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Estado e financeirização no Brasil: interdependências macroeconômicas e limites estruturais ao desenvolvimento

The state and financialization in Brazil: macroeconomic interdependencies and structural limits preventing development

Resumo

A compreensão das relações Estado-economia é uma etapa necessária da análise das condições que bloqueiam o desenvolvimento brasileiro. O regime de crescimento econômico que emergiu das transformações estruturais da década de 1990, e subsiste até a atualidade, caracteriza-se por seu baixo dinamismo e instabilidades conjunturais recorrentes. Estudos recentes classificam-no entre os regimes dominados pelas finanças que, em função da situação externa e da política econômica vigente, ora assume um caráter finance-led growth regime, ora se expressa num padrão que se poderia denominar por finance-blocked growth. Entretanto, esses regimes só conseguem existir reproduzindo seus vínculos institucionais com o Estado, subordinando-o aos objetivos da revalorização financeira e rentista dos capitais. Em consequência, reduzem a autonomia da política econômica, restringem as condições políticas para a construção do Estado Social, além de esvaziarem a legitimidade das intervenções públicas para o desenvolvimento. Este artigo recorre aos conceitos de formas institucionais e de regime fisco-financeiro para análise dessa problemática.

Palavras-chave:
Financeirização; Relação estado-economia; Acumulação de capital; Política econômica; Desenvolvimento socioeconômico

Abstract

The understanding of the relationships between the state and the economy is a necessary step in analyzing the conditions of the main issues blocking Brazilian development. The regime of economic growth that emerged from the structural transformations of the 1990s, and survives to the present date, is characterized by its low dynamism and recurrent conjunctural instabilities. Recent studies rank it among the finance-dominated regimes due to the external situation and the current economic policy, whether assuming a financial-led growth regime, or expressing a pattern that might be termed finance-blocked growth. However, these regimes can only exist by reproducing their institutional links with the state, by subordination to the objectives of financial revaluation and rentier capital. As a consequence, they reduce the autonomy of economic policy, restrict the political conditions for the construction of the social state and end up reducing legitimacy of public interventions for development. This article uses the concepts of institutional forms and of the fiscal-financial regime to analyze this problem.

Keywords:
Financialization; State-economy relations; Capital accumulation; Economic policy; Social and economic development

Introdução

Em um trabalho original, que se tornou famoso por suas contribuições, Castro e Souza (1985) sustentaram a hipótese de que a economia brasileira foi levada a ingressar num longo período de “marcha forçada”, para responder à crise de 1974. Esse processo implicou a manutenção, por parte do Estado, de taxas excepcionalmente altas de investimento, apesar das dificuldades trazidas pelo esgotamento e crise do regime de crescimento do “milagre brasileiro” (1967-1973)1 1 Trata-se dos investimentos promovidos pelo Estado brasileiro no Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico - II PND, implementado para o período 1975-1979. . Em razão dessa opção, bons resultados macroeconômicos teriam sido alcançados, notadamente, para o setor externo, na década subsequente.

No período pós-abertura e pós-Real, a economia brasileira entra num outro tipo de “marcha” que, contrariamente à anterior, não se traduz por um esforço de novos investimentos em ampliação da capacidade produtiva instalada, notadamente, no setor industrial. O Estado e suas estruturas encontram-se gravemente manietados pelo poder das finanças e, consequentemente, pelas expectativas e interesses dos grandes grupos econômicos que se beneficiam diretamente da acumulação rentista-patrimonial. A partir da diversidade e inovação de produtos e serviços, que sistematicamente ofertam, e de sua forte ingerência sobre a definição do orçamento público, as finanças, de forma agressiva e determinada, mantêm-se em uma permanente busca de novos espaços de revalorização mercantil. Para isso, contam com amplo apoio da grande mídia que patrocinam, e, sobretudo, de seus representantes políticos e governamentais nas instituições e organismos do Estado brasileiro, que atuam, deliberada e diligentemente, para readequá-las aos imperativos do mercado financeiro.

Parafraseando Castro e Souza, a economia brasileira atual é uma economia em “financeirização forçada” e incapaz de encontrar as condições estruturais para uma retomada sustentada da taxa de investimento produtivo, notadamente, nos setores de maior intensidade tecnológica. Pode crescer por períodos curtos, mas sob taxas historicamente inferiores à média histórica, pois a rentabilidade real de referência não é mais definida de acordo com as necessidades das atividades produtivas e sim sob critérios e exigências de detentores de capitais de curto prazo, em sua maior parte, especulativos e avessos aos riscos das imobilizações necessárias ao desenvolvimento brasileiro. Essa inflexão das relações Estado-economia no Brasil não é um caso fortuito, um acidente da história, ou derivada de equívocos das ações governamentais. Ao contrário, suas causas decorrem de mudanças estruturais profundas, lideradas por novos grupos de pressão com sua forte ingerência sobre o setor público, incluindo a formulação e gestão da política monetária e fiscal.

Numa perspectiva institucionalista, o presente artigo mobiliza os aportes teóricos regulacionistas2 2 Referem-se aos trabalhos no âmbito da Escola francesa da Regulação, cujo estágio atual de desenvolvimento pauta-se pela construção de uma Macroeconomia histórica e institucionalista. para o tratamento dessa problemática. Além dos resultados empíricos, outra contribuição à literatura existente sobre o tema é de ordem metodológica: a aplicação conjunta de análise histórica e institucionalista, teoria macroeconômica e testes econométricos para a compreensão das relações estruturais, mutuamente determinantes, entre Estado e economia no Brasil em longo período.

Além dessa introdução, o texto se organiza como segue. A seção 1 situa o conceito de Estado dentre as cinco formas institucionais que compõem as estruturas básicas dos regimes de crescimento e acumulação de capital, em conformidade com as categorias teóricas dessa abordagem. Apresenta-se o conceito de regime fisco-financeiro e sua vinculação macroeconômica com o regime de acumulação vigente. A seção 2 estabelece uma periodização das relações Estado-economia no Brasil, em sua evolução de longo prazo. Destaca suas principais características e prepara a aplicação dessas categorias da análise regulacionista à realidade histórica do país, mantendo-se, porém, numa perspectiva qualitativa. Na seção 3, o foco analítico afirma-se quantitativo, sendo utilizadas técnicas econométricas para tratar do Estado brasileiro enquanto forma institucional hierarquicamente subordinada aos imperativos do setor bancário-financeiro. Analisam-se as relações dívida pública-crescimento e se discutem questões correlatas, como sua funcionalidade no processo de financeirização da economia brasileira. Busca-se caracterizar o regime fiscal sob domínio das finanças, que bloqueia a sustentabilidade do crescimento econômico e impede a implementação de uma estratégia nacional de desenvolvimento. Destaca-se, também, em que medida as finanças públicas permanecem sujeitas aos imperativos da acumulação rentista-patrimonial, convertendo-se em um limite estrutural ao desenvolvimento socioeconômico do país. O artigo é concluído mediante considerações mais gerais em relação aos papéis do Estado e as perspectivas da economia e sociedade brasileiras.

1. Estado, finanças públicas e regulação

Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. Porém, abstraindo a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas (...), a dívida do Estado fez prosperar (...) o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia (Marx, O Capital).

As formas institucionais (Fi) são unidades de análise apreendidas num nível meso-econômico, pois respondem pela coordenação de comportamentos individuais, coletivos e setoriais que, quando compatíveis entre si, podem ser geradoras das regularidades macroeconômicas que definem o regime de acumulação. Na abordagem proposta pelas macroanálises regulacionistas, o Estado e sua interdependência estrutural com a economia é uma das cinco formas institucionais fundamentais das economias capitalistas. As outras quatro são o regime monetário-financeiro (RM), as formas da concorrência (FC), a relação salarial (RS) e a forma de inserção internacional (FI). Essas áreas da economia resultam de um processo de codificação (normativa, jurídica) de compromissos sociais intra e inter-classes e atividades econômicas, que possibilitam a socialização de comportamentos, a coesão social e a coerência macroeconômica, a partir das interações agentes-estruturas.

As formas institucionais permitem derivar regularidades macroeconômicas dotadas de certa estabilidade estatística e, em consequência, passíveis de detecção econométrica (Aglietta, 1997AGLIETTA, Michel. Régulation et crises du capitalism. Paris: Éditions Odile Jacob/Opus, 1997.). Daí sua importância para as análises empíricas. No plano teórico, são componentes de um modo de regulação macroeconômica, potencialmente capaz de “pilotar” o regime de acumulação de capital e, sob determinadas condições estruturais, compatibilizá-lo com as necessidades da reprodução social em economias capitalistas.

No estudo de suas funções fundamentais, o Estado capitalista pode ser apreendido como instância de articulação do processo econômico e político em uma dupla dimensão: nacional e internacional. Na primeira, o Estado é analisado como instância reguladora e organizadora de um modo particular do desenvolvimento capitalista, correspondente aos interesses de determinadas classes sociais e/ou setores econômicos, que manifestam sua hegemonia3 3 A definição de hegemonia aqui utilizada é a desenvolvida por Antonio Gramsci. , por meio de formas particulares de legitimação. Na segunda, é analisada como instância articuladora do espaço econômico e territorial nacional com o sistema capitalista mundial4 4 Essas definições baseiam-se em Afonso e Souza (1977). . Consequentemente, numa economia cuja hegemonia pertence ao setor financeiro, o Estado converte-se numa instância institucional organizadora dos espaços econômicos necessários ao desenvolvimento da acumulação rentista-patrimonial. Dará prioridade à promoção dos interesses da alta finança, mesmo que em detrimento das necessidades sociais e do desenvolvimento nacional.

Nesse contexto, e para os objetivos dessa análise, a forma institucional do Estado refere-se ao conjunto de compromissos institucionalizados (Ci) que, uma vez estabelecidos, criam regras e regularidades na evolução das despesas e das receitas públicas (oyer, 1986)5 5 Os compromissos institucionalizados (Ci) se distinguem da institucionalização autoritária, de ordem governamental. Trata-se de acordos, convenções e normatizações selando determinados comportamentos e relações entre as partes, classes sociais, categorias profissionais, cidadãos e governos. Os Ci criam regras, direitos e obrigações entre os participantes, impondo uma disciplina e regularidade das ações pactuadas. . Portanto, esses compromissos institucionalizados se articulam e promovem a consolidação de um determinado regime fisco-financeiro (Théret, 1998THÉRET, B. Estado, economia pública e regulação. Brasília: Universa Editora, UnB, 1998.). O Estado responde também pelas características determinantes da relação salarial (configuração vigente da relação capital-trabalho assalariado, definindo o salário direto e o salário indireto) e da moeda nacional, sob a forma de um regime monetário-financeiro.

