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Entrevista com Ismail Xavier

Interview with Ismail Xavier

ENTREVISTA

Entrevista com Ismail Xavier

Interview with Ismail Xavier

Concedida a Mônica Almeida Kornis e Eduardo Morettin

Para começar, poderia nos falar sobre sua formação, nos anos 1960?

– Tive um percurso de cinéfilo que era o clássico naquele momento – falo de 1965-66: um interesse que partia da frequência à Cinemateca, foco de exibição de filmes e de ciclos especiais, e do cineclubismo, nesse caso dentro da universidade. Naquela época, no movimento estudantil, todos os centros acadêmicos tinham muito interesse em vincular política e cultura, e então havia shows de música, peças de teatro e ciclos de filmes. Como cineclubista dentro da faculdade, a Escola Politécnica da USP, tive minha iniciação nesse terreno, quando você começa a ler livros sobre cinema, acompanhar a crítica na imprensa. Eu e amigos de diversas faculdades tivemos essa sociabilidade de cinéfilos e um primeiro contato com críticos de jornais como Rogério Sganzerla, Antônio Lima e Paulo Ramos. Depois veio a abertura da Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA, e o vestibular no final de 1966 para o Curso de Cinema. Lá, os primeiros professores que tive foram Rudá de Andrade e Jean-Claude Bernardet, em 1967; depois veio o Paulo Emílio Salles Gomes, em 1968, e também Maurice Capovilla e Roberto Santos, que eram dois cineastas já bastante conhecidos. Depois ainda vieram outros, como o Jorge Bodansky, que foi professor de fotografia.

Tradicionalmente, os pontos de reflexão sobre cinema ao longo do século XX foram o cineclubismo, as cinematecas e as universidades, nessa ordem. Os cineclubes deram origem à primeira vanguarda lá dos anos 1910-1920, e criaram o contexto dentro do qual, em 1911, Ricciotto Canudo lançou em Paris o Manifesto das sete artes, em que ele montou um sistema estético no qual batizou o cinema de "sétima arte". Até o final dos anos 1920, a relação entre cineclubismo e vanguarda foi muito forte. A partir dos anos 1930 começa a haver a questão da história do cinema, e algumas cinematecas são fundadas. Elas vieram se somar aos cineclubes como foco de exibição e reflexão sobre cinema. Nos anos 1960, as universidades entram de maneira mais intensa no campo, e novas gerações, a partir do final da década, começam a ter a primeira experiência de cinéfilos já vinculada à universidade.

Como aluno de Jean-Claude e Paulo Emílio, defini um perfil de quem tendia mais para o campo da reflexão, da crítica, mais para uma profissionalização como professor do que como cineasta. A experiência prática mais sistemática que eu cheguei a ter enquanto aluno da graduação, além de exercícios de direção, foi a da montagem. Com esse trabalho em alguns curtas-metragens, tive experiência razoável como montador. Até hoje tenho o olhar de montador. Isso é muito nítido. Porque ele dá a você a experiência direta do momento de estruturação, do momento em que o filme se constrói e são tomadas as decisões em relação à articulação entre os planos e à sua duração. Você está ali na moviola – hoje, diante do computador – com o diretor do filme, e é um momento de debate muito interessante, muito formador, inclusive. Essa experiência coincidiu com o momento em que, já formado, fui fazer pós-graduação em Teoria Literária. Paulo Emílio dava aula na Letras, FFLCH-USP, que tinha sido o primeiro vínculo dele com a USP depois da experiência docente na Universidade de Brasília, e, a convite de Antonio Candido, orientou teses a partir do final dos anos 1960. Eu entrei na pós-graduação em Teoria Literária na USP em agosto de 1971 e terminei o mestrado em 1975 e o doutorado em 1980. E aí tive a experiência paralela em Nova York, entre o mestrado e o doutorado na USP, quando comecei um doutorado na New York University que só terminei em 1982.

Quando exatamente você foi para Nova York?

