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A construção epistemológica da transexualidade: a ciência, enfermagem e o senso comum

Resumo

Objetivo:

Conhecer o senso comum de mulheres transexuais em reação ao processo transexualizador e discutir a construção epistemológica acerca da transexualidade e da enfermagem nesse processo.

Método:

Pesquisa qualitativa, realizada entre maio e junho de 2017, com 90 mulheres transexuais atendidas em centro especializado.

Resultados:

O senso comum das entrevistadas evidenciou a transexualidade como uma questão identitária e não uma doença, entraves no atendimento em demandas de saúde e ausência do profissional de enfermagem.

Discussão:

A construção epistemológica da transexualidade, se dá por meio da ciência, que instrumentalizou a Política do Processo Transexualizador e não dispõe de conhecimento apresentado pelo senso comum das usuárias.

Conclusão e implicações para a prática de enfermagem:

A ciência tem um papel de criar ordem e práticas a partir do refinamento do senso comum, mas não utiliza o senso comum das mulheres transexuais na construção epistemológica da transexualidade, que compromete a assistência e reforça o caráter estereotipado e patológico pelos profissionais de saúde. A ciência tem o poder de validar o senso comum, sedimentando a assistência às mulheres transexuais, em especial, a prática de enfermagem. A enfermagem tem o desafio de compreender as questões relacionadas à transexualidade articulando o senso comum com o saber científico.

Palavras-chave:
Pessoas transexuais; Ciência; Conhecimento; Enfermagem; Gênero; Identidade

Abstract

Objective:

To know the common sense of transsexual women in reaction to the transsexual process and to discuss the epistemological construction about the transsexuality and nursing in this process.

Method:

Qualitative research, carried out between May and June 2017, with 90 transsexual women attending a specialized center.

Results:

The common sense of the interviewees evidenced the transsexuality as an identity issue and not a disease, barriers to attendance in health demands and absence of the nursing professional.

Discussion:

The epistemological construction of the transsexuality takes place through science, which instrumentalized the Transsexual Process Policy and does not have the knowledge presented by the common sense of the users.

Conclusion and implications for nursing practice:

Science has a role to create order and practices from the refinement of common sense, but does not use the common sense of transsexual women in the epistemological construction of transsexuality, which compromises care and reinforces stereotyped and pathological character by health professionals. Science has the power to validate common sense, sedimenting the care to transsexual women, especially nursing practice. Nursing has the challenge of understanding issues related to transsexuality by articulating common sense with scientific knowledge.

Keywords:
Transsexual people; Science; Knowledge; Nursing; Gender; Identity

Resumen

Objetivo:

Conocer el sentido común de mujeres transexuales en reacción al proceso transexualizador y discutir la construcción epistemológica acerca de la transexualidad y de la enfermería en ese proceso.

Método:

Investigación cualitativa, realizada entre mayo y junio de 2017, con 90 mujeres transexuales atendidas en centro especializado.

Resultados:

El sentido común de las entrevistadas evidenció la transexualidad como una cuestión identitaria y no una enfermedad, trabas en la atención en demandas de salud y ausencia del profesional de enfermería.

Discusión:

La construcción epistemológica de la transexualidad, se da por medio de la ciencia, que instrumentalizó la Política del Proceso Transexualizador y no dispone de conocimiento presentado por el sentido común de las usuarias.

Conclusión e implicaciones para la práctica de enfermería:

La ciencia tiene un papel de crear orden y prácticas a partir del refinamiento del sentido común, pero no utiliza el sentido común de las mujeres transxuales en la construcción epistemológica de la transexualidad, que compromete la asistencia y refuerza el carácter estereotipado y patológico por los profesionales de salud. La ciencia tiene el poder de validar el sentido común, sedimentando la asistencia a las mujeres transexuales, en especial, la práctica de enfermería. La enfermería tiene el desafío de comprender las cuestiones relacionadas a la transexualidad articulando el sentido común con el saber científico.

Palabras clave:
Personas transexuales; La ciencia; Conocimiento; Género; Identidad