Um regime fisco-financeiro6 6 Régime fisco-financier, no original francês, segundo Théret (1992). expressa um determinado padrão de relacionamento entre o Estado e a economia, resultante da interação entre a instância político-jurídica e a lógica da acumulação capitalista. O regime fisco-financeiro deve ser coerente com o regime de acumulação no qual está inscrito. Para isso, ele deve assegurar, por intermédio da arrecadação fiscal, uma correspondência funcional entre as formas jurídicas e os gastos de legitimidade do Estado (gastos em investimento público, saneamento, saúde, educação, habitação, previdência e assistência social, segurança etc.) sem os quais, a cobrança de tributos não se justificaria perante a sociedade civil.

1.1 A forma do Estado em duas configurações polares

Dois outros conceitos importantes para a análise proposta neste capítulo são o de Estado circunscrito e de Estado inscrito7 7 Conceitos que também integram a estrutura teórica da Escola francesa da Regulação. . Um Estado circunscrito ao circuito da acumulação de capital caracterizou o período do capitalismo liberal clássico do século 19 à crise dos anos 1930. Nessa modalidade, as relações setor público-economia permaneciam restritas às instâncias de segurança pública e nacional, garantia do direito de propriedade e intervenções pontuais no domínio macroeconômico. Os direitos civis, a legislação trabalhista e as estruturas de bem-estar são, a depender do país, embrionárias ou inexistentes.

A partir dos desdobramentos da Grande Depressão de 1929, mais notadamente após a Segunda-Guerra Mundial, um novo tipo de Estado emerge ampliando suas ações sobre o espaço nacional e sua presença direta na economia, por meio da criação de empresas públicas e de estruturas voltadas para a provisão de bens e infraestruturas coletivas (educação, transporte, saúde, previdência e assistência social). Tratava-se do Estado inscrito no circuito da acumulação industrial, considerada básica para toda estratégia de desenvolvimento econômico. Na literatura internacional, fora denominado por Estado de Bem-Estar, Estado desenvolvimentista ou ainda Estado beveridgiano-keynesiano.

Como síntese das contradições essenciais do modo de produção capitalista, em sua evolução histórica, nem o Estado circunscrito nem o Estado inscrito poderiam ser apreendidos como instâncias perenes em suas configurações estruturais. O primeiro, representa um período em que a relação capital-trabalho expressava uma correlação de forças altamente favorável ao grande capital financeiro e industrial. Mas o segundo, em função das transformações políticas, tecnológicas e econômicas do pós-guerra, faz a balança pender favoravelmente para o trabalho, promovendo o surgimento do Estado Social.

Com os desdobramentos da crise do modo de desenvolvimento fordista, a partir de 1973, inicia-se uma fase de erosão da base de arrecadação fiscal. O Estado inscrito é questionado e solapado em suas formas de financiamento em prol de novas mutações estruturais de acordo com as expectativas e interesses das empresas industriais e seus novos vínculos com o grande capital bancário-financeiro.

O terceiro período, que se explicita nas décadas de 1980-90, trará as condições institucionais para a liberalização comercial e financeira, que caracterizaram o processo de globalização. O Estado inscrito é, aparentemente, premido a retornar ao seu reverso circunscrito do capitalismo liberal clássico. Entretanto, em razão de dificuldades políticas e institucionais, o que se observa numa análise comparativa é a diversidade de suas formas de presença e de intervenção na economia nacional. Estas exibem diferentes graus de resiliência com relação às ideologias e propostas de políticas neoliberais, capitaneadas pela alta finança e pelos interesses da revalorização rentista dos capitais.

1.2 Hierarquia das formas institucionais e regimes de crescimento

As cinco Fi, a saber: 1) relações Estado-economia, 2) inserção internacional, 3) regime monetário, 4) padrões de concorrência e a 5) relação salarial, se articulam numa determinada hierarquia e complementaridade institucional que responderá pelas características do regime de crescimento e acumulação de capital8 8 Trata-se da hipótese de hierarquia e complementaridade das formas institucionais que integra a Teoria da Regulação. . Por exemplo, o regime de crescimento fordista se caracterizou por uma hierarquização singular em diversos aspectos, mas pode-se destacar em sua arquitetura institucional a centralidade da relação salarial. As outras quatro formas institucionais se combinaram de maneira a sancionar os compromissos sociais do pós-Segunda Guerra, entre os quais se encontrava o desenvolvimento das estruturas do Estado de bem-estar que, necessariamente, pressupunha forte controle nacional sobre as finanças privadas.

À época fordista, as finanças estavam a serviço do desenvolvimento socioeconômico, coordenadas e reguladas pelos Estados nacionais. Na atualidade, servem, prioritariamente, aos interesses privados dos grandes bancos, detentores de capital especulativo e de curto prazo e das principais praças financeiras internacionais.

O Quadro 1 mostra as mutações na configuração dessa forma institucional fundamental, juntamente com os correspondentes regimes de crescimento e acumulação de capital, desde o final do século 19, para a economia mundial, notadamente nos países da OCDE9 9 O modo de desenvolvimento fordista na OCDE, responsável pela Golden Age do capitalismo no pós-Segunda Guerra, também influenciou as relações Estado-economia no Brasil. No entanto, as políticas do Estado brasileiro concorreram para fortalecer o fordismo em sua dimensão produtivista, isto é, das práticas da gestão taylorista em processos de produção em série mecanizada, mas sem que a dimensão macroeconômica e dos compromissos sociais distributivos em favor dos trabalhadores recebessem a mesma ênfase. Isso resultou num regime de crescimento econômico impulsionado por elevadas taxas de lucro, mas não no consumo de massa, que, sob os regimes de acumulação fordistas, fora viabilizado através da conexão dos salários aos ganhos de produtividade e na expansão do salário indireto. .

Quadro 1
Transformações do Estado e regimes de crescimento na economia mundial: interdependências estruturais e características institucionais

A importância do Estado decorre também do lugar em que esta forma institucional ocupa no processo de codificação das estruturas que definem a institucionalidade dos regimes de crescimento e de acumulação de capital (o modo de regulação). Aglietta (1997)AGLIETTA, Michel. Régulation et crises du capitalism. Paris: Éditions Odile Jacob/Opus, 1997. observa que a existência do Estado é a expressão política do caráter incompleto dessa regulação socioeconômica.

Nesse contexto, o Estado surge como o totalizador das contradições entre interesses de classes e setoriais, quase sempre divergentes. Consequentemente, ressalta Aglietta, a criação de novas instituições por intermédio da expressão política dos conflitos socioeconômicos passa, necessariamente, pelo Estado. A ambivalência entre a síntese das normas sociais estabelecidas e a totalização dos conflitos se faz presente em dois instrumentos privilegiados: 1) na definição do orçamento público, pois é a base para a socialização dos fluxos monetários e a transformação das condições de apropriação da riqueza; 2) na emissão e gestão da moeda, pois se trata da forma de restrição financeira geral pesando sobre as estratégias privadas.

2. As relações Estado-economia na história: intervencionismo autoritário, fragilidade institucional e democracia restrita

O caráter excludente das relações Estado-sociedade civil no Brasil é reproduzido pela baixa representatividade política das classes populares nas estruturas organizacionais do setor público. Essa característica decorre da enorme heterogeneidade social e econômica, expressão do elevado nível de desigualdade de renda e de riqueza existentes. O reverso de seu caráter excludente é seu caráter inacabado, reflexo das estruturas de produção e de distribuição que resultam das formas contraditórias do processo de desenvolvimento capitalista nesse país. Entretanto, apesar dos reveses econômicos que caracterizaram as décadas de 1980 e 1990, e o período atual marcado por uma crise político-institucional e pela recessão, a sociedade civil desenvolve-se e torna-se mais pluralista. O exercício da cidadania e a participação política são crescentes desde os anos 1930 (Bresser-Pereira, 2003BRESSER-PEREIRA, L. C. Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula. São Paulo: Editora 34, 2003.).

Com base nas pesquisas históricas e análises das mudanças políticas e institucionais, podem ser destacados seis períodos em que as relações Estado-economia foram marcadas por transformações qualitativas que impactaram o processo de desenvolvimento brasileiro:

- 1º período (1930-1954) - o Estado, sob um regime político autoritário promove o nacional-desenvolvimentismo e tenta lançar as bases para um processo autônomo de desenvolvimento econômico. Caracteriza-se esse período pela progressiva perda de hegemonia do capital mercantil agrário exportador e a afirmação do capital industrial no espaço econômico nacional. As intervenções do Estado aceleraram-se e revestiram-se de um conteúdo ideológico nacionalista. Multiplicaram-se o número de agências, institutos, conselhos e autarquias, permitindo que as demandas de diversos grupos sociais pudessem ser representadas e administradas no âmbito do setor público. Este se reestrutura para desempenhar novas funções nos quadros de um projeto de desenvolvimento econômico nacional. Observa-se a primeira ruptura com relação ao avanço da acumulação capitalista: um núcleo básico de indústrias de bens de produção é implantado e redefine-se o papel econômico do Estado para tornar o polo urbano-industrial o eixo dinâmico da economia.

Conforme Oliveira (1977)OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. São Paulo: Brasiliense, 1977. p. 10-11. (Seleções Cebrap. n. 1), o papel do Estado neste período foi o de criar as bases para que a acumulação capitalista industrial pudesse se reproduzir. No âmbito da regulamentação geral dos fatores produtivos, o Estado substitui os mecanismos de formação de preços via mercado por dispositivos normativos e institucionais. No que concerne à configuração da relação salarial, o Estado promulga a legislação trabalhista e sindical. Evitava com isso a possibilidade de um confronto direto entre capital e trabalho, pois ao fixar o salário mínimo em níveis realmente biológicos, a legislação trabalhista reduzia ao máximo os gastos dos empresários com a folha de pagamento, já que não foram computadas despesas com educação e saúde. (Mendonça, 1988MENDONÇA, Mário Jorge Cardoso de; SANTOS, Cláudio Hamilton Matos dos; SACHSIDA, Adolfo. Revisitando a função de reação fiscal no Brasil pós-Real: uma abordagem de mudanças de regime. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 873-894, 2009., p. 28);

Destacam-se entre as características principais das intervenções econômicas do Estado neste período: a) criação de um setor público para provimento de bens de produção que, mediante o fornecimento de insumos e serviços a menores preços, viabilizava o repasse de seus ganhos de produtividade às demais unidades industriais privadas; b) promoção de medidas que visavam acelerar o processo de industrialização do país, sem deixar de atender às demandas dos setores agrário-exportadores e do qual ainda dependia ao nível das receitas públicas; c) regulamentação de diversos componentes da relação salarial (previdência, salário mínimo, fixação da jornada de trabalho, etc.) no sentido de adequá-la ao novo padrão de acumulação de capital, impulsionado pela dinâmica da indústria; d) a crise do regime de acumulação agrário-exportador, ao conjugar-se no plano externo com a grande crise dos anos 30, redefine o equilíbrio de forças políticas e abre espaço para a emergência de novos compromissos institucionalizados que refletiam os interesses do capital industrial no país.

