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Os métodos de ensino do "melhor professor do mundo": repetições ou inovações?

The methods of teaching of the best teacher in the world: repetitions or innovations?

PALAVRA ABERTA

Os métodos de ensino do "melhor professor do mundo": repetições ou inovações?

The methods of teaching of the best teacher in the world: repetitions or innovations?

Alexander de Freitas

Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e Pesquisador do "Núcleo de Estudos Críticos em Subjetividades Contemporâneas" do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: xander@usp.br

Endereço para correspondência Contato: Rua Padre Mororó, 348 Bairro São José São Caetano do Sul | SP | Brasil CEP 09.581-040

Ensinar tudo a todos. (Comenius)

Introdução

Desde junho de 2011 e, de modo mais pronunciado, durante o ano de 2012, a Revista Veja publicou, em seis edições diferentes, reportagens sobre Salman Khan, tendo como auge da divulgação das ideias desse professor ainda desconhecido do meio acadêmico, a matéria de capa da edição 2254 publicada em 1 de fevereiro de 2012, justamente na abertura do ano letivo escolar. Nesta edição, a capa de Veja traz uma imagem de Salman Khan manipulando um cubo mágico, com os dizeres: "O melhor professor do mundo". E logo abaixo da foto a legenda: "Agora em português, as aulas do fenômeno Salman Khan, que tornou o aprendizado mais atraente, satisfatório, interessante, produtivo e ensina 4 milhões de alunos na internet".

As seis edições produzidas até dezembro de 2012 por Veja envolvendo o "fenômeno" Salman Khan trazem as seguintes reportagens, por ordem cronológica de publicação: 1) seção Educação, da edição 2221, de 15 de junho de 2011, "Só aplausos!"; 2) seção Educação, da edição 2244, de 23 de novembro de 2011, "Ética para as massas1 1 De todas as reportagens publicadas por Veja esta é a única que não é exclusiva sobre Salman Khan. A maior parte dessa reportagem é direcionada ao filósofo Michael Sandel. As alusões a Salman Khan aparecem como uma espécie de extensão à valorização das aulas interessantes, desafiantes e disputadíssimas do filósofo. "; 3) seção Cláudio de Moura Castro, da edição 2247, de 14 de dezembro de 2011, "A aula de ponta-cabeça"; 4) Capa, seção Carta ao Leitor e seção Educação, da edição 2254, de 1 de fevereiro de 2012, "O mundo de um novo ângulo"; 5) seção Leitor, da edição 2255, de 8 de fevereiro de 2012, em que os oito primeiros depoimentos publicados fazem referência a Salman Khan; 6) seção Educação, da edição 2268, de 9 de maio de 2012, "Os discípulos de Khan".

O honorífico título que a capa de Veja (edição 2254) cria para Salman Khan vem associado a números que justificam porque Khan é considerado "o melhor professor do mundo". Em primeiro lugar, temos os números de acessos ao website da Khan Academy2 2 A Khan Academy ( www.khanacademy.org) foi criada e ganhou visibilidade com a doação de 1,5 milhão de dólares por Bill Gates, somada aos 2 milhões doados pelo Google. No Brasil, a fundação Lemann está financiando a dublagem das aulas de Khan, disponíveis no site www.fundacaolemann.org.br/khanportugues. , que variam ao longo das edições de Veja: 85 milhões (edição 2244, p.102); 60 milhões (edições 2221, p.132 e 2247, p.24); 115 milhões (edição 2254, p.65). Em segundo lugar, o número e a diversidade das videoaulas disponibilizadas pela Khan Academy: "2.700 vídeos e exercícios gratuitos sobre mais de quarenta áreas do conhecimento" (edição 2254, p.65), cobrindo vários níveis de dificuldade "dos primeiros anos do ensino fundamental, abrangendo operações básicas de soma e subtração, ao MBA, com lições sobre venture capital e as flutuações no preço do ouro" (edição 2221, p.133). Por fim, dados relacionados ao impacto global de suas aulas: "mais de 6.000 salas de aula no mundo inteiro já adotam a cartilha Khan", incluindo a informação sobre o caso brasileiro: as suas aulas serão utilizadas em um projeto piloto, envolvendo três escolas da rede municipal de São Paulo (edição 2254, p.70).

Para além do título das reportagens que compõem as edições, nas matérias publicadas há uma ênfase no valor diferencial, inovador e revolucionário dos modos de Khan conduzir as suas aulas e também uma ênfase no impacto dos métodos de Khan na transformação da rotina escolar, o que vai justificar novamente o honorífico título de "melhor professor do mundo", atribuído por Veja.

