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Tensão pós-moderna em manifestações de rua no Brasil: notas dialógicas acerca da assinatura política

RESUMO

Neste artigo demonstra-se uma alteração discursiva no engajamento em manifestações políticas de rua a partir de um debate acerca da relação entre o funcionamento da linguagem e o aparato tecnológico que continuamente organiza a interação social. O fenômeno em foco é flagrado no modo de assinar os enunciados que constituem essas manifestações. Para isso, analisam-se enunciados de dois momentos políticos brasileiros: as manifestações conhecidas como “diretas já” entre 1983 e 1984 e as manifestações de pauta mais alargada de 2013. De um ponto de vista dialógico, identifica-se uma distinção enunciativo-discursiva quanto à assinatura ética nas manifestações evidenciando uma tensão pós-moderna.

PALAVRAS-CHAVE:
Pós-Modernidade; Dialogismo; Enunciado concreto; Manifestação de rua; Assinatura política; (Meta)Carnavalização

ABSTRACT

In this article, a discursive change in the way one can engage in political street demonstrations is shown through a debate about the relationship between how language functions and the technological apparatus that continuously organize social interactions. This phenomenon is examined in the signatures of enunciations that constitute those demonstrations. To accomplish this, the enunciations of two Brazilian political movements are analyzed: the demonstrations known as ‘direct (elections) now’, in 1983 and 1984, and the larger agenda 2013 demonstrations. From a dialogic point of view, one identifies an enunciative-discursive distinction in the ethical signature of the demonstrations, evincing a postmodern tension.

KEYWORDS:
Postmodernity; Dialogism; Concrete enunciation; Street demonstration; Political signature; (Meta)carnivalization

Considerações iniciais

Na história contemporânea do Brasil, as manifestações políticas de rua marcam importantes capítulos da contínua narrativa que se desenrola por tensões entre grupos sociais e define encaminhamentos das e para as coletividades. Seguindo Burke (2002BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002.), essas manifestações podem ser compreendidas como movimentos sociais que dão início a um processo de mudança ou reagem a mudanças em curso nas relações entre grupos. Desde a proclamação da República, em 1889, por exemplo, listam-se várias manifestações nas ruas mobilizadas por pauta coletiva. Ainda que de proporções diferentes entre si, movimentos como o sufragista dos anos 1920, que promoveu a inclusão das mulheres ao grupo de eleitores brasileiros; o movimento constitucionalista de 1932, que culminou na convocação de Assembleia Constituinte e posterior promulgação da Constituição de 1934; a marcha da família com Deus pela liberdade em 1964, que depois do golpe militar em 1º de abril daquele ano passou a se chamar “marcha da vitória”, contra reformas de cunho progressista do então presidente João Goulart; o movimento pelas “Diretas já” entre 1983 e 1984, que pleiteava a eleição direta para presidência da República; os Caras-Pintadas, como ficou conhecido o movimento estudantil brasileiro em 1992 em favor do impedimento do então presidente Fernando Collor de Melo; as manifestações de rua contra o aumento de tarifas no transporte público em 2013; entre tantos outros que podem ser acrescentados, capturam pautas em prol de alguma reivindicação de arranjos coletivos e, portanto, dizem respeito a tensões entre grupos sociais.

Neste artigo, os movimentos sociais são vistos da perspectiva discursiva - de modo mais específico, dialogicamente -, o que implica três premissas interdependentes, cuja apresentação linear atende às coerções de um documento escrito e não diz respeito a uma hierarquia de relevância. A primeira é o reconhecimento de que a produção sociocultural lato sensu, aí incluídas as questões políticas, econômicas, artísticas, identitárias, entre tantas outras, se dá no mundo verboideológico (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.; Bakhtin, 2016a_______. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: ___. Os gêneros do discurso. Org., trad., posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p.71-110.; Volóchinov, 2017_______. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. de notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Em contraste com o mundo natural, cujos elementos estão dados e determinados por relações físico-químicas, muitas das vezes, causais e mecânicas, o mundo verboideológico se define como cosmovisão simbolizadora das relações com o outro e com o meio. Assim, a produção humana é definida por valores sociais que fazem a produção humana significar na e para a coletividade por meio de relações contínuas entretecidas pela interação de uns com os outros e com o universo em que se inscrevem. No mundo verboideológico, ainda que os elementos que ali figuram tenham apresentação material, não interessa a matéria, mas os significados e sentidos que a relação conteúdo-material-forma nesses elementos pode promover. Por exemplo, não interessam os processos físico-químicos da combustão de uma vegetação, isto é, aquilo que se processa fisicamente no mundo natural, mas suas simbolizações como “queimada”, “degradação ambiental”, “crime ambiental” etc., ou seja, aquilo que é valorado a partir de parâmetros ordenados por cosmovisões. A sociedade não acessa a combustão imediatamente; antes, somente pela simbolização, que implica valor social, perspectiva e, pode-se dizer, posicionamento ético, e a linguagem é condição desses processos interpenetrados. Nesta discussão, foca-se a dinâmica de valor(es) inerente a qualquer processo de simbolização (ou discursivização).

