Acessibilidade / Reportar erro

Resenha do livro: A Passos Lentos. Uma história econômica do Brasil Império. Marcelo de Paiva Abreu, Luiz Aranha Corrêa do Lago, André Arruda Villela. Editora Almedina, 2022.

A Passos Lentos. Uma história econômica do Brasil Império. Abreu, Marcelo de Paiva; Lago, Luiz Aranha Corrêa do; Villela, André Arruda. . Editora Almedina, 2022.

A Passos Lentos é um livro necessário. Ao se apresentar como uma obra de síntese da história econômica do Império, acaba com um hiato de décadas. Gerações de estudantes de Formação Econômica do Brasil usaram e ainda usam o livro homônimo de Celso Furtado. Esse clássico, no entanto, é um livro datado, algo natural para uma obra publicada há mais de seis décadas. Celso Furtado foi, possivelmente, o último dos grandes intérpretes do Brasil também porque a produção acadêmica mudou: se tornou mais especializada, mais baseada em fontes primárias e, necessariamente, mais reticente em fazer generalizações que escapariam dos limites da pesquisa.

A Passos Lentos é, portanto, uma consequência natural, esperada, do acúmulo de décadas de evidências sobre questões específicas da história econômica brasileira. É um livro para um tempo diferente dos estudos publicados até a metade do século XX, que possuíam uma forma ensaística. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda são símbolos dessas visões abrangentes que buscavam uma síntese interpretativa. Esses autores se preocupavam antes em responder por que o Brasil se tornou de determinada forma a responderem o que de fato ocorreu durante o passado. Apesar da sofisticação dessas interpretações, um claro avanço para a época, a busca por uma síntese impunha certa simplificação. A dicotomia entre o escravo e o seu senhor provavelmente seja a mais conhecida. Era o fato em maior evidência, o que transbordava do passado - surgia em relatos, quadros e até mesmo em fotografias - e, naturalmente, seria a narrativa que estaria em frente às demais. No entanto, décadas de pesquisas mostraram que a casa grande e a senzala não serviam como uma generalização adequada para o Brasil. Durante a maior parte do Império, proprietários que possuíam poucos escravos eram mais representativos do que aqueles com grandes plantéis. Escravos urbanos, com certa autonomia pessoal e econômica, e a grande quantidade de pessoas livres, alforriadas, dificultavam a estrutura interpretativa conhecida. O trabalho monográfico aos poucos ia preenchendo e substituindo a forma anterior de pensar o Brasil.

É esse passado recente da historiografia que os autores, conhecidos historiadores econômicos do Brasil, buscam resumir em nove capítulos. Após apresentar dados sobre a trajetória populacional no Brasil, o livro começa discutindo crescimento econômico, uma questão central na história econômica. Aqui, diferente do esperado por muitos que não estão familiarizados com a literatura, não existe uma resposta simples para a questão se o Brasil cresceu ou não durante o Império. O capítulo discute questões metodológicas e trata dos limites das diferentes estimativas existentes, todas para a segunda metade do século XIX. Para a primeira metade, a partir de uma suposição feita por Nathaniel Leff, a hipótese padrão é que não houve crescimento da renda per capita. Essa suposição, aliás, é a base para as estimativas de renda brasileira no Projeto Maddison, que busca comparar níveis de renda entre países no passado. Ou seja, os valores que aparecem no Projeto para 1800 e 1820 são a estimativa para 1850, usando a hipótese de Leff de não crescimento da renda per capita. A discussão é importante e apresenta aos leitores aspectos operacionais da pesquisa em história econômica, como a dificuldade de obter dados e a necessidade de ser transparente nos métodos e hipóteses adotadas.

A interpretação atual é que a renda per capita brasileira aumentou nas décadas de 1850 e 1860 e diminuiu durante a década de 1870. A década de 1880, por outro lado, não possui um consenso. Os autores comentam que a ausência de um índice de preços confiável é a principal origem das incertezas sobre essas estimativas. Os índices são considerados “insatisfatórios”, “inadequados”, com “qualidade discutível”, mas não existe uma explicação sobre quais são os seus problemas. Algo que poderia ser mencionado é que uma limitação da estimativa de Contador e Haddad (1975Contador, Cláudio R. e Cláudio L. Haddad. 1975. “Produto Real, Moeda e Preços: A Experiência Brasileira no período 1861-1970”. Revista Brasileira de Estatística 36 (146): 407-40.) para a renda per capita é o uso do índice de preços de Ónody (1960Ónody, Oliver. 1960. A Inflação Brasileira (1820-1958). Rio de Janeiro: [s. n.].). Esse índice utiliza preços oficiais - utilizados no cálculo das receitas alfandegárias - para produtos importados, que não eram representativos dos preços de mercado.

