Acessibilidade / Reportar erro

Relações Raciais entre Universitários no Rio de Janeiro

Racial Relations among University Students in Rio de Janeiro

Relations Raciales Chez les Étudiants de Rio de Janeiro

Resumos

Este artigo analisa alguns aspectos da vivência de estudantes universitários e sua percepção das relações raciais no Brasil, utilizando dados de uma pesquisa que recorreu a procedimentos quantitativos e qualitativos. Investigamos como os estudantes compreendem a existência de tratamento diferenciado entre negros e brancos na sociedade em geral e na universidade em particular, suas opiniões para a presença de poucos negros na universidade e que tipo de medida poder-se-ia adotar para aumentar essa presença. Em entrevistas com os estudantes que responderam ao questionário, procurou-se entender os aspectos recorrentes nas elaborações discursivas dos estudantes acerca dos temas acima mencionados. Identifica-se, em geral, uma tendência desse segmento específico da população a reconhecer a existência da discriminação na sociedade, mas não na universidade. Da mesma forma, há uma baixa adesão à idéia de se promover políticas específicas para a promoção do aumento de negros na universidade. Embora o subgrupo que mais apóia a adoção de medidas com esse objetivo seja o de negros na universidade particular, a principal clivagem em relação a esse aspecto está entre os alunos da universidade pública vis-à-vis os da universidade particular.

relações raciais; negros na Universidade; discriminação racial; Rio de Janeiro


This article analyses aspects of the relationship among university students and their perception of racial relations in Brazil, based on data collected from a survey that resorted to quantitative and qualitative procedures. We investigated the students' outlook on differentiated treatment of Negroes and Caucasians in society in general and at the university in particular, as well as their opinion regarding the presence of only a few Negroes at the university and the measures that could be adopted to increase the presence of Negroes. During interviews with students who answered the questionnaire, we endeavored to understand the recurring aspects in their treatment of above mentioned themes. In general, this particular segment of the population was identified to tend to acknowledge the existence of discrimination in society, but not at the university. Also, only a few are in favor of specific policies leading to an increase of the negro contingent at the university. Although the sub-group in favor of measures to this effect consists of Negroes studying at private universities, the main difference in this respect refers to students at public universities vis-à-vis those at private universities.

racial disparities; racial discrimination; racism; Negroes; Brazil


Dans cet article, on examine quelques aspects du vécu des étudiants et leur perception des relations raciales au Brésil. Pour cela, on part des résultats d'une recherche qui a fait appel à des procédés quantitatifs et à d'autres qualitatifs. On a examiné comment les étudiants ressentent l'existence d'une discrimination de traitement entre Noirs et Blancs tant dans la société que dans l'université, leurs avis concernant le faible contingent de Noirs à l'université et les mesures à prendre pour élever ce contingent. L'administration des questionnaires aux étudiants a été suivie d'entretiens où on a cherché à comprendre les aspects les plus présents dans leurs discours. On y a trouvé, en général, une tendance à reconnaître l'existence d'une discrimination raciale dans la société mais non pas à l'université. Aussi, les étudiants favorables à des actions spécifiques visant à élever le nombre d'étudiants noirs ne sont-ils pas nombreux, excepté un sous-groupe d'étudiants noirs des universités privées qui présentent un fort clivage vis-à-vis de ceux des universités publiques.

relations raciales; les Noirs à l'université; discrimination raciale; Rio de Janeiro


Relações Raciais entre Universitários no Rio de Janeiro

Elielma Ayres Machado

Luiz Cláudio Barcelos

Resumo

Este artigo analisa alguns aspectos da vivência de estudantes universitários e sua percepção das relações raciais no Brasil, utilizando dados de uma pesquisa que recorreu a procedimentos quantitativos e qualitativos. Investigamos como os estudantes compreendem a existência de tratamento diferenciado entre negros e brancos na sociedade em geral e na universidade em particular, suas opiniões para a presença de poucos negros na universidade e que tipo de medida poder-se-ia adotar para aumentar essa presença. Em entrevistas com os estudantes que responderam ao questionário, procurou-se entender os aspectos recorrentes nas elaborações discursivas dos estudantes acerca dos temas acima mencionados. Identifica-se, em geral, uma tendência desse segmento específico da população a reconhecer a existência da discriminação na sociedade, mas não na universidade. Da mesma forma, há uma baixa adesão à idéia de se promover políticas específicas para a promoção do aumento de negros na universidade. Embora o subgrupo que mais apóia a adoção de medidas com esse objetivo seja o de negros na universidade particular, a principal clivagem em relação a esse aspecto está entre os alunos da universidade pública vis-à-vis os da universidade particular.

Palavras-chave: relações raciais; negros na Universidade; discriminação racial; Rio de Janeiro.

Abstract

Racial Relations among University Students in Rio de Janeiro

This article analyses aspects of the relationship among university students and their perception of racial relations in Brazil, based on data collected from a survey that resorted to quantitative and qualitative procedures. We investigated the students' outlook on differentiated treatment of Negroes and Caucasians in society in general and at the university in particular, as well as their opinion regarding the presence of only a few Negroes at the university and the measures that could be adopted to increase the presence of Negroes. During interviews with students who answered the questionnaire, we endeavored to understand the recurring aspects in their treatment of above mentioned themes. In general, this particular segment of the population was identified to tend to acknowledge the existence of discrimination in society, but not at the university. Also, only a few are in favor of specific policies leading to an increase of the negro contingent at the university. Although the sub-group in favor of measures to this effect consists of Negroes studying at private universities, the main difference in this respect refers to students at public universities vis-à-vis those at private universities.

Keywords: racial disparities; racial discrimination; racism; Negroes; Brazil.

Résumé

Relations Raciales Chez les Étudiants de Rio de Janeiro

Dans cet article, on examine quelques aspects du vécu des étudiants et leur perception des relations raciales au Brésil. Pour cela, on part des résultats d'une recherche qui a fait appel à des procédés quantitatifs et à d'autres qualitatifs. On a examiné comment les étudiants ressentent l'existence d'une discrimination de traitement entre Noirs et Blancs tant dans la société que dans l'université, leurs avis concernant le faible contingent de Noirs à l'université et les mesures à prendre pour élever ce contingent. L'administration des questionnaires aux étudiants a été suivie d'entretiens où on a cherché à comprendre les aspects les plus présents dans leurs discours. On y a trouvé, en général, une tendance à reconnaître l'existence d'une discrimination raciale dans la société mais non pas à l'université. Aussi, les étudiants favorables à des actions spécifiques visant à élever le nombre d'étudiants noirs ne sont-ils pas nombreux, excepté un sous-groupe d'étudiants noirs des universités privées qui présentent un fort clivage vis-à-vis de ceux des universités publiques.

Mots-clé: relations raciales; les Noirs à l'université; discrimination raciale; Rio de Janeiro.

Introdução

Este artigo pretende contribuir para a discussão das relações raciais de ensino superior, tema que tem sido objeto de um crescente número de estudos. Nosso objetivo é examinar a percepção que os estudantes universitários, segundo sua cor1 1 . Os termos "raça" e "cor" são utilizados indiscriminadamente no presente trabalho, ambos significando uma categoria social, construída historicamente, que eventualmente é acionada como princípio classificatório e/ou hierarquizador nas relações sociais. e tipo de instituição que freqüenta – pública ou particular – têm das relações raciais na sociedade brasileira, suas elaborações sobre o pequeno número de negros na Universidade e a eventual adoção das medidas que alteram este quadro.

A afirmação de que há um "pequeno número de negros na Universidade" se apóia na literatura sobre o tema que estabelece, de forma inequívoca, as desigualdades raciais na realização educacional, ainda que se deva considerar que a porcentagem da população da coorte etária ideal que freqüenta cursos de nível superior no Brasil esteja significativamente abaixo dessa taxa em outros países, mesmo aqueles em desenvolvimento (Barcelos, 1999; Moro, 1993; Teixeira, 1998). Entretanto, nos grandes centros urbanos do país já é possível observar o crescimento dessa participação, o que reflete a expansão do ensino superior nas últimas décadas no Brasil.

Assim, os dados da PNAD-1990 para a sociedade brasileira como um todo, revelam que, com escolarização suficiente para ao menos ingressar na Universidade – doze anos de escolaridade ou mais – havia 2,1% de homens pretos e 2,8% de pardos, enquanto os números para mulheres pretas e pardas eram, respectivamente, 2,5% e 3,2%. No Rio de Janeiro, esses índices sobem para 3,1% de homens pretos e 6,3% de pardos e 2,5% de mulheres pretas e 5,6% de pardas, e justificam o interesse em investigar a trajetória escolar e os padrões de escolha de carreira de negros (pretos e pardos) e brancos no Rio de Janeiro. Justificam, igualmente, o interesse nos padrões de sociabilidade entre negros e brancos cursando nível superior. Neste sentido, torna-se particularmente interessante abordar a percepção que têm os estudantes de ensino superior a respeito das relações raciais no Brasil.

A pesquisa na qual a presente análise se baseia foi realizada entre estudantes de alguns cursos selecionados em duas universidades – uma pública, outra privada – na Área Metropolitana do Rio de Janeiro. A pesquisa constou de duas fases: na primeira, os estudantes responderam a um questionário; na segunda, foram realizadas entrevistas em profundidade com alguns deles. No que diz respeito ao objeto de análise do presente estudo, havia no questionário cinco perguntas sobre percepção das relações raciais na sociedade brasileira. Os temas destas perguntas foram aprofundados nas entrevistas.

A partir do material coletado, identificou-se, em geral, uma tendência desse segmento da população em reconhecer a existência da discriminação na sociedade, mas não na Universidade. Da mesma forma, há uma baixa adesão à idéia de se promover políticas de ação afirmativa que beneficiem os negros, embora a clivagem entre estudantes das universidades pública e particular seja mais marcante do que a diferença entre os grupos raciais.

É importante salientar que a abordagem desses temas neste segmento da população se torna ainda mais significativo em função do momento presente. Um observador da sociedade brasileira certamente notará que a discussão acerca das relações raciais contemporaneamente tem se tornado mais presente enquanto tema de debate nacional. Um dos temas mais recorrentes é, sem dúvida, a realidade educacional. Foco de grande atenção entre os ativistas políticos ligados ao movimento negro e de pesquisadores das mais diferentes áreas, o sistema educacional encontra-se relacionado a dois outros aspectos da questão racial – que igualmente têm despertado interesse crescente: (1) as estratégias e mecanismos de ascensão social, bem como os obstáculos a esta ascensão; (2) as possibilidades de implementação de políticas públicas de cunho reparador das desigualdades raciais. Certamente, analisar a percepção de um segmento da população que se encontra com elevado nível de escolarização é um elemento importante nesta discussão.

