Acessibilidade / Reportar erro

João Cruz Costa

PERFIS DE MESTRES

João Cruz Costa

José Arthur Giannotti

O código, inteligível para todos, deixa vazio, entretanto, um lapso de tempo a ser preenchido pelo testemunho das obras da pessoa morta. Dentre elas, a mais pública e conhecida é um grosso volume, Contribuição à História das Idéias no Brasil, editado várias vezes no país e no exterior. Não vai além do que promete o título: esboça um balanço do movimento de idéias que aportaram e se enraizaram por aqui, deste a herança portuguesa até as correntes positivistas e nacionalistas da Primeira República. História mais descritiva do que tomada pelo vírus de interpretações profundas, nem por isso, desprovida de um nervo que pretende estar sendo verificado a cada passo: dos portugueses, os brasileiros herdaram um caráter prático, anti-especula-tivo, que orienta o pensamento brasileiro para os campos da ação política e social. Desanda quando ele cai sob o fascínio de elucubrações como aquelas sobre o ser. O endereço é certeiro. João Cruz Costa (1904-1978) passou a vida argumentando e caçoando contra o germanismo fenomenológico e o historicismo crociano que alimentaram o pensamento da direita, particularmente aqui em São Paulo. Foi para ele um espanto que a fenomenologia pudesse ser usada pelo avesso, como aconteceu na obra de Sartre.

Seu maior êxito, entretanto, foi sua própria vida. A reflexão, rente aos acontecimentos, exercia-se cotidianamente no círculo dos alunos e dos amigos. Nunca conseguiu dar uma aula magna. Mas com pontualidade e persistência de fazer inveja aos relógios, durante trinta anos, entrava numa sala, tirava do bolso umas pequenas folhas de papel, preenchidas com sua letra gorda, e começava a conversa com os alunos. Esta girava em torno de um tema central, mas, pouco a pouco, ia divergindo, entremeando um comentário sobre um livro lido na véspera ou sobre um acontecimento político. Não havia reflexão que não tentasse agarrar o cotidiano muito nosso.

Os estudantes mais pernósticos e comprometidos com a idéia de rigor acadêmico reclamavam, mas iam ficando, tomando gosto pela conversa, descobrindo, além da grande discussão entre os filósofos consagrados, a possibilidade de refletir sobre opções que eram nossas, que faziam parte do que poderia ser uma cultura nacional, aprendendo, enfim, a levar a sério as opções que se estavam tramando neste estranho período de liberdade e fermentação que foram os anos de 45 a 64. Sem Cruz Costa, a nova geração que começa a ocupar os postos da filosofia paulista não seria o que é, não teria encontrado a ponte entre o ensino francês que, vindo pronto de fora, punha em perigo as possibilidades de nosso enraizamento, e a tradição portuguesa do soldado prático, ao mesmo tempo gatuno e pensador. Hoje em dia, com a crise da erudição e com a consciência cada vez mais nítida do esgotamento da forma atual da divisão do trabalho intelectual, que não mais carece tanto do produto do outro mas de sua própria reflexão em ato, podemos avaliar melhor a importância que teve este ensino de cunho socrático, que sabia rir dos livros e, principalmente, de si mesmo.

Seus últimos anos foram amargurados pela seriedade uniformizada que tomou conta do país. Ele, que dedicava tempo integral ao estudo das coisas nossas, metido o dia inteiro em sua riquíssima biblioteca, foi posto em suspeição pelos dedos duros da Universidade, como se estivesse a serviço de potências estrangeiras. Foi um dos primeiros a responder ao IPM instalado pela aliança entre os velhos professores rinocerontes e os militares de repressão. Para avaliar seu patriotismo lhe foi pedido que recitasse o Hino Nacional. A resposta veio incontinente: "Sem música, eu não sei cantá-lo".

Na semana passada um repórter me pedia, pelo telefone, dados sobre sua pessoa. Sua última questão, a mais formal, dizia: "Você acha que sua morte foi uma grande perda?" Esperando continuar como seu discípulo respondi depressa: "Não, Cruz Costa cumpriu seu ciclo de vida; sua irreverência, sua ironia, sua forma de ser brasileiro estão vivas entre nós; para ele só restava uma vida vegetal, que sempre recusou"... "Mas isto eu não posso publicar, respondeu o repórter, isto fere os sentimentos da família". Ele se esquece que sua família se entrelaça com seus amigos e seus estudantes na tentativa de aceitar risonhamente a finitude da vida e a indefinida expansão do espírito. Contra a carranca da ciência abstrata, temos a ironia dos acontecimentos; contra as promessas feitas para não serem cumpridas, temos a gravidade musical do comprometimento com tudo aquilo que é nosso e não comparece na cultura oficial; contra a versão burocrática da nacionalidade, opomos a tradição dos velhos cronistas de por em estória os acontecimentos decisivos do cotidiano.

José Arthur Giannotti é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Texto extraído do número 9 da revista Discurso (FFLCH-USP, São Paulo, 1978, p. 7-8)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br