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Dilemas éticos na cultura do consumo: Antropoceno, psicanálise e capitalismo como modo de operação das paixões

RESUMO

O consumo ético tem emergido como resposta possível à crise climática no contexto do Antropoceno. Neste ensaio, faço uma crítica a essa proposição contextualizando, historicamente, as relações entre consumo, capitalismo e paixões humanas que moldaram a cultura do consumo contemporânea. Partindo da Fábula das abelhas, de Bernard Mandeville e chegando ao conceito freudiano de pulsão, empreendo uma genealogia das paixões consumistas, sugerindo que a satisfação pulsional é uma noção central para o entendimento das dimensões psíquicas relacionadas ao consumo. Reflito sobre a ética a partir dessa perspectiva psicanalítica segundo a qual o mundo é incompleto e a satisfação total é impossível. Tal lógica é radicalmente oposta à da cultura do consumo na qual está assentado o discurso do consumo ético. Concluo argumentando que uma ética para o Antropoceno deve ser uma ética trágica e que a ética da Psicanálise, proposta por Lacan, tem algo a nos ensinar sobre isso.

PALAVRAS-CHAVE:
Antropoceno; Consumo ético; Cultura do consumo; Pulsão; Ética

ABSTRACT

Ethical consumption has emerged as a possible response to the climate crisis in the context of the Anthropocene. In this essay, I critique this proposition by historically contextualizing the relations between consumption, capitalism and human passions that have shaped contemporary consumer culture. Starting from Bernard Mandeville’s Fable of the Bees and arriving at the Freudian concept of drive, I undertake a genealogy of consumerist passions, suggesting that drive satisfaction is a central notion for understanding the psychic dimensions related to consumption. I reflect on ethics from this psychoanalytic perspective, according to which the world is incomplete and total satisfaction is impossible. This logic is radically opposed to that of consumer culture, on which the discourse of ethical consumption is based. I conclude by proposing that an ethics for the Anthropocene must be a tragic ethics and that the ethics of Psychoanalysis, proposed by Lacan, has something to teach us about this.

KEYWORDS:
Anthropocene; Ethical consumption; Consumer culture; Drive; Ethics

Introdução

O debate sobre o Antropoceno surgiu no mundo das ciências naturais (Crutzen; Stoermer, 2000CRUTZEN, P.; STOERMER E. The anthropocene. IGBP Newsletter, v.41, p.17-18, 2000.) quando o termo foi cunhado pelo vencedor do Prêmio Nobel Paul Crutzen para nomear a era geológica atual, moldada pela ação humana através de intervenções tecnológicas difundidas, crescente consumismo e extrativismo destrutivo (Crutzen, 2002). Embora o termo ainda não esteja consensuado entre os cientistas, ele coloca o capitalismo e seus excessos consumistas no centro da crise climática contemporânea (Angus, 2016ANGUS, I. Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System. New York: Monthly Review Press, 2016.; Veiga, 2017VEIGA, J. A primeira utopia do Antropoceno. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v.XX, n.2, p.233-52, abr.-jun. 2017.). Diante disso, vem emergindo, no contexto das organizações capitalistas e da cultura do consumo que essas promovem, o discurso sobre o consumo ético como uma das soluções possíveis para o enfrentamento da crise. Neste ensaio, argumento que é necessário contextualizar historicamente o lugar e o significado do consumo, a fim de questionar os alcances de um consumo ético no contexto do capitalismo. Mostro como o tema da ética, relacionado ao campo do consumo, surge como objeto de interesse no processo de formação e desenvolvimento da cultura do consumo, cujas raízes se localizam no século XVIII se tornando hegemônica ao longo do século XX (Slater, 1997SLATER, D. Consumer culture & modernity. Cambridge: Polity Press, 1997.).

A cultura do consumo é produto e, ao mesmo tempo, produtora de uma ética na qual se postula a possibilidade da gratificação imediata e da realização plena das satisfações humanas, pois, de um lado, essa cultura é herdeira da filosofia moral do século XVIII e do seu embate em torno da liberação das paixões humanas, embate este que também favoreceu o desenvolvimento do capitalismo como um modo de operação das paixões (Brito, 2006BRITO, A. As abelhas egoístas: vício e virtude na obra de Bernard Mandeville. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.; Dufour, 2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.; Monzani, 1995MONZANI, L. Desejo e prazer na Idade Moderna. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.). De outro, a cultura do consumo assume, no século XX, o papel de protagonista central na defesa de um modo de vida no qual é o não adiamento da satisfação que se torna uma virtude central (Lears, 1983LEARS, J. From salvation to self-realization: Advertising and the the­rapeutic roots of the consumer culture, 1880-1930. In: FOX, R.; LEARS, J. (Org.) The culture of consumption: critical essays in American history, 1880-1980. New York: Pantheon Books, 1983. p.1-38.).

Na nova forma cultural que começa a se moldar a partir do consumo, esse assume uma posição muito particular, se tornando meio de realização do valor para o capitalismo, assim como, promessa para a realização das paixões humanas. Por isso, a cultura do consumo pode ser considerada a cultura do capitalismo. No contexto dessa perspectiva ética, o consumo só pode ser tomado como meio da ação moral, seja como fonte de riqueza e felicidade, seja como forma de justiça, democracia e igualdade, seja até mesmo como suporte para as mitigações dos problemas ambientais que a própria cultura do consumo ajudou a criar.

