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Resenha Bibliográfica

Resenha bibliográfica

Carlos Pinkusfeld Bastos

Professor Adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: pinkusfeld@gmail.com

FURTADO, Celso. Ensaios sobre a venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 188 p. (Arquivos Celso Furtado, 1)

O livro Ensaios sobre a venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas é o primeiro volume da coleção Arquivos Celso Furtado, publicado em co-edição pelo Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e a editora Contraponto. Esta coleção pretende resgatar escritos inéditos, parcialmente publicados ou mesmo de difícil acesso em sua forma completa, de Celso Furtado. Os textos originais estarão sempre acompanhados de nota histórica explicativa sobre sua origem e natureza bem como ensaios analíticos a cargo de especialista na área do tema central tratado.

A série Arquivos Celso Furtado é mais uma das atividades que estão sendo desenvolvidas pelo Centro Celso Furtado com o objetivo de estimular o estudo do tema desenvolvimento econômico, sob uma abordagem fiel às idéias do grande economista brasileiro que lhe dá o nome. Entre essas atividades pode-se destacar, ainda na área editorial, as séries Memórias do Desenvolvimento, com a publicação de documentos e pesquisas referentes ao período desenvolvimentista da economia brasileira pré1980, e a coleção Economia Política e Desenvolvimento, dedicada à publicação de livros fundamentais em ambos os campos da reflexão econômica, cujo primeiro volume, já no prelo, será a re-edição do clássico Economia do subdesenvolvimento, de Agarwalla e Singh. O Centro ainda edita a série Cadernos do Desenvolvimento, com artigos acadêmicos e resumos de seminários promovidos pela instituição.

Fora do campo editorial, o Centro promove cursos, debates, seminários - nacionais e internacionais -, apóia pesquisas e distribui bolsas para alunos de mestrado e doutorado e, ainda em fase de implantação, oferecerá cátedras para scholars internacionais lecionarem por tempo limitado em instituições brasileiras.

O presente volume apresenta ao estudioso brasileiro do desenvolvimento, e mais particularmente àquele interessado na abordagem estruturalista latino-americana, uma leitura extremamente rica, não só por seu caráter documental como também por uma curiosa coincidência histórica. Consta do livro, como artigo central, o relatório escrito por Furtado para a CEPAL em 1957: "O Desenvolvimento da Economia Venezuelana". Ainda do autor são publicadas suas "Notas sobre a Economia Venezuelana e suas Perspectivas Atuais, 1974", parcialmente publicado em seu livro biográfico "Os Ares do Mundo" e uma entrevista dada no mesmo ano ao jornal El nacional de Caracas. Completam o livro três artigos de outros autores: uma introdução escrita por Rosa Freire d´Aguiar Furtado e dois ensaios de Carlos Aguiar de Medeiros e Abdelkader Sid Ahmed tratando dos temas centrais do livro: a economia venezuelana e as perspectivas do desenvolvimento de um país sem restrição de divisas. Há, ainda, algumas fotos de época e fac-símiles de documentos relacionados aos textos do livro.

A origem e a natureza do texto central de Furtado são de grande interesse para quem estuda o período desenvolvimentista na América Latina do pós-guerra. Esta compreensão se beneficia não só da publicação do texto inédito original como de uma esclarecedora nota introdutória escrita por Rosa Furtado tendo como base documentação inédita dos arquivos pessoais de Furtado.

Em termos institucionais, pode-se ter uma radiografia do modus operandi da CEPAL no período desenvolvimentista: seu caráter pioneiro e a carência de dados confiáveis com que trabalhavam os pesquisadores da CEPAL; a exigüidade do prazo, a precariedade das condições materiais e humanas para execução do relatório e as tensões políticas envolvidas tanto na fase de sua preparação quanto na sua divulgação. E não foram poucas tais atribulações: a tensão política chega a ponto de levar à cadeia um colaborador venezuelano durante a elaboração do relatório e impedir a sua divulgação depois de concluído.

