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Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador

DEPOIMENTOS

Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador

Estudos Avançados — O senhor estava cursando a Escola Politécnica e foi para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP quando esta foi criada. Como foi a fase inicial da Matemática nessa faculdade?

Cândido da Silva Dias — A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras nasceu no mesmo dia em que foi criada a Universidade de São Paulo — em 25 de janeiro de 1934. Encontrava-me em Mocóca, quando saiu o decreto do governo estadual. Eu iria cursar o terceiro ano na Escola Politécnica, pois havia nela ingressado em 1932. A FFCL começou com a chegada dos professores contratados em outros países. No caso da Matemática, isso sucedeu precisamente em abril, quando chegou o professor Luigi Fantappié, que era docente em Bologna, Itália. Ele, como os demais professores estrangeiros, foi contratado pelo professor Teodoro Augusto Ramos. Fantappié nasceu no dia 15 de setembro de 1901. Portanto, tinha 32 anos quando assumiu suas funções como dirigente da subseção de Matemática da FFCL. Era formado pela Scuola Normale Superiore, de Pisa, onde teve como colega uma pessoa mundialmente conhecida, um dos maiores físicos deste século — Enrico Fermi. Os dois eram amigos.

Não sei quem aproximou o matemático italiano de Teodoro Ramos, mas foi muito feliz essa contratação, porque Fantappié, embora jovem, possuía uma obra científica respeitável em 1932, pois já havia publicado seus principais trabalhos. Todos eles são, sobretudo, relativos à Teoria dos Funcionais Analíticos. Essa teoria é, basicamente, uma criação dele, mas uma extensão da Teoria dos Funcionais, baseada nos trabalhos de Victor Volterra, um grande matemático italiano e autor de boa parte da Análise Funcional da época. Fantappié fora aluno do Volterra e ligado também a outro grande matemático italiano e figura muito importante naquele tempo — o Seven.

Fantappié chegou a São Paulo em circunstâncias um pouco diferentes da dos demais professores estrangeiros contratados para a FFCL. Isto porque inicialmente foi contratado para dar aulas na Escola Politécnica. A diretoria da Politécnica deu a Fantappié a responsabilidade pelo curso de Cálculo Infinitesimal. Assim, em 1934, a principal atividade dele foi desenvolver esse curso, do qual assisti boa parte na Politécnica. Por que nessa escola? Eis aí um dado curioso. A seção de Matemática da Faculdade de Filosofia só foi definida no fim de 1934. A reitoria da USP, ou a diretoria da FFCL, decidiu que os alunos do curso de Matemática deveriam prestar um exame geral sobre a matéria dada pelo professor Fantappié, naquele ano, na Politécnica.

É nesse momento que propriamente se pode falar em curso de Matemática na FFCL — a subseção, como se dizia na época. Em fins de 1934, Fantappié foi à Itália e em março do ano seguinte estava novamente entre nós, para a realização do exame. Cerca de 10 alunos prestaram esse exame, eu entre eles. Um dos colegas foi Mário Schenberg. Outro, Fernando Furquim de Almeida. Esse exame, realizado precisamente no dia 11 de março de 1935, é que assinala o início do curso de Matemática na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Foi um belo exame, diferente, pois Fantappié não tinha nenhuma preguiça, digamos assim, e inquiria sobre toda a matéria dada durante o ano. No meu caso, o exame durou uma hora e vinte minutos.

Palpite ou vocação?

EA — Por que o senhor não continuou na Politécnica?

CSD — Ah, por uma questão de palpite ou de vocação. Meu pai, que era engenheiro, formado pela Escola Politécnica, tinha razões sentimentais para que eu nela permanecesse, mas não opôs a menor objeção a minha transferência para a Faculdade de Filosofia. Pelo contrário, ele achou interessante que eu fizesse a Matemática na nova Faculdade.

Em 1937, fui designado segundo assistente de Fantappié. O primeiro era o professor Omar Catunda. Este se formou na Politécnica em 1931, sendo um engenheiro que se interessava muito pela Matemática. Por isso, desde 1934 o professor Catunda já havia sido escolhido como assistente de Fantappié. O professor Giácomo Albanese chegou ao Brasil em agosto de 1936, para ministrar Geometria, ficando Fantappié somente com Análise Matemática e Análise Superior, pois até então acumulava as duas disciplinas, por não haver um professor qualificado para ministrar Geometria.

Nomeado assistente, ainda muito jovem

EA - Em que ano o senhor se graduou? Na parte de Ciências, como era a estrutura da FFCL?