Contextualizando o Problema

Não há dúvida de que o enfoque sobre as relações raciais na sociedade brasileira tem mudado, e muito, nos últimos anos. Agências governamentais e programas específicos no âmbito dos governos federal, estadual e municipal são criados. É a sociedade brasileira, e mais especificamente o Estado brasileiro, enfim, respondendo à desconstrução do "paraíso racial". Obviamente, fundamental neste processo tem sido a atuação do movimento negro como ator político. Podemos identificar eventos como os Encontros de Negros do Norte e Nordeste, realizados ao longo da década de 1980, o Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em São Paulo, em 1991, a Marcha dos 300 Anos de Zumbi, realizada em Brasília, em 1995, como momentos que marcam o fortalecimento da mobilização política em torno da questão racial. Não é este o momento para fazer uma detida análise da mobilização racial, mas é importante ressaltar que, como já foi feito em Barcelos (1996), essa mobilização no Brasil se constitui na manipulação de diversos símbolos na luta pela cidadania, em uma cultura política que se caracteriza pela pouca receptividade à afirmação de identidades particulares.

A atenção a este elemento fundamental da cultura política brasileira é importante em um momento em que refletimos sobre a questão das políticas públicas de combate às desigualdades raciais. Como salientam alguns estudos (Bernardino, 1999; Dossiê Ações Afirmativas, 1996; Souza, 1997; Heringer, 1999; Bento, 2000), tratam-se das possibilidades e limitações de ações que têm como fim a igualdade de realização, não apenas a igualdade formal de oportunidades, mas que trata os grupos sociais de forma discriminada. As dificuldades dessas ações vão desde a ordem jurídica, até a legitimidade social de tais medidas. De qualquer forma, as propostas de ações afirmativas vêm ao encontro (ou seria de encontro?) às reivindicações históricas do movimento negro por medidas que estanquem os mecanismos de reprodução das desigualdades raciais. Guimarães (1999:166) considera que o debate sobre políticas públicas de caráter reparador das desigualdades raciais ainda se encontra restrito a organizações do movimento negro e a alguns espaços acadêmicos, tendo se ampliado mais recentemente por iniciativa do Governo Federal.2 2 . Como não poderia ser de outra forma, à medida que o debate se amplia, captura a atenção da mídia. Em matéria no site no.com.br de 13 de outubro de 2000 sobre as instalação da fábrica de automóveis da Ford na Bahia, Marcos Sá Correia informa que os "4 mil contratados [da fábrica] serão uma amostra estatística da sociedade local. Sessenta por cento das vagas foram reservadas para negros e mulatos, porque é a cor da população. As mulheres terão 40% dos empregos, porque é a parte que lhes cabe na região". Ainda assim, várias iniciativas de cunho reparador das desigualdades raciais, especialmente na esfera educacional, têm sido implementadas, e conforme observa Moehlecke (2000), o fato de essas iniciativas estarem circunscritas a organizações da sociedade civil, sejam elas organizações do movimento negro ou empresas privadas, é um dado a mais para reflexão. Em seu cuidadoso levantamento, a autora classifica em três tipos as ações voltadas para a inclusão da população negra no ensino superior no Brasil. São eles:

a) as aulas de complementação, que envolveriam os cursos pré-vestibulares de verão e/ou de reforço durante a permanência do estudante na faculdade; b) o financiamento dos custos para o acesso e permanência nos cursos, envolvendo o custeio da mensalidade de instituições privadas, bolsas de estudos, auxílio moradia, alimentação e outros; c) as mudanças no sistema de ingresso nas instituições de ensino superior, através do sistema de cotas, taxas, metas e outros. (ibidem:73)

Além do seu alcance e conteúdo, as iniciativas de combate à exclusão envolvem questões que dizem respeito à legitimidade de medidas de caráter particular. Fry (1991), ao analisar a emergência do comportamento chamado politicamente correto em contextos sociais diferentes, sugere pistas interessantes para a compreensão da implementação de políticas públicas específicas para um segmento da população. Comparando ex-colônias portuguesas e britânicas, o autor sublinha que nos Estados Unidos, por exemplo, a promoção de políticas com vistas a contemplar representativamente a composição étnico-racial e sexual da população, visando proteger as "minorias", encontra-se articulada com a noção de diferença. Por outro lado, no Brasil haveria a dificuldade em utilizar a filiação étnico-racial ou de gênero como princípios distintivos para discriminação. Neste caso, a condição socioeconômica mantém-se como instância paradigmática da diferença. Nesta perspectiva, nas universidades dos Estados Unidos o florescimento da concepção de multiculturalismo é celebrado; em contraposição, nas universidades brasileiras, a ênfase recai sobre a universalidade.

Podemos perceber, nos dados agregados e nas entrevistas, como essas temáticas perpassam a experiência dos estudantes e sua percepção das relações raciais no Brasil. Trata-se de um interessante flagrante das elaborações de um importante segmento da sociedade.

Metodologia e Algumas Questões Suscitadas pelo Trabalho de Campo

Instrumento de pesquisa, o survey e as entrevistas

Elaboramos como instrumento de pesquisa um questionário dividido em cinco seções, a saber, Identificação, Família e Residência, Renda Familiar, Educação e Comportamento.3 3 . O pré-teste do questionário foi realizado em duas universidades, distintas das universidades onde foi realizado o survey, nos meses de outubro e novembro de 1997. Foram aplicados, então, 116 questionários. Os questionários foram respondidos pelos próprios alunos na presença de um pesquisador. Utilizamos a abordagem direta na seleção dos entrevistados, tendo participado alunos dos turnos diurno e noturno. Aplicamos os questionários entre outubro de 1998 e agosto de 1999, perfazendo um total de 1.306 questionários respondidos. O preenchimento do questionário dependeu de autorização das direções das universidades e/ou departamentos, e de entendimentos diretos com um professor que cedia parte do tempo de aula para que os alunos respondessem. Apenas vinte questionários devolvidos foram descartados por revelarem preenchimento impróprio. (Desses vinte questionários, três foram preenchidos por alunos estrangeiros.)

Na segunda fase da pesquisa, durante o segundo semestre de 1999 e os meses de janeiro e fevereiro de 2000, foram realizadas as entrevistas gravadas com os estudantes, além das respectivas transcrições das mesmas. Durante o preenchimento do questionário, 499 estudantes se dispuseram a participar da segunda etapa. Deste total, com base nas questões sobre a classificação racial, particularmente a questão aberta, selecionamos cem questionários, sendo que noventa deles se autoclassificaram em uma das seguintes categorias: negro, preto, pardo, mulato, mestiço e moreno; os outros dez se autoclassificaram como brancos. Para a realização das entrevistas, fizemos contato com cerca de noventa estudantes, dos quais obtivemos retorno de cinqüenta, sendo realizadas 23 entrevistas. As dificuldades para contatarmos os estudantes foram em decorrência do preenchimento incompleto da seção solicitando dados individuais, tais como: ausência do número da residência, do nome do logradouro ou bairro, e ainda telefones onde as pessoas não se encontravam e mudança de endereço. Grande parte das entrevistas foi realizada nas dependências das universidades. Outros lugares escolhidos pelos entrevistados foram a residência, o local de trabalho e, ainda, as dependências do Centro de Estudos Afro-Asiáticos. Buscou-se, em primeiro lugar, contemplar a grande parte dos entrevistados que se autoclassificaram como negros/pretos e, em seguida, demos prosseguimento à pesquisa com aqueles que se autoclassificaram a partir de outras categorias tais como: pardo, moreno, mulato, mestiço e branco. Quanto à idade e ao sexo, os entrevistados tinham entre dezoito e quarenta anos, quinze mulheres e sete homens, todos moradores em diferentes bairros do Rio de Janeiros e de outros municípios do estado.

Seleção das universidades e cursos

Considerando as circunstâncias de tempo e recursos disponíveis para a pesquisa, uma etapa indispensável para a realização da mesma seria a seleção das universidades e cursos que comporiam nosso universo de pesquisa. Procuramos, então, obter dados que caracterizassem o universo do ensino superior no Rio de Janeiro. Consultando uma publicação especificamente dedicada aos vestibulandos, o Guia Abril do Estudante 1998, encontramos referências ao conjunto das instituições de ensino superior, números de vagas, cursos, e relação candidato/vaga para as carreiras. (Vale a pena ressaltar que obtivemos do Serviço de Ensino Superior do Ministério da Educação, em agosto de 1997, uma listagem dos cursos de ensino superior, com suas respectivas instituições mantenedoras, mas a mesma revelou-se desatualizada e incompleta.) Os dados obtidos nessa publicação, complementados, em alguns casos, por consultas por telefone aos setores das universidades responsáveis pela seleção e inscrição dos estudantes, orientaram nossa escolha das universidades e cursos que seriam objeto da pesquisa. Entre as universidades listadas, deveríamos escolher uma pública e uma particular, consoante com o objetivo da pesquisa de comparar instituições dos dois tipos. Quanto à universidade pública, escolhemos aquela em que não tínhamos conhecimento de estudos sobre essa temática na universidade. Considerando que o perfil do alunado tende a estar relacionado com o padrão de segmentação urbana em termos socioeconômicos, procuramos identificar uma universidade particular que não estivesse localizada na mesma área geográfica da universidade pública escolhida. Assim, escolhemos uma universidade situada em um município limítrofe ao do Rio de Janeiro, na Área Metropolitana do Grande Rio.4 4 . Comprometemo-nos com os dirigentes das universidades que os dados coletados seriam divulgados sem a identificação da universidade, ainda que nossa pesquisa não tenha como objetivo avaliar condições de ensino.

Para escolhermos os cursos a serem pesquisados, elaboramos os quadros dos cursos mais oferecidos e mais procurados (relação candidato/vaga) no Brasil e no Rio de Janeiro. Consideramos esse procedimento mais adequado do que investigar os cursos que são considerados informalmente, já que há poucos estudos a respeito, e nenhum tomando como objeto as universidades selecionadas, como tendo maior número de alunos negros. Os cursos correspondem, portanto, a dois grupos distintos: os cinco cursos mais procurados, nos quais se verificam as mais altas taxas da relação candidato/vaga, e os cinco cursos mais oferecidos, ou seja, os cursos que podem ser encontrados em um maior número de instituições de ensino superior. Os cursos mais procurados no Rio de Janeiro são: Medicina, Comunicação,5 5 . Cabe citar que a instituição particular não oferece o curso de Comunicação. Odontologia, Engenharia e Direito; os cursos mais oferecidos no Rio de Janeiro são: Engenharia, Ciências Contábeis, Pedagogia, Letras e Administração. Elaborando uma lista dos cinco cursos mais oferecidos e dos cinco mais procurados, chegamos ao total de nove cursos,6 6 . O curso de Engenharia aparece tanto entre os cursos mais procurados, quanto entre os cursos mais oferecidos. quais sejam, Administração, Ciências Contábeis, Comunicação, Direito, Educação, Engenharia, Letras, Medicina e Odontologia. Nesses cursos procuramos entrevistar os alunos dos primeiro e segundo períodos.