Diante da problemática acima exposta e dos desafios que a forma de consumo contemporânea impõe para um mundo mais sustentável, proponho uma ética que se contraponha à ética da cultura do consumo, qual seja, uma ética que postule a impossibilidade da gratificação imediata e completa das satisfações humanas. Para isso, parto da proposição de que ética não é o mesmo que moral. A ética é a reflexão sobre a natureza da ação humana, uma avaliação sobre o modo como vivemos. Por isso mesmo, a ética pode questionar a própria moral, refletindo criticamente sobre os costumes de uma época e de seu ideal de conduta. Nesse sentido, a ética sempre carrega em si uma política (Lacan, 1991LACAN J. O Seminário: Livro 7. A Ética da Psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1991.; Kehl, 2002KEHL, M. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.). Para a psicanálise, enquanto a ética está articulada ao desejo inconsciente, “a moral se articula às formações coletivas e ao império da Lei” (Góes, 2008GÓES, C. Psicanálise e capitalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2008., p.60), daí minha proposição de que a psicanálise apresenta uma concepção ética de um mundo não todo que contribui para as reflexões sobre o Antropoceno.

Se é na filosofia moral do século XVIII que encontramos a defesa da liberação das paixões humanas e, portanto, o solo fértil para a emergência do capitalismo como modo de operação das paixões e, consequentemente, para a constituição da cultura do consumo, é no desenvolvimento do conceito de pulsão, em Freud, que temos evidenciada a impossibilidade da satisfação plena. Neste ensaio, apresento uma genealogia da concepção das paixões/pulsões consumistas a partir da Fábula das abelhas, de Bernard Mandeville, a fim de estabelecer uma linha de continuidade entre o debate aberto por Mandeville e os estudos psicanalíticos relativos à busca de satisfação pulsional pelo consumo. Partindo do diagnóstico da situação atual, buscarei, a partir de um recuo temporal, entender como a proposição do consumo enquanto via de liberação das paixões humanas já surge no contexto de um debate moral em torno das relações entre vício e virtude.

No campo internacional dos estudos do consumo já há reflexões críticas acerca das implicações ambientais, sociais e psíquicas dos excessos consumistas na sociedade atual (Smith; Raymen, 2017SMITH, O.; RAYMEN, T. Shopping with violence: Black Friday sales in the British context. Journal of consumer culture, v.17, n.3, p.677-94, 2017.; Raymen; Smith, 2017; Fitchett, 2002FITCHETT, J. Marketing sadism: Super-Cannes and consumer culture. Marketing Theory, v.2, n.3, p.309-22, 2002.), algumas das quais com uma perspectiva psicanalítica que guarda uma afinidade conceitual com a de pulsão (Woodall, 2011WOODALL, T. Driven to excess? Linking calling, character and the (mis)behaviour of marketers. Marketing Theory, v.12, n.2, p.173-91, 2011.). Em Loose (2015LOOSE, R. The other side of marketing and advertising: psychoanalysis, art and addiction. Marketing Theory, v.15, n.I, p.31-38, 2015.) encontrei uma análise crítica do uso da arte pelo marketing com base nas relações entre consumo, excesso e pulsão. Trata-se de um diagnóstico de época fundamental para sustentar meu argumento em torno do empuxo à satisfação pulsional e seus limites, hoje, diante da crise climática.

O uso da psicanálise pelo campo do consumo data do início do século XX, desdobrando-se em diferentes áreas: nas relações públicas (Bernays, 1928BERNAYS, E. Propaganda. New York: Horace Liveright, 1928.), no anúncio comercial (Oswald, 2010OSWALD, L. Marketing Hedonics: Toward a Psychoanalysis of Advertising Response. Journal of Marketing Communication, v.16, n.3, p.107-31, 2010.) e na pesquisa motivational (Holbrook, 2015HOLBROOK, M. Some reflections on psychoanalytic approaches to marketing and consumer research. Marketing Theory, v.15, n.1, p.13-16, 2015.) que teve no psicanalista Ernest Dichter (1960DICHTER, E. The strategy of desire. New York: Doubleday, 1960.) seu principal expoente. Dichter buscou compreender os motivos profundos que levavam as pessoas a consumirem e se tornou reconhecido não só por sua contribuição ao campo da pesquisa como, também, por sua aplicação da teoria psicanalítica ao anúncio comercial. Já Edward Bernays, sobrinho de Freud, usou a teoria psicanalítica relativa ao modo de funcionamento grupal a fim de favorecer a ideia de mais consumo em meio à opinião pública e fundou uma nova profissão, as Relações Públicas (Ewen, 1996EWEN, S. PR!: a social history of spin. New York: Basic Books, 1996.). É possível ver uma longa história de parceria entre psicanálise e estudos do consumo (Cluley; Desmond, 2015CLULEY, R.; DESMOND, J. Why psychoanalysis now? Marketing Theory, v.15, n.1, p.3-8, 2015.). Mas essa relação também foi de crítica, através da discordância quanto aos usos mercadológicos dos conhecimentos psicanalíticos no empuxo a uma forma excessiva de consumo. Vê-se que são muitas as articulações entre cultura do consumo e psicanálise, sendo essa última apontada como saber fundamental para a própria constituição e desenvolvimento da cultura do consumo (Zaretsky, 2006ZARETSKY, E. Segredos da alma: uma história sociocultural da psica­nálise. São Paulo: Cultrix, 2006.; Illouz, 2011ILLOUZ, E. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., Dufour, 2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.). Mas o que este artigo pretende mostrar é que há uma diferença radical entre esses dois campos, qual seja, suas proposições éticas.