– Em julho de 1975, logo depois de terminar o mestrado. Eu tinha sido aprovado na bolsa Fulbright, que foi o fator que definiu o meu caminho, que, naquele momento, também poderia ter sido a França. Em Nova York encontrei condições extraordinárias, pude estudar muito e, entre setembro de 1975 e setembro de 1976, escrever O discurso cinematográfico, que foi publicado em 1977. Minha tese de mestrado tinha sido uma análise da história da crítica, na França e no Brasil, nos anos 1920, e resultou no livro Sétima arte: um culto moderno, publicado em 1978. Saí do Brasil, portanto, com um mapeamento do campo teórico já feito. E como professor iniciante, entre 1971 e 1975, eu tinha vivido aquele momento de apogeu do estruturalismo, na Teoria do Cinema (com a semiologia francesa, Christian Metz), na Teoria Literária de inspiração linguística (lembremos Ferdinand de Saussure), e na Antropologia (com Claude Levi-Strauss). Eram focos de irradiação de um pensamento sobre as ciências humanas que marcou a ECA, mas que foi examinado de um ponto de vista crítico nos cursos de Antonio Candido e outros professores de Teoria Literária da USP, no momento em que eu fiz o mestrado. Em Nova York, tive contato com outro terreno de reflexão sobre cinema, que era totalmente diferente do contexto francês. Tudo isso gerou uma acumulação de dados e de ideias que estão presentes nos meus dois primeiros livros.

No final de 1977, volto dos Estados Unidos com tudo cumprido no doutorado, exceto a tese. Foi uma experiência fantástica, porque a NYU é no Village, no sul da ilha, e o Departamento de Cinema era formado por um conjunto de professores bastante variado, com um núcleo muito forte ligado à produção do underground de Nova York, à produção do cinema experimental americano ligado às artes plásticas. O conjunto daquela experiência de vanguarda gerou o Anthology Film Archive, dirigido pelo Jonas Mekas, que era um dos líderes desse movimento. Se você quisesse assistir à vanguarda americana de 1947, quando Maya Deren começou a fazer seus filmes, até os anos 1970, você tinha tudo lá. E eles tinham a melhor biblioteca de cinema da cidade. A universidade tinha uma boa biblioteca, o Museu de Arte Moderna tinha uma boa biblioteca, mas a biblioteca do Anthology não só era excelente, como era muito bem organizada e facilitava a pesquisa. Foi isso que tornou possível O discurso cinematográfico, escrito em um ano, dada a encomenda já existente quando eu saí daqui, feita pela Editora Paz e Terra, numa coleção dirigida pelo Jean-Claude. Cumpri o acordo de fazer o livro, num momento em que, digamos, alguém poderia dizer: "Não, agora é que ele não vai fazer." Jean-Claude insistiu, e depois as condições de Nova York me permitiram. Nada como ser bolsista...

Voltando ao momento anterior à sua saída do Brasil, qual foi a importância de Paulo Emílio e Antonio Candido na sua vida intelectual e no seu pensamento?

– Paulo Emílio era a maior referência, podemos dizer, da crítica no Brasil, poço de erudição, inteligência e sagacidade política. Um privilégio tê-lo como orientador e amigo. Minha tese de mestrado dependeu da biblioteca dele depositada na Cinemateca Brasileira, mais do que tudo para o estudo dos franceses – ele tinha morado na França muito tempo e trouxera o que eu precisava. Eu o tive com orientador no período de transição em que ele ingressou no que ironicamente chamava de "fase jacobina", nítida a partir de 1972, quando ficou célebre a sua opção pela pesquisa exclusiva do cinema brasileiro. Quando comecei em 1971, ele aceitou até que eu fizesse essa pesquisa em torno da teoria na França; depois é que, gradativamente, entrou a parte brasileira. Ele foi muito sagaz na maneira de ir me despertando interesse e mostrando a importância da discussão da crítica brasileira dos anos 1920. Devo ao diálogo com ele esse deslocamento que se tornou decisivo na elaboração da tese. Além disso, o contato direto com ele tinha uma dimensão política muito clara, dado que a política era a matriz fundamental das suas preocupações. Isso entrava perfeitamente dentro do espírito de quem tinha estudado nos anos 1960 e cuja cinefilia tinha sido, desde o início, vinculada à política. O diálogo com ele foi extraordinário.

