Da investigação para a clínica: (des)evidências

A pandemia relevou para segundo plano todas as pesquisas não relacionadas com o SARS-CoV-2, assumindo-se como um desafio complexo que influencia desde o desenho até a utilização dos resultados dos estudos. As medidas de controle da propagação da COVID-19 com as restrições ao movimento de pessoas e ao acesso às instituições prestadoras de cuidados de saúde, aliadas à suspensão ou alteração dos cronogramas dos cursos de pós-graduação e das pesquisas em curso, resultaram no afastamento dos investigadores dos contextos, aumentando o tempo da pesquisa e retardando a introdução dos resultados na clínica.

O uso do conhecimento na saúde não é uma preocupação recente na pesquisa,¹ com os autores a advogarem que esta dificuldade prende-se a questões metodológicas e éticas,² rigor científico, capacidade de execução do projeto, dificuldades no financiamento da pesquisa, pertinência e utilidade diante das necessidades e políticas de saúde, eficácia na comunicação e divulgação e falta de uma cultura científica de trabalho colaborativo para o desenvolvimento de produtos que promovam a introdução dos resultados nos contextos.^1,2

Essas dificuldades agravaram-se nos contextos de saúde, sobretudo para as transições de saúde-doença não associadas à infeção pelo SARS-CoV-2, provavelmente com efeitos na tomada de decisão clínica. Decidir o cuidado com base no conhecimento é um processo complexo que implica identificar a(s) evidência(s) disponível(eis) para a tomada de decisão e levar em conta a participação das pessoas com necessidades de cuidados e dos seus cuidadores.³ Essa adequação dos resultados ao contexto e às necessidades individuais rompe com o status quo da globalização dos resultados e impele para a diferenciação e contextualização dos estudos, com auxílio do investigador.⁴

Essas orientações para a utilização da evidência reforçam a importância de se escolher a opção terapêutica que tende a ser a mais adequada, de acordo com as circunstâncias clínicas individuais e com os valores e as preferências das pessoas e cuidadores e, em muitos casos, dado que apenas a evidência nunca é suficiente para tomar decisões clínicas, avaliar a relação entre benefícios e riscos, a carga associada e os custos envolvidos na decisão.³

Corroboramos a opinião dos autores que advogam a presença das equipes de pesquisa no terreno e o trabalho colaborativo para o desenho do estudo e para auxiliar na transferência do conhecimento para os utilizadores (profissionais de saúde) e beneficiários (clientes e cuidadores),^1,4 mas constatamos que os decisores políticos e os gestores das unidades de saúde não ponderaram o impacto do afastamento dos investigadores dos contextos durante a Pandemia nem ponderaram o efeito na almejada Prática Baseada na Evidência (PBE), talvez porque eles próprios privilegiam modelos unidirecionais para a translação do conhecimento.

No entanto, os momentos de crise devem servir para refletir, aprender e antecipar cenários futuros, com maior capacidade de decisão, competência e colaboração dos diferentes intervenientes. Fica, neste editorial, o desafio para que os próprios investigadores (re)pensem o seu papel no uso do conhecimento e nos desafios da PBE, questionando os modos de investigar e a forma como os profissionais da clínica usam os resultados, mas, acima de tudo, no seu papel e credibilidade científica no uso do conhecimento,⁴ para que o discurso no uso da evidência não seja mais uma (des)evidência na nossa prática.

Referências

• ¹
  Baixinho CL, Costa AP. From the hiatus in the theory - practice discourse to the clinic based on the uniqueness of knowledge. Esc Anna Nery. 2019 jul 15;23(3):e20190141. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0141
  » http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0141
• ²
  Cabral IE, Egry EY, Barbosa DA. Integrity and ethics in research and scientific communication: issues for Nursing considerations. Rev Esc Enferm USP. 2015 out;49(5):710-5. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000500001 PMid:26516738.
  » http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000500001
• ³
  Mota DM, Kuchenbecker RS. Considerações sobre o uso de evidências científicas em tempos de pandemia: o caso da COVID-19. Vigil Sanit Debate. 2020 abr 24;8(2):2-9. https://doi.org/10.22239/2317-269x.01541
  » https://doi.org/10.22239/2317-269x.01541
• ⁴
  Baixinho CL, Costa AP. A credibilidade científica do investigador e a transferência do conhecimento. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20200008. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0008
  » http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0008

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  14 Jan 2021
• Aceito
  29 Jan 2021