- 2º período (1955-1963) - fase I do desenvolvimentismo associado ao capital estrangeiro. Foi marcado pela difusão e consolidação do modo de desenvolvimento fordista em suas variantes nacionais nos países da OCDE, com suas consequências sobre a reconfiguração das relações comerciais e financeiras entre o centro desenvolvido e a América Latina.

O Estado brasileiro capacita-se para permitir a entrada do capital estrangeiro sob a dupla forma de empréstimos e investimentos diretos, mas, sobretudo, para coordenar esse processo através do planejamento consubstanciado no Plano de Metas, implementado para os anos 1956-1961. Financiava os gastos públicos e privados com expansão dos meios de pagamento e do crédito, via empréstimos do BNDE e também por avais para a captação de recursos no exterior. O setor público atuava duplamente como regulador e produtor, aumentando sua participação direta na formação bruta de capital fixo do país, ao mesmo tempo em que garantia as condições de produção e de distribuição às empresas estrangeiras e nacionais.

O Plano de Metas reconfigurou as relações Estado-economia, integrando as atividades do capital público e do privado nacional e estrangeiro, através de um planejamento que definia as prioridades de investimento, bem como as estratégias para alocação dos recursos privados disponíveis. O Estado brasileiro adquiria novas funções e esferas de atuação econômica, que passavam desde a sua definição como banqueiro do capital privado (através das agências públicas para oferta de crédito industrial), até o seu papel de proprietário (com as empresas públicas).

- 3º período (1964-1989) - fase II do desenvolvimentismo associado ao capital estrangeiro, com seu apogeu e crise. O Estado, sob um regime político autoritário, aprofunda o desenvolvimento associado ao capital estrangeiro e aumenta a dependência externa. Esse período se destaca dos anteriores, pois é nele que surgem as condições estruturais e macroeconômicas para o desenvolvimento precoce do processo de financeirização da economia brasileira. Abrange a fase do “milagre econômico brasileiro” (1967-1973) e o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento - II PND (1975-1979).

Uma das consequências políticas do golpe empresarial-militar de 1964 foi o afastamento dos setores mais atrasados das classes dominantes brasileiras do controle do aparelho de Estado, substituindo-os pela burguesia industrial e financeira. Simultaneamente as forças populares são esmagadas e os movimentos sociais reprimidos. Uma nova legislação trabalhista foi estabelecida com o objetivo de aprofundar a flexibilidade quantitativa e salarial das relações de emprego no Brasil. O Estado implementa o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) para o período 1964-1966, por meio de um conjunto de reformas estruturais de grande amplitude.

Destaque-se, nesse contexto, a reforma monetária e financeira, que estabeleceu as estruturas institucionais básicas para o funcionamento do mercado bancário-financeiro e baseou-se no modelo dos EUA, caracterizado pela especialização e segmentação. O Banco Central e o Conselho Monetário Nacional são criados visando tornar a política monetária independente. O Governo institui a correção monetária e cria as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), superando as restrições impostas pela antiga Lei da Usura, que limitava as taxas de juros nominais ao teto de 12% anuais. Também implementa a reforma do mercado de capitais através da Lei n. 4.728.

Buscava-se assim manter as condições de reprodução do regime de crescimento, em vez da adoção de um ajuste recessivo, seguido, àquela época, pela maioria dos países impactados negativamente pelo choque energético de 1973. Tratava-se, por meio da impulsão do Estado, de pôr a economia brasileira em “marcha forçada”, tal como analisado por Castro e Souza (1985). Na ausência de sustentação política, o Estado transformou-se em “Estado-empresário”, na medida em que o eixo principal do processo centrava-se nas empresas estatais.

Destaque-se que a emissão de títulos públicos indexados à inflação e a reestruturação do mercado bancário-financeiro instituem o processo de redefinição dos papéis do Estado como garantidor e avalista do capital financeiro privado. Consequentemente, o Estado implantava um novo regime fisco-financeiro, tido como um dos pilares para relançar a economia brasileira num novo ciclo expansivo de acumulação.

- 4º período (1990-2003) - fase I do modelo neoliberal-dependente com inserção internacional subordinada aos mercados globais. O Estado brasileiro esvazia o discurso desenvolvimentista, incorpora, açodada e acriticamente, a ideologia neoliberal da globalização e inviabiliza no plano político-institucional a retomada de um projeto nacional de desenvolvimento socioeconômico. Abrange os governos Collor e FHC.

Após uma década de dificuldades macroeconômicas e estruturais, conhecida como a “década perdida” dos anos 1980, o Estado brasileiro reprova e descaracteriza o papel anterior das intervenções públicas que permitiram o desenvolvimento com base na acumulação industrial. Empreende um retorno rápido, e teoricamente pouco fundamentado, à primazia do mercado supondo-o como principal agente para a retomada do crescimento com estabilidade de preços.

Paralelamente, no plano externo, a ideologia neoliberal da globalização buscava afirmar-se proclamando o caráter considerado irreversível e inelutável do novo processo de internacionalização. Às nações periféricas restaria então apenas o papel passivo de adequar-se às imposições das novas forças de um mercado internacionalizado e potencializado pelas novas tecnologias da comunicação e da informação. No plano da propaganda ideológica, a adesão à globalização fora anunciada aos Estados nacionais, e às suas respectivas populações, como se fosse uma senha de entrada num mundo pleno de vantagens e benefícios sociais e econômicos irrecusáveis. Na segunda metade dos anos 1990 e na década de 2000, a profusão de crises financeiras, com estagnação econômica e queda dos níveis de vida, mostraria os equívocos dessa posição, que se explica tanto por seus interesses oportunistas imediatos quanto por seu desconhecimento dos papéis do Estado na história do desenvolvimento das nações.

A nova forma de inserção internacional do Brasil pressupôs mudanças institucionais profundas, que afetaram várias instâncias do sistema econômico brasileiro, incluindo a reformulação do setor público e dos papéis do Estado, numa economia ainda em desenvolvimento, plena de contradições e heterogeneidades estruturais. O Estado brasileiro lança-se num processo de reestruturação, que se desdobrou em várias dimensões organizacionais: a) privatizações e desnacionalizações de grandes empresas estatais; b) reconfiguração da forma de inserção internacional; c) reforma monetária com a implementação do Plano Real e medidas de sustentação da acumulação bancária e financeira; d) reformas de ordem política; e) reforma no sistema de seguridade social; f) reforma do sistema tributário; g) reforma administrativa.

A exemplo do que ocorrera em vários países latino-americanos, esse processo de reestruturação foi amplamente influenciado pelo chamado Consenso de Washington. A saída para a crise das economias latino-americanas consistiria numa estratégia de crescimento marketoriented, que envolveria a liberalização comercial e financeira.

A análise da Lei 8.031, que lançou o Programa Nacional de Privatização, é particularmente esclarecedora da nova orientação do Estado brasileiro. Entre seus objetivos destacam-se:

  1. reordenamento estratégico da presença do Estado na economia - tratava-se de retirar o Estado de setores onde os capitais privados poderiam supostamente operar de modo mais eficiente. Ao Estado caberia o provimento de bens tipicamente públicos: educação, saúde, justiça, segurança e regulação;

  2. redução da dívida do setor público - a receita da privatização das empresas estatais seria utilizada no cancelamento de parte do estoque da dívida pública, o que deveria contribuir para reduzir a vulnerabilidade financeira do governo brasileiro. Julgava-se também que a privatização poderia facultar ganhos fiscais, caso as taxas de juros incidentes sobre a dívida cancelada do setor público fosse maior do que a rentabilidade obtida pelo Tesouro Nacional, enquanto proprietário majoritário das empresas estatais;

  3. retomada dos investimentos nas empresas privatizadas - a deterioração das finanças públicas não permitia o aporte de recursos necessários à manutenção do nível de investimentos requeridos pelas estatais. Consequentemente, sua privatização terminaria promovendo a retomada dos investimentos necessários à expansão da capacidade produtiva;

  4. modernização do setor industrial - esta seria um processo natural resultante da privatização e da nova gestão das empresas industriais operando num ambiente de maior competição, dispensando, portanto, a necessidade de formulação de políticas industriais ou setoriais. Novos investimentos seriam realizados espontaneamente, tanto em expansão da capacidade produtiva quanto em modernização tecnológica, aumentando os ganhos de produtividade para a totalidade do sistema econômico;

  5. fortalecimento do mercado de capitais - tradicionalmente caracterizado pela concentração das bolsas de valores em poucos papéis. A privatização permitiria o aumento da colocação de papéis junto ao público, o que reduziria a concentração do capital. Um resultado que não se concretizou, pois - por diversas razões estruturais, como a permanência de taxa de juros demasiadamente elevada e privilégios concedidos pelo Estado a grandes investidores, bancos e empresas - deixou de fora dos leilões de privatização a ampla maioria da população brasileira10 10 Diferentemente do processo britânico de privatizações nos anos 1980, em que a população pôde adquirir ações das empresas estatais privatizadas. .

- 5º período (2004-2014) - fase II do modelo neoliberal-dependente com inserção internacional subordinada aos mercados globais. Abrangendo os governos Lula e Dilma, o Estado brasileiro tenta conciliar duas ordens contraditórias de interesses: os da acumulação rentista-financeira e do setor exportador de commodities com aqueles da acumulação produtiva industrial, ao mesmo tempo em que implementa as políticas sociais, redistributivas e de inclusão social via consumo (o programa Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo, expansão do consumo popular via crédito, etc.).

Dessa maneira, as novas relações Estado-economia, capitaneadas pelo governo do Partido dos Trabalhadores, criavam as condições para que o processo de financeirização brasileiro, antes focado no endividamento público interno, estendesse seu espaço de valorização rentista-patrimonial, sobre o endividamento privado. Para isso, os agentes financeiros multiplicaram em sua estrutura de ativos as dívidas das famílias e das empresas não-financeiras, por meio da expansão de suas operações de crédito.