Ao mesmo tempo, a pós-graduação em Teoria Literária me trouxe a oportunidade de assistir aos cursos do Antonio Candido e de outros professores, que foram fundamentais de todos os pontos de vista. As pessoas têm uma ideia, meio à distância, de que o Antonio Cândido seria avesso à teoria, dado o seu estilo de ensaísta que não ostenta a sua formação teórica extraordinária. Pois bem, os dois cursos que fiz com ele foram de Teoria Literária no sentido mais pleno da palavra. Um sobre a categoria do ponto de vista ou do foco narrativo, que é fundamental em todo o meu trabalho e marcou profundamente a minha formação, tanto é que está lá no Sertão Mar, está lá no Alegorias e está nas minhas análises de filmes em muitos artigos. O foco narrativo é uma categoria central na construção da forma cinematográfica ou literária, em se tratando de narrativa. O outro curso foi uma história da Teoria Literária no século XX, começando pelos formalistas russos e chegando a Jacques Derrida. E o fundamental foi aprender a colocar a teoria como um instrumento que se mobiliza a partir de uma certa problemática trazida pelo filme em questão, em função das demandas trazidas pela análise, e não como um movimento de aplicar mecanicamente ou fazer da obra uma ilustração de um ponto de vista teórico. A geração da revista Clima, o pessoal que tinha fundado a revista lá no início dos anos 1940, quando ainda eram estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, eles todos tinham em comum um traço, que era o da produção de um ensaísmo em que não havia ansiedade de exibir referências teóricas como pura citação, às vezes ornamental. Vale a prática da discrição conceitual numa argumentação que deve se impor pela pertinência e coerência na análise do problema em pauta, sendo que a sua sintaxe e a maneira de você conduzir o trabalho é que deve definir afinal de contas o que há de relevante conceitualmente, e o que cabe citar, sem o fetiche dos grandes nomes ou conceitos da moda. Isso eu trago comigo até hoje e ponho em prática na conversa com meus orientandos. Na universidade, há incontáveis teses que começam com introduções teóricas em que há aquela ansiedade de mostrar o que se leu; e depois, quando se vai para a argumentação, a gente vê que aquele debate teórico não tem importância, porque a pessoa ou não assimilou, ou, efetivamente, aquilo era, como eu disse, uma coisa meio ornamental.

Enfim, no meu caso houve essa formação muito forte de ambos, cada um a seu modo, porque não são dois pensamentos idênticos, Antonio Candido e Paulo Emílio. Eles têm muita diferença, mas têm em comum essa postura de ter como traço fundamental a ideia do ensaio que explora uma problemática que você define e que vai se construindo através de um jogo de interrogações, que pode passar por conceitos que são fundamentais, mas desde que esses conceitos se mostrem efetivamente produtivos na lida com aquilo. Quem lê Antonio Candido vê isso com toda clareza. O próprio clássico Formação da literatura brasileira formula o conceito de sistema literário, que é fundamental, mas em nenhum momento aquilo vem como um a priori a ser ostentado a cada capítulo. Pelo contrário. Quer dizer, existe todo um processo de construir. A maneira como ele entende a formação da literatura brasileira, a maneira como ele entende a noção de formação, o que é sistema literário, qual é a ideia do diálogo entre autores, obras e público, como é que isso se deu entre o século XVIII e o fim do século XIX no Brasil, em correlação com a história do país e com experiências literárias de procedências distintas. À medida que você vê a coisa em movimento, se fazendo, é que você entende efetivamente o que está em pauta ali, como é que ele está pensando. E ele tinha uma coisa fundamental, que era – assim, metafórica – a ideia de que nós, a crítica de arte, de cinema, de literatura, somos como artesãos que elaboram seus ensaios a partir de inspirações teóricas diversas, articuladas dentro de um princípio de coerência e pertinência na lida com a problemática que você escolhe, na busca de resposta para as perguntas – estas são decisivas – que a sua relação com a obra é capaz de gerar. Toda teoria tem de ser testada na lida com o objeto, sua potência de explicação tem de ser demonstrada na análise. A pura inscrição do seu trabalho numa metodologia não garante nada. Claro que a teoria é fundamental, mas as intuições também são, pois estão presentes na construção de hipóteses, na percepção do objeto e na interação com ele.

No caso de Paulo Emílio, a formação que você teve passava pelas aulas dele, mas devia passar também pelos textos que ele escrevia no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo. E o grande livro dele nesse sentido, que talvez fosse uma exposição de métodos, é o Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, título com que foi publicada em 1974 a tese que ele defendeu em 1972...

