Open-access Conversações na disciplina Tópicos nas relações étnico-raciais: ensinamentos de bell hooks na educação em Enfermagem

Conversaciones en la disciplina Temas en las relaciones étnico-raciales: enseñanzas de bell hooks en la educación en Enfermería

Resumo

Objetivo  apresentar a experiência da construção e efetivação da disciplina “Tópicos nas relações étnico-raciais no contexto da saúde” para estudantes do curso de graduação em Enfermagem assentada nos postulados propostos pela pedagogia engajada de bell hooks

Método  o território do fazer face à pandemia da COVID-19 foi desenvolvido no Ambiente Virtual de Aprendizagem e na construção coletiva de um Padlet®. O estudo atravessa a vida de docentes e monitoras da disciplina, todas negras e integrantes da Liga Acadêmica de Enfermagem em Saúde na População Negra/UFRJ. O período da realização ocorreu de julho a outubro de 2021. A apresentação dos resultados tomou por base os 32 ensinamentos de bell hooks.

Resultado  ao final da disciplina, os 26 estudantes inscritos tiveram a oportunidade de refletir onde e como se deu a experiência das conversações.

Conclusões e implicações para a prática  a disciplina se tornou um dispositivo legítimo de enfrentamento ao racismo e ao preconceito, somando-se às lutas em curso por uma abordagem livre de discriminação, em relação aos múltiplos grupos humanos que formam a sociedade brasileira.

Palavras-chave:
Educação Superior; Enfermagem; Ensino; Racismo; Saúde da População

Abstract

Objective  To present the experience of the construction and implementation of the course “Topics in ethnic-racial Relations in the Context of Health” to students of the undergraduate Nursing degree based on the principles proposed by bell hooks' engaged pedagogy.

Method  The territory of doing in the face of the COVID-19 pandemic was developed in the Virtual Learning Environment and in the collective construction of a Padlet®. The study goes through the lives of professors and monitors of the discipline, all black, and members of the Academic League of Health Nursing in the Black Population/UFRJ. The study took place from July to October 2021. The presentation of the results was based on hooks' thirty-two teachings.

Result  At the end of the course, the 26 enrolled students had the opportunity to reflect on where and how the experience of the conversations took place.

Conclusions and implications for practice  The course has become a legitimate device for confronting racism and prejudice, adding to the ongoing struggles for a discrimination-free approach to the multiple human groups that make up Brazilian society.

Keywords:
Universities; Nursing; Teaching; Racism; Population Health

Resumen

Objetivo  presentar la experiencia de la construcción e implementación de la disciplina “Temas de relaciones étnico-raciales en el contexto de la salud” a los estudiantes del curso de graduación en enfermería a partir de la pedagogía comprometida de bell hooks.

Método  el territorio de enfrentamiento a la pandemia de COVID-19 se desarrolló en el Entorno Virtual de Aprendizaje y en la construcción colectiva de un Padlet®. El estudio recorre la vida de profesores y monitores de la disciplina, todos negros y miembros de la Liga Académica de Enfermería de la Salud en la Población Negra/UFRJ. El período de realización tuvo lugar de julio a octubre de 2021. La presentación de los resultados se basó en las treinta y dos enseñanzas de hooks.

Resultado  al final del curso, los 26 estudiantes matriculados tuvieron la oportunidad de reflexionar sobre dónde y cómo tuvo lugar la experiencia de las conversaciones.

Conclusiones e implicaciones para la práctica  la disciplina se ha convertido en un dispositivo legítimo para enfrentar el racismo y los prejuicios, sumándose a las luchas en curso por un enfoque libre de discriminación para los múltiples grupos humanos que componen la sociedad brasileña.