No entanto, em razão dos elevados níveis das taxas de juros praticadas no Brasil, a financeirização usurária11 11 Denominamos financeirização usurária para diferenciá-la de seu homólogo nos países desenvolvidos, onde as taxas de juros praticadas são demasiadamente baixas ou negativas, impossibilitando o surgimento dessa modalidade. Em economias avançadas, a financeirização desenvolve-se através de outros produtos e serviços geradores de renda financeira, não necessariamente, renda de juros. permanece, mas é elevada a um novo patamar em que os fluxos de juros apropriados pelos grandes bancos e detentores de capital são drasticamente amplificados pelo elevado custo dos financiamentos e empréstimos concedidos pelo mercado financeiro às famílias e empresas brasileiras. Em consequência, a lógica da financeirização amplia seu circuito de acumulação, reproduzindo-se agora através do grande varejo e distribuidores, do sistema tradicional de vendas ou do e-commerce, expandindo seus níveis de rentabilidade não-operacional, graças à ampliação da oferta de crédito, tanto para as classes médias quanto para os estratos de renda mais baixa da população brasileira. Aproveita-se também da política social, promovendo o endividamento das famílias e o aumento da insegurança e vulnerabilidade social (Lavinas, 2017LAVINAS, Lena. How social developmentalism reframed social policy in Brazil. New Political Economy, Mar. 2017.).

- 6º período (2015-2017) - observa-se a captura total do Estado pelos interesses da alta finança com sua ideologia neoliberal e busca de novos espaços de revalorização mercantil. As estruturas do Estado passam a ser diretamente controladas por representantes do mercado bancário-financeiro, permitindo aos grandes bancos e empresas não-financeiras atuarem diretamente sobre a definição e gestão do orçamento público e a formatação e condução da política econômica. Os representantes da alta finança controlam o Ministério da Fazenda e o Banco Central. A política monetária torna-se ainda mais restritiva e a política fiscal converte-se num expediente de geração de caixa para a União, aprofundando a crise dos Estados federados. Na conceituação proposta por Théret (1998)THÉRET, B. Estado, economia pública e regulação. Brasília: Universa Editora, UnB, 1998., o Brasil torna-se um caso típico de regime fisco-financeiro no âmbito do qual as finanças públicas estão completamente subordinadas às finanças privadas e estas últimas plenamente inseridas no circuito da acumulação rentista-patrimonial, característica dos processos de financeirização.

Devem-se destacar duas medidas governamentais por seus efeitos sobre a redefinição dos papéis do Estado visando sua readequação aos objetivos da expansão financeira no Brasil. A PEC 55 ou “do teto”, já aprovada pelo congresso e sancionada pelo executivo federal, que congela os gastos sociais em saúde e educação (precisamente os gastos de legitimidade) do Estado por duas décadas; e a PEC 287, relativa à reforma da previdência social. De formatação neoliberal de acordo com a lógica do workfare, a reforma proposta tornará o sistema público de aposentadoria pouco atrativo, de difícil entrada e problemática saída pela elevação da idade mínima para se requerer a aposentadoria.

Considerando-se as análises do processo de financeirização em curso no Brasil e no mundo, trata-se de uma estratégia tácita de redução da oferta pública e universal de serviços fundamentais à população, para criar e ampliar nichos de mercado de interesse do setor bancário-financeiro privado. Lançada sob o argumento de que seus objetivos visam o reequilíbrio das contas públicas e da geração de superávits fiscais primários, essas medidas têm caráter eminentemente contracionista sobre a demanda interna. Como as receitas fiscais são elásticas ao consumo e ao crescimento econômico e as despesas primárias inelásticas, as metas de superávits fiscais configuram-se como inalcançáveis ou meramente retóricas para justificar a criação de novos espaços de valorização financeira com o apoio do próprio Estado, agora, sob controle dos grupos que lideraram o golpe parlamentar de 2016 e que estão a serviço do grande capital bancário-financeiro.

O Quadro 2 proporciona uma síntese das principais características das relações Estado-economia no Brasil, descritas acima.

Quadro 2
Evolução do Estado brasileiro: uma periodização por mudanças institucionais

3. Ausência de projeto nacional e bloqueio do desenvolvimento: o Estado brasileiro na financeirização

Antes de a análise passar a sua dimensão quantitativa, torna-se necessário precisar os conceitos de financeirização e de desenvolvimento utilizados, assim como os de regimes do tipo finance-led e de finance-blocked growth.

O conceito de financeirização caracteriza a vigência de um ambiente macroeconômico onde as alocações financeiras de capital tornam-se predominantes, desestimulando as alocações diretamente produtivas. Esse fenômeno tem expressões microeconômicas e setoriais particulares, pois altera as práticas da gestão empresarial e mantém a taxa de investimento produtivo aquém do nível necessário à melhora das condições de vida das populações. Uma de suas consequências mais graves é a perda de autonomia dos Estados nacionais, seja para formular a política econômica, seja para implementar medidas necessárias ao processo de desenvolvimento socioeconômico sustentável. Uma vez que essas atribuições são intrínsecas aos Estados, não se esperaria que mercados e setor privado tivessem objetivos sociais ex-ante. Dados os objetivos de revalorização e de lucro mercantil que, por natureza, lhes caracterizam, a subordinação de governos e administrações públicas aos interesses da alta finança constitui-se em um limite estrutural maior, a ser superado em uma estratégia consistente de desenvolvimento.

Os papéis do Estado brasileiro encontram-se severamente restritos pelas novas exigências do capital bancário-financeiro e das grandes empresas não- financeiras, que agora exercem influência direta sobre o Executivo Federal. Apesar da conjuntura fortemente recessiva, essas empresas são capazes de resistir à queda do faturamento, compensando-o com os lucros não-operacionais proporcionados pelo mercado financeiro. Essa característica responde pelas dificuldades de retomada do crescimento econômico, constituindo-se em fator de bloqueio do processo de desenvolvimento brasileiro. As necessidades de imobilizações de recursos em capital fixo como base para expansão dos lucros empresariais são significativamente reduzidas pelas alternativas mais rápidas, líquidas e de alta rentabilidade proporcionada por ativos, produtos e serviços financeiros.

Nesse ambiente, o desenvolvimento socioeconômico, que tem no crescimento das capacidades de produção e de distribuição equitativa da renda sua condição necessária de realização, é comprometido. A financeirização eleva a concentração pessoal e funcional da renda em detrimento do trabalho, intensifica as desigualdades sociais em várias de suas dimensões deletérias, reduzindo, ou mesmo anulando, os efeitos positivos das políticas sociais distributivas implementadas pelo Estado.

Os regimes de crescimento econômico, tipificados como finance-led growth (Boyer, 2000BOYER, Robert. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism? A preliminary analysis. Journal Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000.) e finance-blocked growth (Bruno, 2008BRUNO, Miguel. Régulation et croissance économique au Brésl après la libéralisation: un régime d’accumulation bloqué par lafinance. 3/4 | 2e semestre/Autumn: Normes et institutions de lafinance. Révue de la Régulation, 2008.), referem-se ambos a uma mesma economia cujo processo de acumulação de capital está subordinado às expectativas da alta finança e seus objetivos de revalorização rentista-patrimonial. A diferença reside mais nas condições conjunturais do que estruturais; mais no posicionamento do Estado frente ao mercado financeiro e detentores de capital, do que em características endógenas a cada uma dessas modalidades.

No primeiro caso, por exemplo, a expansão das operações de crédito ao consumo e ao investimento, apoiadas pelo Estado, podem favorecer uma expansão dos níveis de atividade econômica. Então, mesmo sob dominância financeira, a economia pode apresentar taxas baixas a moderadas de crescimento. No entanto, análises históricas e comparações internacionais, realizadas pelas pesquisas regulacionistas, detectaram aumento da frequência das crises financeiras e instabilidades estruturais recorrentes mesmo nesse caso. O período 2004-2014, fase II do modelo neoliberal-dependente, é um exemplo típico de regime financeirizado, mas sob impulsão estatal e expansão das exportações primárias, daí o crescimento econômico ainda que moderado.

No segundo caso, não haveria estímulos internos nem externos para a retomada dos investimentos produtivos e do consumo em níveis suficientes para possibilitar períodos maiores de crescimento. Os fatores de bloqueio da taxa de acumulação de capital fixo produtivo prevalecem, mantendo a economia estagnada ou em recessão. Inclusive as tendências recessivas se prolongam, dadas as várias alternativas de revalorização dos capitais em ativos líquidos, sem necessidade de imobilizações de recursos. E novamente o Brasil surge como exemplo, no período 2015-2017, quando os estímulos internos são removidos (políticas recessivas de ajuste fiscal) e externos (queda das exportações de commodities). O caráter bloqueador da acumulação rentista-patrimonial sobre a formação bruta de capital fixo se afirma e a recessão sobrevém.

O Gráfico 1 mostra as séries da taxa Selic real capitalizada juntamente com a evolução do estoque da dívida pública interna do Estado brasileiro. Uma análise econométrica revelou que essas duas séries cointegram, ou seja, compartilham uma tendência comum de evolução que expressa o vínculo estrutural e de equilíbrio de longo prazo entre as variáveis consideradas.

Gráfico 1
Renda de juros reais capitalizados e estoque da dívida pública interna (1992-2016)

Testes de causalidade de Granger mostram a existência de uma relação de causalidade em que os aumentos das taxas oficiais de juros Selic provocam o crescimento da dívida pública interna; e não o contrário, conforme difundido pelos trabalhos ortodoxos e pela mídia. Essa evidência empírica contradiz a vulgata neoliberal segundo a qual as taxas de juros são elevadas no Brasil porque a relação dívida/PIB é muito alta ou porque há insuficiência de poupança na economia brasileira. Ora, à parte sua abordagem, equivocadamente, pré-keynesiana, a “poupança” agregada, que se revela, teoricamente, escassa ou insuficiente para as atividades diretamente produtivas, é um resultado macroeconômico derivado do predomínio da alocação financeira e rentista dos capitais em detrimento do investimento. Trata-se, portanto, de um resultado direto do processo de financeirização usurária da economia brasileira. Na realidade, nesse padrão de financeirização de origem usurária e patrimonial, o endividamento público é a variável endógena, pois as autoridades monetárias têm controle sobre as taxas básicas de juros, variável exógena, representada pela Selic, mas não dispõem de controle direto sobre a circulação financeira dos títulos da dívida que estão em poder do mercado bancário-financeiro.