Diário de campo

Gostaríamos de registrar algumas ocorrências relacionadas ao trabalho de aplicação dos questionários e entrevista dos estudantes. Esses acontecimentos não chegam a se constituir em questões a serem detidamente problematizadas, mas, sem dúvida, ilustram relevantes tópicos envolvidos no fazer pesquisa sobre relações raciais no Brasil.

Obviamente, nossas observações começam pelo momento da aplicação do questionário, que nos levou a contatar os dirigentes e os professores das duas universidades. Inicialmente, devemos registrar a receptividade de dirigentes e professores das duas universidades onde aplicamos os questionários. Devido às características das duas instituições, na universidade pública tivemos que contatar um número maior de dirigentes, uma vez que as unidades da instituição (departamentos, escolas etc.) são bastante autônomas nas suas rotinas operacionais, e não é vista como necessária a autorização dos dirigentes no topo da hierarquia institucional para a aplicação de um questionário. Por seu turno, os contatos iniciais na universidade particular com os diretores de uma das unidades da instituição nos encaminharam imediatamente ao pró-reitor de Graduação.

Como seria de se esperar, todos os dirigentes pediram para ver o questionário que aplicaríamos. Os da universidade pública raramente fizeram alguma objeção ao conteúdo do questionário, chegando mesmo a enfatizar o compromisso da universidade com a prestação de contas à sociedade através da acolhida a pesquisas que buscassem até mesmo avaliar a instituição. O pró-reitor de Graduação da universidade particular, no entanto, apresentou questionamentos à pergunta que sugeria que há poucos negros na Universidade. Entretanto, a argumentação com os achados da literatura sobre desempenho educacional dos grupos raciais foi o bastante para persuadi-lo.

Com a expectativa de que pudéssemos dispor, no futuro, de dados sobre todo o corpo discente da universidade, e dos candidatos ao vestibular, dirigimo-nos ao diretor do Departamento de Seleção, unidade responsável por ministrar o concurso vestibular. Mais uma vez, esse dirigente também foi extremamente atencioso e colocou à nossa disposição dados do questionário socioeconômico aplicado aos inscritos no vestibular. Solicitamos, então, a inclusão do quesito raça/cor no questionário. Em um encontro subseqüente, entretanto, esse dirigente nos informou que tinha conversado a respeito com um outro dirigente da universidade, que ele não especificou quem seria, que teria observado que a inclusão de tal quesito seria ilegal, uma vez que poderia servir eventualmente para práticas discriminatórias. Com essas observações gostaríamos apenas de ilustrar como a mera obtenção do dado racial ainda constitui um evento extraordinário no Brasil, ao mesmo tempo em que é uma realidade facilmente identificável. É interessante observar que vários professores da universidade pública, em conversas informais, nos indicavam os cursos em que deveríamos aplicar os questionários em função de, segundo a percepção desses colegas, tais cursos teriam um maior contingente de alunos negros.

Quanto ao preenchimento do questionário, o registro da categoria racial suscitava comentários jocosos dos estudantes, embora, como podemos atestar ao analisar as respostas, essa circunstância não tenha afetado negativamente a qualidade dos dados obtidos. Vale a pena observar que os alunos da universidade pública questionaram mais freqüentemente o pesquisador que estava aplicando o questionário quanto ao caráter presumidamente "racista" das questões que abordavam a presença de negros na universidade. Essa reação não foi observada na universidade particular.

Por último, gostaríamos de registrar a existência do "Provão" – exame de avaliação, instituído em 1996, de concluintes de alguns cursos de nível superior, supostamente a ser estendido a todos os cursos – como uma circunstância externa que afetou a realização da pesquisa. Na universidade pública, os alunos dos cursos que obtiveram bons resultados no então mais recentemente ministrado"Provão", em alguns momentos articulavam o preenchimento do questionário com o resultado obtido nesse exame. Era como se preencher o questionário se impusesse como uma legitimação adicional ao bom resultado alcançado. Por outro lado, o dirigente dos cursos da área médica da universidade particular se mostrou hostil à realização da pesquisa, associando a coleta de dados à divulgação de resultados adversos à universidade.

A Percepção das Relações Raciais em Dados

Antes de analisarmos as experiências e percepções dos estudantes pesquisados, é necessário olharmos o perfil dessa população. A Tabela 1 apresenta a distribuição da população pesquisada segundo os cursos e universidades. Observa-se que os maiores contingentes participando da nossa amostra são de alunos dos cursos de Engenharia, Pedagogia, Letras e Direito. A proporção de alunos do curso de Medicina é uma surpresa, uma vez que esse curso oferece poucas vagas anualmente. Quanto à faixa etária, os alunos se distribuem por uma faixa que vai dos 16 aos 54 anos. Entretanto, 80,2% dos participantes têm idades entre 17 e 24 anos, a idade considerada típica para freqüentar curso de nível superior. Essa distribuição nos dá um parâmetro para avaliação entre a população do survey e a população geral, através da comparação com os dados da PNAD-1998.

Em relação ao sexo, a maioria da população em nosso survey é de mulheres, enquanto, segundo a PNAD, a proporção de mulheres na faixa etária dos 16 aos 54 anos com doze anos de estudos ou mais cai para 42,4% (Tabelas 2 e 2.1).

De forma similar, em nosso survey o total de brancos é abaixo da proporção desse segmento no total da população, respectivamente, 69,3% e 84,8% (Tabelas 3 e 3.1).

Esses dados nos indicam que a população em nosso survey é mais feminina e negra do que a população em geral com escolaridade similar na mesma faixa etária. Entretanto, devemos lembrar que os dados da PNAD dizem respeito ao conjunto da população do Estado do Rio de Janeiro, inclusive da área rural, embora o Estado do Rio seja essencialmente urbano. Por outro lado, nosso survey reflete uma realidade regional mais circunscrita. Esses dados sugerem que, apesar da limitação dos nossos dados em função da seleção de universidade e cursos pesquisados, são relativamente maiores as chances de um negro atingir um curso de nível superior na região do Grande Rio.

A Tabela 4 revela a distribuição por tipo de estabelecimento, segundo a filiação racial, dos alunos de nível superior, comparando uma instituição pública e uma particular. Documenta-se, assim, pela primeira vez na literatura sobre relações raciais e educação no Brasil, o maior "enegrecimento" de uma instituição de ensino superior particular, vis-à-vis uma instituição pública. Enquanto na pública os alunos brancos chegam a compor três quartos do corpo discente, na particular essa proporção cai para um pouco menos da metade. Vale a pena observar que permitimos também que os alunos identificassem sua cor através de uma questão aberta. Apesar de uma relativa dispersão por um total de dezessete termos, as respostas "branca" (70,7%), "parda" (10,2%), "morena" (10,1%) e "negra" (4,5%) concentram a grande maioria da preferência, atingindo em conjunto 95,5% das opções dos entrevistados.7 7 . Os outros termos escolhidos pelos entrevistados foram: "morena clara" (1,0%), "amarela" (0,9%), "preta" (0,9%), "caucasiana" (0,1%), "clara" (0,1%), "indígena" (0,1%) "mameluca" (0,1%), "marfim" (0,1%), "marrom" (0,1%), "mestiço" (0,1%) "morena escura" (0,1%), "morena médio" (0,1%) e "mulata" (0,1%).

Tendo esboçado o perfil da nossa população, podemos nos dedicar ao exame das questões que se remeteram especificamente à avaliação dos estudantes sobre sua convivência na universidade e suas percepções das relações raciais e opinião quanto à eventual adoção de medidas de combate às desigualdades raciais.8 8 . Utilizamos, deste ponto em diante, a classificação racial atribuída pelos estudantes na pergunta fechada que apresentou as categorias utilizadas pelo IBGE. Utilizamos, também, a categoria "negra" (agrupamento das respostas "preta" e "parda") para designar os estudantes. Excluímos das análises os indivíduos que marcaram "amarela" e "indígena". Primeiramente perguntamos como os estudantes avaliam sua relação com os colegas e com os professores. Analisando os dados das Tabelas 5 e 6, constatamos que é bastante alta a avaliação positiva pelos alunos de ambos os tipos de interação. Entretanto, enquanto não se nota grande diferença na avaliação que alunos negros e brancos das duas universidades fazem da sua relação com os colegas, nota-se alguma diferenciação, por universidade, da avaliação da relação com os professores. Brancos e negros da universidade particular apresentam índices mais altos de avaliação positiva da relação com os professores do que seus colegas na universidade pública. Por exemplo, 81,8% dos alunos negros da universidade particular avaliam a sua relação com os professores como "excelente" ou "boa", enquanto na universidade pública esse contingente cai para 73,7%. (Os índices para os alunos brancos são 90,7% na universidade particular, e 80,2% na pública).

Um outro conjunto de questões explorado em nossa pesquisa diz respeito à percepção dos estudantes quanto às relações raciais no Brasil. Distinguimos entre a percepção desse tratamento na sociedade em geral e na universidade em particular. De forma geral podemos afirmar que é grande a percepção de que ocorre com certa freqüência o tratamento diferenciado para brancos e negros na sociedade brasileira, conforme revelam os dados da Tabela 7. Não ultrapassa 1,5% a proporção dos que acreditam que "nunca" ocorre tratamento diferenciado entre negros e brancos na sociedade brasileira. Chama a atenção o relativamente alto índice de negros da instituição particular que indicaram a opção "sempre", notando-se que essa percepção é maior entre os negros de ambas as universidades do que entre seus colegas brancos.

Curiosamente, ocorre uma inversão na distribuição dos índices na Tabela 8 que indica a resposta sobre a existência de tratamento diferenciado especificamente na universidade. A tabela fica mais "pesada" na extremidade da escala de opções apresentada aos estudantes que apontam para a existência de tratamento diferenciado entre negros e brancos no espaço universitário como algo excepcional. Ainda assim, os negros tendem a apontar com mais freqüência a ocorrência de tratamento diferenciado. Entre os brancos da universidade pública, apenas 7,0% acredita que negros e brancos sejam tratados de forma diferente "sempre" ou "quase sempre"; entre os negros da universidade particular esse percentual sobe para 17,9%.