Nesse sentido, é emblemático o apelo visual da seção Educação (edição 2254, p.64-65), que traz uma imagem de Salman Khan de ponta-cabeça, rodeado de quadros cheios de anotações matemáticas, sob o título: "O mundo de um novo ângulo". Como epígrafe desta notícia, aparece: "Com simplicidade e entusiasmo, o jovem matemático americano Salman Khan já deu mais de 115 milhões de aulas na rede e começa a revolucionar a velha e enfadonha rotina escolar".

Essa ênfase no valor diferencial, inovador e revolucionário, características atribuídas a Salman Khan, à Khan Academy ou aos seus métodos de aula, aparece fortemente nos seguintes excertos retirados das reportagens: 1) "transformar os velhos e ineficazes pilares sobre os quais se ergue a escola brasileira. (...) mudar o modo como as pessoas aprendem" (edição 2268, p.147); 2) "virar a rotina da aula de ponta-cabeça" (edição 2247, p.24); 3) "site pode dar início a uma revolução", dito por Bill Gates a Salman Khan (edição 2254, p.65); 4) [Khan Academy:] "poderosa ferramenta para transformar a maneira como as pessoas aprendem e a própria escola" (edição 2254, p.68); 5) "revolucionar a maneira como as pessoas assimilam conhecimento" (edição 2221, p.132); 6) mudança da rotina escolar de forma radical (edição 2254, p.68); 7) "o site de Sal aponta um caminho para revirar a chatice e inovar" (edição 2254, p.68).

Este artigo pretende analisar as supracitadas reportagens com o objetivo central de problematizar e desconstruir os valores projetados por Veja sobre a práxis didático-pedagógica do "melhor professor do mundo". Dentre estes valores, que ora refletem o empreendedorismo de Salman Khan, ora são abstraídos dos modos de condução das suas aulas, afirma-se sobremaneira o poder inovador e transformador dos seus métodos de ensino e o impacto deles na otimização e motivação do ensino-aprendizagem na contemporaneidade.

Mas será que os métodos didáticos de Khan são diferenciais, inovadores e revolucionários, como buscam persuadir as reportagens de Veja? Desconfiando dessa valorização construída por Veja, a análise empreendida neste artigo gravita em torno de três focos principais, desenvolvidos nas seções subsequentes:

  1. Evidenciar como

    Veja constrói as representações da subjetividade empreendedora e bem-sucedida de Salman Khan, de como ele se tornou professor, das suas qualidades professorais, dos modos de condução de suas aulas e dos seus métodos de ensino. Dentre as questões que serão levantadas, destacam-se: Quais críticas são feitas às formas tradicionais de ensino/escola? Dentre os métodos de Khan, o que é afirmado como inovador e revolucionário?

  2. Problematizar e desconstruir o valor diferencial, inovador e revolucionário dos métodos de Khan, operando um recuo histórico até os discursos inaugurais da didática moderna, presentes na obra "Didática Magna" de Comenius, publicada pela primeira vez em 1657. Com isso pretendemos interrogar: Que afinidades, homologias, reproduções e repetições há entre os métodos de ensino de Comenius e Salman Khan? Que atravessamentos, desvios, mutações, atualizações e inovações emergem?

  3. Sistematizar as repetições e as inovações encontradas entre os discursos didático-metodológicos de Comenius e Salman Khan.

As qualidades distintivas e os métodos de ensino do "melhor professor do mundo"

É curiosa a valorização construída por Veja em relação à vida privada e ao empreendedorismo distintivo de Salman Khan. Diferente das precárias condições vividas e enfrentadas pelos professores brasileiros, o professor Khan é apresentado como jovem e rico. Mais precisamente, ele aparece representado pela tríplice valorização do empresário, do empreendedor e do bem-sucedido. Ele mesmo é quem diz: "Vi que levava jeito quando meus seguidores foram se multiplicando. Pensei: Já tenho dois Hondas na garagem e uma boa casa. Vou largar o trabalho e colocar este negócio de pé com minhas economias." (edição 2254, p.66).