O valor estimado da elasticidade-Selic da dívida pública interna foi de 1,3, significando que um aumento de 1% no fator acumulado dessa taxa de juros expande a dívida em 1,3%, promovendo a acumulação da renda de juros às expensas das rubricas sociais do orçamento público.

Quadro 3
Os testes de causalidade revelam que: a renda de juros capitalizada promove o endividamento do Estado e não o inverso (1994-2016)

Os aumentos sistemáticos da carga financeira desde a segunda metade dos anos 1990 estão também forte e positivamente correlacionados com a renda de juros apropriada pelo mercado bancário-financeiro, empresas não-financeiras e famílias detentoras de capital. Esse montante não inclui apenas os juros da dívida pública, pagos pelo Estado brasileiro, mas também incorporam os juros da dívida privada, incidentes sobre as operações de crédito às famílias e demais agentes econômicos.

O fato característico a ser destacado é que a ordem de grandeza desses fluxos se mantém muito próximas. Expressas como percentagens do PIB, ultrapassaram os 30% do produto brasileiro no ano de 2007. Para fins de comparação entre essas estatísticas e para destacar que essa apropriação de juros representa também um elevado encargo a ser suportado pelas classes médias, população assalariada e de baixa renda, foi plotado o Gráfico 2. Observe-se que o fluxo total de renda de juros retido pela alta finança no Brasil representa uma autêntica carga financeira sobre o produto gerado pela economia brasileira, que é o reverso da carga fiscal. Afinal, não seria possível conciliar a acumulação rentista-patrimonial com a estrutura de gastos do Estado sem uma arrecadação tributária compatível com a renda de juros apropriada, seja através do endividamento público interno, seja pelo endividamento privado de famílias e empresas, por meio das várias modalidades de produtos e serviços financeiros.

Gráfico 2
A crescente carga fiscal é a contrapartida da elevada carga financeira em juros sobre o PIB brasileiro (1994-2010)

Nessas condições macroeconômicas e estruturais não é factível a implementação de uma estratégia nacional de desenvolvimento por parte do Estado brasileiro. O regime de acumulação rentista-patrimonial, reproduzido pelas estruturas institucionais da financeirização, reduz drasticamente a autonomia da política econômica e das demais ações governamentais necessárias ao planejamento estratégico e a reorganização da economia nessa direção. Consequentemente, ao controlar as finanças públicas em seu proveito, a financeirização converte-se no principal fator de bloqueio do desenvolvimento social e econômico do Brasil, pois ela impede a ampliação das políticas sociais e compromete o financiamento das suas incipientes estruturas de bem-estar. Num caso extremo, a hegemonia da alta finança poderia levar o Estado a tornar-se uma máquina de eficiência máxima na arrecadação fiscal, ao mesmo tempo em que reduziria a um mínimo os gastos sociais de legitimidade, ou mesmo os suprimiria, em face da fraca reação da sociedade ou da eliminação completa da democracia política.

3.1 Dívida pública e crescimento econômico sob domínio das finanças: uma análise empírica

Na análise das relações entre dívida pública e crescimento econômico parte-se de Théret (1995)THÉRET, B. Régulation du déficit budgétaire et croissance des dépenses de l'État en France de 1815 à 1939: une modélisation économétrique simple des régimes fisco-financiers libéraux. Revue Économique, p. 57-90, 1995. e Bohn (2005) para encontrar-se uma formalização mais simplificada do que se pode denominar por regime de crescimento neoliberal da despesa pública. Ambas as abordagens convergem num sentido amplo, buscando fixar um diapasão de argumentos apoiados em regularidades empíricas, uma vez que se debruçam sobre um longo período de análise histórica12 12 O artigo de Théret propõe uma análise econométrica para a regulação do déficit orçamentário das finanças do Estado francês de 1815 a 1939. O trabalho de Bohn está centrado na verificação da sustentabilidade fiscal da economia americana entre 1792-2003. . Esses esforços preliminares são fundamentais para possibilitar uma heurística do processo de financeirização presente nas finanças do Estado Nacional. A sustentabilidade do déficit público é concebida como uma autorregulação do déficit orçamentário segundo regimes políticos distintos.

A regulação neoliberal implica uma dinâmica de despesa estatal com especificidades próprias na economia brasileira. Nesse sentido, é preciso considerar o regime fisco-financeiro13 13 De acordo com Théret (1992), apud Boyer e Saillard (2002), “um regime fisco-financeiro assegura uma correspondência funcional entre as formas jurídicas e de dispêndio de legitimação do Estado, por meio do processo de imposição fiscal”. de acordo com duas dimensões que são complementares:

1) a lógica dos rentistas e seus limites fiscais de acumulação da dívida pública; 2) o ritmo de crescimento das despesas públicas, que é compatível com esses limites fiscais impostos pelo Estado. Um regime de dívida pública pode ser formulado sob a forma de um estoque de dívida pendente. A sustentabilidade da dívida pública está sujeita às respostas do superávit/déficit primário à razão dívida pública/PIB.

Como salienta Luporinie e Licha (2009)LUPORINI, Viviane; LICHA, A. Espacio fiscal para el crecimiento en Brasil. Espacio fiscal para el crecimiento el Mercosur. Zonalibro, Uruguay: RedMercosur de Investigaciones Económicas, 2009., a proposição de uma função de reação fiscal pode ser feita através da identificação de evidências da ação corretiva governamental face às mudanças na relação macroeconômica dívida/renda14 14 Um aspecto essencial ressaltado pela autora traduz a indagação fundamental de Bohn (1998), considerando evidência de não estacionariedade da relação dívida-produto americana, os regimes fisco-financeiros apresentam ações corretivas empreendidas pelos governos, uma vez considerados choques e flutuações cíclicas que modificam a sua estrutura a longo prazo. . Essa função é apresentada da seguinte forma:

(1) B t = D t 1 + ε t

Onde Bt é o saldo primário e Dt−1 a razão dívida/produto. Deve ser notado, que o “termo de erro”, geralmente associado a uma variável de renda macroeconômica,

constitui outros prováveis determinantes do superávit/déficit fiscal.

O papel assumido diretamente pela financeirização no modelo neoliberal é descrito de modo a considerar as transformações que ocorrem seguindo a profunda fratura na economia mundial e suas repercussões na economia de países emergentes a partir da crise financeira de 2008. A crise teria sido portadora, nos termos de Palley (2012)PALLEY, Thomas I. From financial crisis to stagnation: the destruction of shared prosperity and the role of economics. Cambridge University Press, 2012., de uma ostensiva estagnação que veio a destruir a prosperidade compartilhada no curso de muitas décadas.

O “excesso” de mercado financeiro tem sido o núcleo principal de hipóteses distintas que são formuladas com objetivo de identificar pontos em comum com as crises econômicas sistêmicas anteriores e elementos novos. As análises partem da constatação que a Grande Recessão experimentada pelos Estados Unidos, a partir de dezembro de 2007, se situa, em grande medida, na esfera do État inscrit15 15 Como visto antes, em Delorme e André (1983), a mudança qualitativa da evolução do capitalismo não veio acompanhada tão somente pelo « tamanho » ou « peso » da máquina estatal, como também nas formas e modalidades de intervenção do Estado na economia. , cujas transformações do segundo pós-guerra passaram a magnificar a diversificação das despesas civis e a elevação significativa das transferências sociais.

Constituindo-se na mais grave crise desde a pós-Depressão16 16 Desde o fim da Segunda Guerra Mundial ocorreram, no mínimo, 18 crises semelhantes em países industrializados segundo Reinhart e Rogoff (2008). , os contornos da crise atual assumem formas críticas, marcada por um desempenho econômico letárgico, seguido de um baixo crescimento do PIB real, com taxas negativas, e níveis de desemprego elevados.

As implicações da dominância financeira sobre os conceitos consagrados de dominância fiscal e monetária são não triviais. Sob um regime de dominância monetária, o Banco Central assume o papel de condutor da política econômica e as autoridades fiscais têm de ajustar o orçamento público para cobrir os seus déficits de financiamento. A autoridade monetária força a autoridade fiscal a programar cortes nos gastos governamentais ou a aumentar as receitas fiscais. Na condição oposta, sob o domínio fiscal, a autoridade fiscal possui a vantagem na determinação da política econômica. Nessa condição, há uma nítida recusa em assumir perdas e centralizar seus esforços no equilíbrio de longo prazo do orçamento, determinando que o Banco Central tome para si o financiamento monetário.

A dominância financeira pode ser interpretada como a generalização da dominância monetária à escala das estruturas institucionais do Estado e do modo de regulação da economia. Trata-se da dominância monetária em escala ampliada, levada ao extremo em benefício da acumulação rentista-patrimonial e convertendo a política fiscal num mero instrumento de geração de caixa para os Estados. Aliás, é esse o verdadeiro objetivo do congelamento por duas décadas dos gastos sociais através da PEC 55.

Observe-se que as políticas de austeridade na zona do Euro e as medidas homólogas adotadas pelo governo pós-golpe jurídico-parlamentar de 2016, no Brasil, têm em comum o objetivo velado de aprofundar e manter a dominância financeira sobre os Estados nacionais. Estes se convertem em operadores do capital financeiro contra as demandas mais urgentes de suas populações. Promovem a drenagem sistemática de recursos da sociedade para os grandes bancos e detentores de capital especulativo e mantêm essas economias semi-estagnadas ou sob recessões prolongadas.

Embora exista uma discussão interna sobre a importância e a evidência de regimes, a persistência de padrões de comportamento por longos períodos de tempo, que estão impregnados por um significado normativo, constitui claramente um regime. Para Théret (2014)THÉRET, B. Pourquoi on ne peut sortir de la crise actuelle du capitalisme et de la democratie qu’en sortant de la globalisation financiere : un argumentaire. Teoria Politica, Nuova serie / Annali IV, p. 135-165, 2014., a formação de regimes neoliberais combina a “repressão” do poder público na emissão monetária e a “restrição” do poder de compra salarial nas esferas da atividade não financeira em uma economia de endividamento generalizado. A desregulação financeira presente no avanço da financeirização em escala mundial determina o fim da “repressão financeira” nos termos de McKinnon (1973, 2010)MCKINNON, Ronald I. Money and capital in economic development. Brookings Institution Press, 2010., dando lugar simétrico a uma repressão monetária que restringe o comportamento dos Estados em matéria de emissão primária de moeda17 17 Ver a esse respeito, Théret (2014). . A “repressão monetária” só pode se sustentar com o apoio dos regimes nacionais de monopolização da emissão monetária por parte dos bancos comerciais privados, o que requer a repressão dos poderes monetários estatais.