Palabras clave:
Universidades; Enfermería; Enseñanza; Racismo; Salud de la Población

INTRODUÇÃO

Este estudo nos remete às maneiras de ensinar o pensamento crítico com vistas a uma compreensão anticolonial e antirracista, assentada nos principais elementos afetivos e pedagógicos postulados por bell hooksa em suas reflexões sobre como se pode avançar em sala de aula, para além do espaço da educação, que reproduz o sistema dominante e hegemônico branco. Nesse contexto, o ensino-aprendizagem em hooks tem discutido como desnaturalizar a educação e a cultura colonizadora, que basicamente transformaram a sala de aula em instrumento de silenciamento e apagamento, ao limitar outras formas de ver e viver no mundo.

A inserção da temática étnico e racial-brasileira nos currículos visa atender às demandas emergentes sobre a pluridiversidade e a discussão da equidade urgentes e necessárias ao cuidado culturalmente competente em saúde.

Na saúde, o Projeto Pedagógico de Curso (PPC) exige incorporar a realidade das populações e suas relações étnicos-raciais brasileiras na estrutura, organização e nas intencionalidades demonstradas nos conteúdos que contemplam a discussão étnico-racial. Pensar em como transgredir a regra que imprime na ciência e na saúde o legado, apresentando epistemologias que conversem com a questão racial, buscando a inserção das relações étnico-raciais na perspectiva da população negra e nos demais povos étnicos.

Os ensinamentos de bell hooks orientam a busca por uma prática pedagógica que convoque os estudantes a pensar de forma interativa, imaginativa e engajada, “enxergando as coisas do ponto diferente do nosso”, nosso - professores e estudantes.1

Deslocar e estranhar de onde se produz o conhecimento é a tarefa intelectual a ser realizada pelos enfermeiros na produção de um saber na perspectiva antirracista e anticolonial. Na esperança interseccional também, há muito a se produzir sobre raça, classe, gênero e, pluridiversificar os aspectos clínicos e epidemiológicos dos agravos à saúde dos indivíduos, famílias e comunidades. A interseccionalidade é compreendida como um “sistema de opressão interligado”2 que circunda a vida de mulheres negras no encontro de avenidas identitárias.

A premissa é compreender que raça e etnia não determina o adoecimento sem que esteja conjugado com a vida em estado constante de desigualdade social, racismo e a falta de acesso aos serviços básicos. É significativo trazer nas conversações, aqui conceituada por bell hooks como compartilhamento de poder e conhecimento, uma iniciativa de cooperação com a lente interseccional e étnica, capazes de chegar no cuidado às unidades de saúde e dar aos corpos a subjetividade que eles merecem.3

As diferenças étnico-raciais, na contemporaneidade, se tornaram uma emergência no âmbito da saúde. Raça e etnia têm sido, assim, conceitos dos mais significativos para expressar a natureza das relações entre os grupos humanos e ressignificar os modos de interagir e cuidar em saúde.

O processo de ensino e aprendizagem sobre a temática relações étnico-raciais é indispensável para os cursos de formação superior na área da saúde, em todas as áreas, e na Enfermagem torna-se uma exigência pautada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 1/2004.4 Ambas as normativas delineiam os princípios e outros desdobramentos, dos quais o artigo 26 abrange desde a Educação Básica ao Ensino Superior sobre a reeducação das relações étnico-raciais e do ensino de História e Cultura Afro-brasileiras.

Para tal, a problemática se concentra na reparação e em reconhecer os saberes e práticas da população negra e demais populações étnico-raciais brasileiras, utilizando as epistemologias e as pedagogias inovadoras, críticas e abertas ao diálogo plurirracial e pluriétnico.

A pandemia da COVID-195 acelerou a necessidade de dar lugar a estes conteúdos na estrutura curricular da saúde, pois, a emergência sanitária expôs as condições de desigualdades nas quais estão submetidas uma parcela da população, principalmente a população negra, indígena e boa parte do povo romani/cigano.