A segunda premissa diz respeito à responsabilidade implicada na participação no mundo verboideológico. Não há como simbolizar as ações humanas sem se engajar em determinados valores, refutar outros, silenciar outros tantos, ratificar ainda outros e assim por diante. Bakhtin (2010_______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010., p.96) define essa condição inerentemente responsável de participação no mundo que aqui é nomeado verboideológico como “não álibi no existir”. Isso dispõe todo e qualquer ato cultural num encadeamento histórico-social de modo que nada se produz num vácuo relacional. Histórico não é aqui entendido como apelo factual, como se a produção humana pudesse ser acessada sem a mediação linguageira, mas como “a dinâmica relacional que, a um só tempo, constitui os grupos sociais e dá sentido aos atos executados nesses e por esses grupos” (Magalhães; Kogawa, 2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019., p.92), ou seja, histórico é tomado num sentido de “movimento perene de alterações relacionais” (ibidem).

A terceira premissa é o princípio dialógico, segundo o qual toda e qualquer participação no mundo verboideológico necessariamente: a) responde a participações que a antecederam e b) provoca respostas subsequentes. Isso significa dizer que os sentidos dos atos executados no mundo verboideológico não são nem estão dados, mas resultam das relações estabelecidas no emaranhado desses atos com outros. Como recurso retórico-didático, esse emaranhado é comumente representado por uma cadeia comunicativa discursiva (Bakhtin, 2016b_______. Os gêneros do discurso. In: ___. Os gêneros do discurso. Org., trad., posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. p.11-70.). Entretanto, a imagem de cadeia não deve levar a uma ingênua idealização de ordenamento linear de atos.

Com base nessas premissas, o objetivo aqui é problematizar uma alteração discursiva no engajamento em manifestações políticas de rua a partir de uma reflexão acerca da relação entre o funcionamento da linguagem e o aparato tecnológico que continuamente organiza a interação social. Para isso, demonstra-se, a partir de registro fotojornalístico, uma diferença discursiva evidenciada no modo de assinar os atos concretos constitutivos de movimentos político-sociais brasileiros de dois momentos: aquele conhecido como “Diretas já” entre 1983 e 1984 e as multifacetadas manifestações de 2013 deflagradas, em princípio, contra o aumento da tarifa no transporte público. Hipotetiza-se que, a despeito do curto intervalo de tempo entre eles, parece haver uma sensível mudança no modo de se engajar nas manifestações políticas de rua, e tal mudança sugere uma alteração discursiva superordenada, isto é, alteração não apenas no âmbito da singularidade de cada ato, mas nas condições histórico-sociais de se posicionar e encadear discursos.

Condições histórico-sociais de posicionamento ético: a tensão pós-moderna

A hipótese que se levanta nesta discussão é gestada a partir da compreensão de que as condições histórico-sociais se definem pelas maneiras como a validação de discursos define referenciais decisivos para arranjo coletivo. Nesse sentido, pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade são compreendidas como condições, e não como intervalos de tempo determinados. Ainda que sejam especulativamente associadas a épocas, os termos são assumidos como as condições relacionais que não se desdobram de modo linear nem estanque, como se uma época se concluísse para que outra iniciasse. Isso significa dizer que os termos em destaque nomeiam dinâmicas relacionais superordenadas que podem até funcionar num mesmo tempo.

Em linhas gerais, costumam-se diferenciar as sociedades significadas como tradicionais (ou pré-modernas) das modernas pelos elementos validados como referenciais para ordenação de relações de uns com os outros e com o meio. No funcionamento tradicional, a trama relacional é regrada pela transcendentalidade de deidades. Explica-se a pré-modernidade pelo arranjo coletivo organizado a partir de mitos fundadores, que moldariam as condições verboideológicas. Tanto as sociedades tribais encontradas nas Américas pelos colonizadores ao longo dos séculos XV ao XVII quanto certos grupos étnicos indígenas atuais que vivem afastados do convívio rotineiro com as sociedades urbanas, por exemplo, podem ser descritos por esse modo de funcionamento coletivo. Já as sociedades significadas como modernas ordenam-se por outros valores referenciais preponderantes. A Razão, o Estado, a Ciência operam como múltiplos vetores de organização das relações sociais em lugar do vetor único da divindade.