Proponho mobilizar o conceito freudiano de pulsão no contexto de uma análise crítica do capitalismo, indicando o modo como esse mobiliza as paixões/pulsões através do consumo, a fim de fazer funcionar a sua lógica da acumulação infinita (Zizek, 2008a_______. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008a.; Harvey, 2013HARVEY, D. Para entender O Capital: livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.; 2014; Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo. Livro I: O processo de produção do capital, 2013.; 2014). Pensar a cultura do consumo como cultura do capitalismo evidencia o papel fundamental que o consumo exerce no processo de realização de valor. Slavoj Žižek recorre à noção de paralaxe a fim de demonstrar “a persistência insuperável da lacuna paraláctica no salto mortale que o produto tem de dar para se afirmar como mercadoria” (Žižek, 2008a, p.75, grifo no original). Apesar de ser criado na produção, o valor só se realiza na circulação, no momento em que a mercadoria se torna valor de uso para alguém e, portanto, pode ser vendida, completando o ciclo D-M-D (dinheiro-mercadoria­-dinheiro) analisado por Marx. Há, portanto, uma lacuna tempo­ral entre a produção de valor e sua realização, e sua superação é fundamental para o processo de expansão capitalista, já que o valor “só se conserva por força do crescimento” (Jappe, 2013JAPPE, A. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do va­lor. Lisboa: Antígona, 2013., p.60). Tal fato requer que as mercadorias circulem e sejam consumidas de forma rápida. É essa análise do consumo a partir do contexto da lei neces­sária da acumulação do capital que se encontra ausente em grande parte das análises contemporâneas sobre o consumo, que acaba privilegiando o polo cultural, o caráter simbólico dos objetos. Para Harvey (2014, p.39), muitos desses estudos “não con­seguiram situar o tema em conexão com a totalidade de relações consideradas por Marx” porque foram concebidos com uma pos­tura antagônica à interpretação marxista sobre a lógica de funcio­namento do capitalismo.

Buscarei compreender a busca de satisfação pulsional pelo consumo, em interlocução com o processo de realização de valor pelo capitalismo, considerando como a agência do consumidor na procura da satisfação pulsional encontra ressonância - e é potencializada - pelas necessidades estruturais do capitalismo em realizar valor. Trata-se da convergência entre economia pulsional e economia mercantil (Dufour, 2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.).

O artigo está estruturado como segue: após esta introdução, apresento a Fábula das abelhas como uma fábula das paixões consumistas, destacando as razões históricas e morais que levaram Mandeville a ver no consumo um espaço por excelência para a satisfação das paixões humanas. Na sequência, apresentarei o debate no campo dos estudos do consumo ético. Depois, discutirei como Freud retomou o tema das paixões através do termo pulsão e como foi com base nesse conceito que Lacan elaborou a proposta de uma ética da psicanálise. Em seguida, abordo a formatação da cultura do consumo como espaço de realização pulsional e mercantil, desde seu surgimento em uma cultura europeia fundada na renúncia das paixões/pulsões, até a contemporaneidade, quando se transformou na cultura do capitalismo. Concluo propondo que diante da “tragédia do Antropoceno”, faz-se necessária uma ética que se contraponha ao consumo ético, tal qual a ética trágica da psicanálise.

A emergência do consumo ético no contexto do debate sobre ética e consumo

O debate em torno das relações entre ética e consumo é amplo, requerendo algumas precisões conceituas e históricas. Conceitualmente, de acordo com Barnett, Cafaro e Newholm (2005BARNETT, C.; CAFARO, P.; NEWHOLM, T. Philosophy and Ethical Consumption, 2005. In: HARRISON, R.; NEWHOLM, T.; SHAW, D. (Org.). The ethical consumer. London: Sage, 2005. p.11-24., p.21), há duas formas de se pensar a relação entre ética e consumo: a partir da perspectiva de uma “ética do consumo”, segundo a qual o consumo é objeto da ação moral, onde o que está em jogo é “um julgamento sobre a moralidade de todo o sistema de produção capitalista de mercadorias”. Nesse caso, o objetivo é reduzir os níveis de consumo da sociedade contemporânea, considerando-se, em especial, a crise ambiental e, portanto, a necessidade de um consumo sustentável. A segunda perspectiva é a do “consumo ético”, a partir da qual o consumo é visto como um meio para a realização de ações morais e políticas. Desse ponto de vista, o que está no centro do debate não é apenas a busca pela redução dos níveis de consumo, mas uma demanda para que as ações ligadas ao consumo sejam moralmente aceitáveis, tais como o comércio justo ou iniciativas corporativas responsáveis.

Para os autores, essas duas categorias não estão completamente separadas. É possível que um movimento pelo consumo ético possa pôr em causa o excesso de consumo na sociedade contemporânea. Do mesmo modo, uma crítica que parta do consumo em si e do seu excesso na sociedade contemporânea pode se estruturar através de um movimento político. Ainda assim, insistem Barnett et al. (2005BARNETT, C.; CAFARO, P.; NEWHOLM, T. Philosophy and Ethical Consumption, 2005. In: HARRISON, R.; NEWHOLM, T.; SHAW, D. (Org.). The ethical consumer. London: Sage, 2005. p.11-24.), a distinção é importante porque permite diferenciar o consumo como objeto ou como meio da ação moral e, consequentemente, apontar para as questões morais e políticas que estão em jogo no debate entre ética e consumo.

Considerando a diferenciação conceitual acima proposta, podemos relacionar o consumo ético a uma longa história de ativismo dos consumidores que remonta ao século XVIII, quando os consumidores protestavam contra o que consideravam práticas abusivas de mercado ou lutavam por maior acesso a uma sociedade de consumo (Lang; Gabriel, 2005LANG, T.; GABRIEL Y. A Brief History of Consumer Activism. In: HARRISON, R.; NEWHOLM, T.; SHAW, D. (Org.) The ethical consumer. London: Sage, 2005. p.39-53.). Essa vertente chega ao campo dos estudos do consumidor e dos negócios éticos no século XX, decorrente da própria formação desses campos profissionais, e se acentuando em razão da globalização dos mercados, da ascensão das corporações e suas marcas, da elevação dos riscos ambientais e sociais, da emergência de grupos de pressão e, finalmente, da própria ideia de cidadania pelo consumo (Trentman, 2007).