Além da trajetória da renda brasileira ao longo do Império, existe a preocupação em discutir suas variações regionais. A ascensão do café no Sudeste e a decadência econômica do Nordeste durante o Império são muito conhecidas para se assumir que a evolução da renda foi igual para todas as regiões do país. O capítulo apresenta um resumo sobre a produção em diferentes províncias, salientando a tendência das exportações das principais commodities ao longo do tempo. Também discute casos como o Rio Grande do Sul, onde usar dados de exportação provinciais para inferir a evolução regional da renda, com faz Furtado, subestima o crescimento local. Um tópico que difere da historiografia clássica é a interpretação sobre a economia algodoeira. Os autores mencionam que, após o período do boom do algodão, durante a transição da “colônia para o império”, o Maranhão teve uma “reconversão para o açúcar” (58). No entanto, a produção de açúcar no Maranhão só se tornou relevante a partir do final da década de 1840. Em 1842, por exemplo, a produção de açúcar no Maranhão ainda era insuficiente para consumo interno e a província importava o produto de Pernambuco (Viveiros 1954aViveiros, Jerônimo de. 1954a. História do comércio do Maranhão. Vol. 1. São Luís: Associação Comercial Maranhão., 156). Além disso, o valor das exportações de açúcar no Maranhão só superou as de algodão em 1873 (Viveiros 1954bViveiros, Jerônimo de. 1954b. História do comércio do Maranhão. Vol. 2. São Luís: Associação Comercial Maranhão. , 420).

Após a discussão sobre a evolução da renda brasileira, o capítulo 3 trata da “questão da terra”. Os autores discutem como é simplista a visão que relaciona a posse da terra exclusivamente ao sistema de capitanias e latifúndios. A existência de pequenos agricultores através de diferentes formas de ocupação, além do comércio de terras, era uma realidade muito antes da Lei de Terras, de 1850. No entanto, o texto ressalta que pensar o Brasil como um conjunto de latifúndios é útil para analisarmos algumas das restrições ao crescimento durante o Império através de um modelo teórico. O capítulo apresenta a “hipótese de Domar”, sobre a impossibilidade de existirem grandes plantations utilizando mão de obra livre com disponibilidade de terras (existência de uma fronteira aberta). A solução brasileira para esse trilema, além da escravidão, foi a escassez legal da terra. Instituições políticas, influenciadas pelos donos da terra, permitiram a existência de grandes propriedades não cultivadas a um baixo custo. Esse sistema implicava a ausência de um imposto territorial, o que claramente teve consequências fiscais negativas. Ao reduzir a arrecadação sobre a renda, o governo imperial teve que aumentar a taxação sobre o comércio, aumentando o custo de vida para a população e diminuindo a competitividade das exportações que sentiam mais os efeitos da concorrência internacional.

Além desses temas, o capítulo também apresenta uma interessante discussão sobre como o desenvolvimento legal da posse da terra levou à expropriação das terras indígenas.

O capítulo sobre o mercado de trabalho descreve como uma instituição símbolo do Brasil, a escravidão, mudou ao longo do século XIX. Além de questões conhecidas, como a dependência do tráfico devido à baixa taxa de reprodução natural e o uso de escravizados como garantias para hipotecas, o capítulo resgata debates sobre a racionalidade da escravidão e se a transição para o trabalho livre ocorreu por fatores econômicos ou políticos. É um capítulo que apresenta aos leitores uma boa síntese sobre quais são os principais temas referentes ao estudo da escravidão. Naturalmente, como esse é o tópico em que a historiografia é mais extensa, existem trabalhos que podem ser utilizados de forma complementar pelos interessados. Além do importante livro Escravismo no Brasil (2010Luna, Francisco Vidal e Herbert S. Klein. 2010. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP.), de Francisco Vidal Luna e Herbert Klein, um dos autores de A Passos Lentos, Luiz Aranha Corrêa do Lago, acrescentou à sua conhecida tese de doutorado um posfácio, que apresenta uma discussão abrangente da historiografia recente sobre escravidão na colônia e no Império (Lago 2014Lago, Luiz Aranha Corrêa do. 2014. Da escravidão ao trabalho livre. Companhia das Letras [s.l.].).