Outra característica distintiva de Khan, a genialidade, que constela com o talento e com empreendedorismo bem-sucedido, é afirmada em quase todas as reportagens. Ela está ligada basicamente à ampla formação de Khan em matemática, ciências da computação e engenharia elétrica, no renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Disso tudo é interessante salientar que, pelo menos em parte, o poder transformador e revolucionário das aulas Khan é explicado por Veja por meio da sua distinção como empreendedor e por sua suposta genialidade: "A experiência internacional sugere que, quando as aulas on-line são levadas a cabo por gente empreendedora aliada às melhores cabeças, elas têm enorme potencial para mudar o modo como as pessoas aprendem." (edição 2268, p.147).

É digno de nota o modo como se relata o fato de Salman Khan se tornar professor, após deixar seu emprego de analista do mercado financeiro. O texto mostra um início imprevisto, natural e imediato, que prescinde de qualquer referência à formação pedagógica específica. Não se faz nenhuma alusão aos saberes pedagógicos3 3 Muitos pesquisadores do campo de formação de professores discutem a importância dos saberes considerados fundamentais à prática docente. Shulman (1996), por exemplo, salienta: 1) o conhecimento pedagógico, 2) o conhecimento do conteúdo especializado, 3) o conhecimento pedagógico do conteúdo especializado. . Como nos informa Veja, é de repente e naturalmente que Khan se surpreende professor:

Uma prima lhe pediu ajuda nos estudos de matemática. Como a menina morava em Nova Orleans e ele em Boston, Sal passou a colocar vídeos no YouTube e completar a aula via celular. Um dia, a prima o surpreendeu: "Não precisa mais ligar. Você é muito melhor no computador". (Edição 2254, p.71)

Dentre as qualidades de professor enfatizadas por Veja, ressalta-se a importância dos métodos de Khan contra a "aula chata, arrastada e interminável" em prol de "tornar a experiência escolar mais prazerosa e eficaz" (edição 2254, p.67). Esta crítica contra a aula "chata" é retomada e reexplicada em outra edição de Veja: "Salman Khan, de 34 anos, é o mais cultuado representante desse grupo que desafia a chatice reinante com explanações curtas e simples... " (edição 2244, p.102).

A partir desses exemplos é possível mapear como as reportagens constroem representações de aulas, no dito ensino "tradicional": a chatice das aulas decorre da sua extensão, morosidade, demora e lentidão. O que é intolerável na aula é a sua duração longa e demorada, num mundo em que se exige, cada vez mais, velocidade e pressa.

Diferentemente disso, o apregoado segredo do sucesso de Khan são aulas curtas, rápidas, concisas, breves e simples. As prescrições metodológicas de Khan, mais concentradas na edição 2254 de Veja, são as seguintes: 1) "Vá à essência do problema" (p.66); 2) "explanações de até vinte minutos de duração" (p.66); 3) "passo meu recado, em média, em dez minutos" (p.67); 4) "jeitão pouco erudito, mas direto, de pensar o ensino" (p.66); 5) "traduz em linguagem simples" (p.65); 6) "só me aventuro a gravar os vídeos quando entendo o assunto a ponto de traduzi-lo para uma criança de 7 anos." (p.66).

Embora haja um saber partilhado entre professores que uma aula deve começar com a apresentação de um problema ou questão problematizadora, nas aulas de Khan não há problematização, conflito cognitivo ou complexidade. Quanto mais simples, claro, linear, direto e útil, melhor. Mas, sobretudo: que seja curto e rápido! "Time is money" é o grande valor da didática de Khan.

A máxima da concisão e da brevidade das explanações chega a beirar o nonsense e o absurdo quando Veja (edição 2268, p.147), num quadro à direita da página sob o título "A um clique da excelência", exibe sites brasileiros que oferecem aulas online, como, por exemplo, o "Kuadro" (okuadro.com), que anuncia aulas de ciências exatas e biológicas para os alunos do ensino médio, que duram em média cinco minutos. Exiguidade máxima!

Nota-se, portanto, que a otimização proposta pelos métodos de ensino de Khan valoriza a velocidade, o dinamismo e o ritmo da aula. O ritmo, aliás, é um dos segredos do sucesso de Khan para vencer os seus concorrentes. Quando Monica Weinberg pergunta: "Há milhares de professores dando aulas na rede. Como o senhor tem vencido a concorrência?", Salman Khan responde: "Acho que consegui aliar um bom conteúdo ao ritmo da rede" (edição 2254, p.67). O ritmo da rede como referente para uma aula bem-sucedida. Alto ritmo, alta velocidade, brevidade e concisão: segredos do sucesso!