Já a perspectiva da ética no consumo, que toma o próprio consumo como objeto de ação moral, surge em meio à produção discursiva contemporânea sobre a crise ambiental, tornando-se cada vez mais proeminente à luz do modo como o ato de consumir se associa a questões relacionadas à mitigação de danos causados ao meio ambiente. Nem sempre foi assim; a relação entre consumo e degradação ambiental já foi abordada por alguns dos autores e ambientalistas do movimento ecológico iniciado na década de 1960. No entanto, naquela época, esse conceito era amplamente ignorado pelo Movimento Ambiental hegemônico, produzido por meios institucionalizados e socialmente legítimos, compreendendo os setores governamentais dos países centrais, instituições intergovernamentais e ainda empresas e grandes ONG que circularam nesse ambiente. Essa relação entre ética e consumo só passou a ser considerada pelo mainstream em razão do deslocamento do foco da produção para o consumo que começou a ocorrer a partir da década de 1990 (Portilho, 2005PORTILHO, F. Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania. São Paulo: Cortez, 2005.).

As perspectivas conceitual e histórica, elencadas nos parágrafos acima, nos permitem constatar que o debate em torno das relações entre ética e consumo surge e se renova no próprio processo de formação da cultura do consumo, no qual predomina a perspectiva do consumo como um meio para a ação moral, se caracterizando, portanto, como um consumo ético. Já a ética no consumo, que toma o consumo como objeto de questionamento, é algo mais recente e, também, paradoxal, se pensado no interior da cultura do consumo, na medida em que essa cultura se constitui a partir de uma concepção muito própria - e positiva - do consumo. Não por acaso, quando o consumo emerge como objeto de questionamento, em especial em movimentos que poem em causa o consumo como foco da crise ambiental contemporânea, as respostas que emergem no contexto da cultura do consumo são aquelas que buscam ressignificar o consumo para formas consideradas menos danosas ao meio ambiente, seja propondo um consumo oriundo de uma produção mais sustentável, seja propondo modos de vida considerados mais ambientalmente responsáveis, como minimalismo ou simplicidade voluntária. Nesses casos, porém, a ética da gratificação imediata e da satisfação plena não são colocadas em discussão, cabendo bem a digressão zizequiana de que, o que se busca é continuar consumindo, desde que sem a sua substância perigosa (Zizek, 2004ŽIŽEK, S. A subjectividade por vir - ensaios críticos sobre a voz obscena. Lisboa: Relógio D’água, 2004.).

Assumindo o ponto de vista do consumo ético como a concepção mais pertinente para se pensar as relações contemporâneas entre ética e consumo, no contexto do capitalismo, Barnett et al. (2005BARNETT, C.; CAFARO, P.; NEWHOLM, T. Philosophy and Ethical Consumption, 2005. In: HARRISON, R.; NEWHOLM, T.; SHAW, D. (Org.). The ethical consumer. London: Sage, 2005. p.11-24.) buscam compreender qual seria a abordagem filosófica mais adequada para se entender esse modo de funcionamento ético. Partindo dos três grandes modelos filosóficos de ética - o utilitarismo de Jeremy Bentham, a deontologia, de Immanuel Kant, e a ética das virtudes, de Aristóteles, os autores propõem a ética das virtudes como a mais pertinente, pois, embora as consequências e as regras envolvidas nas relações entre ética e consumo estejam presentes nesse campo, evidências empíricas sugerem que um senso de integridade apresenta-se como o mais fundamental para o bem-estar dos consumidores preocupados com questões éticas.

A atualização da ética aristotélica tem sido absorvida pelo campo do consumo ético, já que a ética das virtudes, relacionada ao consumo, foca em como “viver uma vida boa”. Trata-se de um tópico sensível ao campo do consumo, historicamente relacionado a uma prática hedonista. Por isso, quando ressignificado pelas organizações capitalistas, esse tema se vincula a estratégias de responsabilidade social corporativa (Caruana; Crane, 2008CARUANA, R.; CRANE A. Constructing consumer responsibility: exploring the role of corporate communications. Organization Studies, v.29, n.12, p.1495-1519, 2008.) e a marcas corporativas (Wegerer; Munro, 2018WEGERER, P.; MUNRO, I. Ethics of ambivalence in corporate branding. Organization, v.25, n.6, p.695-709, 2018.), com o objetivo de atingir consumidores individuais que desejam fazer escolhas éticas e que reconhecem o valor de estratégias comerciais responsáveis (Bhattacharya; Sen, 2004BHATTACHARYA, C.; SEM, S. Doing better at doing good: when, why, and how consumers respond to corporate social initiatives. California Management Review, v.47, n.1, p.9-24, 2004.). Segundo Caruana e Crane (2008), as empresas não apenas dominaram amplamente o debate sobre o consumo ético, enquadrando o consumo como um meio de ação moral, mas também desempenharam um papel central na construção do consumidor ético. Além disso, na literatura existente sobre marca corporativa, as marcas foram apresentadas como uma ferramenta para o consumo ético (Wegerer; Munro, 2018). Nesse sentido, podemos argumentar que o consumo ético se tornou a maneira pela qual as empresas estão respondendo aos desafios ambientais e sociais, tomando o consumo como o meio pelo qual é possível exercer um “mercado para a virtude” (Garland; Huising; Struben, 2013GARLAND, J.; HUISING R.; STRUBEN J. What if technology worked in harmony with nature? Imagining climate change through Prius advertisements. Organization, v.20, n.5, p.679-704, 2013.).