Deve-se acrescentar, como podemos observar com base nos comentários ao questionário feitos pelos alunos, a formulação "tratamento diferenciado" foi amplamente entendida como eventos de racismo e discriminação. Nesse sentido, podemos afirmar que começa a dar sinais de exaustão a crença generalizada da sociedade brasileira como um "paraíso racial" (Entretanto, essa nova compreensão não se viabiliza pela total substituição por uma visão conflituosa das nossas relações raciais, como veremos a seguir com o material qualitativo).

Indagamos também sobre quais causas os estudantes apontariam como responsáveis pelo pequeno número de alunos negros nas universidades. A Tabela 9 apresenta as respostas dos estudantes segundo o tipo de universidade (a pergunta solicitava que fossem indicadas até três causas, em ordem de importância. A tabulação dos dados considerou apenas o total de causas apontadas). Causas econômicas e uma suposta decadência da escola pública são amplamente apontadas como as principais causas para a exclusão do negro do ensino superior em ambas universidades. Discriminação também foi apontada como causa para essa exclusão, embora em menor medida pelos alunos da universidade particular. Como vemos, causas externas ao indivíduo foram apontadas majoritariamente como os principais fatores de exclusão dos negros – 89,3% dos alunos da universidade pública e 73,0% dos alunos da particular. Entretanto, não deixa de causar certa surpresa e preocupação que pouco mais de um quarto dos alunos da universidade pública tenham apontado desinteresse e maior aptidão para atividades culturais e esportivas dos negros como explicação para o pequeno contingente de negros que atingem o curso universitário.

Ainda que possamos constatar, como sugerimos anteriormente, a relativa falência do mito da democracia racial, certamente ainda não podemos anunciar um apoio majoritário a medidas que procurem corrigir as desigualdades raciais. À indagação sobre o tipo de medidas que poderiam ser adotadas para aumentar o número de negros na universidade a grande maioria dos estudantes escolheu a opção "medidas que beneficiem todas as pessoas carentes" por oposição à opção "medidas que beneficiem especificamente os negros" (Tabela 10). Há dois aspectos que merecem destaque na análise desses dados. Por um lado, o maior apoio a medidas específicas para negros é registrado entre os alunos negros da universidade particular, ao mesmo tempo em que entre os negros da universidade pública esse apoio é menor do que entre os brancos dessa mesma universidade. Por outro lado, nota-se que a clivagem mais marcante é entre alunos da universidade pública e da particular, independentemente do grupo racial. Em outras palavras, os alunos da universidade particular são mais inclinados a apoiar a adoção de medidas que beneficiem especificamente os negros como forma de atacar o problema das desigualdades raciais no ensino superior no Brasil.

A Percepção das Relações Raciais nas Falas

Na interpretação de sua experiência o(a) entrevistado(a) articula reflexão (contém uma análise sobre a experiência vivida) e evocação (transmite a dimensão subjetiva einterpretativa do sujeito). Contudo, não cabe aqui enfatizar a história individual; dada a fragmentação das narrativas, tomamos, neste texto, as elaborações discursivas como unidade de análise.9 9 . Nesta perspectiva, indicamos apenas as perguntas (P) e respostas (R) nos extratos das entrevistas. Optamos por este procedimento por considerar que as noções de história de vida e memória não se encaixam como métodos analíticos diante de apenas uma entrevista, sobre apenas a trajetória escolar. Referimo-nos ao debate sobre depoimento individual em relação ao grupo, aspectos vividos e reconstrução dos acontecimentos históricos.10 10 . Neste sentido ver Halbwachs (1994) e Kofes 1994), entre outros. Consideramos o conteúdo dos depoimentos como elaboração dos (as) entrevistados (as) acerca dos temas tratados. Não foi nossa intenção reconstruir as trajetórias individuais.

As Questões Suscitadas

Utilizamos as respostas ao questionário como base para a abordagem quantitativa. Os temas privilegiados foram: 1) trajetória escolar, articulada com a filiação racial do indivíduo (questão cor — aberta); e 2) comportamento.11 11 . Estes temas foram abordados a partir das seguintes questões:

Como se tratavam de entrevistas abertas, diante das questões formuladas, a partir das respostas dadas, outros questionamentos foram feitos com intuito de alcançarmos as recorrências e singularidades que informam os discursos socialmente produzidos por este segmento específico da população. Com efeito, foram priorizados para análise neste artigo, aspectos relativos à percepção do racismo, concepções acerca das relações entre negros e brancos como também expectativas de negros e brancos com relação ao curso superior. As questões enunciadas acima parecem ser indicativas da complexidade da temática racial na sociedade brasileira. Diante disso, as entrevistas podem indicar como determinados indivíduos articulam diferentes categorias apontando para a classificação de cor e representações a cerca da concepção de raça em interseção com o ensino superior no Brasil.

Nessa perspectiva, elaboramos os tópicos citados abaixo e as elaborações discursivas serão referenciadas a partir desses tópicos. Nesse artigo serão apenas focalizadas, através de trechos extraídos das falas, as referências sobre discriminação racial e promoção de políticas de ação afirmativas.

O Elemento Racial na Experiência Escolar Inicial

A primeira referência à discriminação racial, para indivíduos que se autoclassificam como negros, remete à infância, mais especificamente à entrada na escola. Essas lembranças são também explicitadas de forma direta.

1) P: E quando você era criança, na primeira escola, você tinha boas relações com seus amigos e professores?

R: Sempre tive boa relação com meus amigos, com os professores, com tudo mundo, mas, quando eu era criança, sofri muito preconceito. Porque eu era criança e eu sempre ouvia: "Preto é ladrão", sempre ouvia isso. Uma vez eu fiz um teste, uma prova para uma escola e fui aprovada, e no dia da matrícula não me aceitaram pelo fato de meu pai ser negro.

P: E quem foi fazer [a matrícula]?

R: É, ele e minha mãe.

P: E em algum momento falaram isso?

R: Mais ou menos, não falaram explicitamente, deixaram assim... e acabou que eu não fui, nem fui para essa escola [...].

2) P: Como foi o relacionamento com seus amigos de escola, no segundo grau, e como é agora na faculdade?

R: Quando criança eu fui muito discriminada, sempre tinha aquelas piadinhas. Quando eu era criança eu acho até que eu criei uma certa aversão a homens claros por causa disso, de uma certa forma. Eu acho que são coisas que você leva para a vida.

Percepção do Racismo: Confronto e Negociação

A respeito da percepção de discriminação e racismo na sociedade em geral, e na Universidade em particular, obtivemos um grande número de respostas em que o racismo emerge como discurso indireto e sob a forma de anedota, como no trecho a seguir.

1) P: Você nunca viu discriminação no espaço da universidade?

R: Eu cheguei a presenciar sim, uma vez estávamos em um barzinho aqui perto, era até de manhã, por volta de uma e meia, duas horas, aí tinha uns colegas lá contando piadas de negro, de repente passou um rapaz negro, eles disfarçaram, e depois começaram a rir do cara. Ele não percebeu, mas tinha que ter percebido e dar uma sova nos caras.

O discurso direto encontra-se associado a casos específicos, como nos momentos de conflito, nas referências à boa aparência como exigência no mercado de trabalho, e nas revistas e desconfianças de guardas de segurança de lojas de departamentos.

1) P: E entre negros e brancos, você sabe se são tratados de formas diferentes na sociedade brasileira?

R: Eu acho, na faculdade eu não vejo nada não, mas na sociedade brasileira sem dúvida.

P: Por que?

R: Infelizmente ainda tem muito preconceito e a gente tem que tentar acabar com isso.

P: E me conta uma situação?

R: Uma situação que aconteceu com minha prima há pouco tempo. Minha prima estava lá na Americanas, quando ela entrou o segurança veio atrás dela e chegou para ela e disse – o segurança era negro –, e disse: "Sua neguinha, você roubou", e não sei o que. Falando que ela tinha roubado, ela começou a bater boca e entrou na justiça contra o segurança.

P: Ela entrou na justiça?

R: Entrou.

P: Contra o racismo?

R: O cara já foi mandado embora das Lojas Americanas.

2) P: A gente perguntou se você acha que negros e brancos são tratados de forma diferente [na universidade], você respondeu que era, às vezes, por que?

R: Eu acho assim, não digo entre professor e aluno, que eu nunca vi esse tratamento, mas eu acho que certas pessoas ainda são preconceituosas, então, talvez excluam os negros do seu grupinho, de pessoas que conversam. Existe isso aqui dentro. Eu não vejo tão grande, mas certas pessoas eu vejo que ainda têm algum preconceito, acho que ainda têm.

P: Aqui na [universidade pública]?

R: Aqui na [na universidade pública]. Mais alunos e tal, entendeu? Tipo, vamos dizer, numa discussão, assim, numa briga, você ainda escuta, "ah, pô, seu crioulo", qualquer coisa assim, entendeu? Então, isso pra mim já é um tipo de preconceito. Mesmo que seja, assim, num momento de raiva, num momento de futebol, ainda você escuta esse tipo de coisa. Então, acho que ainda existe.

P: Aqui, você percebe?

R: É, sei lá, algum esporte, alguns jogos que você tem, num momento de raiva assim, quando há uma discussão, você ainda escuta alguém falar, "ah, pô, seu crioulo, seu negão, não sei o que, e tal...". Acho que isso já é um tipo de preconceito. [...] entre alunos. Entre professor eu nunca vi. Eu, particularmente nunca vi. Mas entre alunos já vi. Aí... não é, assim, tratamento diferenciado no dia-a-dia. Alguma coisa, assim, que leva uma pessoa à raiva, alguma discussão, alguma briga entre essas duas pessoas, você ainda escuta, aqui dentro, alguma pessoa falar isso. Então, isso eu já acho é algum tipo de preconceito, porque quando você, sabe, discute com um branco, alguma coisa assim, ninguém fala "ah, seu brancão", né? Então, eu acho que já é um tipo de preconceito. Mas, já vi nesses casos, entendeu? No caso de briga, durante alguma coisa assim, alguma briga entre duas pessoas, uma de pele clara, outra de pele escura já escutei isso. Mas entre professor e aluno nunca vi não.

Deve-se ressaltar que ao se pronunciarem sobre eventos de discriminação e as causas das desigualdades raciais dois "espaços-territórios" são evocados: os "Estados Unidos" e a "favela". A visualização do racismo passa pela suposição de que a cristalização do racismo se encontra nas relações sociais extraídas da experiência dos negros norte-americanos. Da mesma forma, a favela, no Brasil, seria o "espaço", por definição, de negros.

1) P: Voltando à questão racial, você acha que nesse sistema de empresas públicas boas se fazem concursos, então, não vê cor ali, se o cara for capaz ele entra?