Além da caracterização da aula "tradicional" – leia-se aula "chata", isto é, arrastada, lenta, morosa, demorada, longa, sem ritmo – que é denunciada por Veja como ineficaz e desprazerosa, aparecem algumas críticas à escola, representada como velha, anacrônica e ultrapassada e, por estes motivos, impotente e incompetente para atender às demandas, dinamismos e desafios do século XXI.

Sobre as críticas à escola, destacam-se as seguintes passagens: 1) "velhos e ineficazes pilares sobre os quais se ergue a escola brasileira" (edição 2268, p.147); 2 "jovens que perderam o interesse pelo aprendizado da forma como ele é apresentado pela escola – uma instituição que parou no tempo" (edição 2221, p.134); 3) "a escola de hoje, estacionada no modelo de dois séculos atrás." (edição 2254, p.68).

O modelo contrário ao "tradicionalismo" escolar, da "aula chata" e da "rotina enfadonha", enaltecido por Veja como positivo e inovador, é a educação via web:

O sucesso de Salman Khan é a prova de que o ensino pela

internet

tem um potencial que ainda não foi utilizado como poderia. (...) Em escolas do Japão ou da Coreia do Sul, os alunos são encorajados a ficar conectados, engajando-se em debates

on-line

ou fazendo experimentos científicos na rede – em que cada um seja responsável por uma etapa do projeto. No Brasil, o colégio Integral, de Campinas, ainda em regime experimental, distribui

tablets

a estudantes do ensino médio. Os alunos agora discutem geopolítica em rede e compartilham seus esforços na resolução de problemas. (Edição 2221, p.134)

Reforça-se, dessa forma, a valorização: 1) do ritmo da rede; 2) da interconectividade da rede; 3) do magnetismo, da excitação e dos desafios produzidos pela rede; 4) da velocidade e do dinamismo da rede; 4) da possibilidade de criação de ambientes virtuais e simulações pela rede. Aprender divertindo-se, individualizar o ritmo da aprendizagem, aprender no momento e no ritmo desejado – é o que promete a educação à distância via web.

Veja, inspirando-se nos métodos das tele aulas de Salman Khan, faz uma defesa do ensino pela internet que traz à tona novas exigências dos aprendizes contemporâneos. De acordo com a argumentação da revista, os alunos poderão, doravante, consumir sua aprendizagem no momento e no ritmo que lhes forem mais convenientes, com a possibilidade de também se divertirem e se interconectarem, enquanto aprendem. Ressalta-se ainda, nas matérias, o estímulo e o magnetismo produzidos pela rede, além da sua valorização como recurso para uma aprendizagem autodidata: "A internet estimula a apreensão de informações de forma autodidata e exerce um magnetismo sobre as novas gerações que não pode mais ser desprezado pelos educadores" (edição 2221, p.133).

Daí que o que está em jogo nas críticas ao anacronismo e ao tradicionalismo escolar é que, por via da divulgação do impacto e do sucesso das videoaulas de Salman Khan, Veja põe em cheque o regime de contenção construído pelas quatro paredes de uma sala de aula e da própria escola. Qualquer lugar é lugar para se ensinar e se aprender porque o espaço destes dois verbos, restritos há séculos à instituição escolar, começa a migrar, do regrado e disciplinado espaço da sala de aula, para diante dos microprocessadores que conectam os milhares de atores das novas modalidades tecnológicas de ensino-aprendizagem.

Entre Salman Khan e Comenius

Para problematizar e desconstruir o valor diferencial, inovador e revolucionário dos métodos de ensino de Salman Khan, procederemos a um recuo histórico cotejando a didática de Khan com a "Didática Magna" de Comenius4 4 Comenius é a tradução latina do nome checo Jan Amos Komenský, religioso protestante da igreja moraviana, que viveu entre 1592 - 1670 e que produziu a Didática Magna tradução reinventada da "Ceská Didaktica", realizada por Comenius entre 1632/33 - 1638. , obra publicada pela primeira vez na "Opera Didactica Omnia" (Amsterdam, 1657). O cotejamento com esta obra, além de permitir um deslocamento temporal de 355 anos em relação às reportagens de Veja 2012, justifica-se pela sua importância como discurso inaugural da didática moderna no mundo Ocidental. Com este percurso analítico pretendemos mostrar como os métodos de ensino de Khan são, na verdade, revisitações e atualizações da didática de Comenius.

O que nos chamou mais a atenção, quando estávamos realizando o cotejamento dos métodos de ensino de Khan com os da didática comeniana, foi o fato de alguns trechos das reportagens de Veja apresentarem o ideal universalista pretendido por Comenius, enunciado logo na abertura de sua obra: "Didática magna que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos" (Comenius, 2006, p.11).