CSD — Minha graduação foi junto com a primeira turma de toda a Faculdade, em um dia muito festejado — 25 de janeiro de 1937. Essa formatura foi acontecimento memorável, muito bonito, ao qual compareceu Armando de Salles Oliveira, então governador de São Paulo.

Nas áreas de Ciências, tínhamos a Matemática, a Física, a Química e a História Natural. Apesar de a Física e a Matemática estarem bem ligadas, os cursos eram separados. Para a Física foi contratado um professor estrangeiro de grande renome — Gleb Wataghin. Ele chegou aqui, recordo-me bem, um pouco depois de Fantappié, em julho de 1934. Wataghin deu aulas também na Matemática, pois nesta havia a disciplina de Física e ainda a de Mecânica. (As duas disciplinas — Física e Mecânica — eram ministradas pelos docentes da subseção de Física, como se dizia na época). As aulas do professor Wataghin nos foram ministradas nas dependências da Escola Politécnica, no segundo semestre de 1934. O professor Giuseppe Occhialini chegou em 1937 ou no ano anterior. Conheci-o bem, mas não fui seu aluno. No dia lº de março de 1937, fui nomeado segundo assistente de Fantappié. Com a belíssima idade de 23 anos!

EA — Em que prédios funcionou o curso de Matemática da Faculdade de Filosofia?

CSD — As aulas de Fantappié sempre foram ministradas na Escola Politécnica e lá o curso permaneceu até setembro de 1938, numa dependência da Eletrotécnica. Daí passamos para o prédio da Escola Normal (o atual colégio Caetano de Campos), na praça da República. Todo o terceiro andar, que fora reformado, foi cedido à Faculdade de Filosofia. A Matemática da FFCL nunca esteve no casarão da alameda Glete. Saindo do prédio da praça da República fomos para outro, no bairro do Paraíso, à rua Alfredo Élis, no dia 20 de junho de 1942. A etapa seguinte, em agosto de 1949, foi a transferência para a famosa sede da Faculdade, na rua Maria Antônia.

EA — As turmas na Matemática contavam com muitos ou com poucos alunos? Qual o relacionamento dessa seção com as outras áreas da Faculdade de Filosofia? Em sua opinião o que representou a vinda dos professores estrangeiros para a FFCL?

CSD — Na década de 30 as turmas possuíam 10 ou 15 alunos. No início, o curso não era muito procurado, mas nele se matriculavam pessoas com vocação para o estudo da Matemática. Não mantínhamos contato estreito com a Química ou com a História Natural (Biologia), mas havia uma relação razoável da Matemática com a Física. A Química teve contato mais estreito com a Física, mesmo porque, em certo tempo, funcionaram no mesmo prédio da alameda Glete.

A presença dos professores estrangeiros na fase pioneira da Faculdade de Filosofia foi decisiva, importante e renovadora. Fantappié, por exemplo, introduziu no Brasil os cursos de Matemática, porque anteriormente, nas escolas politécnicas ou de engenharia, somente se ministrava a parte fundamental do Cálculo Infinitesimal. Fantappié desenvolveu cursos inteiramente diferentes: teoria dos grupos, grupos contínuos, teoria dos números, formas diferenciais aplicadas à análise, análise tensorial (que se denominava, então, de cálculo absoluto, como ele dizia).

EA — Em que línguas eram ministradas as aulas e que livros eram indicados aos alunos?

CSD — Fantappié dava aulas em italiano, mas aqui devemos relembrar que naquele tempo a influência italiana era muito mais intensa, mais evidente, em São Paulo do que hoje. Assim, as aulas em italiano eram perfeitamente naturais e os alunos não tinham a menor dificuldade. Não me recordo de haver surgido qualquer objeção a esse fato. Em geral, os livros indicados eram editados em italiano, mas também em outros idiomas. Lembro-me bem da fundação da biblioteca da Matemática. Fantappié dedicou-se muito a essa iniciativa. Quando veio da Itália, trouxe muitos livros e coleções de periódicos e com essa doação teve origem a biblioteca. Essa contou também com alguns livros que existiam aqui, pertencentes à Politécnica. Quando Fantappié regressou à Itália, em 1939, nossa biblioteca era já apreciável e daí por diante cresceu sempre. Em conseqüência da reforma universitária de 1970, todos os livros relacionados com essa disciplina foram reunidos na biblioteca do Instituto de Matemática que, por isso, tem um acervo razoável em comparação com as bibliotecas das universidades norte-americanas e européias. O que poucos sabem, contudo, é que o impulso inicial para a formação dessa biblioteca foi dado por Luigi Fantappié. Wataghin, no princípio, também dava aulas em italiano, pois havia permanecido alguns anos na Universidade de Turim, na Itália, como professor efetivo. Sua trajetória foi a seguinte: se não me equivoco, nasceu em 1899, na Rússia; por ocasião da Revolução de 1917, emigrou para a Itália, oride completou sua formação universitária e fez uma bela carreira como cientista; em São Paulo acabou aprendendo rapidamente o português, o que lhe permitiu usar nosso idioma em suas aulas.