Num nível mais analítico é reveladora a lista de tarefas, ou o roteiro de pesquisa, que Furtado montou para orientar o seu trabalho de campo (p. 10-11). Através dos itens aí enumerados pode-se ter uma tradução "prática" da própria teoria do desenvolvimento dos anos 1950 e particularmente da abordagem estruturalista. Estão listados os elementos centrais para se diagnosticar as possibilidades de desenvolvimento, ou, mais especificamente, desenho de políticas desenvolvimentistas, como a estrutura ocupacional da população, a relação da produção/produtividade do setor agrícola com o desempenho exportador e com a oferta interna de alimentos, bem como sua relação de troca com o setor industrial, a capacidade dinâmica do setor exportador, a projeção da capacidade de importar relacionada ao avanço venezuelano na cadeia produtora do petróleo, limitações e perspectiva da industrialização (escala, externalidades, dimensão do mercado interno, nível de proteção requerido) e infra-estrutura social necessária para o desenvolvimento (aí incluída a questão da formação de mãode-obra qualificada). Esta lista, ou roteiro, pode servir como exemplo de um guia para qualquer estudioso que pretenda analisar a economia de um país segundo uma abordagem estruturalista.

Especificamente em relação ao relatório de 1957, deve-se observar que convivem elementos centrais da teoria estruturalista e um componente único, distintivo da experiência venezuelana em relação aos demais países americanos.

Entre os elementos centrais, pode-se citar o próprio conceito de subdesenvolvimento: um sistema econômico e social heterogêneo, ou a presença de uma heterogeneidade estrutural onde, a despeito de uma renda per capita elevada, no caso a Venezuela por causa da exploração do petróleo, as forças produtivas internas ainda não alcançaram uma grande diversificação e homogeneidade.

Dentro dessa perspectiva, têm papel fundamental na análise de Furtado os ganhos de produtividade agrícola que seriam capazes de "... elevar a renda real da população rural e reduzir os preços relativos nas zonas urbanas" (p. 65). Assim, a "...elevação da renda real da população rural e a redução dos preços relativos dos alimentos das zonas urbanas são pré-requisitos para o desenvolvimento do mercado interno." (p. 78)

No texto de 1957, já está presente a questão da armadilha do subdesenvolvimento, que depois viria a se tornar uma de suas teses mais caras. Para Furtado haveria uma correlação perversa entre padrões de consumo sofisticado, alta capitalização das atividades produtivas e baixa elasticidade de emprego. Segundo ele, "cria-se assim um círculo vicioso, pois a excessiva capitalização das atividades produtivas implica lenta absorção da força de trabalho em ocupações de produtividade mais elevada, desenvolvimento lento do mercado interno e, portanto, oportunidades mais escassas para o novo investimento." (p. 70)

É interessante notar que nesse mecanismo já está presente a idéia de entorpecimento do crescimento dado o padrão de industrialização latino-americano que iria permanecer como elemento sempre presente por toda a obra do autor em diferentes graus de intensidade. Em 1957, Furtado já afirmava que: "o desenvolvimento não é uma fatalidade: já indicamos que a estagnação é uma solução para os problemas que atualmente estão se acumulando." (p. 61)

A diferença em relação aos outros casos latino-americanos estaria no fato de a Venezuela não ter uma forte restrição externa. Ao contrário, as receitas com o petróleo não só superariam essa restrição ao crescimento como propiciariam ao Estado uma fonte de financiamento mais que suficiente para a execução de um projeto de desenvolvimento, ou superação do subdesenvolvimento.

No entanto, esta possibilidade acaba por se transformar num entrave ao próprio desenvolvimento na medida em que a abundância de recursos externos leva à valorização cambial. "Comparativamente aos preços internacionais" a produção venezuelana perde competitividade diante de seus concorrentes.

Mesmo o investimento público já teria alcançado, segundo Furtado, em 1957, um ponto em que as externalidades seriam menos relevantes. Caberia naquele momento elevar o gasto corrente, principalmente em formação da mão-de-obra com o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho.