INTRODUÇÃO

A ciência tem papel fundamental na sociedade e auxilia na mudança de opiniões e saberes, com a reconstrução de novos códigos a partir do senso comum constituído na sociedade.11 Adinolfi VTS. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas [Internet]. 2015;1(3):1-10. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/download/1940/1401
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A categoria de gênero representa um código, que sofre a ação da ciência em sua mensuração e delimita aspectos biologizantes dicotômicos e identitários de masculinidade e de feminilidade entre os sexos.22 Fonseca RMGS, Souza KV, Andrade CJM, Amaral MA, Souza V, Caetano LC. Creation of a nursing research group on women's health and gender. Texto Contexto - Enferm [Internet]. 2012 oct;21(4):990-998. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/en_32.pdf
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Essas delimitações permeiam um processo regulatório dos corpos, que determinam padrões normalizadores para membros da sociedade que, embuidos pelo senso comum, conduzem práticas, comportamentos e identidades que definem enquanto mulher ou homem.33 Cunha EL. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora (Rio J) [periódico na internet]. 2016 jan/abr;19(1):85-101. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982016000100006 DOI: 10.1590/S1516-14982016000100006
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A transexualidade é um contraponto a essas normatizações, por não se adequar a caracterização social dos corpos e aos papéis das mulheres entendidas como femininas, assim como, para os homens, as características entendidas como masculinas, empregando-se a terminologia ‘identidade de gênero’.44 Araujo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2014 jan/fev;22(1):134-8. Disponível em: http://www.facenf.uerj.br/v22n1/v22n1a21.pdf
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A transexualidade é representada por pessoas cuja identidade de gênero é oposta à do sexo do registro de nascimento.55 Bento BAM. O que é transexualidade?. São Paulo: Brasiliense; 2008.,33 Cunha EL. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora (Rio J) [periódico na internet]. 2016 jan/abr;19(1):85-101. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982016000100006 DOI: 10.1590/S1516-14982016000100006
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,66 Portaria n. 2.803 de 19 de novembro de 2013 (BR). Redefine e amplia o processo transexualizador no sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília (DF), 19 nov 2013: Seção 1. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html
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Doravante, a construção da transexualidade ganha destaque na área de saúde, utilizada pela sociedade para regular as questões identitárias de gênero, com um ‘suposto embasamento científico construído’, concebido como a inadequação entre o sexo biológico e a identidade de gênero.77 Cordero MB, Ramírez JM. Los servicios de apoyo a las personas transgénero: una realidad imperceptible. Revista Griot [Internet]. 2015 dec;8(1):73-84. Disponível em: https://dire.upr.edu/bitstream/handle/11721/1047/Vol.8-No.1-2015-p.73-84%20Griot.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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Definida pela CID-10 como um Transtorno de Identidade de gênero, ganha cunho de doença e passa a ser um fenômeno a ser compreendido epistemicamente dentro do contexto de saúde. Com fins de dar resolutividade a adequação física com a identidade de gênero, via intervenções medicamentosas e cirúrgicas, instituiu-se a Política do Processo Transexualizador como forma de subsidiar tal prática.66 Portaria n. 2.803 de 19 de novembro de 2013 (BR). Redefine e amplia o processo transexualizador no sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília (DF), 19 nov 2013: Seção 1. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html
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7 Cordero MB, Ramírez JM. Los servicios de apoyo a las personas transgénero: una realidad imperceptible. Revista Griot [Internet]. 2015 dec;8(1):73-84. Disponível em: https://dire.upr.edu/bitstream/handle/11721/1047/Vol.8-No.1-2015-p.73-84%20Griot.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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-88 Janini J, Santos RS, Vargens OMC, Araújo LM. A medicalização e patologização na perspectiva das mulheres transexuais: acessibilidade ou exclusão social. Rev Enf UERJ [Internet]. Ano;v(n):p. Disponível em: DOI: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2017.29009
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O Processo Transexualizador constitui uma política pública de saúde onde, por meio do Sistema Único de Saúde- SUS, instituições oferecem serviço especializado para a adequação física das pessoas transexuais. É regulamentado pela portaria MS/GM 2803 de 201866 Portaria n. 2.803 de 19 de novembro de 2013 (BR). Redefine e amplia o processo transexualizador no sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília (DF), 19 nov 2013: Seção 1. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html
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, que oferece suporte multidisciplinar, onde nela a enfermeira está inserida, que necessita de conhecimento técnico científico para oportunizar um cuidado de qualidade. Neste o profissional de enfermagem deve prestar uma assistência qualificada, com acolhimento da pessoa transexual nos serviços de saúde sem discriminá-lo, rompendo com a visão estigmatizada. Assim, o papel prioritário da enfermagem para o público transexual é garantir uma assistência digna e humanizada, desde a atenção básica de saúde, até a média e alta complexidade, promovendo ações fundamentais para uma promoção integral de saúde de forma efetiva e de qualidade.99 Silva AM, Silva AVA, Clementino MCM, Garbaccio JL. O olhar da enfermagem na assistência à pessoas trans (T3). Enfermagem Revista [Internet]. 2019 jan; [access in 2019 mar 02]; 21(3):85-105. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/enfermagemrevista/article/view/19325
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O processo Transexualizador dispõe das tecnologias e conhecimentos oportunizados pela ciência, no cuidado à pessoa transexual.1010 Ferraz CV, Leite GS. A Desconstrução da relevância jurídica do sexo biológico em face da identidade de gênero na transexualidade: a tutela jurídica da mulher transgênero. Conpedi Law Review [Internet]. 2016;1(1):67-87. Disponível em: http://portaltutor.com/index.php/conpedireview_old/article/view/14/16
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No entanto, não se pode construir uma ciência sem conceber as necessidades de saúde de um determinado grupo, pois a ciência nada mais é que “o senso comum refinado e disciplinado”.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.:19 Dar voz às pessoas transexuais mostra-se importante fonte de informação para construção da assistência em saúde, com a externalização do senso comum das mesmas acerca de tais questões e suas reais necessidades a serem contempladas.

O filósofo Rubem Alves aponta a relevância da compreensão das questões que envolvem o senso comum para melhor entendimento do que é a ciência. A partir da imersão em um problema pode-se entender o senso comum. À proporção que se precipitam situações que disparam questionamentos, se inicia a relevância do pensamento, a busca por soluções e a ligação entre a resposta com a natureza e com a sociedade.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Dessa forma, compreender epistemologicamente a construção da transexualidade, pelo olhar das pessoas transexuais atendidas, no âmbito da saúde, pela Política do Processo Transexualizador, oportuniza interfaces a serem discutidas para a construção da prática de enfermagem adequada a essa clientela.1212 Petry AR. Mulheres transexuais e o Processo Transexualizador: experiências de sujeição, padecimento e prazer na adequação do corpo. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2015 jun;36(2):70-75. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&lng=pt&tlng=pt&pid=S1983-14472015000200070 http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.50158
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A equalização das informações dessa população atrelada aos achados científicos, subsidiados em um suporte teórico filosófico auxiliam a construção de saberes, inclusive de enfermagem, proporcionando um olhar diferenciado sobre a prática.1313 Foucault M. Verdade e Poder. In: Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro (RJ): Edições Graal; 2004.-1414 Araujo RA, et al. Contribuições da filosofia para a pesquisa em enfermagem. Esc Anna Nery [Internet]. 2012 jun;16(2):388-394. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452012000200025&lng=en&nrm=iso DOI: 10.1590/S1414-81452012000200025
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No Brasil, carecem de informações sobre as pessoas transexuais tanto no meio acadêmico,1515 De Jesus JG, Alves H. Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. Revista Cronos. 2012 nov;11(2). quanto na assistência, o que sinaliza a necessidade de aprofundamento teórico a respeito. Assim cabem alguns questionamentos: Qual o senso comum das mulheres transexuais em relação transexualidade e ao processo transexualizador? De que forma o senso comum das mulheres transexuais pode subsidiar a construção de conhecimento para a ciência e para saúde e enfermagem?

Este estudo tem como objetivos conhecer o senso comum de mulheres transexuais em relação ao processo transexualizador e discutir a construção epistemológica acerca da transexualidade e da enfermagem nesse processo.

MÉTODO

Estudo exploratório, de natureza qualitativa. Recorte da pesquisa intitulada ‘(Re)inserção social da pessoa transexual: questões sociais e de saúde’, que buscou analisar o processo de reinserção social, a partir das vivências das pessoas transexuais.