Dentre os trechos significativos que apontam essa correspondência, por vezes quase literal dos fins universais de Comenius, destacam-se, nas reportagens de Veja, as seguintes passagens: 1) "Salman Khan (...) um professor capaz de ensinar qualquer coisa a qualquer um" (edição 2254, p.10); 2) "Sonho alto. Meu objetivo é oferecer conhecimento de nível elevado sobre absolutamente tudo, e de graça" (p.66); 3) "Minha meta é que gente do mundo inteiro possa aprender de tudo sem pagar nada na Khan Academy" (p.67); 4)"Como Sal, essa turma quer prover na rede conteúdo de alto padrão sobre quase tudo e para todos os níveis escolares" (edição 2268, p.146).

Pelo que dizem os excertos podemos perceber que Salman Khan revisita e torna possível o que para Comenius era só um ideal: "ensinar tudo a todos". "Tudo" porque tanto Khan quanto Comenius acreditam tudo poder ensinar: qualquer saber, em qualquer nível. "Todos", não mais no nível de centenas de alunos como previa Comenius (2006, p.209), mas, agora, na casa das centenas de milhões como o faz Salman Khan. Fora a diferença brutal nos números absolutos, é importante ressaltar, na didática de Khan, a reprodução e a repetição da finalidade universalista de um método único e perfeito, capaz de "ensinar tudo a todos", lançado por Comenius em meados do século XVII.

Ressalvando-se que a tendência comeniana é tomar a ordem natural das coisas para a proposição das suas prescrições didáticas, vamos encontrar nesta analogia com os fenômenos naturais, pensada por Comenius, as referências dos métodos de ensino de Salman Khan. Vejamos alguns exemplos significativos dessa tendência, retirados da Didática Magna: 1) "Em suas obras, a natureza não procede confusamente, mas de modo claro" (p.153); 2) "A natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e acaba pelas mais particulares" (p.156); 3) "A natureza não procede por saltos, mas gradualmente" (p.159); 4) A natureza não inicia nada que seja inútil" (p.184).

Na ordem citada, são as seguintes as prescrições didáticas trazidas pelos excertos: 1) Clareza; 2) Ir do geral ao particular; 3) Avanço gradual; 4) Aprender o que é útil. Essas são as recomendações metodológicas de Comenius revisitadas por Salman Khan.

Diante disso, é importante chamar a atenção para o fato de que as prescrições metodológicas, que regem, controlam e determinam a ordem do que se deve ensinar e de como se deve ensinar, criando uma modelagem fragmentada, sequencial e evolutiva da apresentação do conhecimento, foram inventadas e sistematizadas já no século XVII. Daí derivam as seguintes prescrições didáticas de Comenius: 1) "Avance gradualmente e sem erros" (p.148); 2) "Tudo o que será aprendido deve ser disposto segundo a idade" (p.148); 3) "Os exemplos devem preceder as regras" (p.151); 4) "Proceder das coisas mais gerais para as particulares; e das mais fáceis para as mais difíceis" (p.165) ; 5) "Todas as matérias de estudo devem ser divididas em aulas, de tal modo que as primeiras sempre aplanem e iluminem o caminho das seguintes" (p.160).

Então é possível perceber que Comenius põe em voga determinadas prescrições didático-metodológicas que configuram uma ordem determinada, correta, válida, eficiente e universal de ensinar, que vigoram até a atualidade: ensinar do conhecido ao desconhecido, da superfície à profundidade, do concreto ao abstrato, da exemplificação às regras, da parte ao todo, do geral ao particular, do simples ao complexo, do fácil ao difícil etc. Novamente, aqui, se reconhecem as prescrições dos métodos de Khan reportados por Veja.

Outras homologias discursivas, que evidenciam as retomadas do texto de Comenius, aparecem quando cotejamos as críticas e as sugestões da didática de Khan, com os diagnósticos e as prescrições metodológicas de Comenius. Dois trechos de abertura da Didática Magna são muito significativos nesse sentido: 1) "que nas escolas haja menos conversa, menos enfadado e trabalhos inúteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito" (p.11); 2) "receba a instrução sobre tudo o que é na vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida" (p.11).