Meu argumento é que o consumo, pensado na relação entre vício e virtude, já está na base da constituição da cultura do consumo, erigida como a cultura do capitalismo e como o modo de realização das paixões humanas. Esses dois pontos estão profundamente imbricados pois, como veremos, o capitalismo se constituiu como um modo de funcionamento das paixões/pulsões que tem, na cultura do consumo, seu espaço por excelência. Para isso, foi necessário um longo processo de transformação da ideia de consumo de vício, em virtude. É o que veremos a seguir, partindo da Fábula das abelhas de Bernard Mandeville.

A Fábula das abelhas como uma fábula das paixões/pulsões

A primeira versão da Fábula das abelhas foi publicada anonimamente em 1705. Foi apenas em 1714 que o médico holandês, radicado na Inglaterra, Bernard Mandeville, lhe atribuiu autoria. Naquele ano, o autor republicou sua fábula junto a comentários listados por ordem alfabética, assim como, a um ensaio importante, “An Inquiry into the Origin of Moral Virtues”, formando a primeira edição da Fábula das abelhas, ou vícios privados, benefícios públicos (Mandeville, 1997). Na Fábula, abelhas cheias de paixões, entendidas como vícios, produzem uma sociedade de comodidades, confortos e prazeres. Incomodadas, porém, com a ausência de moralidade, as abelhas lamentam a falta de honestidade, ao que Júpiter, irritado, decide atendê-las, tornando-as virtuosas. Honestas, as abelhas passaram a se sentir satisfeitas com o pouco que possuíam, o que as levou ao comedimento e à ruína, tendo que se refugiar em um oco de uma árvore para continuarem a existir.

A moral da Fábula, que tanto chocou sua época, não está na ideia de que as paixões são dominantes e que sempre buscarão as gratificações dos sentidos. Hume (2009HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora Unesp, 2009.), contemporâneo de Mandeville, tinha a mesma opinião, embora acreditasse que a busca do prazer somente é viciosa quando é excessiva. Foi a proposição de que são os vícios, e não as virtudes, os promotores da riqueza social, que produziu um embate de Mandeville com as ideias morais de sua época. Para ele, não havia virtudes, apenas vícios. E mesmo que um comportamento se mostrasse virtuoso, no fundo, o que o fundamentava era o vício da lisonja, a busca da honra e, por inversão, o medo da vergonha. Daí porque acreditava mais nos vícios do que nas leis como modo de coesão social.

A Fábula das abelhas pode ser compreendida, primordialmente, como uma fábula das paixões. Foi como médico que Mandeville pôde compreender como as doenças da alma são causadas por um refreamento excessivo das paixões, o que o torna um psicanalista antes do seu tempo, pois analisava a alma e suas doenças a partir da escuta de seus pacientes. Dufour (2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.) mostra como Mandeville antecipou os estudos freudianos sobre a histeria ao conjeturar como o adoecimento feminino poderia estar relacionado ao fato de as mulheres jovens serem submetidas a uma casti­dade excessiva. Do mesmo modo, também já deixava entrever a ideia de culpa neurótica freudiana, na análise da melancolia e da hipocondria masculina. Assim, não podemos compreender completamente a mensagem contida na Fábula se não levarmos em conta os escritos do médico, que compreendia as paixões humanas como “espíritos animais” que deveriam ser liberados. Mandeville escreve no século XVIII, justamente o ponto de chegada do processo civilizador narrado por Norbert Elias (1990ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. v.1.; 1993), qual seja, a exi­gência do autocontrole, da contenção das paixões, presente nos códigos moral e de conduta da corte e que foram, posteriormente, assumidos pela burguesia como classe ascendente no final daquele mesmo século. Mas, cada época tem duas faces, e o avesso do lado racional e contido das Luzes encontrava sua expressão nos escritos marginais daqueles que defendiam o lado obscuro das paixões humanas, entre os quais, Mandeville (Monzani, 1995MONZANI, L. Desejo e prazer na Idade Moderna. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.).

A Fábula das abelhas pode ser compreendida, também, como uma fábula da riqueza advinda do comércio e do consumo. Monzani (1995MONZANI, L. Desejo e prazer na Idade Moderna. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.) localiza o surgimento da fábula no contexto da “querela do luxo” que, colocada em termos de vício-virtude, reflete um conjunto de concepções sobre os fundamentos da vida passional na Idade Moderna das quais as ideias de Mandeville são exemplares. Nesse sentido, a grandeza da Fábula está em mostrar como, pelas paixões, se revela a relação inextrincável entre economia pulsional e economia mercantil a partir do século XVIII, já que foi somente a partir daquele século que começou a se delinear os contornos de uma sociedade da abundância, determinada pelo consumo de bens materiais (Manzoni, 1995; Dufour, 2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.; Brito, 2006BRITO, A. As abelhas egoístas: vício e virtude na obra de Bernard Mandeville. São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). Mandeville insistia que as paixões eram incontroláveis; mas, sendo também um homem do seu tempo, propôs que as paixões liberadas poderiam ser, ao final, vantajosas para o bem-estar social. Sua tese principal era que a libera­ção de vícios considerados negativos, da perspectiva individual, tais como a cobiça e a luxúria, seriam favoráveis à prosperidade coletiva. Mandeville escreve em uma Inglaterra já ricamente favorecida pela circulação de mercadorias, embora ainda cercada de ideias morais nos quais não cabia um papel social digno para o comerciante nem um lugar de honra para o consumidor e para os prazeres dos sentidos. E o escândalo mandevilliano foi defender o consumo e o luxo como espaço de realização das paixões humanas muito antes disso se tornar lugar-comum, propondo o homem consumista no momento histórico em que outros buscavam criar o burguês contido (Brito, 2006; Monzani, 1995).