A carreira

EA — Qual foi sua trajetória como docente, após sua graduação en 1937?

CSD — Como já me referi, em março daquele ano fui nomeado assistente e Fantappié encarregou-me de desenvolver o curso que era dado aos alunos do primeiro ano. Quando de seu regresso à Itália, eu já estava bem entrosado no curso de Matemática. Os docentes eram Albanese, Catunda, eu e o Furquim, que também foi nomeado assistente. Dávamos aulas de Matemática também no curso de Física. Fiz o doutoramento em 1942. Não prestei concurso para a livre-docência porque naquele tempo não havia essa preocupação, mas em 1951 ocorreu o meu concurso para a cátedra. Em 1974, fui convidado para dirigir o Instituto de Matemática da unidade da USP em São Carlos e, nesse período, passei também a lecionar na recém-criada Universidade Federal de São Carlos. Aposentei-me em 1978, depois de 42 anos como professor da Universidade de São Paulo. Continuei, porém, como professor da universidade federal. Sempre pensei que poderia lecionar até os oitenta anos, mas em 1990 fui compulsoriamente aposentado, em razão de uma lei federal. Essa é a minha história de mais de meio século como pesquisador e professor de Matemática.

EA — Voltando ao quadro anterior à criação da Faculdade de Filosofia, como era o ensino e a pesquisa em Matemática no Brasil? Tínhamos tradição nessa área?

CSD — No Rio de Janeiro havia alguma tradição e contávamos com alguns bons matemáticos, como Oto de Alencar Silva, que manteve significativa ligação com os franceses. Produziu trabalhos de valor e memórias que foram publicadas no Compte Rendu — importante coleção editada na França pela Academia de Ciências. Na década de 30, portanto, o Rio era mais desenvolvido que São Paulo na minha área. Aqui, só a tradição das aulas de Matemática na Politécnica, pois não havia cursos específicos da disciplina, com uma notável exceção — Teodoro Augusto Ramos. Este se formou no Rio, tendo mantido relacionamento estreito com Manoel de Amoroso Costa, grande matemático que faleceu naquele desastre ocorrido quando da chegada de Santos Dumont ao Brasil. Teodoro Ramos foi catedrático de Mecânica Racional na Escola Politécnica de São Paulo, e destacava-se também por suas pesquisas em Matemática. Posso testemunhar que suas aulas eram magníficas porque fui seu aluno em 1933. Ele e o Amoroso Costa também publicaram trabalhos na França. Teodoro Ramos faleceu muito moço, em 1935. Foi uma personalidade notável, porque, além do mais, revelou-se como bom administrador, tendo sido muito ouvido pelos que governavam nosso estado. Cabe acrescentar que sua atuação foi decisiva para a criação da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Filosofia. Ainda mais porque se encarregou da contratação de professores estrangeiros para a FFCL.

O ambiente cultural na década de 20

EA — Na década de vinte o ambiente cultural brasileiro começou a sair da pasmaceira. Einstein passou pelo Brasil, em sua viagem a Buenos Aires, a Física Quântica era a grande novidade. Qual foi a repercussão desses f atos na Faculdade de Filosofia, recém-criada?

CSD — Eu somente senti isso em 1934 e 1935, como aluno de Wataghin. Em suas aulas, tomei conhecimento da Física Quântica. Na pesquisa, entre os colegas, logo se destacou Mário Schenberg. Estimulado por Wataghin, publicou vários trabalhos em revistas estrangeiras. Na Matemática o fato sucedeu mais tarde, com Ornar Catunda.

No meu caso, a divulgação de trabalhos originais somente veio depois, em 1951, com a publicação de minha tese sobre a teoria dos funcionais analíticos em que retomo seus fundamentos, identificando-a com a teoria dos espaços vetoriais topológicos. Esse trabalho foi o primeiro publicado sobre funcionais analíticos com orientação atual. Omar Catunda, em férias, fora à Itália, em fins de 1938, e lá publicou um trabalho de pesquisa. Foi um excelente assistente de Fantappié, completando suas aulas e ajudando-o muito. Depois de certa fase, tornou-se o chefe do Departamento, quando Fantappié e Albanese deixaram a universidade, dirigindo-o de 1940 até 1962 quando se aposentou (como disse, Fantappié regressou à Itália em 1939 e Albanese três anos depois).