O estudo mais amplo foi devidamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa através do parecer CAAE: 64975517.9.0000.5266, e atendeu as diretrizes exigidas pela Resolução 466/12 que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos.1616 Conselho Nacional de Saúde - CNS (BR). Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União, Brasília (DF): Ministério da Saúde. 12 dez 2012; [acesso em 2018 jan 04]. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html
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O cenário da pesquisa foi uma instituição pública de assistência à saúde, localizada no município do Rio de Janeiro que implementa a Política do Processo Transexualizador. A unidade fornece serviços específicos ao atendimento em Endocrinologia e Diabetes, inclusive o tratamento hormonal às pessoas transexuais cadastradas.

A unidade no período de 2017 possuía o total de 263 mulheres transexuais cadastradas que realizavam consultas periódicas com: endocrinologista, psicólogo e psiquiatra. As consultas aconteciam às quartas-feiras (manhã e tarde) e quintas-feiras (manhã). A aproximação inicial dos pesquisadores com as participantes ocorreu na sala de espera do atendimento ambulatorial. Nesse primeiro contato houve uma breve apresentação, explicitação do objetivo da pesquisa e o convite para participar do estudo.

A amostragem qualitativa adotada no estudo foi intencional, constituída por 90 mulheres transexuais que foram consultadas no período de maio a junho de 2017. Todas as mulheres transexuais convidadas aceitaram participar da pesquisa. Elas foram encaminhadas antes da consulta para uma sala reservada. Neste local foi realizada a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e posteriormente a assinatura em duas vias. O termo mulheres transexuais foi adotado para definir as entrevistadas que possuíam sexo biológico masculino, mas com identidade de gênero feminina.

A adequação do tamanho da amostra foi determinada pelo princípio da saturação teórica, onde não surgem novos conceitos na coleta de dados.1717 Johnston LG. Sampling methods for measuring TB stigma in hard-to-reach populations without sampling frames. In: Mitchell EMH, van Den Hof S. TB Stigma Measurement Guidance [Internet]. The United States Agency for International Development (USAID): Challenge TB; 2018. p.184-211. Disponível em: https://www.challengetb.org/publications/tools/ua/TB_Stigma_Measurement_Guidance.pdf#page=185
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Embora algumas questões a serem atendidas tenham sido saturadas rapidamente, outras foram necessárias a continuidade das entrevistas, o que justifica o número de participantes.

Foi utilizada a amostragem intencional, pois o estudo teve como objetivo a escolha de participantes com características específicas de interesse da pesquisa, como por exemplo identificar o comportamento de usuários dentro das unidades de saúde e a investigação de grupos marginalizados para entender como está sendo conduzida e os níveis de estigma de um determinado grupo.1717 Johnston LG. Sampling methods for measuring TB stigma in hard-to-reach populations without sampling frames. In: Mitchell EMH, van Den Hof S. TB Stigma Measurement Guidance [Internet]. The United States Agency for International Development (USAID): Challenge TB; 2018. p.184-211. Disponível em: https://www.challengetb.org/publications/tools/ua/TB_Stigma_Measurement_Guidance.pdf#page=185
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-1818 Sharma G. Pros and cons of different sampling techniques. International Journal of Applied Research [Internet]. 2017;3(7):749-52. Disponível em: http://www.allresearchjournal.com/archives/2017/vol3issue7/PartK/3-7-69-542.pdf
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O critério de inclusão para o estudo foi: mulheres transexuais cadastradas na Política pública de saúde do Processo Transexualizador que realizam o tratamento hormonal para feminilização física. O critério de exclusão foi mulheres transexuais que apresentassem desorientação espaço temporal.

Em seguida, foi iniciada a entrevista semiestruturada, composta de 19 perguntas, sendo 14 fechadas e 5 abertas. As entrevistas tiveram duração média de 20 minutos e foi utilizada a gravação de áudio ao coletar os dados.

As transcrições das entrevistas ocorreram de forma simultânea a coleta. De forma a preservar a identidade das participantes, os relatos das entrevistadas foram representados pela letra “e” acrescida de uma sequência numérica para organização e identificação das mesmas.

De posse do material transcrito, realizou-se a análise de conteúdo de Minayo como forma de tratamento dos dados. O rito desse processo ocorreu em três fases: pré-análise dos dados, exploração do material e tratamento dos dados.1919 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 34ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2015. Ao final das fases foi identificada a categoria: ciência e senso comum: interfaces na assistência ao transexual e a enfermagem.

A análise da categoria ancorou-se em referencial da filosofia da ciência de Rubem Alves, onde é discutida, de forma ampla, a tríade composta entre a ciência, a construção do conhecimento científico e o senso comum.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Haja vista a especificidade e a necessidade de imersão e compreensão teórica sobre a temática, também, foram utilizadas outras referências na área de gênero e enfermagem.

RESULTADOS

As entrevistadas possuíam faixa etária entre 18 e 59 anos, dentre elas: 24 com nível fundamental de escolaridade incompleto, 13 em nível fundamental completo, 17 em nível médio incompleto, 32 de nível médio completo e 4 com nível superior de escolaridade incompleto.

Apenas 21 delas trabalham, sendo 15 em emprego informal. Dessas, 11 desenvolvem atividades profissionais consideradas socialmente como femininas: como cabeleireira (n=2), manicure (n=1), maquiadora (n=1), costureira (n=1), técnica de enfermagem (n=1), profissional de limpeza (n=2), recepcionista (n=1) e professora (n=2).

Em relação ao entendimento sobre a identidade de gênero, todas as entrevistadas (n=90) descreveram a transexualidade com uma forma de se ver e se perceber e não como uma doença mental, contradizendo a classificação internacional de doença que respalda a Política de processo transexualizador. O uso da palavra ‘normal’ aparece em 79 falas das mulheres transexuais entrevistadas. Quando perguntado sobre a identidade de gênero feminina, 32 delas questionam o porquê da sociedade entender a transexualidade como abjeto ou não normativo.

[...]não me vejo doente...desde pequena sou assim.... me sinto menina....(suspiro). Em vários países as trans são vistas como normais, não entendo porque aqui não. (e57).

[...] Agradeço hoje ter a oportunidade de ser atendida como mulher no hospital, mas não gostaria de ser rotulada com um transtorno (e1).

Em relação ao Processo Transexualizador, todas as entrevistadas (n=90) referiram o benefício da gratuidade para realizar a mudança física:

[...] Eu tomava remédio por conta própria para mudar meu corpo, mas nunca ia conseguir fazer a cirurgia (e29).

[...] Foi um grande ganho para a categoria poder fazer o tratamento de graça. Sou atendida por profissionais de gabarito (e46).

