ainda não dispõe de seus próprios catedráticos e que, por isso, precisa tomar como empréstimo docentes titulares de outras unidades para dirigi-la. Sucedi ao professor Antonio G. Ferri e já tinha sido também diretor um professor da Faculdade de Filosofia, Nunes Dias, que aliás fora meu assistente. Talvez a minha escolha para diretor tenha resultado da combatividade que sempre demonstrei na defesa da Faculdade de Filosofia.

Encontrei a ECA já em plena atividade, mas nela não se aproveitou a experiência bem-sucedida da Faculdade de Filosofia ao contratar professores estrangeiros. Empenhei-me em dar aos seus professores dedicados e competentes a direção da Escola. Promovi vários concursos para as cátedras, com o objetivo de que fosse escolhido um diretor dentre seus próprios professores. Daí por diante a ECA adquiriu autonomia e pôde ter sua congregação. Esse foi o meu empenho, igual ao que houvera no passado na Faculdade de Filosofia, porque a instalação da congregação desta, ainda no tempo em que estava na praça da República, foi um pouco, por assim dizer, revolucionária. Estávamos cansados de ter como congregação o Conselho Universitário, muito lúcido, mas que não conhecia os problemas específicos da Faculdade. Achei, portanto, que deveria fazer a mesma coisa pela ECA. A Escola acolheu-me com benevolência e as incompreensões que então ocorriam, aos poucos desapareceram, sobretudo entre os estudantes.

A herança dos jovens

EA — Que indicações o senhor daria aos jovens que estão iniciando agora sua carreira como docentes e pesquisadores na área de História?

EOF — Não teria muito o que sugerir. A historiografia atual, no Brasil, está razoavelmente atualizada. Os temas da historiografia contemporânea vão sendo mais e mais os temas da nossa própria historiografia. Em relação aos jovens historiadores, eu diria: ame a História ou deixe-a, parodiando uma frase antipática. Quero dizer que o segredo do sucesso na historiografia está realmente numa atitude basicamente afetiva. Aprendi essa lição com o professor Emil Léonard. Indicava ele que na História estamos sempre buscando respostas às nossas próprias inquietações pessoais. Isso pesa, mas é insuficiente. Contudo, amar o passado é condição para que alguém se torne historiador .

A temática da historiografia está mudando depressa. E preciso não renegar a historiografia do passado — basicamente política e econômica, quando muito, cultural — por amor da historiografia social. De outro lado, é preciso não esquecer os mestres — os daqui e os de fora — porque eles serão sempre um ponto de referência. Eu diria, porém, que os jovens historiadores não precisam muito de meus conselhos. Eles estão bem familiarizados com os temas, com o espírito atual, com a ampliação do elenco dos personagens da História — o povo, a mulher, o escravo, o trabalhador etc., enfim, tudo o que significa ampliação do campo de pesquisa. De outro lado, não esquecer a história política, a história econômica, indispensáveis para a compreensão da história social e de seus vários capítulos. Fora disso, acredito que as novas gerações saberão usar bem a herança que deixamos, sensibilizados com o que Braudel chamou a nova Nova História.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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