Lyotard (1979LYOTARD, J.-F. La condition postmoderne. Paris: Minuit, 1979.; 1986) nomeia os referenciais que regram as relações sociais metanarrativas. As relações ordinárias do cotidiano dispor-se-iam em narrativas, que seriam regradas por esses parâmetros superordenados, as metanarrativas. Desse modo, agir no mundo verboideológico implicaria posicionamento diante desses referenciais que, por validarem as relações sociais, funcionariam como balizadores culturais. Assumir essa especulação filosófica como um dispositivo descritivo-analítico do funcionamento cultural permite dizer que a fronteira entre pré-modernidade e modernidade não é definida por sequencialidade temporal, mas pela legitimação de determinados referenciais como metanarrativas em detrimento de outros. Assim, quando a divindade, a religião, o transcendental desempenha a função metanarrativa, as relações sociais se ordenam pelo modo significado como tradicional, ou pré-moderno; ao passo que, quando a função metanarrativa é preenchida pela Razão, pelo Estado, pela Ciência, instituem-se relações significadas como modernas.

Shinn (2008SHINN, T. Desencantamento da modernidade e da pós-modernidade: diferenciação, fragmentação e a matriz de entrelaçamento. Sci. stud., São Paulo, v.6, n.1, p.43-81, Mar. 2008.) pondera que a modernidade congrega duas correntes: emancipatória e tecnológica. A primeira seria a matriz de conceitos-valores enformados emblematicamente nos Estados-nações, a partir dos quais se desenvolveram “os princípios de cidadania, dever, burocracia, direitos e responsabilidades institucionais e, não menos importante, de fronteiras. Estas últimas são as do Estado-nação, construídas em torno da linguagem, da geografia, da história, da cultura e da política” (Shinn, 2008, p.46 - grifos nossos). O autor acrescenta que as tensões político-partidárias entre conservadores, liberais e socialistas, de algum modo, respondem a esses princípios emancipadores modernos, o que permite dizer que as tensões políticas que hoje costumam ser sintetizadas na tensão entre progressismo vs. conservadorismo, ou ainda, direita vs. esquerda muito respondem a referenciais legitimado(re)s na/da modernidade. A segunda corrente teria três principais valores-efeito: 1) a arregimentação em alta escala, haja vista o contraste da manufatura com a produção industrial; 2) o ideal de progresso que amalgamaria, na técnica, o progresso científico e o humano; 3) a conformação da liberdade do indivíduo ao imperativo da universalidade homogeneizadora e à integração e funcionalidade tecnológica. Em síntese, “ecoando a emancipação, o braço tecnológico está baseado na racionalidade, na universalidade, na diferenciação estrutural e na integração funcional. A ciência junto com a tecnologia constitui o foco essencial” (Shinn, 2008, p.47).

Da pré-modernidade para a modernidade, há dois movimentos, segundo Dufour (2003DUFOUR, D.-R. L’Art de réduire les têtes - sur la nouvelle servitude de l’homme liberé à l’ère du capitalisme total. Paris: Denoël, 2003.). Um diz respeito à alteração do referencial transcendental singular próprio do funcionamento pré-moderno para um referencial plural não transcendental próprio do funcionamento moderno: [Deidade] → [Razão] [Estado] [Ciência]. O outro diz respeito ao encurtamento da distância entre entes legitimadora das metanarrativas. O transcendental se realiza por uma assimetria que excede o âmbito humano; o não transcendental se realiza por uma assimetria no limite daquilo que é produzido pelo próprio humano. De qualquer maneira, em ambos mantém-se uma hierarquia geradora de valores, aos quais se pode aderir ou refutar; em relação aos quais é possível se posicionar.

A pós-modernidade, nesse quadro de pensamento, resultaria da ausência de metanarrativa. Essa condição faria emergirem relações sociais liberadas de valores superordenados, daí a deflagração de processos de fragmentação, individuação, relativização de absolutos. Sem a força coesiva e de matriz semiótica das metanarrativas, o agir sociocultural se encaminharia, nos termos de Dufour (2003DUFOUR, D.-R. L’Art de réduire les têtes - sur la nouvelle servitude de l’homme liberé à l’ère du capitalisme total. Paris: Denoël, 2003.), ao ultraliberalismo, que só reconheceria uma regra: a de livre circulação de mercadoria, prescindindo, inclusive, das coerções de subjetivação. A condição pós-moderna atinge o domínio ético e impacta até mesmo as relações sociais mais fortuitas.

Lyotard (1979LYOTARD, J.-F. La condition postmoderne. Paris: Minuit, 1979.; 1986) chama a atenção para o fato de essa condição estar diretamente ligada à validação tecnológica. Sem a fundamentação de metanarrativas, o tecnológico, a técnica desenvolvem-se para além dos constrangimentos da Ciência, da Razão, e miram diretamente a eficácia. Isso viabiliza um processo interacional que rearranja identidades sociais e distâncias espaciais e temporais. Especialmente no século XXI, a tecnologia permite interação entre entes em pontos díspares do planeta. Sabe-se da ocorrência de um atentado “em tempo real”, e indivíduos de diferentes inserções sociais (nacionalidade, idade, crença etc.), desde que munidos de aparato técnico, engajam-se nesse universo verboideológico. Dada a condição pós-moderna, como pondera Fridman (2000FRIDMAN, L. C. Vertigens Pós-Modernas - Configurações Institucionais Contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.), a mídia ocupa um lugar de destaque na rearticulação das instituições por meio das quais os entes se constroem e se relacionam. É possível dizer mais: o aparato tecnológico midiático constitui plataforma relevante para a consolidação da condição pós-moderna. Evidentemente, a linguagem cumpre aí função primordial.