Se a pandemia foi considerada como uma experiência vivida nos corpos e nas sensibilidades coletivas, que elementos subjetivos precisa-se revelar sobre a experiência dos povos subalternizados e convocar na saúde outros modos de pensar nossas práticas de cuidado? Como pode a educação, o pensamento crítico, fortalecer o combate ao racismo e a discriminação étnico-racial, reduzindo as desigualdades em saúde?

Nesse contexto de incertezas, a disciplina “Tópicos nas relações étnico-raciais no contexto da saúde”, foi criada e iniciou suas atividades no primeiro período letivo do ano de 2021. O símbolo adinkra NEA ONNIM NÃO A SUA OHU representa o provérbio “aquele que não sabe, pode aprender” é a marca ancestral da proposta. Mais que um símbolo africano, refere-se à necessidade de uma descoberta contínua do conhecimento, coletivizando a sabedoria e as culturas em sua diversidade.

A disciplina, com três créditos, totaliza 45 horas teóricas e teve a sua inauguração junto aos estudantes do Curso de Graduação em Enfermagem, registrada como atividade acadêmica optativa, de escolha condicionada. Está pautada nas leis nº 10.639/20036 e nº 11.645/2008,7 que estabelecem a inclusão obrigatória nos currículos escolares da temática História e Cultura Afro-Brasileira, favorecendo as reflexões multiculturais e pluriétnicas. Estudantes, monitores e docentes compartilharam histórias, memórias e conflitos, revelando que “aquele que não sabe, pode aprender” (adinkrab que representa o conhecimento, a busca pelo conhecimento e a aprendizagem no decorrer da vida), neste espaço de afeto e colaboração durante a disciplina.

Desse modo, objetivou-se apresentar a experiência da construção e a efetivação da disciplina “Tópicos nas relações étnico-raciais no contexto da saúde” para os estudantes de um curso de graduação em Enfermagem assentada na pedagogia engajada de bell hooks.

MÉTODO

Estudo descritivo, do tipo relato de experiência, sobre a construção do fazer, do colaborar e do compartilhar com estudantes de graduação em Enfermagem, estratégias de aprendizado na (con)formação da primeira disciplina do Curso de Enfermagem de uma Instituição de Ensino Superior voltada à discussão étnico racial.

O caminho teórico metodológico desta experiência foi construído em diálogo com os ensinamentos propostos por bell hooks para o alcance da pedagogia engajada, e esta como capaz de aumentar o potencial libertador da educação. A sua trilogia de ensino: Ensinando a transgredir,1 Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática 3 e Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança 9 oferece a oportunidade de refletir e se preparar para os desafios que se impõem aos docentes efetivamente interessados em colaborar com uma educação antirracista, e que fissure os paradigmas da dominação eurocêntrica.

A experiência de bell hooks tem consenso e proximidade com as ideias e constructos de Paulo Freire, já que, ao conhecer suas ideias de uma educação libertadora, bell hooks pode pensar nos modos de viver de grande parte da população estadunidense, onde destaca-se a utilização do suporte teórico encontrado na obra “Educação como Prática da Liberdade”.10 A autora propõe pequenos textos denominados “ensinamentos”, e em muitos deles, Freire está presente. Assim, bebe-se fartamente desta fonte na disposição para alargar a consciência e os engajamentos críticos junto aos estudantes.

A experiência ocorreu no ambiente on-line de processo de ensino-aprendizagem, devido ao contexto da pandemia da COVID-19, no Curso de Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ), atravessado pela vida em docência de três mulheres negras, professoras efetivas da EEAN.

Outras mulheres, monitoras da disciplina, todas negras e integrantes da Liga Acadêmica de Enfermagem em Saúde na População Negra (LAESPNE/UFRJ) mobilizaram seus corpos, conhecimentos e afetos, participando ativamente, neste espaço seguro de aprendizagem.

O período da realização da experiência e vivência de aprender e ensinar ocorreu de julho a outubro de 2021, após a aprovação da disciplina nas principais instâncias da UFRJ.