A ameaça

EA — Em 1937, depois do golpe de Estado de 10 de novembro, quiseram dissolver a Faculdade de Filosofia. Segundo uma versão, quem salvou a FFCL foi o professor Fantappié, com um discurso que fez perante a direção da USP. O senhor teve conhecimento desse episódio?

CSD — A tentativa de dissolução da Faculdade de Filosofia era notória. O interventor em São Paulo era Adhemar de Barros, que nomeou para dirigi-la um historiador a quem estava muito ligado — Alfredo Ellis Júnior. Dizia-se, na época, que a missão deste era acabar com a FFCL, inclusive com o curso de Matemática. As coisas caminharam de outro modo porque o professor Ellis Júnior fez um concurso para a cadeira de História do Brasil na FFCL. Devido a esse fato, e a outros, provavelmente, ele passou a defender a Faculdade de Filosofia. A Matemática, de forma particular, foi por ele consolidada.

Não tenho lembrança do discurso do professor Fantappié diante da cúpula da USP em defesa da Faculdade de Filosofia, mas ele desfrutava de enorme prestígio e, certamente, quando se comentava abertamente sobre a possibilidade de dissolução da FFCL, deve ter feito intervenções oportunas e justas.

A renovação na Matemática

EA — Nessa sua vivência de décadas como docente e pesquisador na Universidade de São Paulo que outros dados têm, em sua opinião, um significado notável na área da Matemática?

CSD — Vou citar um muito importante e que merece ser destacado. Em 1945, a Faculdade de Filosofia contratou como professor visitante um grande matemático e excelente docente — o francês André Weil, que veio dos Estados Unidos. Logo depois foi igualmente contratado outro matemático importante — Oscar Zariski —, de origem russa, cuja história se assemelha à de Wataghin. No ano seguinte, através do intercâmbio mantido com a França, recebemos outra figura de relevo, o francês Jean Dieudonné. Weil e Dieudonné eram membros do grupo Bourbaki, fundado na França, e que renovou a Matemática neste século. O grupo publicou uma obra com mais de vinte volumes. Dieudonné era uma espécie de secretário do grupo e discutia sempre com Weil os trabalhos do Bourbaki. Ficaram na USP por três anos e, os dois, além de Zariski, nos deram aulas inesquecíveis. Então, nós, professores brasileiros, tivemos muito cedo conhecimento dessa renovação mundial na Matemática. Esse fato é muito significativo na história da Matemática na Universidade de São Paulo e na renovação e consolidação da própria Faculdade de Filosofia.

A reforma universitária

EA — Professor, qual sua opinião sobre a extinção das cátedras decorrente da reforma universitária de 1970? Foi acertada a saída da Matemática da Faculdade de Filosofia?

CSD — Penso que a extinção das cátedras vitalícias não foi um fato muito importante, mas não posso opinar sobre as conseqüências daí advindas porque não conheço os resultados dessa mudança para a USP. Acredito que a criação do Instituto de Matemática, fora da Faculdade de Filosofia, foi benéfica para nossa área.

EA — Professor, dando um balanço, qual a importância da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da Universidade de São Paulo?

CSD — Julgo que esse fato foi importantíssimo e não existe outro mais significativo na evolução científica brasileira. Está relacionado com a grande figura de seu criador — Armando de Salles Oliveira. Essa iniciativa foi inesperada. Eu era aluno da Escola Politécnica e, de vez em quando, ouvia falar sobre a viabilidade da fundação da USP. De repente, saiu o decreto constituindo a Universidade. E, dentro dela, uma novidade na vida acadêmica: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Tudo isso em conseqüência daquele ato governamental publicado em 25 de janeiro de 1934. Note-se o seguinte: Armando de Salles Oliveira ainda não era governador — apenas interventor federal, nomeado em agosto de 1933. Estritamente, tão só um delegado do Poder Central, portanto, de Getúlio Vargas. Por isso, penso que o Getúlio Vargas tem participação na fundação da Universidade de São Paulo. Aquele decreto foi para valer, tanto assim que, de imediato, houve a decisão de enviar Teodoro Ramos à Europa — França, Alemanha e Itália — a fim de contratar professores para as disciplinas básicas da Faculdade de Filosofia. Como aconteceu isso em tão pouco tempo? Que outro fato tem um valor equivalente? Em resumo, a criação da USP e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras marcou o inicio de uma nova etapa na vida cultural do país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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