Notas dialógicas sobre a assinatura política em manifestações de rua brasileiras

O princípio dialógico, premissa desta discussão, concebe a interação social como um fluxo comunicativo ininterrupto encadeado pela historicização implicada nas respostas; tanto as respostas executadas quanto aquelas esperadas (Bakhtin, 2017_______. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: ___. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.21-56., entre tantos outros). Uma abordagem dialógica das manifestações políticas de rua no Brasil já foi empreendida, entre outros, por Brait e Lopes-Dugnani (2014BRAIT, B.; LOPES-DUGNANI, B. Em cartaz, a cara e o corpo da linguagem das ruas! In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.) Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. p.116-32.), Magalhães e Queijo (2015MAGALHÃES, A. S.; QUEIJO, M. E. S. A arena discursiva das ruas e a condição pós-moderna: da manifestação à metacarnavalização. Bakhtiniana, São Paulo, v.10, n.3, p.166-85, Set./Dez. 2015.) e Magalhães (2019), e dois conceitos são chaves para compreensão da complexidade desse tipo de interação social: enunciado, unidade mínima da comunicação discursiva (Bakhtin, 2016b); e carnavalização, processo histórico-social de alteração provisória do funcionamento cultural, sobretudo, por meio da tensão promovida pela ambivalência semântica (Bakhtin, 2008).

A noção dialógica de enunciado, por estar fundamentada em sua função social, e não em sua apresentação formal, permite o tratamento teórico-metodológico de diferentes instanciações de linguagem em atividades humanas das mais variadas. Dessa perspectiva, são enunciados apenas produções linguageiras efetivas, realizadas em condições histórico-sociais específicas, o que exclui construções hipotéticas, desenraizadas de um ato concreto no mundo verboideológico. Como fenômeno, realizam-se na interação necessária entre três parceiros dialógicos, que, a despeito das diferentes nomenclaturas, aqui são nomeados como autor, destinatário e objeto (Bakhtin, 2016a_______. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: ___. Os gêneros do discurso. Org., trad., posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p.71-110.; b; c; d; Volochínov, 2013). O enunciado concreto, então, é a unidade da comunicação discursiva em que interagem aquele que assina e se responsabiliza pela instância de linguagem, o autor; aquele a quem se destina a instância de linguagem, o destinatário, que pode ser real ou pressuposto; aquilo que é tomado como objeto da instância de linguagem, o objeto. Por que destinatário e objeto também são participantes agentes do enunciado concreto? O destinatário é agente porque o necessário endereçamento do enunciado já impõe ao autor coerções para a construção material da instância de linguagem pela qual se responsabiliza. Assim, o destinatário impacta a própria construção material do enunciado. O objeto é participante dialógico porque a memória que traz consigo dos outros enunciados que já integrou também impacta a construção material do enunciado.

Nesta discussão, examinam-se enunciados concretos componentes de uma atividade socioculturalmente significada como “manifestação política de rua”. Dentre as possibilidades enunciativo-discursivas próprias dessa atividade, foca-se o registro fotojornalístico de cartazes e faixas empunhados por sujeitos-manifestantes. A análise proposta acerca da assinatura política lida, portanto, com o jogo enunciativo em que o enunciado-cartaz no momento da manifestação é tomado como objeto do enunciado-fotojornalístico vetor de memória da atividade em que o enunciado-cartaz se inscreve. Vale detalhar: 1) os elementos fotojornalísticos congregados para discussão neste artigo são dispostos, pelo princípio dialógico, num encadeamento de respostas que não deve ser processado linearmente, mas como emaranhado histórico-socialmente circunscrito; 2) a assinatura política em análise constitui o enunciado-cartaz, que é capturado como objeto do enunciado-fotojornalístico; 3) o cotejo de movimentos de dois tempos brasileiros visa evidenciar o impacto da tensão pós-moderna no posicionamento ético flagrado na assinatura.