Eu era orientando dele e li a tese sobre Humberto Mauro na época da defesa, em 1972. Acompanhei o processo. Ele brincava muito comigo, dizia: "Não, esse negócio de semiologia não interessa. Vocês, teóricos, e tal..." Eu era o teórico. Mas desde o final dos anos 1960 eu lia os textos dele. Não que tivesse acesso aos artigos mais antigos no Suplemento Literário, pois não estavam compilados. Mas tinha acesso a muitos textos, em especial aos que estavam sendo produzidos naquele período. Além do mais, ele tinha uma presença muito forte nas situações de aula e de conferência, que tinham uma influência muito grande. Eu vivi o impacto do ensaio "Cinema: trajetória no subdesenvolvimento".

No mais, ficou também muito clara a importância da minha passagem pela FFLCH como um todo. Foi fundamental, naquele período, sair do contexto de Cinema e Comunicação e entrar num curso de Letras. Isso me deu também uma ponte para outros departamentos da faculdade, como História, como Filosofia. Entre 1971 e 1974, por exemplo, eu assisti a um curso por ano da Marilena Chauí, como ouvinte. Eu conheci Marilena e tive contato com toda uma série de reflexões críticas sobre aquele momento estruturalista (que me formara na Comunicação), a partir da História da Filosofia. Sem querer dizer que tenho domínio sobre os percursos que ela fazia em aula, o pensamento dela me ajudou a pensar as teorias do cinema.

Voltando ao Antonio Candido, seus cursos tiveram uma incidência enorme na minha lida com uma bibliografia que me acompanharia nos meus trabalhos futuros. No curso de história da Teoria Literária, passávamos pela estilística e por Erich Auerbach, um autor pelo qual ele tem enorme admiração. Todos nós lemos o Mimesis e alguns outros ensaios, que estão em outros contextos. E a leitura do Auerbach foi fundamental, porque foi ela que me estabeleceu uma ponte para pensar o Glauber, e também para ir formulando um pensamento sobre determinado tipo de visão da História construída a partir de um esquema alegórico, que é o que o Auerbach demonstra muito bem quando analisa a noção de figura e a ideia de tempo histórico que foi trazida pelo cristianismo em oposição, digamos assim, ao mundo clássico, que tinha outra noção do tempo e outra noção da alegoria. Auerbach faz essa análise a partir do estudo das figuras de linguagem (a retórica) e em conexão também com a leitura crítica que os filósofos fizeram da mitologia. A mitologia perde a condição de verdade factual referida ao passado. Afirma-se a postura de tratar as suas narrativas como elaborações que guardam um saber, não o da verdade literal do fato narrado, mas um saber que se constitui a partir da interpretação do que está posto pela narrativa. Em geral, essa interpretação leva a um conceito. Prevalece assim a ideia de que a narrativa traz subjacente um conceito fundamental, de que ela traz ensinamentos que a tradição nos lega e que definem uma matriz da cultura que se assimila desde que se saiba interpretar.

No cristianismo, posta a relação entre a Bíblia judaica e os Evangelhos, pensa-se numa verdade histórica, ou numa concepção da lógica que marca o movimento da História, que se constrói ao se estabelecer uma relação entre dois fatos históricos, os quais, apesar de estarem separados por uma certa distância no tempo e de não estarem unidos por uma relação causal, estão vinculados porque um fato prefigura o outro, que virá para completá-lo, para cumprir aquele anúncio feito. Quer dizer, a relação tem um aspecto profético. Por uma determinada semelhança, você tem a relação entre dois fatos que são históricos, não deixam de ser históricos, e que são conectados por uma lógica, ou por um plano. Assim, podemos ver a maneira como o cristianismo insere a vida de Cristo como realização de uma profecia prefigurada na Bíblia judaica: é trabalhando com essa ideia de que fenômenos históricos estabelecem uma lógica do tempo através de um jogo de analogias (sim, porque a alegoria tem um substrato analógico), que se define que a experiência humana no tempo tem sentido e caminha em direção ao telos, salvação. Essa teleologia histórica vai se fazendo através dessas relações, de tal modo que a alegoria não é mais uma relação entre uma narração e um conceito digamos abstrato, um conceito atemporal, como na interpretação que os filósofos gregos fizeram, no século V a.C., de que a figura de Saturno comendo seus próprios filhos era uma alegoria do tempo; não se trata mais de passar de uma história e cair num conceito, e sim de ficar na história e estabelecer uma relação entre os fatos. Essa visão cristã se afasta da ideia do tempo circular e postula que há uma direção que leva a um final, a salvação. É uma visão mítica que teve o seu papel na instituição de uma noção do tempo vetorizado, como o desdobrar de um caminho que leva a algum lugar, noção essa que os historiadores sabem que tem a ver com o processo pelo qual a ideia de história se desenvolveu na cultura ocidental.