R: É, eu nunca entrei pra ver como é que é, mas acho que seja assim.

P: Então, uma empresa privada não é assim, tem entrevista.... Como é que você avalia que fica a questão do negro.

R: É, aí depende da empresa. Porque você também vê, quando você vai procurar alguns empregos um dos requisitos é ter boa aparência. Aí depende daquela empresa, o que ela acha, o que é boa aparência: se é uma pessoa com unha cortada, cabelo cortado, se é uma mulher maquiada, ou se já é o sistema de cor; se é uma pessoa da cor negra, se é uma pessoa da cor branca, aí acho que depende da empresa. Como eu ainda não trabalhei numa empresa particular, eu não sei como é o esquema. Das poucas que eu conheço, acho que não vejo tanto isso. Porque o meu tio trabalha, tem uma empresa de telecomunicações pequena, e tal, mas... eu vejo lá, ele não tem esse problema, entendeu? Não sei se são todas as empresas. Acho que, talvez, em empresa de pequeno e médio porte, acho que não haja problema nenhum. Talvez exista, não sei porque eu nunca trabalhei, não posso afirmar, mas eu acho que talvez exista; uma empresa multinacional, talvez, tenha alguma exclusão contra a cor negra, aí eu não sei informar exatamente, mas acho que talvez exista, né? Ainda tem tantas pessoas preconceituosas que nem são tão poderosas quanto pensam que são, e são preconceituosas. Imagina aquele presidente de uma empresa multinacional, não sei afirmar, mas talvez tenha, né?

2) P: Quais são as principais razões para a pouca presença de negros nas universidades?

R: Porque é um círculo vicioso, na medida que o negro, por um lado... o negro não foi inserido de forma justa na sociedade [em comparação com os Estados Unidos], aqui houve uma abolição disfarçada. Apesar de oficialmente o negro não ser escravo, os negros, na maioria, continuaram escravos para poderem sobreviver nas cidades. Então, com essa abolição mal feita gerou o crescimento das cidades, o desenvolvimento das cidades, dos centros urbanos... uma condição que o negro continuava essencialmente segregado nas favelas. E nas favelas... o sujeito não tem condição de... o sujeito tá na favela porque não tem um salário justo, um salário digno que dê para ele custear os seus estudos.

Na fala número um, progressivamente a discriminação e o racismo são afastados do narrador, em seguida como um movimento pendular a evocação retorna a ponto de partida. Podemos notar como são redefinidas as noções de proximidade e distância, de forma a convergir a ênfase do relato com uma maior distância do narrador. Assim, ao ser questionado sobre racismo e discriminação o narrador busca referências "fora" de seu repertório da experiência vivida12 12 . Sobre as noções de proximidade e distância, ver DaMatta (1978) e Velho (1978). . Por outro lado, a utilização, na fala número dois, de determinadas expressões qualificadoras, tais como "abolição disfarçada" e "salário justo", como reforço da ambigüidade no Brasil acionada nas elaborações discursivas demonstra como a condição socioeconômica encontra-se cristalizada como traço distintivo da discriminação e do racismo.

1) P: E você acha que os poucos negros que têm aqui na faculdade são tratados da mesma forma que os brancos?

R: A única que eu convivo mesmo é essa menina da minha sala, então eu nunca vi nada diferente.

P: E no cotidiano?

R: Já, até mesmo da minha mãe, porque a família do meu pai que se acham brancos mas não são porque são todos com o cabelo ruim, só que são claros. Minha mãe diz que sofreu muito quando casou com meu pai, porque a mãe dele não aceitou. Chamavam ela de macaca, de neguinha, até pouco tempo essa minha avó foi morar lá em casa e chamava meu irmão do meio de macaco.

O critério de atribuição de categorias como filiação étnica, racial encontra-se interditada, pois a sustentação da noção de diferença esbarra num ponto focal no universo pesquisado: o princípio da universalidade encontra-se alicerçado na noção de mérito, sendo esta tida como condição necessária para o ingresso na universidade pública. A idéia de que o ingresso na universidade se daria indiscriminadamente, mediante a aprovação no vestibular — negros e brancos, homens e mulheres uma vez que ao se submetem as provas teriam as mesmas chances dependendo apenas do conhecimento e capacidade individual.

1) P: Uma coisa que você falou aqui que eu achei muito interessante... você colocou que [uma das razões] pelas quais os negros não estariam em grande número na universidade [...] "por eles terem mais aptidão para os esportes". Me fala mais sobre isso.

R: É, justamente por esse, por esse caso desse meu amigo. Eu acho que, assim, você vê em Cuba e nos Estados Unidos, dois países que dão grande importância tanto à educação, quanto ao esporte. Essa ligação entre educação e esporte... tanto que você vê numa olimpíada são os grandes medalhistas. Então, você vê sempre, aquele cara, o maior corredor do mundo, o maior atleta do mundo de basquete é sempre pessoa da cor negra. Então, acho que assim, pelo físico, há pesquisa que diz que o físico do negro é sempre mais forte, tem mais explosão do que o branco. Então, acho que se Brasil tivesse uma cultura que nem Cuba, mesmo vivendo a crise em que vive, os Estados Unidos têm, entre, ligação entre esporte e faculdade, acho que talvez teriam muito mais negros dentro da universidade. Eu vejo isso pelos amigos que eu tenho, desse que faz natação, conseguiu uma bolsa, você vê na [universidade particular X] que é uma das faculdades que...

S: Ele estuda na [universidade particular X]?

E: Não, ele faz [universidade particular Y] que é o mesmo sistema, é uma faculdade que estuda o [nome] que gosta, que tem um reconhecimento, assim, em esporte, natação, judô e tal, e que dá bolsas pra atletas. Então, acho que se tivesse mais disso aqui no Brasil acho que teriam mais negros na universidade, com certeza, você vê isso em Cuba, nos Estados Unidos.

P: Você atribui isso a quê? (Poucos negros na universidade)

A fala acima contém uma analogia com duas realidades sociais distintas, que se tornam constitutivas de políticas idênticas: Estados Unidos e Cuba. O narrador tem com ponto de referência as políticas específicas para negros praticarem esportes. Em sua opinião um meio eficaz para a promoção e manutenção da população negra na universidade seria a prática esportiva como medida de políticas públicas. A fala acima, como outras, apresenta hesitações, explicações e ponto de vista diferenciados. A pergunta inicial permanece sem resposta: há racismo na universidade?

1) R: Ah... esse, eu acho assim, que... é isso aí, entendeu?

P: Por que?

R: Não sei, não sei porque, não sei dizer, assim, um significado. Acho que até pela cultura. Acho que, um exemplo, você vê é... pessoas assim, a maioria de favelados e tal, são da cor negra, então, são pessoas que, sei lá, tão sempre jogando uma bola, tão sempre, jogando um basquete, então, são pessoas que são criadas, assim, entendeu?, mais ligadas a esportes do que aquele garotinho, assim, branquinho que vive em apartamento, que entra na internet todo dia, que só vai brincar no play. Então, acho que por isso nossos grandes jogadores de futebol são negros, nossos grandes atletas são negros, acho que é por isso, entendeu? acho que a pessoa, assim, negra... lógico, por ser da maioria assim pobre, né, tem mais convívio com rua, tem mais convívio com esporte, joga sempre, sei lá, um futebol, um basquete, um handball, acho que o negro gosta, assim, mais de esporte do que o branco.

P:... gosta?

R: Não, não é que... sabe, que gosta,... ou que... por exemplo, acho que o negro assim, pessoas, assim, negras, acho que também tem aquela coisa, assim, acho que vou tentar alguma coisa pelo esporte, entendeu, acho que por isso.... acho que isso é maior no negro do que no branco, entendeu, tentar conseguir alguma coisa pelo esporte. Então, acho que por isso é maior o índice de atletas negros do que de brancos, então, acho que se uma universidade desse aparato, desse as condições pra que uma pessoa negra, um desportista entrasse dentro de uma faculdade, estudasse gratuitamente, praticando esporte por essa faculdade acho que aumentaria a incidência de negros dentro de uma universidade.

S: Esse seu amigo faz natação, mas qual o curso que ele faz?

E: Educação Física.

S: E eles só dão crédito pra ele fazer Educação Física?

E: Não, qualquer faculdade, se ele quisesse fazer engenharia sendo atleta da universidade, ele ganha bolsa. Porque ele compete, qualquer competição ele representa a universidade [universidade particular Y], assim como [universidade particular X], o cara pode fazer Direito mas ele é de judô da [universidade particular X], então, numa competição ele vai representar a [universidade particular X], então, por isso eles dão bolsas. Dentro da universidade pública você não vê isso, não tem porque dar bolsa porque é gratuito, só que eu acho que deveria ter uma integração maior entre universidade pública e esporte. Você não aqui nada disso, não tem nada disso. Tem-se um time da [universidade pública] de futebol, de basquete, não tem nada disso. Os times são feitos pelos alunos, não parte da universidade como é em Cuba, como é nos Estados Unidos, não parte do governo, das autoridades. Parte dos alunos, que fazem seus times, cada curso tem seu time, qualquer coisa assim, mas não essa... como é em Cuba, como é nos Estados Unidos que acho que seria bom se tivesse aqui no Brasil.

Não temos a intenção de avaliar a forma de ingresso, aproveitamento e rendimento dos estudantes e nem tampouco das universidades. Ocorre que dados e pesquisas de fontes desconhecidas são citados pelos estudantes como justificativa para manutenção de uma certa estrutura de pensamento e de atitudes. Talvez o narrador procure assim se distanciar da sua própria fala.

1) P: Perguntamos também se negros e brancos são tratados de forma diferente na sociedade brasileira, você colocou que na sociedade brasileira quase sempre, gostaríamos que você falasse sobre isso.