Também pela via dialógica, compreende-se que as manifestações políticas de rua operam pela carnavalização. Esse conceito é especialmente desenvolvido por Bakhtin (2008BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2008.), quando faz um minucioso trabalho filológico com o vocabulário na praça pública cotejando a Idade Média e o Renascimento. Trata-se de um tipo de relação dialógica (Bakhtin, 2016a; 2017) construída pela ambivalência semântica, isto é, pela “correlação gradiente de significados validados socioculturalmente para produção de discurso” (Magalhães, 2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019., p.102). Nas manifestações há, ao menos, dois aspectos necessariamente carnavalizados para execução da atividade: o espaço e os participantes. O espaço público, a rua, ordinariamente utilizada como via para diferentes meios de transporte, é provisoriamente tomada por transeuntes. Essa ocupação precisa ser provisória, porque alterar a ordem corriqueira constitui a atividade de se manifestar. As ruas continuam sendo espaço urbano de tráfego de veículos, mas provisoriamente funcionam como palanque político para transeuntes, e essa ambivalência é constitutiva da manifestação política de rua.

Semelhantemente, ao mesmo tempo em que preservam suas identidades sociais, os transeuntes constituem-se manifestantes ao se localizarem na rua-palanque. Isso quer dizer que “manifestante” se define não em essência, mas pela ambivalência identitária provisória, que se materializa na simples adesão ao grupo transeunte ou, mais elaboradamente, por figurinos especiais. Magalhães e Queijo (2015MAGALHÃES, A. S.; QUEIJO, M. E. S. A arena discursiva das ruas e a condição pós-moderna: da manifestação à metacarnavalização. Bakhtiniana, São Paulo, v.10, n.3, p.166-85, Set./Dez. 2015.) demonstram como trajes especiais tipo fantasias, chapéus, nariz de palhaço, entre outros, integram o processo enunciativo-discursivo nas manifestações. Brait e Lopes-Dugnani (2014BRAIT, B.; LOPES-DUGNANI, B. Em cartaz, a cara e o corpo da linguagem das ruas! In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.) Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. p.116-32.) discutem especificamente como a máscara V de Vingança constitui enunciados concretos em manifestações políticas de rua convocando memórias para atuarem na discursivização da pauta pleiteada.

A pauta é um elemento fulcral nas manifestações, porque constitui o valor sociocultural que implica grupos sociais - grosso modo, quem reivindica [pauta] a quem. Os enunciados produzidos nessa atividade política cumprem função metonímica em relação à pauta. Palavras de ordem, cartazes, faixas e afins expressam laconicamente o propósito do ato coletivo. Por essa razão, o registro fotojornalístico das manifestações tende a capturar em seu objeto esses cartazes e faixas promovendo uma memória icônico-discursiva para o evento.

Essa memória verbovisual é bastante potencializada pelas possibilidades interacionais hodiernas, haja vista que, mesmo passados mais de 30 anos do movimento popular conhecido como “Diretas já”, em que houve pressão popular para que as eleições presidenciais fossem diretas, e não parlamentar, imagens fotorjornalísticas ainda circulam na rede. Essa plataforma rearranja a dinâmica espaço-temporal, como já dito, e também o encadeamento de textos. Conforme discute Magalhães (2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.), a circulação de imagens de 1983 e 1984 no século XXI instaura um jogo em que a memória do objeto fotografado na década de 1980 e a do destinatário que integra o enunciado concreto do material transposto para os dias atuais diferenciam-se não só pela disjunção temporal, mas pelo posicionamento ético dos sujeitos. Na presente discussão, a disjunção temporal não é o foco; destacam-se especialmente as pistas discursivas que a assinatura de enunciados-cartazes evidencia, por isso, interessa o posicionamento ético dos sujeitos fotografados.

Por ocasião dos 30 anos do movimento, a imagem de um ato de manifestação pelas diretas já ocorrida em 13 de abril de 1984 foi revisitada em diferentes textos.1 1 Por exemplo, disponível em: <https://www.jornaldocomercio.com/site/noticia.php?- codn=159097>. A despeito de para onde a imagem seja transposta, o projeto político capturado pelas lentes fotográficas é o mesmo. Sabe-se que o movimento foi derrotado, mas é possível recuperar do sujeito fotografado sua memória do futuro (Amorim, 2009AMORIM, M. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. Bakhtiniana, São Paulo, v.1, n.1, p.8-22, 1ºsemestre 2009.) cuja expectativa era o retorno do Estado civil democrático (Magalhães, 2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.). Trata-se de uma fotografia em plano geral plongé (créditos: Alfonso Abraham/Divulgação/JC) que mostra a praça Montevidéu, Porto Alegre (RS), com manifestantes na praça, nas ruas e nos prédios ao redor. Faixas e banners de variadas conformações são exibidos em diferentes planos.