É importante perceber os dois mesmos adjetivos – "enfadonho" e "inútil/ineficaz" – usados por Khan para circunscrever e caracterizar a rotina de ensino-aprendizagem vivida na escola nos dias de hoje. E para enfrentar este diagnóstico, exatamente as duas prescrições mais valorizadas por Khan: 1) a concisão e a brevidade, que constela com a instrução "sintética" de Comenius; 2) o "divirta-se" de Khan que vai ao encontro de uma instrução agradável, alegre e com mais tempo livre de Comenius.

Aliás, deve-se frisar que a instrução sintética, concisa e breve ganha, junto com a instrução sólida, um "destaque especial"5 5 Este destaque especial da solidez e da concisão nos métodos de ensino de Comenius pode ser evidenciado pelo fato de o autor dedicar a estes temas dois capítulos na Didática Magna, o capítulo XVIII "Princípios em que se fundamenta a solidez no ensinar e no aprender" e o capítulo XIX "Princípios de um ensino rápido e conciso". na didática de Comenius. Em relação à valorização da solidez nos modos de condução do ensino, há dois diagnósticos de Comenius que são sugeridos pelas críticas à ineficácia do ensino pontuadas por Salman Khan: 1) "uns poucos saem da escola com instrução sólida, enquanto a maioria sai apenas com um verniz superficial" (Comenius, 2006, p.183); 2) "os alunos esquecem o que aprenderam porque tiveram contato rápido com muitas matérias, sem nelas se deter" (p.183).

Para produzir e garantir a solidez no aprendizado evidencia-se, na didática de Comenius, a matriz de referência para as estratégias didáticas de Khan: a resolução de exercícios e a repetição como métodos de fixação da aprendizagem. Isso porque, para Comenius (2006, p.199): "a instrução nunca chegará a ser realmente sólida se não se instituírem repetições e exercícios, frequentes e bem feitos".

Por fim, uma das mais importantes estratégias para produzir e assegurar a solidez do aprendizado para Comenius, estratégia que é revisitada pelo "layout imagético"6 6 Conforme se verifica, nos sites que disponibilizam as aulas de Khan, sua imagem não aparece em cena, dando-se ênfase ao conteúdo que é desenhado, escrito ou indicado com uma caneta digital, à medida que a aula vai sendo proferida. O layout imagético é, confessadamente, um recurso distintivo na didática de Khan. das videoaulas de Khan, é a representação daquilo que é dito através da imagem visual, para facilitar a retenção do que é ensinado: "o que dever ser aprendido não só deve ser contado para que impressione os ouvidos, mas também pintado, para que, através dos olhos, se imprima na imaginação" (p.179).

Em relação à concisão, muito valorizada por Khan, a prescrição de Comenius vem no superlativo: "Toda arte deve encerrar-se em regras brevíssimas, mas absolutamente exatas. Toda regra deve ser concebida com palavras brevíssimas, mas muito claras" (p.172). Isso porque, como exorta Comenius:

é uma tortura para os jovens: 1) ficar ocupados durante seis, sete, oito horas por dia com aulas e exercícios coletivos e depois também solitários; 2) ter de fazer ditados, exercícios e aprender de cor o maior número possível de coisas, até a náusea e a loucura, como com frequência ocorre. (...) Tornará mais fácil e agradável o estudo para os alunos: quem os obrigar durante pouquíssimas horas (não mais de quatro) a fazer lições coletivas, reservando outras, em igual medida para os exercícios solitários. (Comenius, 2006, p.176-177)

Valor superlativo, "brevíssimas" e "pouquíssimas" são precauções metodológicas comuns a Comenius e a Khan. A justificativa para a concisão como método de ensino é comum aos dois autores: uma migração da "chatice" de uma aula arrastada e interminável em Khan, para a "tortura", "loucura" e "náusea" dos jovens em Comenius. A concisão, portanto, desde o século XVII, é um valor de distinção e de sucesso em métodos de ensino-aprendizagem.

No entanto, torna-se necessário fazer uma ressalva a propósito dos superlativos "brevíssimas" e "pouquíssimas", que para Comenius não têm, em termos absolutos, o mesmo valor atribuído por Khan e seus discípulos. Comenius fala em uma ocupação dos estudantes com aulas durante quatro horas por dia. As aulas de Salman Khan duram no máximo vinte minutos e há incentivo a aulas de cinco minutos! Definitivamente, agora são outros tempos, tempos que trazem a emergência de um conhecimento tipo fast-food, pré-processado e pronto para o consumo imediato.