No caso brasileiro, o problema do financiamento da administração pública, onde o crescimento da dívida das famílias, disfarçado em “regime de crescimento” puxado pelo consumo encontra paralelo no endividamento generalizado das famílias, tanto nos EUA como na Europa, abre uma contradição entre a doutrina e as políticas neoliberais propriamente aplicadas. Embora a doutrina neoliberal a respeito do orçamento público repita ad nauseam a inconveniência da dívida pública e o imperativo do equilíbrio das finanças, as políticas se traduzem, inversamente, por superávits de “metas fiscais” reduzidos gradativamente, seguidos de um endividamento interno nos mercados financeiros com crescente importância. Essa hesitação não revela que a dívida soberana é o pilar central da construção dos mercados financeiros no âmbito nacional e internacional e a colocação de títulos no mercado de dívida pública é à base de seu crescimento.

A persistente obsessão pelas medidas de austeridade fiscal restringe a possibilidade de recuperação econômica nos países centrais, que difundem seus impactos negativos para o resto das economias por meio de seus nexos financeiros. As abordagens teóricas tradicionais explicam as causas e consequências da crise recente a partir de um epicentro bancário, dada a sua constatação no mercado subprime americano, e a sua difusão a posteriori para a esfera real através de mecanismos tradicionais de transmissão. O principal argumento nessa direção privilegia aspectos de assimetria de informação em que foram favorecidos agentes sem credibilidade, com a consequente formação de bolhas especulativas ou, ainda, falhas de regulamentação bancária estritas do setor financeiro especulativo, que podem ser sanadas por intermédio de um sistema eficaz de regulamentação para o controle futuro das crises.

O argumento aqui mobilizado distancia-se dessas apreciações limitantes, visto que reconhece a evolução da financeirização na estrutura estatal brasileira e suas especificidades em termos de formas institucionais. Em princípio, um alto nível de despesas públicas pode se combinar com um crescimento lento ou acelerado da economia, ultrapassando as relações mecânicas e a - históricas postuladas pela economia ortodoxa. Considerando o Estado realmente existente18 18 Théret (2002). In: Boyer e Saillard (2002). , a análise procura reconhecer as relações de aprofundamento contínuo que adaptam mutuamente a lógica rentista financeirizada já presente no seio do Estado brasileiro com as formas institucionais reguladoras dos déficits e dívidas no espaço fiscal realmente existente. A metamorfose fiscal do capital representa aqui a participação direta do Estado no regime de acumulação, em termos de uma estrutura de despesa pública, correspondente ao fechamento fiscal do circuito orgânico do estado em sua atribuição de rentista fundamental.

3.2 A função de reação fisco-financeira e a subordinação do Estado

A literatura empírica da função de reação fiscal busca verificar sob uma suposta neutralidade axiológica, se os aumentos da dívida pública interferem no comportamento governamental (orçamento) em relação ao contínuo incremento de seu estoque. No âmbito da função de reação fisco-financeira, procura-se colocar em evidência a verdadeira distância entre a ortodoxia financeira e a prática orçamentária neoliberal no ciclo mudanças entre as três formas fundamentais que o Estado necessariamente assume: as formas de soberania, de legitimação e de ordem fiscal19 19 Estas três formas funcionais são conversíveis no que pode ser denominado por circuito orgânico do Estado. Ela demonstra como em uma dada situação histórica este circuito pode criar efetivamente um “ciclo” ou regime que permite algum tipo de crescimento ou expansão financeira do Estado bem como o desenvolvimento de seu poder político. Nesse contexto é estabelecido o regime fiscal juntamente com o modo de regulação correspondente de sua esfera política (Théret, 1992). . Essa relação parte da evolução paralela da cobertura do gasto estatal por sua receita ordinária e da carga de juros da dívida pública com essas despesas e, ao mesmo tempo, do nexo permanente desse encargo com o estoque da dívida acumulada. No caso da função de reação fisco-financeira, define-se um modelo no qual os regimes são apresentados em forma reduzida, obtida como um “mecanismo” de autorregulação do desequilíbrio fiscal.

No Brasil, alguns autores têm trabalhado ativamente com a função de reação fiscal. Os artigos de Luporini (2002; 2015)LUPORINI, Viviane. Sustentabilidade fiscal no Brasil: a evolução corretiva da resposta fiscal. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 437-458, 2015., De Mello (2005), Mendonça, Santos e Sachsida (2009)MENDONÇA, Mário Jorge Cardoso de; SANTOS, Cláudio Hamilton Matos dos; SACHSIDA, Adolfo. Revisitando a função de reação fiscal no Brasil pós-Real: uma abordagem de mudanças de regime. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 873-894, 2009. e Simonassi (2013)SIMONASSI, A. Reação fiscal sob mudanças estruturais e a solvência da economia brasileira. 2013. Mimeo. realizaram estimações de funções de reação fiscal. Especificamente, Mendonça, Santos e Sachsida, utilizaram um regime de mudança markoviana cuja especificação foi bastante útil para o modelo empregado no presente trabalho.

Nesta seção procedeu-se a especificação seguida da estimação e interpretação de um modelo de mudança de regime markoviano para a regressão da Necessidade de Financiamento do setor Público (NFSP) dividido pelo PIB contra a razão Dívida Líquida do Setor Público pelo PIB (DLSP), a razão dos ativos financeiros pela base monetária (TFM) e o indicador de produto industrial, fornecido pela produção física da indústria geral do IBGE (PIND). A partir do conceito teórico de regime fisco-financeiro entende-se que o déficit público é afetado por vários fatores, dentre eles entre outros fatores, a evolução da dívida pública, o grau de financeirização da economia e o crescimento do produto. A estimação realizada utiliza um MS-DR (Markov Switching Dynamic Regression) com uma constante e tendência próprias.

No Gráfico 3 a seguir, em que os dados foram linearizados pelo método TRAMO-SEATS20 20 As séries foram ajustadas para remover os efeitos determinísticos através de modelo Arima, da qual também foram extraídos o componente sazonal. , observa-se a evolução mensal das variáveis usadas neste estudo. Os dados mensais referem-se ao período de janeiro de 1995 a dezembro de 2007. Nota-se que entre 2010 a NFSP cresce, enquanto a DLSP apresenta uma tendência de declínio, embora recupere entre 2014-2015 uma rápida expansão com o agravamento do quadro político institucional brasileiro.

Gráfico 3
Séries NFSP, DLSP, TFM e PIND

Assim sendo, foram selecionadas a razão pelo PIB do valor da necessidade de financiamento primária do setor público consolidado sem valorização cambial (NFSP), o ratio entre o valor mensal da dívida líquida do setor público consolidado DLSP e o PIB, a razão entre a diferença entre M4 e M1 (total de ativos financeiros não monetários da economia brasileira) e sua divisão pela base monetária restrita, o que gerou uma taxa de incremento dos ativos financeiros da economia (TFM).

A inclusão de variáveis reais e financeiras é feita no intuito de verificar a pertinência de um regime fisco-financeiro neoliberal associado ao rentismo após a crise estrutural da regulação fisco-financeira desde 200821 21 Théret (1995), em seu trabalho seminal, identifica três modos de interdependência entre o crescimento do produto macroeconômico e o desequilíbrio orçamentário na Terceira República francesa. . Nesse experimento é permitida a consideração de variáveis que atualizam as condições do ambiente econômico transfigurado pelos regimes dominados pelas finanças. Portanto, supõe-se que a regulação do saldo orçamentário exerce um efeito capaz de alterar de modo significativo as conexões endógenas que tipicamente ajustam os déficits e a dívida pública apresentados na equação (1).

(2) NFSP t = α s t + m = 1 P β 1 m s t NFSP + m = 1 P β 2 m s t DLSP + m = 1 P β 3 m s t TFM + m = 1 P β 4 m s t PIND + ɛ t com ɛ t 0 , σ 2 s t ;

Deve ser notado que hipoteticamente a variável latente st é regida por um processo estocástico, conhecido como uma cadeia de markov ergódiga, definido, por sua vez, por uma matriz de probabilidades de transição, cujos elementos são dados por:

(3) p ij = Pr s t + 1 = j / s t = i , j = 1 k p ij = 1 i , j 1 , k p ij 0 para i , j = 1 , 2 , , K

A forma funcional a função de reação fisco-financeira, a ser estimada neste estudo, assume a seguinte expressão:

(4) NFSP t = a 0 s t + a 1 NFSP s t + a 2 DLSP s t + a 3 TRM s t + a 4 PIND s t + σ s t ɛ t

Os resultados obtidos pela equação devem ser comparados com a literatura convencional estabelecida sobre as curvas de reação fiscal. Em primeiro lugar, espera-se a existência de uma relação negativa entre a NFSP e a dívida pública (𝑎2), posto que o aumento da dívida pública induz ao aumento do superávit primário como medida prudencial, com o objetivo de estabelecer uma trajetória sustentável para o endividamento. Em segundo lugar, espera-se que o parâmetro da taxa de incremento dos ativos financeiros (𝑎3) tenha um sinal positivo para o coeficiente de TRM em períodos de alta tensão monetária e financeira, quando o crédito estatal é colocado em questão, devendo ser interpretado como um indicador econômico conjuntural de disciplina orçamentária.

Por outro lado, um sinal negativo para os períodos em que o financiamento público estatal oferece tão somente problemas secundários de curto prazo, sendo mobilizado, sobretudo, para evitar o uso indiscriminado de recursos fiscais ou do financiamento de longo prazo. O grau de financeirização da moeda estatal22 22 TRM pode ser entendido como uma medida de financeirização da moeda, uma vez que a emissão de moeda fiduciária que paga juros a partir de uma base monetária creditícia estabelece um efeito “anti-senhoriagem”. Há, pois, uma crescente renúncia da vantagem de ser emissor primário pelos bancos centrais. tem influência direta sobre a cobertura estrutural orçamento público, constituindo-se variável interna do regime fisco-financeiro, atuando de forma decisiva no tamanho da dívida em longo prazo. Em terceiro lugar, o produto industrial como indicador do PIB tem um sinal negativo esperado na influência sobre déficit orçamentário, na medida em que uma melhoria nas taxas de crescimento do produto, ceteris paribus, permite a recuperação das receitas fiscais e, desse modo, relaxa as pressões dos gastos para o equilíbrio orçamentário. Ainda que esse efeito dependa da elasticidade de arrecadação de impostos no curto prazo, na hipótese de manutenção do sistema tributário, responderá a estrutura de produção vigente.