Mesmo chocantes ao seu tempo, as ideias iconoclastas defendidas por Mandeville acabaram sendo debatidas e assimiladas por grandes pensadores da época. Quando Adam Smith escreveu A riqueza das nações, em 1776, ele seguiu, de certa forma, as ideias do autor da Fábula das abelhas em sua análise de um “vício” ou “paixão” específica, qual seja, na defesa de que o egoísmo é capaz de produzir riqueza e felicidade. Mas Smith lançou mão de uma linguagem mais neutra, buscando amortecer o impacto “do chocante paradoxo de Mandeville”, substituindo “paixão” e “vício” por termos mais bran­dos como “vantagem ou interesse” (Hirschman, 2002HIRSCHMAN, A. As paixões e os interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro: Record, 2002., p.40). A ideia de interesse, anteriormente ao século XVIII, “compreendia a totalidade das aspirações humanas” e não se referia aos indivíduos ou seu bem­-estar material, estando voltado à “ciência de governar”. Mas a partir do século XVIII, a palavra já aparece totalmente associada à posse de riqueza, de vantagem eco­nômica ou material. E a tarefa de Smith foi “estabele­cer uma poderosa justificativa econômica para a busca desenfreada do interesse próprio individual” (Hirschman, 2002, p.120, grifos no original).

Embora a proposição mandevilliana não tenha sido concebida em defesa do capitalismo que, em poucas décadas, ganharia forma com a revolução industrial, o desenvolvimento desse modo de produção não teria sido possível sem a liberação das paixões. É isso que, segundo Dufour (2013DUFOUR, D. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.), explica por que o capitalismo, que já estava amadurecido desde a Idade Média, só ganhou a forma de um “mercado liberal capitalista” na Europa do século XVIII, nas “Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na Ingla­terra”, portanto, no berço do liberalismo.

O capitalismo industrial que passou a ascender na era pós-mandeville não era, ainda, de consumo. Embora suas raízes já estivessem contidas nas décadas finais do século XVIII (Slater, 1997SLATER, D. Consumer culture & modernity. Cambridge: Polity Press, 1997.), levaria tempo para que ela ganhasse a forma atual, necessitando de novos tipos de liberação moral. E embora a formação do liberalismo, e do indivíduo moderno, a partir da liberação das paixões, seja fundamental para entendermos como a cultura do consumo se constituiu, até chegarmos a esse ponto, houve um longo caminho. O consumo, como espaço de realização das paixões ainda não podia ser aceito no contexto de um capitalismo em fase de acumulação, que exigia sacrifícios, renúncias, adiamentos da satisfação. Porém, o desenvolvimento posterior do capitalismo levou a uma exacerbação do direito à satisfação ilimitada, satisfação essa estruturalmente impossível, como nos legou o conhecimento psicanalítico.

A (re)descoberta psicanalítica das paixões: o conceito de pulsão na formulação de uma ética da psicanálise

Dois séculos depois dos escritos de Mandeville, é também outro “médico das almas”, desta vez o criador da psicanálise, que retoma a problemá­tica das paixões a fim de compreender as patologias psíquicas de sua época. Para isso, Freud (2014a_______. As pulsões e seus destinos. São Paulo: Autêntica, 2014a., p.25) propõe a pulsão como “um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal”. Esse é um dos conceitos mais importantes, porém um dos mais complexos da psicanálise freudiana, na medida em que “opera numa zona de indetermina­ção, de indistinção entre corpo e aparelho psíquico: embora sua fonte seja sempre somática, só conhecemos dela seu representante psíquico” (Iannini, 2014IANNINI, G. Epistemologia da pulsão: fantasia, ciência, mito. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos. São Paulo: Autêntica, 2014. p.91-134., p.96).

Freud ecoa a máxima de Hume (2009HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora Unesp, 2009.) ao sentenciar que as pulsões são mais fortes que interesses ditados pela razão, o que leva o conceito freudiano de pulsão a se assemelhar ao conceito mandeviliano de paixão. Mas, em Freud o conceito é desnaturalizado. A pulsão está sempre em relação com a cultura. Quando Freud falou sobre a civilização e seus descontentes (Freud, 2011), ele se referiu a uma impossibilidade estrutural do homem de obter plena satisfação. A civilização é construída apenas com a renúncia à satisfação da pulsão. Essa satisfação seria perdida para sempre, dada a inserção do homem como sujeito na cultura. O objetivo da pulsão é sua satisfação, mas, para satisfazê-la completamente, o sujeito vai além do princípio do prazer (Freud, 2016) para um lugar de excesso que pode ser destrutivo, denominado por Freud de pulsão de morte (Freud, 2014b).

Lacan (1991LACAN J. O Seminário: Livro 7. A Ética da Psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1991.) revisitou o conceito de pulsão de morte, enfatizando o caráter radical de ir “além do princípio do prazer”, caracterizando-o como um tipo de lei que vai além de qualquer outra lei, que só pode ser estabelecida a partir de uma estrutura final, a partir de um ponto de fuga da realidade. Por essas razões, ele argumenta que é possível extrair uma ética da psicanálise com base no conceito de pulsão de morte. Essa ética só pode resultar em ética de insatisfação estrutural, de incompletude, ética que subverte a noção de prazer e felicidade que é a base de todos os tratados éticos, inclusive o aristotélico, referido por Lacan como “ética da felicidade” (Lacan 1991, p.313).