Outro tema central para entendermos o desenvolvimento brasileiro durante o Império são os investimentos em infraestrutura. Estradas, portos e ferrovias foram essenciais para expandir e integrar mercados em diversos países nesse período e, portanto, são temas centrais na literatura de história econômica (Bogart 2011Bogart, Dan. 2011. "Did the Glorious Revolution Contribute to the Transport Revolution? Evidence from Investment in Roads and Rivers”. Economic History Review 64 (4): 1073-1112.; Meyer 2003Meyer, David R. 2003. The Roots of American Industrialization. Baltimore: Johns Hopkins University Press.; Donaldson e Hornbeck 2016Donaldson, Dave e Richard Hornbeck. 2016. “Railroads and American Economic Growth: A ’Market Access’ Approach”. Quarterly Journal of Economics 131 (2): 799-858.). Além disso, serviços públicos, como saneamento e iluminação pública, tiveram um impacto substancial no padrão de vida da população e no aumento da produtividade do trabalho (Troesken 2004Troesken, Werner. 2004. Water, Race, and Disease. Cambridge: MIT Press.). São temas indissociáveis do crescimento econômico moderno. Apesar dessa importância, o capítulo sobre infraestrutura destoa dos outros que o precedem. Ao longo de dez seções em 11 páginas, os leitores são informados que existiram portos, telégrafos e rodovias, mas não existe, por exemplo, uma discussão sobre o que possibilitou esses investimentos, quais foram as fontes de recursos, por que algumas regiões receberam mais investimentos que as outras, quais grupos demandavam tais investimentos e quais foram beneficiados. A apresentação excessivamente sintética, como a seção sobre rodovias, que possui um parágrafo apenas, pode sugerir escassez de estudos sobre o tema, mas a questão parece ser mais uma escolha editorial do que falta de conteúdo. A seção sobre ferrovias, com três parágrafos, é outro exemplo. Existem diversos trabalhos, como os de William Summerhill (citado brevemente) e Maria Lúcia Lamounier, que abordam outros temas relacionados ao investimento ferroviário, que poderiam ser incorporados ao texto. Além disso, mesmo onde os estudos sejam eventualmente escassos, a evidência para outros países poderia servir de motivação para a sua inclusão no capítulo, apresentando aos leitores como a historiografia estabelece a importância da infraestrutura para o desenvolvimento econômico, gerando potencialmente incentivos para futura pesquisa. A inclusão da literatura de outros países também ajudaria a colocar o Brasil em perspectiva. Como exemplo, na seção sobre telégrafos, os leitores são informados sobre o tamanho da rede no Brasil entre 1861 e 1880. Seria natural, portanto, comparar a situação brasileira com outros países, estabelecendo se nós realmente estávamos atrasados em relação a países de renda semelhante.

A comparação com os outros países ocorre no capítulo seguinte, que trata das relações comerciais e financeiras do Brasil durante o Império. Informações sobre termos de troca, câmbio, preços das exportações e a posição dominante da Inglaterra nas importações brasileiras oferecem uma perspectiva de longo prazo necessária. Os autores também discutem a qualidade das estatísticas do comércio exterior, especialmente como o uso de valores oficiais, não de mercado, afeta os valores registrados das importações e exportações brasileiras. A apresentação dessas séries de longo prazo é bem-vinda, mas os leitores menos familiarizados com o tema se beneficiariam de uma discussão mais extensa. Como exemplo, o capítulo apresenta a mudança na estrutura das exportações ao longo do império e, naturalmente, destaca a ascensão do café. A tabela 6.1 (154) deixa claro o aumento súbito do café, de 18,7% para 40,8%, entre as décadas de 1820 e 1830. Mas os motivos para essa mudança não ficam claros. Qual foi o papel da oferta, da demanda, de fatores internos e da competição internacional? Trabalhos recentes sugerem que a história econômica brasileira precisa ter uma perspectiva ainda mais global do que tradicionalmente teve. Absell (2020Absell, Christopher David. 2020. “The Rise of Coffee in the Brazilian South-East: Tariffs and Foreign Market Potential, 1827-40”. Economic History Review 73 (4): 964-90. ), por exemplo, mostra que o rápido aumento nas exportações de café na década de 1830 decorreu da redução nas tarifas de importação dos EUA.