Por fim, é preciso perguntar: quais os valores do ato de ensinar e do ato de aprender que estão em jogo nos discursos didáticos de Comenius e de Salman Khan? Para situar este problema, vamos recorrer a um pequeno trecho da seção do colunista Cláudio de Moura Castro, que defende o modelo de ensino praticado por Salman Khan:

No YouTube, ou, onde quer que seja, pode morar uma aula expositiva, mostrando a matéria, tal como apresentada por um bom professor. Mas, como está gravada, não depende do humor do mestre naquele dia ou da preparação na véspera, além de poupá-lo da enfadonha repetição, dia após dia. Alguém no mundo deve ser o campeão de ensinar, por exemplo, regra de três. Por que contentar-se com uma aula pior? (Edição 2247, p.24)

Que valores estão postos nesta afirmação? Primeiramente, a valorização da rede como disseminadora da aula expositiva, através da qual se pode "bem" aprender. Segundo, o valor do "bom" professor como aquele que melhor ensina um determinado saber. Terceiro, o valor universalista de ensinar a todos, de uma só vez e com um único tipo de aula. Quarto, o valor positivo da educação via web na suavização da enfadonha e repetitiva rotina do professor. Quinto, o valor de uma "aula pior" como uma aula que não é a melhor do mundo em relação ao que ela pode ensinar: regra de três. Sexto, o valor da aula determinada pelo – e determinante do – ensino-aprendizagem.

Mas o que é preciso frisar da defesa do articulista da reportagem à melhor aula de regra de três do mundo, é que o sonho de Comenius (2006, p.166) de um "método imutável, único e assíduo" se tornou, no século XXI, literalmente e globalmente passível de realização para todos. Resta-nos, agora, deixar que a competição mundial indique e sinalize o professor-campeão e a aula-campeã, que seja o "melhor" professor do mundo e a "melhor" aula do mundo para se ensinar e se aprender um tipo de saber, tão simples como regra de três!

Mais adiante, temos outra declaração muito interessante do articulista, desta vez focando mais diretamente o modelo de aprendizagem na era digital:

Explicar regra de três – ou o que seja – é um processo inevitavelmente unidirecional, só o professor fala. Se o aluno não entendeu a explicação, há pouco tempo para insistir. No YouTube, em casa, continua unidirecional, mas basta clicar para repetir, até entender. Ou seja, a tecnologia serve para congelar a melhor aula possível, sobre qualquer assunto. (Edição 2247, p.24)

Fora o que já foi comentado, valoriza-se aqui: 1) a aula expositiva unidirecional; 2) a repetição da explicação como tática de ensino-aprendizagem; 3) a possibilidade de aprender em casa; 4) o uso da tecnologia para individualizar o ritmo da aprendizagem: "a tecnologia serve para congelar a melhor aula possível".

Disso tudo importa situar o valor literal do que, a partir das reportagens publicadas por Veja sobre Salman Khan, se poderia chamar de modo de aprender na contemporaneidade: "basta clicar para repetir, até entender". Clicar-repetir-aprender.

Para problematizar esta fórmula, gostaríamos de cotejar estes modos de ensinar e de aprender contemporâneos com duas ideias-chaves do processo de ensino-aprendizagem pensado por Comenius (2006, p.200): "Reter significa enviar para a memória as coisas conhecidas e entendidas (...). Ensinar significa repetir as coisas entendidas (...)".

Desde Comenius aprender é igual a reter, lembrando a origem de "aprender" como "apreender", por síncope. O que quer dizer aprender para Comenius? Quer dizer "apreender": apropriar-se, agarrar, segurar, prender, ou seja, reter. E o que é ensinar para Comenius? É repetir para fazer reter, para fazer apreender, para prender aquilo que se ensina.

Aqui é preciso sublinhar que os conceitos de ensino-aprendizagem e as prescrições metodológicas, tanto da didática de Comenius como da didática de Salman Khan, estão representados e orientados pela tríade de verbos: repetir, reter, reproduzir. Repetir para reter. Reter para reproduzir/repetir.

Invariavelmente são estes três verbos que regulam, controlam e prescrevem o que é e como se deve ensinar-aprender. Neste sentido, o "melhor" professor do mundo é aquele que "melhor" causa retenção e reprodução, é o professor que "melhor" transforma os saberes, em suas múltiplas, diferenciais e singulares relações, em palavras de ordem simplificadas, reducionistas e úteis, que tanto devem ser memorizadas, como exercitadas à repetição.

"Repetir-ensinar-reter-aprender". Entre esta fórmula da didática comeniana e a fórmula contemporânea "clicar-repetir-aprender" não há nenhuma novidade. A mutação importante é que, por via da educação digital, a repetição é possível de ser personalizada e individualizada pelo ato de clicar.