A gratuidade do tratamento no Processo transexualizador é considerada uma facilidade (n=10) pelas mulheres transexuais devido à falta de recurso financeiro para custear o tratamento hormonal e cirúrgico, bem como a aceitação das pessoas transexuais por parte da equipe multidisciplinar (n=61):

Não tenho recursos pra fazer a mudança... a cirurgia custa caro, mais de vinte mil...além do mais estou desempregada... jamais conseguiria fazer meu tratamento se não fosse de graça (e23).

[...] aqui eles sabem da minha situação... não ficam me questionando, embarreirando.... Tudo que eu posso fazer por aqui, eu faço (e4).

Ainda que haja aceitação das mulheres transexuais pelos profissionais de saúde, elas percebem que essa aceitação não se dá por completo, tendo em vista a visão patológica da transexualidade (n=40) e configura um dificultador na assistência da Política do Processo Transexualizador.

[...] a médica me trata muito bem, a equipe é maravilhosa, mas sabe aquele lance de esperar o laudo de alguém dizendo o que eu sou porque acham que eu não sou capaz de falar por mim mesma? Desnecessário e só faz demorar mais o trâmite da minha cirurgia (e82).

Como consequência da patologização da transexualidade, as mulheres entrevistadas referem outros problemas vivenciados pelas mesmas na assistência em saúde na Política do Processo Transexualizador, como a demora para a cirurgia (n=84) e a necessidade de comprovação da transexualidade, dentro dos padrões apontados pela ciência (n=62):

Não sei por que tenho que esperar seis anos para fazer a cirurgia, meu tempo é agora... não tenho recursos, porque se tivesse já teria feito isso a tempos. Minha vida tá parada: tenho problemas pra me relacionar com outras pessoas, não quero que vejam aquilo (pênis)...não consigo mudar meu nome na justiça...os juízes são antigos e não vão me ver como mulher enquanto eu não tirar isso (pênis) (e44).

Para eu ter minha carta de alforria (referindo-se ao laudo para realização da cirurgia de transgenitalização) tenho que convencer a equipe de que sou mulher, como se não fosse...(suspiro).(e72)

A maioria das mulheres entrevistadas mencionam angústia (n=32) e descontentamento (n=56) pela demora da cirurgia e se sentem comprometidas no que tange à sua vivência plena como mulher, já que o procedimento cirúrgico de transgenitalização, confecção de uma neovagina a partir do tecido peniano, fica na dependência laudatória do médico psiquiátrico. Para isso, as entrevistadas precisam estar enquadradas em práticas e comportamentos tidos como femininos, causando desconforto para aquelas que apresentam em inconformidade com o padrão determinado (n=13).

[...] Existem padrões que não quero seguir e não me fazem menos mulher do que mulher por aí (e72).

A dificuldade de atendimento em outras demandas de saúde não implementadas pelo Processo Transexualizador é referida por mais da metade das mulheres transexuais (57):

Quando eu fui procurar no posto o cardiologista, as pessoas (profissionais de saúde) disseram que era melhor eu ser atendida onde eu tomo hormônio. Não conseguem me atender porque é uma condição diferenciada (e15).

É senso comum entre as mulheres transexuais, o processo discriminatório por parte dos profissionais que não atuam nos centros especializados e a preocupação acerca dos profissionais de saúde que atuam na Política do Processo Transexualizador, na realização do diagnóstico e emissão de um laudo de liberação cirúrgica frente à irreversibilidade da mesma:

Acho que eles demoram pra dar o parecer porque eles têm medo da gente se arrepender. Depois que arrancou, não tem como mais voltar atrás...mas não tenho dúvida alguma[...] (e81).

Os profissionais de saúde sinalizados pelas entrevistadas no centro especializado foram o médico (n=56), psicólogo (n=13) e assistente social (n=25). Em nenhuma fala foi mencionada a enfermeira no atendimento às mulheres transexuais.

DISCUSSÃO

Ciência e senso comum: interfaces na assistência ao transexual e a enfermagem.

O senso comum das transexuais entrevistadas não entende a identidade de gênero como patologia e sim, como uma verdade pessoal, individual, derivada de pensamentos e percepções que não devem estar correlacionados à genitália.1010 Ferraz CV, Leite GS. A Desconstrução da relevância jurídica do sexo biológico em face da identidade de gênero na transexualidade: a tutela jurídica da mulher transgênero. Conpedi Law Review [Internet]. 2016;1(1):67-87. Disponível em: http://portaltutor.com/index.php/conpedireview_old/article/view/14/16
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Esse pensamento trazido pelas mulheres transexuais precisa ser valorizado pela ciência, já que a mesma é construída a partir de problemas1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. emergentes das necessidades ou das situações de incômodo, o que não acontece. O termo senso comum foi criado com o intuito de minimizar intelectualmente o valor das informações não científicas, o que é um grande paradoxo, já que a ciência é o aperfeiçoamento do senso comum.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Ainda assim, o pensamento das mulheres transexuais se mostra refutado pelo senso comum social, onde existe um conjunto de práticas e comportamentos construídos que caracterizam a condição de ser mulher, que se inicia desde o nascimento, através da definição do indivíduo pelo sexo biológico.1010 Ferraz CV, Leite GS. A Desconstrução da relevância jurídica do sexo biológico em face da identidade de gênero na transexualidade: a tutela jurídica da mulher transgênero. Conpedi Law Review [Internet]. 2016;1(1):67-87. Disponível em: http://portaltutor.com/index.php/conpedireview_old/article/view/14/16
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Essas diferenças entre o senso comum e a ciência existem diante da posição social, onde uma ordem é estabelecida para ambas. No entanto a ordem produzida pelo senso comum ironicamente é tida como ‘contrassenso’, como algo não entendível, abstrato, diferente do entendimento da ordem trazida pela ciência.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Na saúde, a concepção de identidade de gênero é incorporada e evidencia-se a forte ligação da ciência e o senso comum, tanto no esforço de entender a transexualidade, como também de buscar tecnologias e/ou estratégias para resolver a questão da incompatibilidade mente-corpo existente. A ciência, enquanto instrumento epistemológico, no âmbito da transexualidade, foi construída através da tentativa de compreensão do fenômeno existente, para estabelecer a relação de causa e efeito e o desenvolvimento de saberes e tecnologias.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Entretanto, ainda que presente o movimento cientifico em prol da assistência as mulheres transexuais, tal qual se apresenta pela Política do Processo Transexualizador, a edificação científica da transexualidade não teve como base o senso comum das mulheres transexuais e sim, o senso comum hegemônico social, que interpreta como perversão ou algo doentio a incongruência identitária de gênero e corpo, e mediam o tratamento desfavorável as entrevistadas.2020 Van Borm H, Baert S. What drives hiring discrimination against transgenders?. International Journal of Manpower. 2018 jul;39(4):581-99. Disponível em: https://doi.org/10.1108/IJM-09-2017-0233
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-2121 Singh GD. Transgender and Their Social-Legal Status: An Empirical study in State of UP [dissertation]. India (Agra): Ambedkar University; 2015. Deste modo, foi estipulado, pelos cientistas, a transexualidade como um processo de adoecimento, em uma perspectiva longínqua de entendimento da questão identitária como algo normal.1010 Ferraz CV, Leite GS. A Desconstrução da relevância jurídica do sexo biológico em face da identidade de gênero na transexualidade: a tutela jurídica da mulher transgênero. Conpedi Law Review [Internet]. 2016;1(1):67-87. Disponível em: http://portaltutor.com/index.php/conpedireview_old/article/view/14/16
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:8