O plano geral favorece a construção de um sujeito fotografado de caráter coletivo, que pode ser nomeado como multidão. O ângulo, a distância, a perspectiva não permitem a definição nítida de indivíduos, mas um bloco de pessoas. Muitos banners e faixas podem ser vistos, embora nem todos com nitidez e resolução suficientes para devida leitura. Como o foco aqui são as assinaturas, a disposição dos enunciados registrados fotograficamente não será discutida. Assim, dentre as imagens com dizeres legíveis constam: “Diretas/na cabeça/Brizola” (essa assinatura sobreposta a duas faixas que, provavelmente reproduzem as cores da bandeira do Partido Democrático Trabalhista, PDT, então liderado por Leonel Brizola), “diretas já e constituinte”, “Basta! Diretas já!/Artistas pró-diretas”, “Eleições diretas já/Comitê Unitário Cachoeirinha”, “Partido Comunista do Brasil/UNE”, “Já/PMDB”, “Diretas já!/Fora FMI/MR8”, “PCB/[ilegível]Já/Greve geral 25”, além de bandeiras de partidos políticos, com destaque para três bandeiras do PDT.

Em 1980, o bipartidarismo havia acabado. A presença de bandeiras de partidos nesse ato em 1984 ratifica a adesão de grupos de diferentes orientações político-ideológicas. Dos oito enunciados legíveis listados, sete são assinados. Dentre as assinaturas, identificam-se partidos políticos, como PMDB, PCB; movimento organizado, MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro); a União Nacional de Estudantes, UNE; classe profissional, artistas; e um comitê, Comitê Unitário Cachoeirinha. A assinatura “Brizola”, apesar de se constituir pelo sobrenome de um líder político à época, funciona metonimicamente como assinatura do partido sob sua liderança, o PDT. Sendo assim, trata-se de sete assinaturas que colocam sob a responsabilidade de um grupo organizado aquilo que é empunhado, seja faixa ou banner. A assinatura é coletiva, marca a posição política pró-eleições diretas - o propósito do ato - e o consequente posicionamento ético dos grupos sociais assinantes. São assinaturas que independem daqueles “anônimos” distribuídos numa multidão que empunham as faixas.

A assinatura coletiva desses enunciados coloca os grupos nela implicados em interação com o regime e com a classe parlamentar que decidiria sobre o pleito, o destinatário, e atualiza a memória do movimento iniciado em 1983 com a PEC n.05/1983 apresentada pelo então deputado federal Dante de Oliveira, PMDB-MT, que disparou uma série de manifestações pelo Brasil. Nesses enunciados-cartazes coletivamente assinados há uma responsabilização de grupo politicamente organizado e com diferentes inserções institucionais: partidos, classe profissional, estudantes etc. Esse componente da identidade ambivalente dos manifestantes aponta o alcance do ato. Diversas camadas da sociedade estão ali responsavelmente enunciando(-se). O emaranhado discursivo que dali se pode rastrear revela uma memória dessas camadas participantes, e não apenas representadas. As assinaturas implicam sujeitos responsáveis cuja identidade social é construída pelo grupo que integram.

Em enunciados-fotojornalísticos de plano menos amplo e com melhor nitidez dos sujeitos fotografados e seus enunciados-cartazes, é possível ratificar essa implicação pragmática do ato enunciativo-discursivo performado na manifestação de rua. Considere-se, por exemplo, uma imagem sem crédito, também de arquivo, transportada para uma matéria da seção Estudo Prático do portal Terra Educação.2 2 Disponível em: <https://www.estudopratico.com.br/diretas-ja-o-que-foi-esse-movimento-e-seus-participantes/>. Em primeiro plano, há pessoas fantasiadas e com adereços, como chapéus, deitadas numa avenida. Logo em segundo plano, uma faixa com os dizeres: “Escola teatro Martins Penna/Diretas já”. Em terceiro plano, demais manifestantes e outra faixa não totalmente enquadrada na fotografia. O enunciado concreto ali não se restringe à faixa, mas inclui a performance dos sujeitos em primeiro plano que, devido à assinatura coletiva, identificam-se como artistas. Ainda que a imagem preserve a singularidade das pessoas, o ato coletivo é creditado a um grupo social. Novamente, a assinatura remete a um segmento da sociedade, com sua história, seu encadeamento discursivo na luta travada ao longo dos “anos de chumbo”. A identidade de artista deriva da atuação que os constitui em sujeitos na sociedade para além daquele ato, e a assinatura aponta para estabilidade social que constitui a identidade ambivalente e provisória da produção enunciativo-discursiva manifestação de rua.

Nas manifestações de junho de 2013, que se iniciaram pela contestação do aumento da tarifa do transporte público e depois alargaram a pauta e incluíram, por exemplo, o protesto contra os gastos excessivos e supostamente superfaturados de obras para a Copa do Mundo de 2014, identifica-se uma alteração no modo de inscrição enunciativa. Um arranjo discursivo diferente parece se estabelecer e pode ser flagrado em outro modo de assinatura que emerge com as possibilidades discursivas em rede. No que tange à função metonímica própria das palavras de ordem, cartazes, faixas e afins em manifestações políticas de rua, Magalhães e Queijo (2015MAGALHÃES, A. S.; QUEIJO, M. E. S. A arena discursiva das ruas e a condição pós-moderna: da manifestação à metacarnavalização. Bakhtiniana, São Paulo, v.10, n.3, p.166-85, Set./Dez. 2015.) demonstram como a construção dos enunciados nesses atos de 2013 variava quanto ao grau de explicitação da adesão a um item efetivamente pautado pelo movimento. Quanto mais aderente à pauta, maior a conformação do enunciado à metanarrativa da modernidade. Quanto menos aderente, mais o enunciado carnavalizava a própria manifestação e a pauta promovendo o que os autores denominaram metacarnavalização - processo resultante da condição pós-moderna. Para esta discussão, destacam-se as assinaturas dos cartazes.