Faço essa referência rápida à passagem do conceito de alegoria da tradição clássica para o conceito do 'figural' cristão porque essa formulação teve enorme presença em meus trabalhos, ao lado da formulação do problema da alegoria feita por Walter Benjamin a partir da análise do drama barroco. Esta última – que na verdade estava muito mais em pauta naquele momento que estávamos vivendo, porque foi a partir de 1968, 69 que os textos do Benjamin começaram a ser traduzidos no Brasil – liga-se a uma noção do tempo histórico distinta da do cristianismo. Ela privilegia a ideia da história como um movimento de construção e destruição cujo sentido depende da posição que você ocupa no processo, sendo clássica a formulação de que a história narrada é a dos vencedores. Para os vencedores, a vitória faz sentido, corresponde a um progresso numa experiência do tempo tomada como um caminho em direção ao melhor; para os vencidos, a história é uma catástrofe, colapso de uma cultura, de seus valores, e dos humanos que os encarnam. Daí a crítica de Benjamin à noção de progresso e à ideia de continuidade linear na história; referida à metáfora do trem, essa ideia de uma marcha para a frente levou Benjamin a dizer que a ruptura fundamental é feita por quem puxa o freio, gera a descontinuidade, e não por quem pensa a revolução a partir de uma aceleração de processos em curso. A formulação dele tem como corolário o pensamento de que o impulso revolucionário se liga ao salto no passado, à recuperação da memória do que foi abortado, das aspirações sufocadas pela consolidação do processo que vingou na construção do presente que se combate.

Estou resumindo de forma esquemática, mas essa noção da catástrofe e do desencanto barroco como um sentimento paradigmático que se repõe na história foi uma referência fundamental, embora não exclusiva, que inspirou a minha análise de Terra em transe no primeiro capítulo de Alegorias do subdesenvolvimento, onde trato das diferentes formas de figuração do tempo como catástrofe presentes nos filmes do final da década de 1960.

Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, cinema marginal, de 1993, é um desdobramento da tese Allegories of underdeveloppment: from the aesthetics of hunger to the aesthetics of garbage, que você apresentou à New York University em 1982?

Sim. Minha tese para o doutorado em Nova York, terminada cinco anos depois de eu ter voltado para cá, é a matriz do Alegorias do subdesenvolvimento. Lá já aparece, claramente, essa convivência entre duas noções do tempo: o tempo teleológico profético, que é o tempo do caminho da salvação, e o tempo catastrófico do drama barroco, que é a matriz da construção do conceito de alegoria que o Benjamin faz a partir da análise dos dramas do fim do século XVI e do século XVII, do teatro alemão e de referências a Shakespeare e Calderón. Tais obras de teatro constroem uma visão do poder e da temporalidade da experiência histórica como pautados por um caminho em direção ao colapso de projetos, de dinastias, de reinados. Não há processo teleológico construtivo de um futuro melhor, tal como observado pelos vencedores, que veem na história a confirmação dos valores de que eles próprios são os portadores.