O território do fazer face à pandemia da COVID-19 foi desenvolvido com o registro das atividades realizadas pelos estudantes, por meio da ferramenta reconhecida como Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) e na construção coletiva de um mural de conhecimento intitulado Padlet ® .

O Padlet ® é uma ferramenta que permite criar quadros virtuais para organizar a rotina de trabalho e estudos. O recurso possui diversos modelos de quadros para criar cronogramas, que podem ser compartilhados com outros usuários, e que facilita visualizar as tarefas em equipes de trabalho ou por instituições de ensino. Nele, narrativas individuais, interesses culturais e singularidades familiares foram postos em roda de conversação com leituras, vivências e experiências oferecidas em sala de aula virtual.

Como critérios de análise utilizou-se a observação e as anotações das percepções dos estudantes; as frequências nas aulas; as interações qualitativas entre os estudantes, equipe e convidados nos encontros da disciplina e; a consulta ao registro do que foi construído ao final com o apoio do Mentimeter ® - aplicativo que cria apresentações em tempo real com respostas às ações desenvolvidas, em forma de avaliação.

A apresentação dos ensaios de celebração, conforme proposto por bell hooks em sua obra, e que serviu de base para este estudo, foi estruturada a partir das categorias delineadas pela autora.1,3 Essas categorias, por sua vez, são permeadas por termos que evocam as vivências dos povos originários, cujas fontes de conhecimento residem na oralidade e no compartilhamento de experiências.

Mesmo não se tratando de um estudo de campo, respeitou-se o sigilo e confidencialidade dos participantes, conforme preconiza a Resolução nº 466 /201211 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

RESULTADOS

A ementa que congrega os conteúdos da disciplina foi assentada nos 32 ensinamentos dispostos por hooks em Ensinando o Pensamento Crítico: sabedoria prática 3 e propõe uma travessia engajada na descolonização.

O conceito de pedagogia engajada de bell hooks, serve e acolhe, pois caminha na ênfase ao bem-estar, ao compartilhamento em sala de aula, valorizando a expressão do estudante e obrigatoriamente dividindo com ele experiências pessoais, histórias e muitos conhecimentos. Não é só a cognição o mais importante no aprender, mas os aspectos espirituais e anseios individuais.

Nesse contexto, a transgressão3 é pois, o ato de romper com engessamentos favorecendo que todos possam ouvir e falar, aprendizagem preciosa para os futuros enfermeiros do Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, transgredir para bell hooks é quebrar as fronteiras que limitam o estudante a pensar e aprender como linha de produção. Ensinar é pois, um ato de resistência contra o tédio, o desinteresse e a apatia muitas vezes onipresentes em sala de aula.1

Cada encontro trouxe consigo a proposta de colocar em prática o anseio de compreender o funcionamento da vida, de recuperar a autoestima e alcançar a autorrealização. Para isso, professores e estudantes são responsáveis por criarem juntos uma comunidade de aprendizagem, em um movimento circular de celebração.

Os estudantes em sua maioria estavam no ponto de chegada para sua formação - primeiro período do curso, isso é de extrema relevância, ao se considerar que podem ser vozes que fortalecem a luta antirracista ao levarem a discussão étnico-racial para as demais disciplinas, em especial as de dimensões teórico-práticas, durante o percurso deles na grauação em Enfermagem.

O mural ou Padlet ® , como vivências de um quilombo virtual, foram articulados em três grupos estimulados e organizados pelas monitoras. Escolheu-se chamar de quilombos. Este conceito tratado por Beatriz Nascimento evoluiu nos tempos e movimentos. Trata-se de um território de liberdade, não apenas referente a uma fuga, mas uma busca de um tempo/espaço de paz: Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.12

Ao final da disciplina, os 26 estudantes inscritos tiveram a oportunidade de refletir, apontando onde e como se deu a experiência das conversações. Utilizou-se a plataforma Mentimeter ® para o registro avaliativo, quando os estudantes foram estimulados em uma palavra a trazer o significado dessa (con)vivência. A imagem gerada pelo Mentimeter ® expressou o bem-estar e as conexões produzidas nos estudantes e docentes sobre o que fora sentido durante o compartilhamento das experiências na disciplina.