Vejam-se quatro exemplos destacados do portal de notícias G1. A página intitulada “Cartazes das manifestações” agrupa imagens capturadas em diversas cidades, com destaque para São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, em 20 e 21 de junho de 2013. Os fotogramas são apresentados randomicamente, sem legenda, precedidos por destaque dos dizeres que constam nos cartazes. O primeiro selecionado é da Av. Paulista, São Paulo, crédito de Caio Kenji/G1, com o destaque: “Obrigado aos caras pintadas de ontem”.3 3 Disponível em: < http://g1.globo.com/brasil/cartazes-das-manifestacoes/platb/>. A imagem mostra em primeiro plano um cartaz em fundo branco e letras em caixa alta com os dizeres: “Sula protetora de animais/Obrigado aos caras pintadas de ontem,/Que fizeram os caras pintadas de hoje,/Que farão os caras pintadas de amanhã/Eu acredito na juventude do Brasil”. Em segundo plano, o rosto de uma senhora grisalha segurando o cartaz. Em terceiro plano, mais manifestantes. Apesar da rubrica pessoal “Sula”, o epíteto “protetora de animais” a inscreve numa discursividade de pauta coletiva. Ademais, o que toma como objeto é justamente o fio que entrelaça discursos de movimentos políticos. Há menção explícita ao movimento estudantil de 1992 em favor do impedimento do então presidente Fernando Collor e que, por ter tido como símbolo a pintura do rosto com faixas verde e amarela, ficou conhecido como Caras-Pintadas. No cartaz, caras-pintadas tem sua extensão semântica ampliada e nomeia cidadãos jovens na luta política democrática também do presente e do futuro; dialogicamente, abriga o jogo de memórias ao articular posicionamentos éticos de localizações estéticas distintas (Amorim, 2009AMORIM, M. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. Bakhtiniana, São Paulo, v.1, n.1, p.8-22, 1ºsemestre 2009.; Magalhães, 2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.). Esse jogo de memórias estabelece relações dialógicas entre sujeitos e atos e encadeia discursos. A pauta em 2013 é outra, mas a luta ético-política não é inaugural e faz reverberar vozes em diálogo.

Outra imagem do mesmo dia, de Belo Horizonte, crédito de Raquel Freitas/G1, traz um jovem erguendo um cartaz em meio a outros manifestantes.4 4 Ibidem. Em primeiro plano, o cartaz de fundo branco, com a ponta superior esquerda e inferior direita pintadas com faixas em verde e amarelo. Em letras pretas, lê-se: “Ou para a/roubalheira/ou paramos o/$ Brasil”. Logo abaixo do cartaz, o rosto do rapaz estampa listas verde e amarela nas bochechas. Eis novamente um vínculo dialógico com os Caras-Pintadas. O cartaz não apresenta uma assinatura explícita, mas o sujeito se implica na desinência número-pessoal em “paramos” assumindo a responsabilidade pelo enunciado que responde, a um só tempo, ao movimento estudantil de 1992 e às condições políticas do Brasil em 2013. Também sua identidade se constrói pela ambivalência de jovem cidadão-manifestante. Inscreve-se como cidadão do Brasil que participa de uma cadeia comunicativa discursiva de luta política em prol da democracia.

Nessas mesmas manifestações flagraram-se outro modo de enunciar. Dentre suas apresentações materiais, destaca-se um modo de assinar viabilizado pelo arquivo de textos em rede. Trata-se das assinaturas construídas pela estrutura [#TEXTO]. Vejam-se dois exemplos com uma das mais recorrentes à época: “Quero/bolsa/‘Louis Vuitton’/#vemprarua” (sem créditos),5 5 Ibidem. “Queremos/Kinder Ovo/A preço de/1 Real!/ #vemprarua” (Créditos: Caio Kenji/G1).6 6 Ibidem. Não se trata de uma assinatura individual. A simples recorrência dá indícios de que a assinatura aponta para algum coletivo. Em 2014, tornar-se-ia um movimento civil suprapartidário e manifestações de rua nomearia inclusive um de seus projetos.7 7 Disponível em: <https://www.vemprarua.net/o-movimento/#vem-pra-rua>. Porém, em 2013, qual segmento social é efetivamente referenciado para que se identifique quem se responsabiliza pelo enunciado assim assinado? A que ou a quem remete tal assinatura? É certo que remete a um discurso político, a um movimento político, mas impessoal ou, nos termos de Bakhtin (2017_______. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: ___. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.21-56.), não personalista. A assinatura não está desligada da esfera política, mas promove um arquivo mecânico, técnico, que confere vagueza ao lugar autoral. Além de manifestante, qual a outra faceta de quem enuncia? Isso impacta as relações constitutivas do enunciado concreto e o encadeamento discursivo.