Nesse sentido, a ciência e os produtos tecnológicos deles derivados, vêm para reafirmar o senso comum da sociedade pautada no binarismo sexual, heterossexual e sexista, onde cada indivíduo exerce determinadas funções na sociedade, de acordo com o sexo de nascimento. A ciência é utilizada como uma ferramenta reguladora da ordem que se fundamenta na conservação da espécie humana.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Ainda que haja contentamento das mulheres transexuais na criação de tecnologias para feminilizar o corpo, até então masculino, elas ocorrem sob forma de perpetuar um modelo normativo dicotômico. Este corpo ideal se respalda na ciência que concebe a necessidade de se instituir padrões aos corpos, em âmbito da saúde.2222 Baptista TJR, da Silva Zanolla SR. Corpo, estética e ideologia: um diálogo com a ideia de beleza natural. Movimento. 2016 jul/set;22(3):999-1010.

Uma ordem científica então é criada, a partir da leitura do senso comum social, que perpetua as normas de gênero e enquadra as mulheres transexuais a esses padrões idealizados, em conformidade ao pensamento de Alves que diz que o conhecimento científico tem como objetivo a modificação do indivíduo.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Para isso, a ciência forma e deforma códigos, fruto da cultura em que permeia, e dispõe de um controle disciplinado, uma espécie de guia condutor para as suas ações, a partir do conhecimento científico adquirido.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Esse pensamento científico reverbera no modelo assistencial controlador e disciplinador dos corpos desenvolvido pelo Processo Transexualizador, face os padrões sociais estabelecidos, e traz rigidez à prática assistencial. Tal política de saúde não consegue olhar para as pessoas transexuais de forma natural, assim como as mulheres cisgênero, nascidas biologicamente com sexo feminino. Em um evento cíclico, ecoa para os profissionais de saúde, que não questionam a normatividade binária.2323 Eckhert E. A Case for the Demedicalization of Queer Bodies. Yale J Biol Med [Internet]. 2016 jun;89(2):239-46. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27354849
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;88 Janini J, Santos RS, Vargens OMC, Araújo LM. A medicalização e patologização na perspectiva das mulheres transexuais: acessibilidade ou exclusão social. Rev Enf UERJ [Internet]. Ano;v(n):p. Disponível em: DOI: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2017.29009
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Esse acontecimento é uma demonstração que a ciência utiliza o seu conhecimento aperfeiçoado de forma regulatória, reforça e demarca uma forte relação de poder daqueles que se intitulam representantes da ciência sobre aqueles que são intitulados como o objeto de estudo dos mesmos.11 Adinolfi VTS. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas [Internet]. 2015;1(3):1-10. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/download/1940/1401
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;1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Analogicamente a medicina, enquanto representante da ciência, não refuta a naturalidade binária com evidências científicas sólidas.33 Cunha EL. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora (Rio J) [periódico na internet]. 2016 jan/abr;19(1):85-101. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982016000100006 DOI: 10.1590/S1516-14982016000100006
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O senso comum das mulheres transexuais, sobre a viabilidade das mudanças físicas no Processo Transexualizador, se fez presente com notoriedade. O senso comum teve origem em questões práticas,1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. operacionais, emanadas das necessidades de adequação física das entrevistadas. Suas necessidades não contradizem as normas sociais e acabam por atender uma demanda social normativa e concilia com o senso comum e com a ciência, que visam a ordem.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Realizar a readequação física, tanto pela feminização física via hormonioterapia, quanto pela reconstrução cirúrgica peniana e escrotal para confecção de uma neovagina, intitulada cirurgia de transgenitalização, reportam, igualmente às mulheres transexuais e a sociedade, a satisfação de uma ordem binária de gênero.

Para a implementação da ordem do senso comum de adequação física via política do processo transexualizador, a ciência, enquanto tecnologia, produziu conhecimento, métodos e produtos que proporcionassem um processo de transformação e contemplação de práticas.2222 Baptista TJR, da Silva Zanolla SR. Corpo, estética e ideologia: um diálogo com a ideia de beleza natural. Movimento. 2016 jul/set;22(3):999-1010. Ainda assim são insuficientes e trazem a necessidade de remodelamento do processo assistencial. Não há relatos de movimentação dos profissionais de saúde para alteração do cenário no que tange à resolução das insatisfações apresentadas pelas mulheres transexuais, que comunga com a ideia de Alves de que a ciência, enquanto referencial que dita conhecimento e práticas e acaba por promover uma inibição do pensamento,1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. no caso dos profissionais de saúde, para a identificação e a necessidade de recriação e/ou reformulação de novas estratégias assistenciais.