DISCUSSÃO

As experimentações em sala buscaram integrar os conceitos de bell hooks e Paulo Freire, celebrando o encontro entre as proposições apresentadas na pedagogia engajada, que atravessam o pensamento crítico de hooks, e a metodologia de Freire, para promover a conscientização, a transformação social e formular uma pedagogia onde todos os estudantes são percebidos como sujeitos de conhecimento.

Os ensaios de celebração de hooks visam honrar sua luta por uma educação libertadora, que desafia as normas sociais e promove a igualdade. Por meio dessa abordagem, busca-se atender à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),13 na sua demanda quanto ao estudo das relações étnico-raciais e o reconhecimento da diversidade cultural brasileira na formação superior.

Na saúde, significa entender que é urgente preparar os profissionais para reconhecer os contextos de discriminação racial. Não só reconhecer mas enfrentar os efeitos do racismo na vida de quem se cuida. As conversações em sala de aula conclamam a todos os presentes a se engajarem cada vez mais no aprendizado, abrindo suas mentes e corações para um movimento que busca promover a saúde de todos os povos, rompendo com práticas e saberes excludentes.

As conversações, frutos dos encontros remotos entre as mulheres negras, e os convidados (militantes, religiosos, docentes e estudantes de pós-graduação engajados na luta antirracista) convocaram a discussão sobre os ensinamentos de bell hooks1,3 como o fio condutor no arranjo das temáticas em sala de aula.

A vivência de oito dos 32 ensinamentos trouxe novos significados para o cotidiano da sala de aula. Com eles, refletiu-se sobre os reais propósitos do ensino em um contexto cuja realidade conservadora, racista e sexista se impõe na formação em saúde, articular outros modos de vida e bem viver.

Em Contar histórias e compartilhar histórias insere-se os conteúdos de Saúde dos Povos Negros, Indígenas e Romani. Assim, as conversas ao pé do ouvido, os saberes de cura e de cuidado, imagens, poemas e canções foram trocas vivas em novas construções do conhecimento.

As feridas sociais e emocionais provocadas pelas opressões cotidianas são postas em discussão. Contar histórias e com elas rir e chorar é muito poderoso pois, para bell hooks, quando ao possibilitar às lágrimas, uma “insurreição de conhecimento subjugado pode ocorrer”.1:134 É com sentimentos de esperança que se resiste ao ódio, mas não sem antes reconhecê-lo — dentro de si e em suas comunidades — e então escolher conscientemente o amor como prática de liberdade. A hora de chorar, para além da raça e do gênero e o aprendizado que supera o ódio, foram os ensinamentos desse momento.

Conceitos iniciais e específicos sobre a raça, etnia e a formação do povo brasileiro, incluindo nelas as suas raízes étnico-raciais e suas vivências culturais foram abordados. Esses conteúdos gritaram as vozes da história não contada da diáspora africana, apresentaram todas as suas nuances interseccionais que incidem no corpo da mulher negra, temática de interesse da Enfermagem onde se é a maioria, cuidando e sendo cuidadas.

Palestrar ou não e negra, mulher e acadêmica representaram a experiência do encontro de três mulheres negras, docentes e pesquisadoras, em diálogo com conceitos de aquilombamento e interseccionalidade. Narrativas de fé, religiosidade e território ancestrais compuseram as conversações. O compromisso é transmitir conhecimento, utilizando as estratégias e referências pedagógicas que contenham a experiência acumulada de pessoas negras na diáspora.14

Quando convocadas as discussões sobre os movimentos sociais, as políticas e as ações antirracistas, com enfoques na saúde dos grupos populacionais, ênfase centrada, nas lutas por políticas públicas, empregou-se os ensinamentos propostos na revolução feminista, descolonização e do pensamento crítico como fonte capaz de direcionar os encontros e dicussões. Era a hora de apresentar as diretrizes que dão constitucionalidade ao cuidado dessas populações nos cenários de saúde.