3.3 Análise dos resultados: a financeirização eleva a dominância monetária a um paroxismo

As variáveis em conjunto foram tomadas em nível (Tabela 1) e, com exceção do teste LLC, todos os outros resultados indicam a presença de uma raiz unitária, uma vez que os testes, IPS, ADF e PP-Fisher não conseguem rejeitar a hipótese nula da existência de raízes unitárias. Tal fato não invalida a estimação da função de reação, sendo que o problema da “regressão espúria” pode ser devidamente contornado por meio da introdução dos valores defasados das variáveis I (1) entre as variáveis explicativas da regressão. No modelo, a dinâmica das variáveis modifica-se potencialmente de regime em cada período de tempo em função dos estados conjunturais que se realizam.

Tabela 1
Testes de raízes unitárias para as séries agrupadas DLSP, NFSP, PIND, TFM

Os resultados obtidos do modelo markov-Switching sugerem a existência de dois regimes fisco-financeiros distintos e o final de 2010 marca a emergência de um provável regime fisco-financeiro instável, de baixo crescimento, com tendência a uma forte recessão. A partir da comparação dos valores dos coeficientes e dos seus testes de significância, é possível notar que existem diferenças relevantes na determinação do financiamento do setor público brasileiro em dois regimes.

Tem-se assim um regime fisco-financeiro com dominância instável (Regime 1) que persiste desde a crise do Plano Real até 2002. O outro regime, é o regime fisco-financeiro com dominância estável (regime 2), mas que não guarda relação com as finanças virtuosas de configurações variantes dos regimes do tipo finance-led growth.

Os resultados presentes na Tabela 2 indicam que, no Regime 1, a autoridade de política econômica reage ambiguamente às mudanças na DLSP, dado que a variável possui um duplo sinal, positivo e negativo (esperado), para coeficientes significativos. Por sua vez, no Regime 2 prevalece o sinal esperado, quando as autoridades dão uma resposta fiscal ao movimento da dívida do setor público.

Tabela 2
Modelo MS (2) - Variável dependente NFSP

Nota-se que, em ambos os regimes, a NFSP parece ter uma reação cíclica à taxa de incremento de ativos financeiros, TFM, apresentando respostas significativas com sinais positivos e negativos dos coeficientes, o que sugere a presença do ciclo financeiro, cuja amplitude e extensão são “regime-dependente”. O impacto negativo sobre o Regime 1 é mais forte (cerca de 14%), porém os seus efeitos virtualmente positivos encontram-se em magnitudes bem próximas (em torno de 9%).

Por fim, torna-se ainda importante destacar que no Regime 1, a NFSP apresenta coeficientes de reação negativa e positiva com relativo equilíbrio face ao produto, enfatizando uma resposta fiscal indefinida, enquanto que no Regime 2 parece ocorrer uma superioridade moderadamente anticíclica, considerando que o coeficiente negativo é significativo em duas respostas defasadas. Como foi visto antes, os conceitos de dominância “fiscal” e “monetária” constituem um substrato para o falso debate que a macroeconomia convencional retomou de velhos argumentos, nos quais escamoteia, seguidamente, o estatuto teórico da financeirização.

Na Tabela 3 são apresentados os períodos estimados de vigência de cada Regime entre 1997 e 2016, seus respectivos tempos de duração e a probabilidade média da ocorrência do Regime em seu período de vigência. Em relação ao período com dominância financeira instável com probabilidade mais significativa, 1997(4) - 1997(8); 1998(12) - 1999(9); 1999(11) - 2000(6) e 2010(8) - 2010(8). Os mesmos são coincidentes com fases de choques externos e instabilidades de crises financeiras, que afetaram o legado de estabilidade mais próximo ao Plano Real e dos efeitos retardados da crise financeira internacional de 2007-2008, a qual se difunde de forma lenta e se revela com maior vigor a instabilidade do choque das commodities em 2010.

Tabela 3
Classificação dos regimes baseados em probabilidades suavizadas

a) Regime de dominância financeira instável



b) Regime de Dominância Financeira Estável

O regime de dominância financeira estável apresenta configurações de interesse relevante nos períodos de 1997(4) - 1997(8); 1999(10) - 1999(10); 2000(7) - 2010(7) e 2010(9) - 2013(9); 2013(12) - 2015(6) e 2015(9) - 2016(7). Pode-se identificar a presença de regimes mais estáveis em períodos onde a estabilidade de preços da economia se mostrou resiliente aos choques cambiais e à crise mexicana e asiática.

Em 1999, o governo brasileiro passa a adotar o regime de flutuações cambiais e o regime de “metas inflacionárias”, utilizando a taxa referencial básica de juros (Selic) como instrumento principal de controle de preços via demanda agregada. Outros regimes depois de 2010 parecem estar ligados à maior alta do crescimento depois de 24 anos23 23 A taxa de crescimento econômico de 2010 (7,5% a.a) só encontra precedente igual em 1986, o que levou a uma controvérsia sobre sua sustentabilidade, uma vez que foi precedida por uma taxa ínfima anterior (carry-over effect) e a forte mudança de política econômica. e o seu vínculo com efeitos finance-led, influenciado por crescimento dos gastos de consumo provenientes do endividamento do setor privado (incluídas as famílias). A assunção da lógica de financeirização pelo endividamento permanente do Estado no Brasil, alçado à condição de “devedor de última instância”, permitiu a existência de um Regime 2, dentre outros possíveis regimes de dominação financeira, durante aproximadamente 10 anos entre 2000 e 2010.

Considerando a análise da matriz de transição de probabilidades, Tabela 4, é perceptível que uma vez no interior de um dos dois regimes, existe uma alta probabilidade de maior permanência no Regime 2 do que no Regime 1. Uma vez no Regime 1, o retorno ao Regime 2 possui uma probabilidade de mais de 20%, o que sugere que a dominância financeira após as transformações institucionais ocorridas desde a crise do final dos anos 1990 possui um caráter estrutural cíclico.

Tabela 4
Matriz de transição

Os Gráficos 4 e 5, a seguir, mostram a série NFSP e os regimes não observados estimados no modelo. A região colorida de azul do Gráfico 4 representa a recessão do Ciclo NBER e destaca a evolução dos regimes de dominância financeira instável e estável.

Gráfico 4
Mudança de regime na série NFSP – 1997.01 – 2016.11

Gráfico 5
Sucessão de regimes fisco-financeiros dominados pelas finanças – 1997.01 – 2016.11

Percebe-se, primeiramente, que o Regime de Dominância Financeira Estável de maior duração ficou encaixado entre duas recessões americanas importantes: a de 2001 (que durou 8 meses) e a de 2007/2009 (cuja duração atingiu mais de 15 meses). Entre 2010 e 2016, três regimes de dominância instável se intercalam com outros três regimes instáveis. As instabilidades das conjunturas nas quais a hesitação da política econômica vai permitindo que uma austeridade crescente deteriore o espaço fiscal, dão origem a regimes estáveis que perdem substância fisco-financeira e se encurtam gradativamente como pode ser visto no Gráfico 4.

Desse modo, no Gráfico 5, pode-se considerar que a partir do segundo semestre de 2010 inicia-se uma fragmentação da estabilidade sistêmica dos regimes dominados pelas finanças no Brasil, sendo que um último vestígio de estabilidade do período final estimado para o regime 2, aparece como um breve período semelhante ao que ocorre no final dos anos 1990. Há uma grande similaridade entre a expansão do indicador de financeirização (TFM) logo nos anos 2000 até pelo menos 2005, que segue as tendências de crescimento flutuante e progressivo da DLSP. Depois disso, verifica-se uma clara tendência oposta entre ambas (TFM e DSLP), com o crescimento acelerado da financeirização, que contrasta com o declínio do endividamento do setor público até pelo menos 2014.

A partir daí, o endividamento faz uma inflexão e volta a crescer, aparentemente sob o comando das finanças novamente. Este comportamento é um forte indício da emergência de um novo regime, visto que as mudanças no interior de um mesmo regime se tornam insustentáveis e passam a impor a mudança pela inconsistência de seu arranjo ou forma político-institucional, sendo o canto do cisne24 24 Esta expressão metafórica surgiu porque havia uma crença na Grécia antiga de que o cisne-branco era completamente mudo durante a sua vida até o momento da sua morte, quando então exprimia uma bela canção. A analogia é pertinente porque muitas das características macroeconomicamente adversas de um regime de crescimento ou de acumulação de capital só se tornam explícitas precisamente quando de sua entrada em crise ou em sua fase de transição para um novo regime. do regime fisco-financeiro vigente.

Conclusão: financeirização e fim do Estado social-desenvolvimentista?

Manter o capital numa posição hegemônica e o trabalho numa posição subordinada constitui uma constante histórica em relação à teoria e à prática do Estado brasileiro. As variações ocorridas são de ênfase ou de estilo (Carlos Afonso; Herbert de Souza, 1977AFONSO, Carlos, A.; SOUZA, Herbert de. Estado e desenvolvimento capitalista no Brasil: a crise fiscal. São Paulo: Paz e Terra, 1977.) A análise da evolução da forma institucional do Estado brasileiro considerou suas interdependências estruturais com os sucessivos regimes de acumulação, vigentes nas várias etapas do desenvolvimento socioeconômico do país. Nessa evolução, o Estado apresentou diferentes graus de autonomia com relação aos interesses, na maior parte das vezes contraditórios, entre classes sociais e setores de atividade econômica.

Adotando-se a taxonomia de Delorme (1998 apud Boyer, 2002)BOYER, Robert; SAILLARD, Yves. Théorie de la regulation: l’etat des savoirs. Paris: La Découverte, 2002., trata-se de um Estado inscrito no circuito da acumulação capitalista, mas que é muito mais para o capital e muito menos para o trabalho.

Notadamente, dos anos 1950 a 1980, esse Estado estruturou-se para promover o crescimento com base na produção industrial, o que resultou em taxas elevadas de crescimento econômico.

Ao longo dos anos 1980, o referido Estado perde significativamente sua autonomia e subordina-se às finanças num ambiente marcado pela alta inflação inercial e tendência à estagnação do produto e da renda. A expansão financeira com base na moeda indexada fez surgir uma modalidade de financeirização proveniente dos ganhos inflacionários, que permitiu o rápido aumento da concentração bancária e o fortalecimento do setor financeiro às expensas da acumulação industrial.