Tais estratégias devem abranger as demandas de cuidado a promoção da saúde da população transexual, sendo desenvolvidas e ou aperfeiçoadas pelos profissionais de saúde em todos os estágios de transição, a fim de romper o engessamento de estudos que subsidie a prática, inclusive a de enfermagem, que deve ser encarada com prioridade pela profissão.2424 Paradiso C, Lally RM. Nurse Practitioner Knowledge, Attitudes, and Beliefs When Caring for Transgender People. Transgender Health [Internet]. 2018 dec;3(1):47-56. Disponível em: https://doi.org/10.1089/trgh.2017.0048
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A necessidade de se buscar soluções tecnológicas, bem como o aprimoramento de técnicas e a reorientação do modelo assistencial, deveriam vir das demandas do senso comum advindas das mulheres transexuais de forma a pactuar o que Alves define como as “ coisas certas” com os “efeitos desejados”.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.:13

Dessa forma, a existência de um modelo assistencial deficiente epistemologicamente sobre transexualidade não se dá somente face ao formato ideológico e assistencial desenhado pela Política do Processo Transexualizador e pode ter sido determinante para as narrativas das entrevistadas sobre a dificuldade de atendimento a demandas de saúde em outros serviços de saúde. A ciência, através de um grupo que pensa a respeito de um conhecimento, representados pelos centros especializados na política do processo transexualizador, isenta outros grupos de pensar sobre o assunto.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Como forma de sanear essa dissidência e operacionalizar a assistência à mulher transexual de forma efetiva nos outros segmentos de serviços em saúde prestados, especializados ou não, necessita-se da ação dialógica entre os profissionais de saúde em todos os níveis de atenção, pois a visão do indivíduo sobre um objeto é individual e nem sempre está em consonância com outros indivíduos que tiveram contato com o mesmo objeto.22 Fonseca RMGS, Souza KV, Andrade CJM, Amaral MA, Souza V, Caetano LC. Creation of a nursing research group on women's health and gender. Texto Contexto - Enferm [Internet]. 2012 oct;21(4):990-998. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/en_32.pdf
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Ou seja, o olhar contínuo, ambientalizado e corriqueiro sobre as mulheres trans nos centros especializados é diferente do olhar em outros segmentos de saúde e se reflete em dificuldades no momento da busca de assistência nos mesmos.

O olhar sobre o objeto nas unidades de saúde que não prestam atendimento especializado no processo transexualizador é discriminatório, tendo em vista o caráter ideológico de abjeção, perversão ou desordem que os profissionais possuem sobre esses usuários.33 Cunha EL. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora (Rio J) [periódico na internet]. 2016 jan/abr;19(1):85-101. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982016000100006 DOI: 10.1590/S1516-14982016000100006
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Isso pode ser fruto da falta de informação, pois, segundo Alves, o conhecimento é um instrumento para a ação.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Dessa forma o constructo científico deve ser disseminado a todos os profissionais de saúde, que trabalhem no centro especializado ou não, para que todo o sistema de saúde seja capaz de compreender a dinâmica no contexto objetivado e atender os anseios das usuárias.

Pressupõe-se que haja falhas assistenciais na atenção básica, tendo em vista que o encaminhamento para outros segmentos de saúde é oriundo da mesma, considerada como porta de entrada a diversos serviços em saúde e os centros especializados. Nesse caso pensa-se que como Alves que o pensamento deve ser voltado para as semelhanças e não para as diferenças, ou seja, ainda que os níveis de complexidade sejam distintos, existe uma semelhança no que se refere a tipicidade da população assistida.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Nesse caso, as mulheres transexuais, devem ter acessibilidade ao atendimento qualificado e desprovido de discriminação, nos centros especializados ou em outras demandas em saúde que não estejam diretamente ligadas ao processo de transição física, e encontrar isso na atenção básica. A enfermeira é um dos profissionais atuantes nesse processo e tem um papel importante no desenvolvimento e organização de estratégias e ações pautadas na população a ser atendida.2525 Soder R, Oliveira IC, da Silva LA, Santos JL, Peiter CC, Erdmann AL. Desafios da gestão do cuidado na atenção básica: perspectiva da equipe de enfermagem. Enfermagem em Foco [Internet]. 2018 nov;9(3). Disponível em: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/1496
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A Política do processo Transexualizador, composta por um grupo de profissionais de saúde que agrega conhecimento específico, não detém conhecimento adequado para prestar assistência conforme o ideário das mulheres transexuais. Estudo feito pela Faculdade de enfermagem da Universidade de Nebraska revelou que a enfermagem não possui conhecimento significativo ou especialidade para atender a demanda trazida por essa clientela, que afeta a qualidade da assistência prestada.2424 Paradiso C, Lally RM. Nurse Practitioner Knowledge, Attitudes, and Beliefs When Caring for Transgender People. Transgender Health [Internet]. 2018 dec;3(1):47-56. Disponível em: https://doi.org/10.1089/trgh.2017.0048
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A ciência, aplicada na Política do Processo Transexualizador, é uma especialização,1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. com aprofundamento técnico-científico na feminilização das mulheres transexuais, mas não consegue instrumentalizar plenamente os profissionais de saúde, haja vista a não alusão ao senso comum e consequente parcialidade na compreensão e apresentação de soluções aos problemas.

É senso comum entre as transexuais entrevistadas, a demora para realização da cirurgia via Processo Transexualizador, que geralmente acontece após a certificação da transexualidade pelos profissionais de saúde. Tal fato acontece porque o conhecimento científico coloca o poder nas mãos de quem produz ou reproduz os saberes.11 Adinolfi VTS. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas [Internet]. 2015;1(3):1-10. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/download/1940/1401
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O cientista, enquanto representante da ciência e como instrumento de conhecimento, possui uma fala que deve ser escutada e acatada. Considera-se aqui como cientistas os produtores da Política do Processo Transexualizador.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

A comprovação da transexualidade para liberação cirúrgica é realizada a partir da busca de padrões pré-estabelecidos pelos profissionais de saúde, fornecidos pela ciência. Nesse cenário, o saber é construído via uma “metalinguagem científica” que determina regras as quais delimitam as possibilidades corretas a serem implementadas,11 Adinolfi VTS. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas [Internet]. 2015;1(3):1-10. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/download/1940/1401
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:4,1313 Foucault M. Verdade e Poder. In: Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro (RJ): Edições Graal; 2004. pautadas na imagem de um corpo idealizado.2222 Baptista TJR, da Silva Zanolla SR. Corpo, estética e ideologia: um diálogo com a ideia de beleza natural. Movimento. 2016 jul/set;22(3):999-1010.