Nesse espaço de liberdade cultural, os estudantes puderam apresentar suas famílias, seus modos de viver e sua cultura local, propuseram livros, artigos e vídeos sobre todos os ensinamentos/conteúdos apresentados em sala de aula.

E, nesse espaço democrático de aprender, elaboraram resposta ao processo de aprendizagem vivenciado, tomando como ponto de partida as legislações de saúde específicas, sendo elas: a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN);15 a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI)16 e; a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani.17

Desse modo, verificou-se o reconhecimento do panorama da situação de saúde dos povos, dos territórios que habitam, das distintas identidades socioculturais e de como atuar em favor da melhoria das condições de saúde dos mesmos.

Durante o desenvolvimento de uma atividade pela turma, notou-se o multiculturalismo, a ancestralidade, a descoberta do outros e a riqueza cultural, que trouxe à tona elementos valorizados na construção crítica dos conteúdos. Evoca-se a necessidade de conduzir a uma pedagogia de promessa e possibilidades. Aprender um com o outro e deslocar a lógica patriarcal capitalista branca para novos espaços seguros de ser e de saber, assentados na diversidade e compartilhados no encontro com suas próprias origens.

Os espaços de saber devem propiciar práticas livres de todo tipo de discriminação, combatendo as desigualdades, e possibilitando o direito ao outro de ser ao mesmo tempo igual e diferente.18 Assim, os cursos de graduação em Enfermagem e da grande área da saúde precisam conceber“políticas que visam o respeito e o reconhecimento das diferenças”, centradas na formação de uma nova cidadania mediante uma pedagogia multicultural. Acredita-se que essa nova pedagogia possa contribuir para a construção de uma cultura de paz”.18:117

A troca, o afeto, a parceria e experiência dada como única foram outros elementos destacados pelos estudantes. Para bell hooks3 escutar a experiência amplia as formas de saber. Reforça que os professores e estudantes na busca mútua por conhecimento, criam as condições para um aprendizado ideal, e pelo amor são capazes de reunificar e reconstruir mundos partidos.

O poder da escrita é o poder insurgente, a ferramenta que se utiliza para comunicar o conhecimento. A poesia e a prosa ofereceram aos estudantes a possibilidade da escrita como ato político. Ao escreverem suas próprias histórias e reflexões sobre cada tema, sem medo, o que remeteu a potência que há em suas vidas. É a escrita como procura de entendimento da vida como ensinou Conceição Evaristo.19

É a vida do outro, compartilhada em sala de aula, trazendo uma energia nova e poderosa que coloca os mais dispostos a construir uma comunidade de aprendizagem capaz de incorporar os saberes e as práticas de cuidado dos povos originários, diaspóricos, nômades e refugiados nos cenários de saúde.

Em meio a um momento desesperançado, na pandemia da COVID-19, o desejo foi estimular o entusiasmo pelas ideias e pela vontade de aprender. Assim foi com bell hooks, na faculdade estadunidense.1 Ela travou uma luta intensa contra o racismo e os métodos de ensino-aprendizagem a partir de modelos sexistas e racistas que insistiam em impor o silenciamento das desigualdades sociais, raciais e de gênero.

A disciplina fortaleceu para dar voz às mulheres negras e propiciar então o aprender como um ato de transgressão – criar uma comunidade aberta de aprendizado. Foi esse o processo de autoatualização.1 Os estudantes puderam discutir os temas essenciais para a sua formação a partir da consciência individual e o engajamento crítico coletivo, uma visão da educação libertadora que liga a vontade de saber à vontade de vir a ser.