Os últimos três capítulos do livro adotam um padrão conhecido em textos sobre a história econômica do Brasil e discutem a política econômica durante os períodos 1822-1845, 1845-1870 e 1870-1889. Essa última parte do livro cobre alguns pontos que foram discutidos em outros capítulos, mas essa repetição pode ajudar na sua utilização em salas de aula. Existe, no entanto, uma diferença importante na estrutura desses capítulos que precisa ser mencionada. O capítulo sobre o período entre 1822 e 1845, com apenas oito páginas em comparação às 25 e 26 dos outros dois capítulos, poderia ter incorporado uma crescente literatura sobre o período da independência, a crise econômica do Primeiro Reinado e o período da Regência. Assim como o capítulo sobre infraestrutura, essa parte do livro parece deslocada do resto da obra. Os dois capítulos que cobrem o período após 1845 apresentam uma discussão bem mais completa da literatura, indicando para os leitores o caminho a seguir com um número de citações mais generoso que os outros capítulos do livro.

A Passos Lentos é um livro importante, que certamente terá espaço nas disciplinas de história econômica do Brasil. Como mencionado anteriormente, a presença dominante de livros como Formação Econômica do Brasil até os dias de hoje sugere que a produção acadêmica precisa produzir mais trabalhos de síntese como forma de auxiliar e guiar novas gerações. Esse comentário de forma alguma busca diminuir a clássica obra de Celso Furtado, mas é importante salientar que a história econômica brasileira não deveria depender tanto de um livro publicado há 63 anos. A desconsideração de décadas de pesquisa acumulada na área de história econômica não é comum em países com pesquisas ativas na área, como Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Países Baixos e Suécia.

A brevidade com que alguns tópicos importantes são discutidos em A Passos Lentos decorre, em parte, do formato escolhido pelos autores, mas também é um resultado do número ainda limitado de estudos econômicos sobre alguns tópicos do período Imperial. O entendimento superficial que temos sobre determinados temas, especialmente se compararmos o Brasil com a historiografia dos países acima mencionados, pode gerar desconforto em leitores ainda não familiarizados com a historiografia brasileira. No entanto, as discussões apresentadas no livro podem ser um estímulo, um novo começo, para futuras pesquisas quantitativas sobre o Império.

Referências

  • Absell, Christopher David. 2020. “The Rise of Coffee in the Brazilian South-East: Tariffs and Foreign Market Potential, 1827-40”. Economic History Review 73 (4): 964-90.
  • Bogart, Dan. 2011. "Did the Glorious Revolution Contribute to the Transport Revolution? Evidence from Investment in Roads and Rivers”. Economic History Review 64 (4): 1073-1112.
  • Contador, Cláudio R. e Cláudio L. Haddad. 1975. “Produto Real, Moeda e Preços: A Experiência Brasileira no período 1861-1970”. Revista Brasileira de Estatística 36 (146): 407-40.
  • Donaldson, Dave e Richard Hornbeck. 2016. “Railroads and American Economic Growth: A ’Market Access’ Approach”. Quarterly Journal of Economics 131 (2): 799-858.
  • Lago, Luiz Aranha Corrêa do. 2014. Da escravidão ao trabalho livre. Companhia das Letras [s.l.].
  • Luna, Francisco Vidal e Herbert S. Klein. 2010. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP.
  • Meyer, David R. 2003. The Roots of American Industrialization. Baltimore: Johns Hopkins University Press.
  • Ónody, Oliver. 1960. A Inflação Brasileira (1820-1958). Rio de Janeiro: [s. n.].
  • Troesken, Werner. 2004. Water, Race, and Disease. Cambridge: MIT Press.
  • Viveiros, Jerônimo de. 1954a. História do comércio do Maranhão. Vol. 1. São Luís: Associação Comercial Maranhão.
  • Viveiros, Jerônimo de. 1954b. História do comércio do Maranhão. Vol. 2. São Luís: Associação Comercial Maranhão.
Editor Responsável: Leonardo Weller

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2022
  • Aceito
    05 Jul 2022
Departamento de Economia; Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - FEA 01 - Cid. Universitária, CEP: 05508-010 - São Paulo/SP - Brasil, Tel.: (55 11) 3091-5803/5947 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudoseconomicos@usp.br