R: É só prestar atenção nas ruas, infelizmente predomina o discurso hipócrita de igualdade racial, parece que porque eu trabalho do lado de um negro não há preconceito. As pessoas dizem: "Eu trabalho com negro, estudo com negro, tenho amigos negros, preconceito racial não existe no Brasil", mas infelizmente as pessoas não se atentam pra alguns detalhes, as coisas mínimas que mostram o preconceito. Quando uma mulher, bem padrão de beleza no Brasil, loura, olhos verdes, corpo bem modelado, anda com um negro do lado você já ouve logo, "O que aquela loura está fazendo com esse cara? Meu Deus do céu!" Ou, então, quando o negro, ele chega num lugar chique, um restaurante de alto nível as pessoas já olham logo estranho, muitas vezes um garçom pergunta se tem reserva, alguma coisa...quer dizer, não aceitam a idéia de ter um negro freqüentando um local, entre aspas, de alto nível. (...) essas pequenas atitudes, as piadinhas de negro que a gente ouve nas ruas, infelizmente, ouve muito, as brincadeiras, eu no trabalho eu ouço várias, às vezes um colega nosso negro tá almoçando aí o sujeito ofereceu uma banana pra ele, "aqui, ó, guardei pra você" como quem diz que o negro é macaco, um absurdo! Então... apesar daquela aparência de democracia racial que existe, o fato de eu conviver com o negro, trabalhar com o negro, aparentemente, é, tem, acho que nas pequenas coisas, nos pequenos comportamentos é que a gente vê o racismo presente, ele existe sim. E até nas estatísticas mesmo... nas pesquisas mais profundas, nas pesquisas sociais, as estatísticas, a gente vê também o racismo presente. A gente vê nas novelas de televisão são poucos negros presentes, nos comerciais, nos grandes comerciais mais rentáveis mesmo, que utiliza mais recursos financeiros, é difícil a presença do negro. A gente vê que a maioria dos presidiários são negros, a maioria dos favelados são negros, tem poucos negros nas universidades públicas, eu acho que essas estatísticas também dizem muito [que nos] pequenos comportamentos do dia a dia, que existe racismo no Brasil sim.

2) R: Não ter quase [estudantes negros na universidade]é... discriminação na faculdade, as pessoas não admitem ter e não admitem que tenham algum tipo de preconceito, isso que eu quis dizer, eu não soube me explicar. Até, porque eu peguei e falei... teve um dia que eu apareci com escova e o pessoal ficou "ai, que coisa horrorosa e tal não sei o que" aí quando eu peguei e citei o trabalho, aí falei do trabalho... na pesquisa... [quando] a branca de cabelo liso, encrespa o cabelo todo mundo fica "ai, que lindo, não sei o que..." mas quando uma negra vai e alisa, o pessoal fica falando "ah, olha a neguinha esticou o cabelo." E eu peguei e usei o meu caso como exemplo, e o pessoal não aceitou muito bem e falou, assim, "ah, [nome] nada a ver, a gente tava brincando com isso, a gente brincou com você como a gente brincaria com qualquer pessoa". E de fato, depois eu tava reparando... eu falei "tá, tudo bem, passou" porque... depois eu prestei uma atenção de fato, era assim mesmo o pessoal brinca com qualquer coisa. Mas é, assim, é difícil acontecer e se acontece é muito sutil.

A chamada "sutileza" do racismo à brasileira encontra-se relacionada não ao que foi dito e sim, ao que foi ouvido. Em outros termos, a percepção do racismo aparece como uma perspectiva individual. E, cabe também ao indivíduo encontrar os meios para superação das desigualdades sociais. A que tudo indica, o princípio da universalidade de direitos mostra-se limitado. Como se pode percebe a partir da fala citada a seguir.

1) P: E esses que são negros na sua família já passaram discriminação fora?

R: Já fora da minha família, gente, assim de família de agregado reclamar porque "ah, que que fez..." e meu padrinho, que é advogado, ralou muito para chegar só por causa da cor. Tem um caso de um senhor que fez Direito e tinha capacidade para passar para juiz, mas ele só conseguiu no Amapá porque aqui ele não conseguiu, esse é irmão de um professor meu. Um caso, assim, gritante que você olha assim o cara é cabeça e não consegue por causa da cor. Aquilo ali foi gritante, na minha turma foi o maior negócio, abaixo-assinado e não sei o que porque ele só conseguiu lá no Amapá, só por causa da cor dele, o cara, um super cabeça...

Entendemos que a seqüência da elaboração indica outro dado significativo, ainda no que se refere à construção social da diferença, a classificação racial aparece associada a outros princípios, tais como: gênero e idade e classe social.

1) P: Você falou que a maioria de suas amigas são negras, elas já relataram para você algum caso de discriminação?

R: Já presenciei cantadas mais bruscas na rua, eu posso estar com a mesma saia que ela, mas ela é sempre mais assediada bruscamente. Nenhuma amiga comentou nada até hoje... só uma que falou assim, "A gente sofre porque é mulher, porque é pobre e porque é negra.

"Embora não tenhamos aprofundado a análise sobre as relações de gênero, esse dado aparece nas elaborações significativamente como um complicador nas relações e convívio no meio universitário, com repercussão na expectativa das trajetórias profissionais, pois, articulada à caracterização anatômica e fisiológica encontra-se diretamente relacionadas determinações sociais.13 13 . Neste sentido, adotamos, neste artigo, a categoria gênero como perspectiva de análise. Nas Ciências Sociais, como afirma Maria Luiza Heilborn (1995): "Gênero é um conceito [...] que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que a palavra sexo designa agora, no jargão da análise sociológica, somente a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero existe, portanto, para distinguir a dimensão biológica da social. O raciocínio que apóia essa distinção baseia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e mulher é realizada pela cultura. Mas, por que é possível afirmar-se que homens e mulheres só existem na cultura, ou melhor, que são realidades sociais e não naturais?". Outro aspecto importante diz respeito às escolhas afetivas. Referências a namorados (as), parceiros (as) e cônjuges são recorrentes e encontram-se relacionadas a conflitos pessoais, familiares ou ideológicos:14 14 . A este respeito ver, também, Moutinho (1999).

1) R: Uma vez a gente estava na praia aí eu falei para ele: "tua prima vai ficar com o garoto tal." Aí ele: " Meus primos são todos atuantes, minha família é atuante!" Uma vez não sei onde que eu estava que eu falei dele, e alguém quis fazer uma pesquisa com ele, um depoimento para uma revista negra, eu não sei se era Raça... ele é assim eu discuto várias vezes com eles, são coisas diferentes. Eu realmente não me identifico com pessoas... mas se um dia eu for me apaixonar por um cara que seja branco eu vou ficar com o cara, mas isso nunca aconteceu e eu nem quero que aconteça. Até minha idealização de filhos, é uma idealização de todos "neguinho", é assim que eu penso, eu acho que eu não posso colocar isso como aquilo e pronto. Acontecem várias coisas e você não sabe o dia de amanhã.

Em certa medida, "raça" e gênero são elementos constitutivos do universo dos estudantes universitários. Entende-se raça e gênero como construções sociais e, portanto, constituem-se em princípios de classificação social. Sendo que classe, raça ou gênero, isoladamente, não se constituem como único princípio que alicerça a produção de desigualdades na sociedade; estes e outros princípios associados condicionam a participação dos indivíduos na vida social. Entre brancos(as) e negros(as) há também mulheres e homens entre outras combinações possíveis.

Ocorre que nas elaborações esses princípios poucas vezes são problematizados como fatores de inclusão/exclusão. Nesta perspectiva, a fala destacada abaixo revela tal percepção.

1) P: E quantas mulheres tem no curso de Engenharia?

R: O grande problema da Engenharia tá aí, imagina um curso que só tem duas ou três mulheres... assim, no curso todo... vou falar em termos de proporção, que é uma coisa assim bem triste, de dez pessoas tem uma, ou meia, porque não dá pra botar meia, vamos botar uma. É muito triste.

P: Por que você acha que as mulheres não procuram Engenharia?

R: Não sei não, sei lá... é uma coisa que... tinha até que botar um cartaz lá, "é proibido homem fazer Engenharia porque estamos lotados"... Por que as mulheres não vão fazer? Não sei, talvez seja da Engenharia ser uma coisa meio masculinizada. O engenheiro tem que ser aquele cara barbudo, alto, vai falar pra caramba, fala grosso. E as mulheres agora que tão descobrindo "não, Engenharia é legal, também posso fazer". E tem essa coisa de Engenharia Civil, vai assim fazer uma construção, uma mulher, ela diz "não, não vou ter respeito dos peões". Tem muito disso, a Engenharia é aquela coisa muito masculinizada.

P: E você tem contato com as meninas que fazem?

R: Tenho, ainda bem. Já pensou passar a Engenharia toda falando com homem, que tristeza.

P: E o que elas dizem, você já perguntou pra elas, vocês já conversaram sobre isso?

R: Não, é uma pergunta que nunca fiz "por que você fez Engenharia?" é uma pergunta que eu nunca fiz não. Mas eu acredito que seja mais do gosto, tem uma aí que eu conheci que o pai é engenheiro. Claro que o pai ajudou bastante nessa escolha dela. E tem outras que, sei lá, não faço a mínima idéia. Mas é uma coisa engraçada, tão poucas mulheres na Engenharia, aí tu vai lá pra Nutrição, aquele monte de mulher, tem um homem escondido, "quem é você rapaz, tá fazendo o que aí?"

P: E por que você acha que as mulheres vão mais pra Nutrição e menos pra Engenharia?

R: Acho que as profissões... até nas profissões tem aquele lado machista. Aquela coisa, tem um lado, assim, machista e feminista. Essa aqui é uma coisa mais machista, aquela mais feminista, acho que tem muito disso dentro da profissões.

(...)

P: E as mulheres são boas alunas?

R: Na Engenharia? Deixa eu ver..., quando eu entrei eu acreditava nisso, falei: "nossa, elas são boas alunas". Hoje em dia não acredito mais nisso não. Não sei, acho que elas viram muitos homens, assim, devem ter ficado deslumbradas, porque agora não vejo... têm umas... dá pra contar nos dedos, tem duas garotas que eu conheço que realmente... aqueles que eu tava falando de dez pessoas tem uma, são elas.

Podemos notar, a partir da citação acima, quanto ainda a participação feminina nos certos cursos universitários é percebida como um meio de encontro como o sexo oposto. Esta percepção demonstra a desvantagem de um segmento, neste caso quanto de gênero, diante de outro, frente à legitimidade das trajetórias acadêmicas. A dificuldade do reconhecimento da situação de desvantagem de segmentos específicos da população, diante de outros, ocorre também em relação a estudantes classificados como negros(as). Nessa perspectiva, construções sociais de gênero e cor/raça são acionados como sendo características naturais (sexo) e de classe (cor/raça). Sugerimos que esta concepção encontra-se de tal forma estruturada, como também é de difícil questionamento.

A Adoção de Medidas de Combate às Desigualdades Raciais no Ensino Superior

Nas falas dos estudantes aparecem diferentes referências às questões sobre a presença de poucos negros nas universidades e sobre quais medidas e políticas públicas específicas levariam ao aumento desse segmento específico nas universidades. As respostas obtidas são indicativas da complexidade do tema sobre promoção de políticas públicas para um segmento historicamente discriminado.

1) P: Por que você acha que tem poucos negros nas universidades?