Estudantes e docentes abraçaram uns aos outros como seres humanos integrais, buscando não somente o conhecimento que está nos livros, mas também, o conhecimento da vida no muito e seus diversos modos de (com)viver a partir de uma prática intelectual insurgente. É desejar as experiências da vida tomando sentido pela força de um conhecimento significativo.

Assumiu-se a promessa de tensionar os valores nascidos do pensamento eurocêntrico, pois, eles não respondem às reais necessidades e demandas da maioria da população atendida pelo SUS. Para nós essa foi a forma do encontro com os princípios de equidade, humanização, partindo do acolhimento, da escuta, valorizando os saberes e as práticas originais e ancestrais.

CONCLUSÃO E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

A relação entre ensino, pesquisa e extensão acontece à medida que, para construir uma narrativa sobre as questões étnico-raciais foi preciso começar a pensar na formação da enfermeira e do enfermeiro em direção às discussões étnico-raciais.

O estudo sugere que interações com os coletivos (Ligas Acadêmicas, Coletivos Negros, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, Comissões de Heteroidentificação e outras estruturas envolvidas na luta por ações afirmativas) intra e extramuros institucionais representam um importante campo de articulação entre a Universidade e a sociedade, essenciais na construção de dados para os futuros estudos e na incoporação de metodologias que dialoguem com os epistemes do pensamento negro e indígena.

Ao propor a transgressão comunga-se com bell hooks em romper com as fronteiras impostas por sistemas de dominação — como o patriarcado, o racismo, o capitalismo e o colonialismo —, propõe-se criar espaços onde a liberdade, o afeto e o pensamento crítico possam florescer.

Afirma-se, a partir dessa experiência, que a disciplina se tornou um dispositivo legítimo de enfrentamento ao racismo e ao desconhecimento das culturas consideradas à margem das produzidas pelo universo eurocêntrico. Acrescentam-se às lutas em curso, uma abordagem livre de discriminação em relação aos múltiplos grupos humanos que formam a sociedade brasileira, diversa e plural.

Com alegria, música, poesia, escrita e movimento coletivo às sextas-feiras, a tarde, no ano letivo vivido no contexto da pandemia da COVID-19, contribuiu-se com uma possibilidade de construção coletiva, participando ativamente na formação dos futuros enfermeiros cidadãos, críticos e sensíveis às questões que se dirigem a um cuidar antirracista e acolhedor para os usuários, o que implica em um comprometimento com a transformação das práticas desenvolvidas nos distintos cenários de produção da saúde.

O estudo é um retrato da disciplina em tempos da pandemia da COVID-19, e teve como limitação, a impossibilidade de desenvolver as atividades pedagógicas de modo presencial, sem prejudicar as repercussões do encontro proporcionado pelas discussões que cercam as questões étnico raciais.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Liga Acadêmica de Enfermagem em Saúde da População Negra – LAESPNE/UFRJ, ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas - NEABI/UFRJ, aos Grupos de Pesquisa E’LEEEKÓ e ORI, a Câmara e Políticas Raciais da UFRJ e as outras Instituições de Ensino Superior, que participam com seus saberes na construção plural do perfil do futuro enfermeiro e enfermeira.

  • FINANCIAMENTO
    Não há.
  • a
    hooks nasceu Gloria Jean Watkins, mas adotou o nome artístico em homenagem à bisavó. A grafia de seu nome em letras minúsculas se explica pelo desejo da autora em transferir a atenção de sua personalidade para suas ideias, enfatizando, segundo ela, “substância de seus livros, não quem eu sou".
  • b
    A escrita Adinkra, presente do povo Ashanti, representa um conjunto de símbolos que são conhecimento e tecnologia ancestral africana, no campo da linguagem. Os ideogramas expressam valores tradicionais, ideias filosóficas, códigos de conduta e normas sociais8 .

DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no artigo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2024
  • Aceito
    06 Maio 2025
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