Ao contrário de Aristóteles, a psicanálise não coloca prazer no ideal, mas no real. O significado de prazer na psicanálise é algo diferente de um que pode ser descrito ou aceito no contexto de uma lei moral. Em contraste, a lei moral é declarada contra essa concepção radical de prazer que não liga formas culturalmente específicas como objetos de satisfação, indicando que o sujeito “não é levado a buscar seu próprio bem” (Copjec, 1994COPJEC J. Read My Desire: Lacan Against the Historicists. Cambridge, MA: MIT Press, 1994., p.87). De uma perspectiva freudo-lacaniana, o prazer e o bem não combinam; eles se contradizem, embora o pensamento ético procure uni-los (Lacan, 1991LACAN J. O Seminário: Livro 7. A Ética da Psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1991.). Por isso, Lacan afirma que a ética da psicanálise só pode ser uma ética trágica, no sentido de uma negatividade radical, de uma impossibilidade de síntese, porque não há síntese possível na busca humana de satisfação no mundo da cultura. Nesse sentido, adverte Lacan, “o bem não pode reinar sobre tudo sem que produza um excesso, cujas conseqüências fatais nos alertam para a tragédia” (Lacan, 1991, p.314).

Ao nomear a ética da psicanálise como trágica, Lacan quis localizar o contexto em que inspirou sua visão: a tragédia grega, mais precisamente, Antígona, de Sófocles. Esse recurso à tragédia visava uma ruptura epistemológica com as concepções filosóficas modernas da ética, no sentido de localizar a ética da psicanálise no lado da ação e não no lado do conhecimento moderno. A tragédia grega é da ordem do evento. O apelo do psicanalista à tragédia antiga é “destacar a dimensão real por ela articulada, na qual a problemática ética tem lugar no coração da polis, no real da cena trágica - e não por meio de uma formulação abstrata no domínio do pensamento, como ocorreria um século depois com o advento da filosofia” (Vorsatz, 2013VORSATZ I. Antígona e a Ética Trágica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., p.12). Mais do que uma forma de arte, a tragédia grega pode, portanto, ser entendida como um tipo de “dispositivo institucional” inscrito na cultura grega do século V, através do qual essa civilização começa a questionar o significado da ação humana, “perspectiva ética por excelência” (Vorsatz, 2013, p.29). E o faz a partir de um dispositivo que tem como objetivo a catarse das paixões, realizada coletivamente, na polis (Lacan, 1991).

A psicanálise, assim como o sujeito que ela concebe são produtos da modernidade. Ao romper com as abordagens éticas fundamentadas na filosofia moderna, Lacan procurou criar uma ética que não estivesse ligada à conformidade com um bem. A concepção do sujeito da psicanálise como sujeito do desejo inconsciente ocorre à imagem do herói trágico, aquele para quem não há conhecimento a priori que defina sua sorte. Em relação à descontinuidade com a lei da polis, o herói trágico atua na mais absoluta solidão, sendo responsável pelas consequências de suas ações. Sua condição, portanto, é a de abandono radical diante de um mundo que exige ação sem garantia.

Trata-se de uma ética radicalmente oposta ao que é proposto pelo “consumo ético”, cujo objetivo é dar continuidade ao consumo tornado “virtuoso”. Como já mencionado, o consumo ético, embora assim nomeado, está no campo da moral, não da ética. A ética da cultura do consumo é a do não adiamento da satisfação e da possibilidade de que ela seja absoluta. Tal ética, que já estava presente desde as origens da cultura do consumo, se intensificou nas décadas finais do século XX, coincidindo com a crise climática global.

A cultura do consumo como espaço de realizações pulsionais e mercantis

Embora Slater (1997SLATER, D. Consumer culture & modernity. Cambridge: Polity Press, 1997.) afirme que a cultura do consumo é contemporânea da Modernidade que se firmou no século XVIII, foi somente nas décadas finais do século XIX que ela começou a ganhar a forma que nos legou, justamente quando já estavam sedimentadas as condições históricas fundamentais para seu formato atual como espaço de realizações pulsionais e mercantis. Porém, foi necessária uma longa transformação cultural para que o consumo fosse aceito como positivo em uma sociedade ainda baseada no adiamento da satisfação. Até meados do século XX, a cultura do consumo ainda operava no contexto de um ethos burguês do trabalho duro e do princípio do adiamento da satisfação que alicerçaram o capitalismo em sua fase de acumulação. A passagem desse ethos burguês para um novo conjunto de valores que sancio­nava o direito ao lazer e ao gasto compulsivo só viria se sedimentar a partir da segunda metade do século novecentista. Até lá, a sociedade orientada para o consumo ainda se via dividida entre o autocontrole calculado e a gratificação espontânea (Lears, 1983LEARS, J. From salvation to self-realization: Advertising and the the­rapeutic roots of the consumer culture, 1880-1930. In: FOX, R.; LEARS, J. (Org.) The culture of consumption: critical essays in American history, 1880-1980. New York: Pantheon Books, 1983. p.1-38.).