R: Eu acho que por dificuldades econômicas o negro não chega às universidades [...] pra negros e pessoas carentes, porque é mais difícil. Olha só, quando você, eu acho que quando a pessoa começa a se perceber como negro, isso é mais para o final da adolescência e tal, quando a pessoa vai tornando adulta, ela... tem uns que se conformam, tem outros que não, "já que é assim, então, vou ser melhor em tudo", porque o negro para conseguir se destacar ele tem que ser melhor do que os melhores. Por isso é que eu estou sempre [...] sabe, até quando eu comecei as aulas eu achei o máximo, porque vários livros que eles tinham mandado ler, eu já tinha lido, sabe. Você tem que ser o melhor, você tem que ser mais do que o melhor se possível, é o ideal. Porque senão, o mercado engole, é como se fosse um trator, ele vai passando por cima de todo mundo, e se você conseguir correr na frente, ele não te pega, então pra um negro conseguir chegar na universidade, pra conseguir chegar a um lugar mais elevado, a patamar mais elevado, a condição social mais elevada tem que investir em conscientização, conscientização pessoal, ele se perceber como negro, se aceitar como tal e conscientização da situação do negro na sociedade. A partir do momento que você diz "sou negra, vamos ver como é a nossa situação", aí não é mais a situação dos negros é a nossa [ênfase] situação, aí você "olha bem, o negócio é meio complicado, então vamos fazer o melhor". Aí dá pra você se destacar, chegar a uma universidade, é investimento mesmo, porque se você for esperar do governo você vai ficar esperando a vida inteira.

Entre os estudantes universitários, ao nosso ver, ainda que diferentes, as respostas contêm um ponto convergente: não há expectativa, por parte dos estudantes, com relação a iniciativas de políticas públicas que visam a promoção de direitos para segmentos específicos da população. As referências ao poder público em todos as instâncias remetem a inoperância no que se refere ao combate à discriminação. Um exemplo a ser citado se refere ao termo governo, que é amplamente utilizado para falar da falta de iniciativas públicas com vistas à superação do racismo.

1) P: Você repara que o número de negros é menor na universidade?

R: Com certeza.

P: A que você atribui esse fato?

R: À desigualdade social. Não é todo mundo que consegue passar para uma faculdade pública, e particular... por que? Porque a pessoa não tem dinheiro pra pagar um pré- vestibular, porque as pessoas... o ensino público está horrível. Lógico que não estou... tem escolas particulares que são horríveis, mas a escola pública está muito pior, não só escola como saúde, tudo. Se você não dá uma valorização à educação do seu país... fica esse monte de campanha: educação, educação, educação. Você faz um concurso público achando que você vai chegar na sua escola encontrar um apagador, um quadro negro e na real você não encontra nada. Como é que o fulaninho... se na biblioteca falta livro e fulaninho não consegue ler? É o que meu pai fala, na época dele se lia muitos livros, na quarta série já estavam lendo livros. Eu acho que eu li meu primeiro livro, educacionalmente mandado pela professora, na sexta série. Então como é que se pode colocar um cara desse em uma universidade pública? É muito difícil. Quando passa, passa para o que eu passei, que é pedagogia ou para filosofia... Eu não estou falando... por exemplo, eu fiz pedagogia porque eu quis, fulaninho fez filosofia porque quis, mas muito fizeram porque não tinham condição de passar para medicina, por exemplo. Eu tenho um amigo que é negro e passou para medicina, eu fiquei com um orgulho dele tão grande, como se fosse meu filho. Eu achei o maior barato. [...] Um monte de gente que estudou comigo no primário, ginásio no primeiro grau parou na sexta série. Por isso que muita gente fala: "legal você entrou para a faculdade." Porque você olha as pessoas você tem que se espelhar nas que subiram, lógico que às vezes a pessoa tem que trabalhar cedo, tem que ajudar em casa... Eu tenho amigos inteligentes que moram no morro, na favela...

Grande parte dos estudantes universitários que se autoclassificam como negros optam por promoção de medidas para todas as pessoas carentes. O dado étnico encontra-se esvaziado frente ao que parecem ser questões pertinentes à pobreza. Dessa forma, a condição étnico-racial é redefinida como sendo um atributo de classe. Eis mais algumas falas a esse respeito.

1) P: Então o que se faz com o pessoal que não consegue entrar na universidade por que precisa trabalhar... enfim, porque a vida não permite. O que fazer?

R: Pergunta muito difícil... olha eu não sei, me sinto tão perdida para responder isso. Porque não adianta dar conselhos dizer que elas têm que estudar. Elas já sabem.

P: Sim, elas têm essa consciência. Mas elas não conseguem se inserir aqui na universidade justamente porque elas trabalham, porque não podem pagar um curso pré-vestibular ou então porque elas trabalham o dia todo e quando chegam no curso estão muito cansadas para aprender alguma coisa, e não conseguem chegar até uma universidade pública e muita das vezes nem em uma particular. Qual a solução para isso?

R: Gente... não sei, eu sou toda...

P: Quando você respondeu o questionário você relacionou com a falta de recursos econômicos, com a decadência do ensino público e também com o racismo e discriminação que os negros sofrem. E depois você respondeu que deveriam ser tomadas medidas que beneficiassem pessoas carentes como um todo, não somente os negros. Que medidas seriam essas?

R: Não sei...

P: Nunca parou para pensar nisso?

R: Nunca parei para pensar nisso. Eu acho que tem que ter uma medida, tem que ter um jeito.

P: Você falou do sistema de cotas. Você não acha legal?

R: Começando pela inscrição do vestibular, sessenta e cinco reais! Que Brasil é esse! Eu não posso dar sessenta e cinco reais assim.

P: Mas ai é que entra a questão que a gente está tentando tocar. O sistema de cotas para você não é a saída, porque?

R: Tem a isenção, só que a isenção é mínima. [...]

Na questão relativa a quais medidas deveriam ser tomadas para aumentar o número de estudantes negros na universidade, ocorre uma dissonância entre a pergunta e a resposta. A pergunta é sobre o número de negros, a resposta refere à falta de recursos econômicos dos estudantes, não necessariamente negros. A referência à falta de recursos é recorrente entre os entrevistados. Ao que tudo indica, no discurso dos estudantes universitários haveria a predominância da classe sobre a cor ou a raça. Tudo se passa como se os limites entre onde termina a determinação de classe e onde começa a cor e ou raça pudesse ser indicado.

1) P: É um tema muito polêmico e totalmente indefinido a questão de políticas públicas, do governo ou não, para aumentar a presença de negros na universidade, por exemplo. Em geral, você acha essas medidas deveriam ser específicas para os negros ou para pessoas carentes?

R: Olha, eu acho o seguinte, tem que ser [...] deixa eu explicar porquê. Os carentes, as pessoas carentes, depende do lugar onde você vai, por exemplo, [eu não vou a hotel] na cidade do Rio de Janeiro, é óbvio, mas quando você vai, por exemplo, a camareira que te atende, a faxineira que limpa o teu quarto no hotel, geralmente ou é negra, ou é mulata ou é parda, é difícil você ver... Agora, por exemplo, quando eu vou pra [lugar], o hotel onde eu fico a faxineira que limpava o meu quarto era loira..., a pobreza, a miséria não se restringe à cor, é uma condição social tudo bem. Agora, a questão de educação, é mais uma questão cultural. Eu achava que seria bom fazer, por exemplo, leis que garantissem uma quantidade de vagas pra negros, tipo, para correr atrás do prejuízo, porque se você for ver, é difícil chegar um negro na universidade, é difícil você chegar... é, ver um negro num cargo de poder, sabe, as pessoas não aceitam muito isso [...] nas escolas é sempre mais... população de baixa renda, sim, mas mais brancos do que negros. Mas isso também tem que ter conscientização, porque a maioria das pessoas, às vezes, "ah, então, é assim? Então, tá, tudo bem", sabe, só que não é assim, a gente tem que correr pra mudar, a gente tem que correr atrás do prejuízo, isso depende de nós [...] Tinha que ter medidas para garantir o número de vagas para população de baixa renda? Sim, claro, mas também tem que ter pro negro. Posso estar sendo radical? Sim, eu estou sendo radicalíssima, mas eu achava que tinha que ter.

Ainda sobre a questão mencionada no parágrafo anterior, gostaríamos de indicar a diferença do discurso sobre medidas específicas para aumentar o número de negros na universidade e no mercado de trabalho. A sugestão contida no trecho acima mencionado articula dois níveis diferenciados, indicando que para o mercado de trabalho deveria ter medidas eqüitativas específicas para a população negra, em contrapartida para universidade não caberia tal medida. É possível inferir que há dois diferentes princípios: a universidade seria o espaço para universalidade por excelência, enquanto no mercado de trabalho não haveria tal princípio, necessitando de intervenção. Ainda assim, ocorre a rejeição quanto ao benefício de tais medidas.

1) P: Você falou que... hipoteticamente, se essas medidas chegassem ao mercado de trabalho, você acha que iria se beneficiar dessas medidas, você pessoalmente?

R: Eu acho que me beneficiaria não por causa da medida... não sei, sabe, sim e não [...] da mesma forma que eu falei que tem uns que se conformam e acabam... esses que se conformam acabam virando maus profissionais, entendeu. Então, se você for pegar... se fizerem uma medida, garantir um certo número, vai ser saudável? Vai. Mas, ao mesmo tempo, pode não ser, porque podem chegar maus profissionais ao mercado, em cima de uma lei que garanta que eles estejam lá. Agora, por isso é que eu acho que a gente tem que investir pra se tornar o melhor, porque aí você vai estar lá... a lei vai ser boa, se tivesse seria boa? Seria, porque garantiria você estar lá, mas você não estaria lá simplesmente por causa de uma lei, entende?

P: O que você está falando é que as medidas deveriam ser mais voltadas para a educação e não chegar a atingir o mercado de trabalho?

R: Sim, mas não é exatamente isso. É porque eu acho assim, essas medidas seriam, para o mercado de trabalho seriam boas? Seriam ótimas, só que tem sempre um lado negativo, tem um lado que meio perigoso. É que... a pessoa pode, de repente, se conformar, por ter essa lei e achar que não precisa investir por que a lei garante que ela esteja lá, entendeu? E nisso você acaba tendo maus profissionais, maus serviços, sabe, e isso... se houvesse essa lei, sim, mas deveria ter uma seleção pra pegar os melhores, pra não ficar só ali... não estarem simplesmente porque são negros. Até para evitar, de certa forma, humilhações, sabe. Porque, a sociedade é preconceituosa? É. Então, para evitar que, de repente, chega e fala assim, "ah, você só tá aqui por causa da lei", entende? Não, chegar e falar assim "olha, ele tá aqui porque é um ótimo profissional". Não é, "ah, ele é negro e trabalha bem". Não, não é ele é negro e trabalha bem, o fato dele ser negro vai influir? Não vai, se é um bom profissional, é um bom profissional, ponto. Se não é, não é. Vai ter que melhorar, se quiser continuar trabalhando.