Assim, se por um lado Furtado observa o caso venezuelano com grande otimismo, por outro não desconhece que a mesma fonte de tal otimismo pode ser um fator fundamental para a frustração da superação do subdesenvolvimento.

Em 1974, ao contrário do que havia acontecido 17 anos antes, Furtado volta à Venezuela para estudar in loco sua economia a convite do governo. Permanece otimista ao afirmar que "... nos próximos dois decênios a venezuela poderá ter saltado a barreira que separa subdesenvolvimento e desenvolvimento, sendo quiçá o primeiro país da américa latina a realizar a façanha, ou terá perdido sua chance histórica." (p. 125) opinião reforçada na entrevista dada ao Jornal El nacional: "...na venezuela se pode superar o subdesenvolvimento por métodos que não exigem grandes convulsões sociais, portanto muito mais fáceis de permanecer sob controle." (p. 177)

Seu otimismo relaciona-se diretamente com o momento extremamente favorável do preço do petróleo no mercado internacional, mas sua análise retoma e reforça alguns pontos centrais do estudo anterior. Reafirma-se a necessidade de melhoria do nível de vida dos trabalhadores rurais através de uma melhora dos termos de intercâmbio interno, o que, por sua vez, gerará a necessidade de elevação da produtividade no setor industrial. Mantendo seu argumento já desenvolvido anteriormente, o câmbio e os subsídios à importação acabam por prejudicar a produção local contribuindo "... para ampliar o excedente estrutural da mão-de-obra deprimindo os salários dos segmentos sociais de inferior nível de vida."(p. 121), ou seja: aprofundar o subdesenvolvimento. Tal situação geraria "...um sistema econômico-social fundamentalmente orientado para o consumo e o desperdício e no qual a renda é muito concentrada e provavelmente tende a se concentrar de forma permanente." (p. 121-122)

Aqui soma-se ao tema permanente na obra de Furtado a associação de consumo de luxo com tecnologia intensiva em capital, fator reforçado no caso venezuelano devido ao custo baixo em dólares dos bens de capital sofisticados e concentração de renda.

Caberia ao Estado reverter este quadro porque, afinal, em suas mãos está o excedente do petróleo. O caminho para a extirpação do subdesenvolvimento passaria pela redução da heterogeneidade tecnológica, garantia do emprego adequadamente remunerado, satisfação das necessidades coletivas básicas e defesa do perfil cultural da nação com a ampliação do acesso à educação.

O artigo de Carlos Medeiros que segue os dois ensaios de Furtado, além de ajudar na compreensão dos textos originais e ampliar a análise do caso venezuelano até os dias atuais, adiciona um elemento importante e ausente na análise de Furtado: a questão financeira. Agora o problema da valorização cambial e instabilidade do câmbio não depende apenas de fluxos comerciais elevados, mas também de ciclos de endividamento recorrentes que terminam com fortes fugas de capital levando a severas crises de balanço de pagamentos.

A coincidência histórica aludida no início desta resenha é que a edição dos trabalhos de Furtado sobre a Venezuela ocorre num momento em que o Brasil descobre reservas de petróleo que podem torná-lo um grande produtor dentro de um futuro não tão distante. Apesar do justificado entusiasmo que tal descoberta desperta, a análise do caso venezuelano mostra que esse não é nem de longe um passaporte seguro para o real desenvolvimento econômico. Ao contrário, como lembra Abdelkader Sid Ahmed em seu ensaio, parece haver sim uma "maldição dos recursos" (resource course) que se expressaria através da valorização cambial e perda de competitividade industrial. Aliás, a preocupação com tal possibilidade nem precisou, em alguma medida, esperar pela entrada em produção dos campos do pré-sal. A elevação do preço das commodities entre 2003 e 2008 com apreciação cambial levou alguns economistas a identificar o risco de "doença holandesa" para a economia brasileira, o que certamente não é o caso da Venezuela, já que esse país nunca chegou a um estágio avançado de industrialização. O certo é que o debate que já ocorre e o que, parece, irá forçosamente ocorrer em futuro breve apenas reforça a atualidade e interesse da abordagem analítica geral contida na presente coletânea de artigos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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