A que remetem as construções com hashtag? Seria mesmo uma assinatura, ou mera rubrica de categorização de textos para agrupamento mecânico? É um recurso técnico próprio da rede, especialmente, das redes sociais, que costura textos ou fragmentos de textos, mas não implica a responsabilidade do sujeito que enuncia. Se a esfera política é nítida, não se pode necessariamente dizer que a cidadania de quem se enuncia o é. Ligam-se textos sem necessariamente subscrevê-los, sem aderir eticamente aos enunciados a que remetem. O símbolo #, eventualmente, identifica movimentos, mas não implica sujeitos discursivos, por isso, o recurso põe em suspensão o posicionamento ético. Haja vista o fato de o sujeito fotografado ter identificada apenas sua faceta provisória, a de manifestante; sua identidade social que o inscreve como sujeito de um grupo para além daquele ato fica omitida.

A construção [#TEXTO] não remete a uma posição autoral que possa pragmaticamente assumir a responsabilidade pelo enunciado; antes, remete a um discurso da esfera política cujo caráter não personalista sinaliza desprendimento de metanarrativas. A assinatura indica uma adjunção de textos ou fragmentos de textos de ordem política, é verdade, mas apenas justapostos, sem o encadeamento discursivo promovido pelo posicionamento ético assumido por sujeitos que, ao se assinarem nos enunciados, inscrevem-se em metanarrativas que projetam lugares sociais de dizer, de resistir, de reafirmar, de contestar. A assinatura não personalista se mostra a serviço de variegados fins e, por isso, é legitimada em uma manifestação metacarnavalizada.

Considerações finais

Neste artigo problematizou-se o modo de adesão enunciativa em manifestações políticas de rua. Entendendo que, a partir da segunda metade do século XX, as sociedades urbanas têm experienciado tensões pós-modernas, compararam-se produções linguageiras de dois momentos políticos brasileiros: das manifestações em torno das eleições diretas para presidência da República entre 1983 e 1984 e das multifacetadas manifestações políticas populares de 2013. Foram examinadas especialmente as assinaturas que ratificam o lugar autoral dos enunciados que circularam nessas atividades políticas. O cotejo de enunciados fotojornalísticos que promovem certa memória dos atos políticos em foco visa demonstrar que as condições histórico-sociais se alteraram recentemente autorizando também a emergência de enunciados cuja construção não promove efetivo encadeamento discursivo.

A discussão demonstra que a tensão pós-moderna não instaura uma nova ordem, mas autoriza (e não obriga!) a construção de enunciados de tipos diferentes com implicação discursiva vária. Por um lado, há enunciados legitimados por uma metanarrativa. São propriedades desse tipo de produção discursiva: atender à função metonímica em relação à pauta que justifica a atividade de se manifestar politicamente nas ruas, promover a identidade dos sujeitos discursivos que se manifestam por meio da ambivalência semântica entre a identidade social que não se esvai com o fim do momento de manifestação e a identidade provisória de manifestante, integrar uma cadeia comunicativa discursiva cujos elos definem-se por posicionamentos éticos responsáveis.

Por outro lado, há enunciados que parecem resultar da condição pós-moderna. Nesse caso, a função metonímica dá lugar à metacarnavalização; a identidade dos transeuntes se constrói pela ambivalência de uma faceta omitida e aquela provisória de manifestante; o encadeamento discursivo dá lugar à ligação técnica, mecânica de textos. O aparato tecnológico viabiliza o arquivo mecânico de textos “marcados” pela rubrica pós-moderna. Isso sugere que o modo de se manifestar está passando por um ajuste discursivo num plano superordenado. As condições histórico-sociais das manifestações políticas de rua parecem conter, nos dias de hoje, uma tensão pós-moderna.

Referências

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Notas

  • 1
    Por exemplo, disponível em: <https://www.jornaldocomercio.com/site/noticia.php?- codn=159097>.
  • 2
    Disponível em: <https://www.estudopratico.com.br/diretas-ja-o-que-foi-esse-movimento-e-seus-participantes/>.
  • 3
    Disponível em: < http://g1.globo.com/brasil/cartazes-das-manifestacoes/platb/>.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    Ibidem.
  • 6
    Ibidem.
  • 7
    Disponível em: <https://www.vemprarua.net/o-movimento/#vem-pra-rua>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2020
  • Aceito
    20 Abr 2020
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