Repetições e inovações

Com o que foi apresentado neste texto é possível concluir que as metodologias de ensino-aprendizagem de Khan não são inovadoras, nem revolucionárias. Através de um agenciamento tecnológico possível entre a comunicação, a informática e a educação nos dias de hoje, os métodos de ensino de Khan são uma espécie de realização planetária do ideal universalista de Comenius: "ensinar tudo a todos". Eis a inovação que é importante ser frisada, porque é a web que a torna possível.

Assim, as diferenças significativas entre as prescrições didático-metodológicas de Khan e Comenius estão na ordem da escala global, das novas exigências de rapidez e velocidade no processamento da informação no mundo contemporâneo e das inovadoras tecnologias de ensino-aprendizagem na rede/internet: estudar em casa, centenas de milhões de alunos, melhor professor do mundo, professor e classe virtual, máximo de 20 minutos de aula, melhor aula de regra de três do mundo, ritmo individualizado de aprendizagem, interconectividade, diversão, clicar para aprender etc.

Respondendo à questão "de que modo um único mestre pode ser suficiente para qualquer número de alunos?", Comenius (2006, p.209) vai dizer que: "Não só afirmo que um único mestre pode ensinar centenas de alunos, como também reitero que assim é que deve ser, pois é de máxima utilidade tanto para quem ensina, quanto para quem aprende". Em 2012 esta fórmula de Comenius é completamente viável e pôde ser ampliada: ao invés de um mestre ensinar centenas de alunos, o megalomaníaco projeto de educação via web tornou possível ensinar não mais centenas, mas centenas de milhares de alunos.

Referências

COMENIUS. Didática magna. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SHULMAN, L. Just in case: reflections on learning from experience. In: Colbert, J.; Trimble, K.; Desberg, P. (Eds.). The case for education: contemporary approaches for using case methods. Massachusetts: Allyn & Bacon, 1996, p.197-217.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2221, ano 44, p.132-134, 15 jun. 2011.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2244, ano 44, p.101-102, 23 nov. 2011.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2247, ano 44, p.24, 14 dez. 2011.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2254, ano 45, p.65-71, 1 fev. 2012.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2255, ano 45, p.36, 8 fev. 2012.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 2268, ano 45, p.146-148, 9 mai. 2012.

NOTAS

Recebido: 24/06/2013

Aprovado: 13/05/2014

  • COMENIUS. Didática magna Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 3.ed. São Paulo: Martins
  • VEJA.
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  • 1
    De todas as reportagens publicadas por Veja esta é a única que não é exclusiva sobre Salman Khan. A maior parte dessa reportagem é direcionada ao filósofo Michael Sandel. As alusões a Salman Khan aparecem como uma espécie de extensão à valorização das aulas interessantes, desafiantes e disputadíssimas do filósofo.
  • 2
    A
    Khan Academy (
    www.khanacademy.org) foi criada e ganhou visibilidade com a doação de 1,5 milhão de dólares por Bill Gates, somada aos 2 milhões doados pelo Google. No Brasil, a fundação Lemann está financiando a dublagem das aulas de Khan, disponíveis no site
  • 3
    Muitos pesquisadores do campo de formação de professores discutem a importância dos saberes considerados fundamentais à prática docente. Shulman (1996), por exemplo, salienta: 1) o conhecimento pedagógico, 2) o conhecimento do conteúdo especializado, 3) o conhecimento pedagógico do conteúdo especializado.
  • 4
    Comenius é a tradução latina do nome checo Jan Amos Komenský, religioso protestante da igreja moraviana, que viveu entre 1592 - 1670 e que produziu a Didática Magna tradução reinventada da "Ceská Didaktica", realizada por Comenius entre 1632/33 - 1638.
  • 5
    Este destaque especial da solidez e da concisão nos métodos de ensino de Comenius pode ser evidenciado pelo fato de o autor dedicar a estes temas dois capítulos na Didática Magna, o capítulo XVIII "Princípios em que se fundamenta a solidez no ensinar e no aprender" e o capítulo XIX "Princípios de um ensino rápido e conciso".
  • 6
    Conforme se verifica, nos sites que disponibilizam as aulas de Khan, sua imagem não aparece em cena, dando-se ênfase ao conteúdo que é desenhado, escrito ou indicado com uma caneta digital, à medida que a aula vai sendo proferida. O
    layout imagético é, confessadamente, um recurso distintivo na didática de Khan.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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