Essa linguagem específica tem seu entendimento fundamentado em hipóteses construídas e testadas1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015., na necessidade de definir diagnósticos a partir de sintomas, como se fosse uma trama tecida, como se tivesse um plano ideal.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Os cientistas que projetaram o Processo Transexualizador não perceberam que utilizaram o saber social para determinar o diagnóstico pautado em esteriótipos, como os cabelos compridos pelas meninas e cabelos curtos pelos meninos.2626 Natt ED, Pádua CA. É para menino ou para menina? Representações de masculinidade e feminilidade. Revista Latino-Am Geografia e Gênero [Internet]. 2016 jan;7(1):109-31. Disponível em: DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0008
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Nesse caso essa Política de Saúde, enquanto produto de uma construção ordenada de saberes pela ciência, assume uma roupagem fragilizada sobre o entendimento das identidades femininas, tendo em vista o caráter normativo, arraigado de estereótipos sociais, aquém das mudanças advindas da trajetória histórica enfrentadas pelas pessoas transexuais.2323 Eckhert E. A Case for the Demedicalization of Queer Bodies. Yale J Biol Med [Internet]. 2016 jun;89(2):239-46. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27354849
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;2626 Natt ED, Pádua CA. É para menino ou para menina? Representações de masculinidade e feminilidade. Revista Latino-Am Geografia e Gênero [Internet]. 2016 jan;7(1):109-31. Disponível em: DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0008
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A mulher transexual, a ser submetida ao processo de medicalização, na Política do Processo Transexualizador, anula qualquer experiência anormativa e pensamento ideológico para seguir um código médico que delimita a verdade sobre a transexualidade, como pré-requisito para gozar das ferramentas hormonais e cirúrgicas.2323 Eckhert E. A Case for the Demedicalization of Queer Bodies. Yale J Biol Med [Internet]. 2016 jun;89(2):239-46. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27354849
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:241 Isso acontece porque a ciência é entendida como aperfeiçoamento de áreas e traz consigo o domínio e autoridade sobre as mesmas.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

No entanto, o juízo de gosto das mulheres transexuais é uma questão independente e não deveria ter formato rígido, face a um objeto idealizado. Cada indivíduo é a representação daquilo que é, de sua essência. Enquanto juiz de uma matéria do seu próprio corpo e opinião, as pessoas deveriam se ater a preocupações essencialistas e ignorar o objeto ao qual refere como ideal,2222 Baptista TJR, da Silva Zanolla SR. Corpo, estética e ideologia: um diálogo com a ideia de beleza natural. Movimento. 2016 jul/set;22(3):999-1010. que no caso não ocorre com as mulheres transexuais.

Os códigos implantados pela ciência em face da questão estética, ainda que sejam a representatividade da verdade, demonstram que a mesma não é capaz de aprimorar ou compreender a questão do olhar das usuárias transexuais, por não deter aprendizado sobre a pluralidade das identidades femininas,2727 Haines EL, Deaux K, Lofaro N. The Times They Are a-Changing... or Are They Not? A Comparison of Gender Stereotypes, 1983-2014. Psychology of Women Quarterly [Internet]. 2016 mar;40(3):353-63. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0361684316634081
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-2828 Eagly AH, Wood W. Social Role Theory of Sex Differences. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies. In: Naples NA, Hoogland RC, Wickramasinghe M, Wong WC, organizers. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies [Internet]. Hoboken: Wiley Blackwell; 2016. p.1-3. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118663219.wbegss183
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só sendo possível adquirir algum conhecimento a partir dos achados identificados no mesmo.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Para tal, os profissionais de saúde devem utilizar a ciência de apoio, capaz de gerar aprendizagem a partir do senso comum das mulheres transexuais, solidificando conhecimentos, desenvolvendo atendimento individualizado e convergente às necessidades da categoria. A ciência deve ser aproveitada como uma ferramenta capaz de trazer novas perspectivas no processo de epistemológico da transexualidade, pois para Alves deve haver inovação, ainda que já tenham fechado conclusões acerca de um determinado problema.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015.