As elaborações discursivas citadas acima são indicativas de alguns mecanismos que possibilitam a produção e reprodução de hierarquias, especificamente a filiação étnico-racial, na sociedade brasileira contemporânea. Ao buscamos recuperar a percepção da experiência vivida acerca da "raça" (e também de gênero) podemos perceber que apesar do relativo enfraquecimento de uma visão idílica de relações raciais no Brasil, a noção de classe se mantém como anteparo das desigualdades raciais.

Considerações Finais

Neste trabalho abordamos alguns aspectos da experiência e percepção das relações raciais no Brasil dos estudantes universitários negros e brancos de duas instituições de ensino superior do Rio de Janeiro, uma particular e uma pública, em cursos selecionados. A contribuição desse artigo está em trazer elementos para a reflexão de como negros e brancos vivenciam o cotidiano universitário e como eles percebem a ocorrência de discriminação e racismo na sociedade, em geral, e na universidade, em particular. Contribuímos também para refletir sobre o apoio que medidas voltadas para o combate às desigualdades raciais na educação e aumento do número de negros na universidade teriam entre esse segmento da população.

Cabe notar como o mito da democracia racial vem perdendo espaço frente à percepção do racismo. Contudo, quando questionados sobre racismo na universidade os entrevistados procuravam afastar a percepção do racismo do ambiente imediato do qual são integrantes. Por vezes, afirmam que existe racismo e discriminação na sociedade e os negam na universidade. Nessa perspectiva a universidade emerge como se fosse uma instância fora da sociedade. Com isso torna mais difícil a adesão ou reivindicação de políticas específicas de ação afirmativa. Cabe ainda a observação de que, apesar da relativa ocorrência da categoria "negra" como autoclassificação, categoria esta que tem sido evocada pelos ativistas do movimento negro, isso não significa dizer que haja entre os entrevistados militantes engajados ou ainda nas elaborações discursivas tenha sido recorrente a ênfase atribuída à participação em grupos organizados politicamente. Ao contrário, nas elaborações discursivas as referências mais freqüentes recaíram sobre uma instância criticada pelos ativistas: a individualização de questões de ordem político-social relativas ao racismo, discriminação e desigualdades raciais na sociedade brasileira, e a ênfase na condição socioeconômica como sendo o principal entrave para superação do racismo na sociedade brasileira. Entretanto, se lembrarmos da observação de Guimarães de que o debate sobre as políticas de ação afirmativa ainda está restrito a um pequeno círculo de ativistas e intelectuais, nota-se a existência de um relativamente grande apoio a medidas reparadoras das desigualdades raciais. Ainda mais marcante é o fato de que os alunos da universidade particular são mais favoráveis às medidas dirigidas especificamente aos negros do que os alunos da universidade pública. Aparentemente, os alunos formados nesses dois tipos de instituição se diferenciam no que diz respeito às noções de mérito e universalidade, princípios esses (além de justiça social, diriam uns, e eficiência, diriam outros), que são a informação básica no momento de se estabelecer políticas sociais de combate às desigualdades raciais.

Notas

1. Qual a sua cor?;

2. Durante o segundo grau, quantas vezes você foi reprovado?;

3. Qual a principal razão por você ter sido reprovado?;

4. Quais as três razões principais, em ordem de importância, por você ter decidido fazer esse curso?;

5. Como você avalia sua relação com seus colegas de curso?;

6. Como você avalia sua relação com seus professores?;

7. Você acha que negros e brancos são tratados de forma diferente na sociedade brasileira?;

8. E em relação à universidade mais especificamente, você acha que negros e brancos são tratados de forma diferente?;

9. Quais as três razões principais, em ordem de importância, que você apontaria como causas para a presença de poucos negros na universidade?.

  • BARCELOS, Luiz C. (1999). "Aspectos da Realização Educacional de Negros e Brancos no Ensino Superior no Brasil". In Dayse de Paula M. da Silva (org.), Novos Contornos no Espaço Social: Gênero, Geração e Etnia Rio de Janeiro, EdUERJ, pp. 159-168.
  • ___. (1996). "Mobilização Racial no Brasil. Uma Revisão Crítica". Afro-Ásia, nº 17, pp. 187-210.
  • BENTO, Maria A. S. (org.) (2000). Ação Afirmativa e Diversidade no Trabalho. Desafios e Possibillidades São Paulo, Casa do Psicólogo.
  • BERNARDINO, Joaze. (1999). Ação Afirmativa no Brasil. A Construção de Uma Identidade Negra?. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Brasília, Universidade de Brasília.
  • DA MATTA, Roberto. (1978). "O Ofício do Etnólogo ou como Ter Anthropological Blues". In Edson Nunes(org.), A Aventura Sociológica Rio de Janeiro, Zahar.
  • DOSSIÊ Ações Afirmativas. (1996). Estudos Feministas, vol. 4, nº 1, pp. 124-224.
  • FRY, Peter. (1991). "Politicamente Correto num Lugar, Incorreto Noutro?". Estudos Afro-Asiáticos, nº 21, pp. 167-177.
  • GUIA Abril do Estudante 98 São Paulo, Editora Abril.
  • GUIMARÃES, Antônio S. (1999). "Argumentando pela Ação Afirmativa". In A. S. Guimarães (org.), Racismo e Anti-Racismo no Brasil São Paulo, FAUSP.
  • HALBWACHS, Maurice (1990). A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice.
  • HEILBORN, Maria Luiza (1995). Gênero, Sexualidade e Saúde. Mimeo.
  • HERINGER, Rosana (org.). (1999). A Cor da Desigualdade. Desigualdades Raciais no Mercado de Trabalho e Ação Afirmativa no Brasil Rio de Janeiro, Ierê.
  • KOFES, Suely. (1994). "Experiências Sociais, Interpretações Individuais: Histórias de Vida, suas Possibilidades e Limites". Cadernos Pagu, nº3, pp. 117-141.
  • MOEHLECKE, Sabrina. (2000), "Propostas de Ações Afirmativas para o Acesso da População Negra ao Ensino Superior no Brasil". In: D. Queiroz et alii, Educação, Racismo e Anti-Racismo Salvador, Programa A Cor da Bahia/UFBa, pp. 69-96.
  • MORO, Neiva de O. (1993), Um Estudo sobre o Universitário do Anual de 1990 da Universidade Estadual de Ponta Grossa: Carreiras Educacionais e Raça. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, São Paulo, PUC.
  • MOUTINHO, Laura (1999). "Razão, Afetividade e Desejos nos Relacionamentos Afetivo-Sexuais entre Brancos e Negros na Cidade do Cabo (África do Sul) e Rio de Janeiro (Brasil). Trabalho apresentado no XXII Encontro Anual da Anpocs, outubro, Caxambu (MG).
  • SOUZA, Jessé (org.). (1997), Multiculturalismo e Racismo. Uma Comparação Brasil-Estados Unidos Brasília, Paralelo 15.
  • VELHO, Gilberto. (1978), "Observando o Familiar". In: Edson Nunes (org.), A Aventura Sociológica Rio de Janeiro, Zahar.
  • 1
    . Os termos "raça" e "cor" são utilizados indiscriminadamente no presente trabalho, ambos significando uma categoria social, construída historicamente, que eventualmente é acionada como princípio classificatório e/ou hierarquizador nas relações sociais.
  • 2
    . Como não poderia ser de outra forma, à medida que o debate se amplia, captura a atenção da mídia. Em matéria no site no.com.br de 13 de outubro de 2000 sobre as instalação da fábrica de automóveis da Ford na Bahia, Marcos Sá Correia informa que os "4 mil contratados [da fábrica] serão uma amostra estatística da sociedade local. Sessenta por cento das vagas foram reservadas para negros e mulatos, porque é a cor da população. As mulheres terão 40% dos empregos, porque é a parte que lhes cabe na região".
  • 3
    . O pré-teste do questionário foi realizado em duas universidades, distintas das universidades onde foi realizado o
    survey, nos meses de outubro e novembro de 1997. Foram aplicados, então, 116 questionários.
  • 4
    . Comprometemo-nos com os dirigentes das universidades que os dados coletados seriam divulgados sem a identificação da universidade, ainda que nossa pesquisa não tenha como objetivo avaliar condições de ensino.
  • 5
    . Cabe citar que a instituição particular não oferece o curso de Comunicação.
  • 6
    . O curso de Engenharia aparece tanto entre os cursos mais procurados, quanto entre os cursos mais oferecidos.
  • 7
    . Os outros termos escolhidos pelos entrevistados foram: "morena clara" (1,0%), "amarela" (0,9%), "preta" (0,9%), "caucasiana" (0,1%), "clara" (0,1%), "indígena" (0,1%) "mameluca" (0,1%), "marfim" (0,1%), "marrom" (0,1%), "mestiço" (0,1%) "morena escura" (0,1%), "morena médio" (0,1%) e "mulata" (0,1%).
  • 8
    . Utilizamos, deste ponto em diante, a classificação racial atribuída pelos estudantes na pergunta fechada que apresentou as categorias utilizadas pelo IBGE. Utilizamos, também, a categoria "negra" (agrupamento das respostas "preta" e "parda") para designar os estudantes. Excluímos das análises os indivíduos que marcaram "amarela" e "indígena".
  • 9
    . Nesta perspectiva, indicamos apenas as perguntas (P) e respostas (R) nos extratos das entrevistas.
  • 10
    . Neste sentido ver Halbwachs (1994) e Kofes 1994), entre outros.
  • 11
    . Estes temas foram abordados a partir das seguintes questões:
  • 12
    . Sobre as noções de proximidade e distância, ver DaMatta (1978) e Velho (1978).
  • 13
    . Neste sentido, adotamos, neste artigo, a categoria gênero como perspectiva de análise. Nas Ciências Sociais, como afirma Maria Luiza Heilborn (1995): "Gênero é um conceito [...] que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que a palavra sexo designa agora, no jargão da análise sociológica, somente a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero existe, portanto, para distinguir a dimensão biológica da social. O raciocínio que apóia essa distinção baseia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e mulher é realizada pela cultura. Mas, por que é possível afirmar-se que homens e mulheres só existem na cultura, ou melhor, que são realidades sociais e não naturais?".
  • 14
    . A este respeito ver, também, Moutinho (1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2002
    • Data do Fascículo
      2001
    Universidade Cândido Mendes Praça Pio X, 7 - 7o. andar - Centro, 20040-020 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 2516-2916 , Fax: +55 21 5516-3072 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: afro@candidomendes.edu.br