A cultura do consumo foi se formando, portanto, em meio a dois ethos francamente antagônicos que conviveram ao longo da primeira metade do século XX. Nesse período, as seduções da cultura do consumo foram compreen­didas, apenas, como o ponto de chegada de quem trabalhou duro, como as recompensas da satisfação voluntariamente adiadas, a certeza de que “quanto mais severa a autorrestrição, maior seria eventual­mente a oportunidade de autoindulgência” (Bauman, 1999_______. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999., p.181). O adiamento da satisfação mantinha o trabalhador a serviço do consumidor, mantinha o consumidor que vive no produtor “ple­namente acordado e de olhos bem abertos: trabalhe, pois quanto mais você trabalhar, mais você consumirá” (Bauman, 1999, p.181). Por isso, para Bauman (1998), o mal-estar a que Freud se refere é o da sociedade moderna, pois foi somente essa que se pensou como uma atividade da cultura. No entanto, é importante destacar que a forma cultural específica a que Bauman se refere - a sociedade disciplinar da primeira metade do século XX - é diferente da ideia mais ampla de cultura a que Freud se refere quando fala de uma impossibilidade cultural de satisfação pulsional.

É possível depreender que Freud também examinava como es­tava se dando o trade-off entre pulsões e aculturação no mo­mento histórico no qual a moderna sociedade industrial impunha certas exigências culturais. E entre tantas exigências que a modernidade impôs aos seus sujeitos, o adiamento da satisfação apresentava-se como um preceito comportamental inseparável e inescapável do “modo moderno de estar no mundo” (Bauman, 2001b_______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001b., p.180). Nada, porém, predispõe os sujeitos à acomodação de tais exigências. Isso deve ser ensinado e incorporado como o sinal mais certo de “uma civilização em atividade” (Bauman, 1998, p.8).

No segundo pós-guerra esse cenário começa a mudar (Strasser, 1989STRASSER, S. Satisfaction guaranteed: the making of the American mass market. New York: Pantheon Books, 1989.). O adiamento virtuoso da satisfação começa a entrar em contradição com uma cultura do consumo que passa a promover o direito ao gozo imediato dos objetos; assim como, a promover experiências hedônicas até então consideradas transgressivas pelos valores culturais burgueses, passando a solapar esses valores que, contraditoriamente, sustentavam-na como espaço possível de realização pulsional.

O impulso para o excesso intensificou-se nas duas últimas décadas do século XX, levando-nos ao “divertimento até a morte” (Postman, 2005POSTMAN, N. Amusing ourselves to death: Public discourse in the age of show business. Penguin Publishing Group, New York, NY, 2005.), especialmente no que diz respeito à tragédia do Antropoceno. Para enfrentar esse contexto excessivo, o capitalismo contemporâneo busca recuperar sua saída virtuosa construindo a proposta de um consumo ético, que recupera a maior parte do debate moral sobre as virtudes da contenção da era de Mandeville, particularmente no que se refere à ideia de consumo como virtude. Esse virtuosismo foi recarregado pela proposição de consumo como meio de ação moral. Tal perspectiva pode ser considerada parte da narrativa do business as usual (Wright et al., 2018WRIGHT C. et al. Organizing in the anthropocene. Organization, v.25, n.4, p.455-71, 2018.), servindo ao funcionamento de um sistema no qual o consumo tem status central na lógica da produção de valor. Assim, diante da tragédia do Antropoceno, parece crucial lidar com a radicalidade de uma ética em que a satisfação humana é impossível de cumprir.

Considerações finais: as impossibilidades do consumo ético para a crise do Antropoceno

Neste ensaio, propus o conceito psicanalítico de pulsão como forma de contribuir para uma reflexão crítica acerca dos impactos dos excessos consumistas para a crise climática e das impossibilidades de um consumo ético nesse contexto. Vimos como o conceito de pulsão faz convergir economia pulsional e mercantil, ou seja, considera o papel do consumidor na busca das realizações pulsionais, ao mesmo tempo em que também põe o acento na maneira como o capitalismo instiga e acentua a busca da satisfação pulsional. Mas a pulsão funciona sob uma lógica a partir da qual sua satisfação plena é impossível, “excede as próprias limitações que tornam a vida coerente” (Loose, 2015LOOSE, R. The other side of marketing and advertising: psychoanalysis, art and addiction. Marketing Theory, v.15, n.I, p.31-38, 2015., p.37).

Com base em Freud, e de volta a Mandeville, cabe agora constatar que, ao contrário do que este último supunha, vícios privados que justifiquem a liberação das paixões não parecem constituir benefícios públicos, pelo contrário, têm gerado um excesso problemático. Por outro lado, embora tenha escrito a Fábula em nome de uma defesa da liberação das paixões, Mandeville deixa entrever, através da insatisfação das abelhas, que não há possibilidade de uma satisfação total. Afinal, a fábula explicita que, apesar de prósperas, as abelhas não estavam, assim, tão satisfeitas. Faltava alguma coisa! Já que tinham tudo, reclamavam a virtude que lhes faltava.

Hoje, diante da crise do Antropoceno e em meio à distopia dos excessos consumistas, a cultura do consumo espera retomar sua saída virtuosa através da construção de um consumo ético que recupera muito do debate moral acerca das virtudes do comedimento da época de Mandeville. Nesse novo cenário, é importante apontar para os limites dessa proposição no contexto do capitalismo como modo de operação das paixões/pulsões.

A partir de uma perspectiva crítica é necessário, porém, considerar a força das pulsões e os espaços de liberação pulsional possíveis e imagináveis para além de um capitalismo de consumo. A ética trágica da psicanálise não nos dá respostas concretas para a crise do Antropoceno, porém, no retorno lacaniano à tragédia grega, deixa uma inspiração metodológica para nos guiar, no sentido de que estamos diante de um momento para o qual as respostas do conhecimento moderno não parecem mais dar conta. E deixa uma inspiração ética por excelência: a do mundo não todo e da impossibilidade da satisfação total.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2020
  • Aceito
    02 Jun 2020
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