Nos resultados é afirmado pelas entrevistadas a aceitação das mulheres transexuais pelos profissionais de saúde, porém em um viés patologizado e estereotipado. No processo de categorização, considerando o não dito nas narrativas,2828 Eagly AH, Wood W. Social Role Theory of Sex Differences. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies. In: Naples NA, Hoogland RC, Wickramasinghe M, Wong WC, organizers. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies [Internet]. Hoboken: Wiley Blackwell; 2016. p.1-3. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118663219.wbegss183
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a enfermagem não foi mencionada na assistência às mulheres transexuais. Essa condição de invisibilidade é preocupante, haja vista que a enfermagem é incluída, pela Política do Processo Transexualizador, como membro da equipe multidisciplinar de saúde.66 Portaria n. 2.803 de 19 de novembro de 2013 (BR). Redefine e amplia o processo transexualizador no sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília (DF), 19 nov 2013: Seção 1. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html
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Esse não dito, ou seja, o não descrito nas narrativas, denota uma enfermagem silenciosa,3030 Silva OSF. Os ditos e os não-ditos do discurso: movimentos de sentidos por entre os implícitos da linguagem. Revista entreideias: educação, cultura e sociedade. 2009 jul/dez;1(14):39-53. que pode contribuir para a incompreensão das pessoas transexuais às suas demandas de saúde específicas88 Janini J, Santos RS, Vargens OMC, Araújo LM. A medicalização e patologização na perspectiva das mulheres transexuais: acessibilidade ou exclusão social. Rev Enf UERJ [Internet]. Ano;v(n):p. Disponível em: DOI: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2017.29009
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;3131 Manzer D, O’Sullivan LF, Doucet S. Myths, misunderstandings, and missing information: Experiences of nurse practitioners providing primary care to lesbian, gay, bisexual, and transgender patients. The Canadian Journal of Human Sexuality [Internet]. 2018 aug;27(2):157-170. Disponível em: DOI: 10.3138/cjhs.2018-0017
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-3232 Dahnke MD, Dreher HM. Philosophy of science for nursing practice: Concepts and application. 2ª ed. United Estates: Springer Publishing Company; 2015. e comprometer a qualidade da assistência da enfermeira. Autores referem que a enfermagem não detém conhecimento significativo ou especialistas prontamente acessíveis e disponíveis para o atendimento as pessoas transexuais e que isso compromete a qualidade da assistência as mesmas.2424 Paradiso C, Lally RM. Nurse Practitioner Knowledge, Attitudes, and Beliefs When Caring for Transgender People. Transgender Health [Internet]. 2018 dec;3(1):47-56. Disponível em: https://doi.org/10.1089/trgh.2017.0048
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Há a necessidade da enfermagem se fazer visível, apresentar uma escuta ativa dos anseios e captar as informações fornecidas pelas usuárias, o que a ciência entende como senso comum, de forma a promover um atendimento respeitoso e inclusivo às demandas apresentadas.2828 Eagly AH, Wood W. Social Role Theory of Sex Differences. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies. In: Naples NA, Hoogland RC, Wickramasinghe M, Wong WC, organizers. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies [Internet]. Hoboken: Wiley Blackwell; 2016. p.1-3. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118663219.wbegss183
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Essas informações devem ser ofertadas à comunidade científica de forma a valida-las e viabilizar construções epistemológicas que qualifiquem a assistência de enfermagem a essa clientela. Esse constitui um grande desafio para a enfermagem frente às lacunas existentes na formação profissional sobre a saúde das mulheres transexuais.3030 Silva OSF. Os ditos e os não-ditos do discurso: movimentos de sentidos por entre os implícitos da linguagem. Revista entreideias: educação, cultura e sociedade. 2009 jul/dez;1(14):39-53.-3131 Manzer D, O’Sullivan LF, Doucet S. Myths, misunderstandings, and missing information: Experiences of nurse practitioners providing primary care to lesbian, gay, bisexual, and transgender patients. The Canadian Journal of Human Sexuality [Internet]. 2018 aug;27(2):157-170. Disponível em: DOI: 10.3138/cjhs.2018-0017
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A ciência é um instrumento para a construção desse conhecimento, através de investigação e elaboração de soluções a contar do senso comum, permitindo a enfermagem reflexões acerca da prática profissional.1414 Araujo RA, et al. Contribuições da filosofia para a pesquisa em enfermagem. Esc Anna Nery [Internet]. 2012 jun;16(2):388-394. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452012000200025&lng=en&nrm=iso DOI: 10.1590/S1414-81452012000200025
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Pelos dados apresentados acima, pode-se dizer que a filosofia da ciência caminha na ideia de produção e detenção de saberes, instrumentalizando e ordenando a prática, até mesmo da saúde.99 Silva AM, Silva AVA, Clementino MCM, Garbaccio JL. O olhar da enfermagem na assistência à pessoas trans (T3). Enfermagem Revista [Internet]. 2019 jan; [access in 2019 mar 02]; 21(3):85-105. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/enfermagemrevista/article/view/19325
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Também é um produto do senso comum validado e aperfeiçoado, o que determina a necessidade de se conhecer o senso comum para instrumentalizar uma ciência efetiva, que proporcione informações consistentes para a prática de saúde e nela a de enfermagem.99 Silva AM, Silva AVA, Clementino MCM, Garbaccio JL. O olhar da enfermagem na assistência à pessoas trans (T3). Enfermagem Revista [Internet]. 2019 jan; [access in 2019 mar 02]; 21(3):85-105. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/enfermagemrevista/article/view/19325
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;1414 Araujo RA, et al. Contribuições da filosofia para a pesquisa em enfermagem. Esc Anna Nery [Internet]. 2012 jun;16(2):388-394. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452012000200025&lng=en&nrm=iso DOI: 10.1590/S1414-81452012000200025
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Pode-se dizer que a construção epistemológica da transexualidade, em nível de ciência, não se utiliza do senso comum das mulheres transexuais e sim do senso comum da sociedade, o que fragiliza a assistência qualificada às usuárias e dificulta o olhar não estereotipado e patológico, pelos profissionais de saúde.

Um paradoxo se estabelece quanto ao uso da ciência na assistência as mulheres transexuais, pois ao mesmo tempo que é um facilitador no processo de transição física, não se apresenta plenamente coerente aos anseios das mesmas, o que pode ser perigoso.1111 Alves R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 19ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2015. Tal fato se evidenciou no estudo, quando a ciência não contempla o pensamento das mulheres transexuais. A ciência, com seus cientistas, desenvolveu o atendimento pela política do processo transexualizador medicalizado e com pensamentos estereotipados de feminilidade. No entanto, essa mesma ciência, oportunizou tecnologias que favoreceram a transição das mulheres transexuais. Acredita-se então que a ciência pode convergir para os interesses das mulheres transexuais, dos profissionais de saúde e de todos que pertencem ao cenário assistencial dessas mulheres, desde que bem embasada pelo senso comum desse grupo.

Compreender epistemologicamente a transexualidade a partir do senso comum das mulheres transexuais, da ciência e da enfermagem é importante para identificar a relação entre elas, que não acontece de forma satisfatória. A ciência, que tem como função a afirmação e construção de saberes, como, por exemplo, a assistência prestada pela enfermagem na Política do Processo transexualizador, mas não faz a contento visto posta a não utilização do senso comum na construção do conhecimento.3232 Dahnke MD, Dreher HM. Philosophy of science for nursing practice: Concepts and application. 2ª ed. United Estates: Springer Publishing Company; 2015. Faz-se necessária a inclusão do senso comum das mulheres transexuais pela ciência, para que a mesma seja capaz de oferecer subsídios para maestria da prática de enfermagem às usuárias.

CONCLUSÃO

O conhecimento acerca do senso comum das mulheres transexuais revelou a visão não patológica sobre a transexualidade e problemas assistenciais, como a demora para a liberação de laudos para a realização da cirurgia de redesignação sexual. Embora elas entendam o atendimento pela Política do Processo Transexualizador e a aceitação por parte da equipe multidisciplinar como benefício, permanece o incômodo da exigência de um padrão estabelecido pela ciência como requisito à condição de mulher transexual para os profissionais de saúde.

A patologização da transexualidade e a demora na realização de intervenções cirúrgicas para transição física, foram apontados como os principais problemas apresentados pelas mulheres transexuais, na Política do Processo Transexualizador. A ciência, que instrumentalizou esta política, não dispõe de conhecimento que contemple as necessidades reais das mulheres transexuais e está distante do refinamento do senso comum.

Outro problema encontrado foi a enfermeira, profissional da Política do Processo transexualizador, não citado nas narrativas das mulheres transexuais. A enfermagem precisa compreender as questões relacionadas à transexualidade, sendo instrumento de articulação do senso comum como saber científico e o senso comum.

A ciência, para a construção epistemológica da transexualidade, não se utiliza do senso comum das mulheres transexuais e debilita o processo assistencial, reforça o caráter estereotipado e patológico empregado as mesmas, pelos profissionais de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2018
  • Aceito
    02 Maio 2019
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