A partir dos anos 1990, com a liberalização comercial e financeira e a estabilidade da inflação, o novo padrão de inserção internacional do Brasil comandará o processo de reconfiguração das outras formas institucionais. A hegemonia financeira ganha novo patamar, graças ao acesso aos mercados globais, substituindo, rápida e convenientemente, os ganhos inflacionários por uma das mais altas rendas de juros proporcionada pelo endividamento público interno, onerosamente financiado em termos de prazos e encargos.

Dentre as principais características do Estado brasileiro podem ser destacadas: a) alta regressividade e expansão da carga tributária; b) estruturas de bem-estar incompletas; c) reduzida autonomia da política econômica e ausência de uma estratégia nacional de desenvolvimento; d) gastos reduzidos de legitimação e) hierarquia e complementaridade da forma institucional (FIHS) do Estado.

O Estado ocupa o lugar de forma institucional hierarquicamente superior até finais dos anos 1970. Entretanto, nos anos 1980, a alta inflação e o crescente endividamento público se conectam através da moeda financeira ou moeda indexada; convertem-se no suporte da acumulação bancária e financeira, elevando o regime monetário-financeiro à condição FIHS e subordinando o Estado brasileiro aos interesses da revalorização rentista-patrimonial. Com a liberalização financeira e comercial na década de 1990, novos fatores reforçam a hegemonia financeira às expensas da acumulação produtiva e industrial. A financeirização da economia brasileira estabelece limites estreitos para as ações do Estado, na medida em que o faz priorizar os interesses do capital à custa do social. Nesse sentido, os regimes de crescimento subordinados às finanças são desfavoráveis à formulação de estratégias nacionais de desenvolvimento socioeconômico.

Quanto às políticas sociais, os interesses da acumulação rentista-patrimonial tendem a absorvê-las como base para a reprodução em escala ampliada de novos espaços de revalorização e rentabilidade. Entretanto, essa característica também tende a aumentar a frequência das crises financeiras e a minar as condições de reprodução dos respectivos regimes de crescimento.

Como um corolário, pode-se argumentar que regimes de crescimento dominados pelas finanças não são capazes de compatibilizar duas condições imprescindíveis ao desenvolvimento das nações: coesão social e coerência macroeconômica. Contraditoriamente, esses regimes quando alcançam a segunda, o fazem à custa da primeira, precisamente porque impedem que as relações Estado-economia se reconfigurem para prover a institucionalidade capaz de compatibilizá-las em prol da estabilidade social e da sustentabilidade da dinâmica macroeconômica.

Qual regime seria melhor para a formulação e eficácia das políticas sociais? Seria o regime voltado para o desenvolvimento econômico, numa estratégia de longo prazo, priorizando a acumulação de capital produtivo, notadamente, em atividades industriais de mais alta intensidade tecnológica. No entanto, tal regime imporia uma condição inescapável ao Estado, qual seja: disciplinar as finanças privadas em conformidade com as necessidades do financiamento das estruturas produtivas e distributivas.

Nesse regime, a exemplo do compromisso social fordista, as relações Estado-economia estariam novamente pautadas pelo desenvolvimento do salário direto e indireto, principais componentes do consumo social nas economias capitalistas atuais, que funcionam sobre a base de sociedades salariais. A alternativa à constituição desse regime de crescimento poderá ser a progressiva destruição da solidariedade social, explosão da violência e intensificação dos conflitos de classe, incluindo a nova classe denominada por Standing (2014STANDING, Guy. O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 103, p. 924, Maio 2014.) de precariado, caracterizada por incerteza e insegurança crônicas.

  • JEL E63, G2, G28, H6, O11.
  • 1
    Trata-se dos investimentos promovidos pelo Estado brasileiro no Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico - II PND, implementado para o período 1975-1979.
  • 2
    Referem-se aos trabalhos no âmbito da Escola francesa da Regulação, cujo estágio atual de desenvolvimento pauta-se pela construção de uma Macroeconomia histórica e institucionalista.
  • 3
    A definição de hegemonia aqui utilizada é a desenvolvida por Antonio Gramsci.
  • 4
    Essas definições baseiam-se em Afonso e Souza (1977)AFONSO, Carlos, A.; SOUZA, Herbert de. Estado e desenvolvimento capitalista no Brasil: a crise fiscal. São Paulo: Paz e Terra, 1977..
  • 5
    Os compromissos institucionalizados (Ci) se distinguem da institucionalização autoritária, de ordem governamental. Trata-se de acordos, convenções e normatizações selando determinados comportamentos e relações entre as partes, classes sociais, categorias profissionais, cidadãos e governos. Os Ci criam regras, direitos e obrigações entre os participantes, impondo uma disciplina e regularidade das ações pactuadas.
  • 6
    Régime fisco-financier, no original francês, segundo Théret (1992).
  • 7
    Conceitos que também integram a estrutura teórica da Escola francesa da Regulação.
  • 8
    Trata-se da hipótese de hierarquia e complementaridade das formas institucionais que integra a Teoria da Regulação.
  • 9
    O modo de desenvolvimento fordista na OCDE, responsável pela Golden Age do capitalismo no pós-Segunda Guerra, também influenciou as relações Estado-economia no Brasil. No entanto, as políticas do Estado brasileiro concorreram para fortalecer o fordismo em sua dimensão produtivista, isto é, das práticas da gestão taylorista em processos de produção em série mecanizada, mas sem que a dimensão macroeconômica e dos compromissos sociais distributivos em favor dos trabalhadores recebessem a mesma ênfase. Isso resultou num regime de crescimento econômico impulsionado por elevadas taxas de lucro, mas não no consumo de massa, que, sob os regimes de acumulação fordistas, fora viabilizado através da conexão dos salários aos ganhos de produtividade e na expansão do salário indireto.
  • 10
    Diferentemente do processo britânico de privatizações nos anos 1980, em que a população pôde adquirir ações das empresas estatais privatizadas.
  • 11
    Denominamos financeirização usurária para diferenciá-la de seu homólogo nos países desenvolvidos, onde as taxas de juros praticadas são demasiadamente baixas ou negativas, impossibilitando o surgimento dessa modalidade. Em economias avançadas, a financeirização desenvolve-se através de outros produtos e serviços geradores de renda financeira, não necessariamente, renda de juros.
  • 12
    O artigo de Théret propõe uma análise econométrica para a regulação do déficit orçamentário das finanças do Estado francês de 1815 a 1939. O trabalho de Bohn está centrado na verificação da sustentabilidade fiscal da economia americana entre 1792-2003.
  • 13
    De acordo com Théret (1992), apud Boyer e Saillard (2002)BOYER, Robert; SAILLARD, Yves. Théorie de la regulation: l’etat des savoirs. Paris: La Découverte, 2002., “um regime fisco-financeiro assegura uma correspondência funcional entre as formas jurídicas e de dispêndio de legitimação do Estado, por meio do processo de imposição fiscal”.
  • 14
    Um aspecto essencial ressaltado pela autora traduz a indagação fundamental de Bohn (1998)BOHN, Henning. The behavior of US public debt and deficits. Quarterly Journal of Economics, v. 113, n. 3, p. 949-963, 1998., considerando evidência de não estacionariedade da relação dívida-produto americana, os regimes fisco-financeiros apresentam ações corretivas empreendidas pelos governos, uma vez considerados choques e flutuações cíclicas que modificam a sua estrutura a longo prazo.
  • 15
    Como visto antes, em Delorme e André (1983)DELORME, Robert; ANDRÉ, Christine. L'état et l'économie. Paris: Seuil, 1983., a mudança qualitativa da evolução do capitalismo não veio acompanhada tão somente pelo « tamanho » ou « peso » da máquina estatal, como também nas formas e modalidades de intervenção do Estado na economia.
  • 16
    Desde o fim da Segunda Guerra Mundial ocorreram, no mínimo, 18 crises semelhantes em países industrializados segundo Reinhart e Rogoff (2008)REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S. Is the 2007 US sub-prime financial crisis so different? An international historical comparison. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, 2008..
  • 17
    Ver a esse respeito, Théret (2014)THÉRET, B. Pourquoi on ne peut sortir de la crise actuelle du capitalisme et de la democratie qu’en sortant de la globalisation financiere : un argumentaire. Teoria Politica, Nuova serie / Annali IV, p. 135-165, 2014..
  • 18
    Théret (2002). In: Boyer e Saillard (2002)BOYER, Robert; SAILLARD, Yves. Théorie de la regulation: l’etat des savoirs. Paris: La Découverte, 2002..
  • 19
    Estas três formas funcionais são conversíveis no que pode ser denominado por circuito orgânico do Estado. Ela demonstra como em uma dada situação histórica este circuito pode criar efetivamente um “ciclo” ou regime que permite algum tipo de crescimento ou expansão financeira do Estado bem como o desenvolvimento de seu poder político. Nesse contexto é estabelecido o regime fiscal juntamente com o modo de regulação correspondente de sua esfera política (Théret, 1992).
  • 20
    As séries foram ajustadas para remover os efeitos determinísticos através de modelo Arima, da qual também foram extraídos o componente sazonal.
  • 21
    Théret (1995)THÉRET, B. Régulation du déficit budgétaire et croissance des dépenses de l'État en France de 1815 à 1939: une modélisation économétrique simple des régimes fisco-financiers libéraux. Revue Économique, p. 57-90, 1995., em seu trabalho seminal, identifica três modos de interdependência entre o crescimento do produto macroeconômico e o desequilíbrio orçamentário na Terceira República francesa.
  • 22
    TRM pode ser entendido como uma medida de financeirização da moeda, uma vez que a emissão de moeda fiduciária que paga juros a partir de uma base monetária creditícia estabelece um efeito “anti-senhoriagem”. Há, pois, uma crescente renúncia da vantagem de ser emissor primário pelos bancos centrais.
  • 23
    A taxa de crescimento econômico de 2010 (7,5% a.a) só encontra precedente igual em 1986, o que levou a uma controvérsia sobre sua sustentabilidade, uma vez que foi precedida por uma taxa ínfima anterior (carry-over effect) e a forte mudança de política econômica.
  • 24
    Esta expressão metafórica surgiu porque havia uma crença na Grécia antiga de que o cisne-branco era completamente mudo durante a sua vida até o momento da sua morte, quando então exprimia uma bela canção. A analogia é pertinente porque muitas das características macroeconomicamente adversas de um regime de crescimento ou de acumulação de capital só se tornam explícitas precisamente quando de sua entrada em crise ou em sua fase de transição para um novo regime.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2017
  • Aceito
    18 Set 2017
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