O problema do Benjamin é escovar a história a contrapelo, com a ideia de recuperar aquilo que foi submerso pela teleologia construída pelos vencedores; recuperar na experiência passada os momentos em que houve um embate que deve ser retomado. Fazer isso é intervir no tempo presente. A revolução não é, dentro da continuidade, produzir o futuro. Aí há implicações políticas, porque ele vai fazer a crítica da social-democracia como uma tentativa de fazer esse tipo de projeto de revolução, pautado pela ideia de continuidade, de alguma coisa que vai se acumulando e engata num certo fluxo. Não. Para ele, a revolução é um momento de descontinuidade radical. Como ele diz, é o recuo em face do presente, a não a identificação com ele, que faz você dar o salto para flagrar um momento passado em que você reconhece configurações que têm sua semelhança com o que você conhece da sua própria época. Daí porque o Barroco só é revalorizado a partir de um certo momento, a partir dos séculos XIX e XX, quando a ideia de crise da cultura e crise de uma série de valores está presente. Há algo na configuração atual que faz as pessoas enxergarem o que antes não era possível ver naquele passado. Por outro lado, ele lança outra luz na interpretação da experiência atual, apesar de aparentemente distante, uma vez que há uma conexão entre os dois momentos que se expressa na imagem dialética feita do cotejo entre dois tempos: passado e presente. Essa imagem é produtiva para pensar transformações. Então, estando no presente, para entender o século XVII, você não tem que refazer passo a passo o caminho que o leva continuamente do século XVII ao século XX. Você pode dar o salto direto perfurando esse intervalo de tempo num movimento produtivo, porque não baseado na ideia de continuidade, de sucessão passo a passo. Para ele, o princípio por excelência é o da descontinuidade, do salto.

Na hora em que eu vou para o Alegorias, eu estou com essas duas matrizes, a matriz do conceito de figura, de tipologia cristã, e a da catástrofe, ou seja, a do mecanismo profético do caminho rumo à salvação e a do drama barroco. E eu tive de acrescentar outras referências, para dar conta da alegoria da Pop Art e da alegoria de obras desconstrutivas de teor catastrófico na forma. No livro, eu deixo explícito várias vezes que o importante é saber que o conceito de alegoria tem uma história, que é antiga e requer um exame mais aprofundado. Não que nós tenhamos que alcançar um nível de erudição capaz de abarcar milênios de história para explicar o conceito de alegoria; o essencial é termos, minimamente, uma noção dos pontos-chave, ao longo desses séculos todos, em que a noção de alegoria foi retrabalhada e transformada, até o nosso tempo. Por exemplo, a ideia de descontinuidade pode se manifestar num princípio de colagem, típico do século XX, pelo qual determinado tipo de obra contemporânea a nós pode ser trabalhada a partir do conceito de alegoria; mas não porque seja alegoria cristã ou seja alegoria do drama barroco, e sim porque é uma alegoria baseada no fato de que você entende a totalidade como coleção, e não como organicidade. A ideia é de que você tem um conjunto discreto de elementos que formam uma coleção, ou, se você quiser, uma constelação, que tem que ser pensada a partir da descontinuidade presente na relação entre eles. Tanto é que o próprio Benjamin faz essa ponte, porque ele mesmo trabalha com a ideia da coleção, espírito de coleção, como dotado de uma dimensão alegórica fundamental, que permite trabalhar a colagem e muitas formas de instalação, algo fundamental na arte moderna. E mesmo o problema do cubismo pode engendrar tais relações a partir dessa questão da descontinuidade. Toda a crise do sujeito orgânico e a ideia do sujeito como estilhaçado ou como dotado de descontinuidades internas e contradições, tudo isso passa a ser um dos aspectos para se pensar a relação entre o conceito de alegoria e a experiência contemporânea do século XX.

No Alegorias do subdesenvolvimento você tem tudo isso, enquanto que no Sertão Mar prevalece o Glauber de Deus e o Diabo na terra do sol, que é Auerbach puro: teleologia da história, relações apoiadas na noção de figura e no alegorismo cristão. Então vem aquela questão, que eu digo lá no texto: havia um pensamento dominante que dizia que Deus e o Diabo era um filme marxista, porque era uma crítica da religião. Mas não é isso. É mais complicado. Porque o Glauber faz caminhos cruzados, de tal maneira que a crítica feita a um determinado momento da consciência, seja do cangaceiro, seja do messianismo, na história do sertão, implica uma postura crítica em relação a essas figuras, mas não uma postura crítica em nome de um materialismo que definiria um processo de desalienação gerador de uma lucidez materialista revolucionária. Não é isso. A lógica da história no Deus e o Diabo na terra do sol é pautada por essa matriz cristã, sem a qual ela não funciona. Todo o esforço da minha análise do Deus e o Diabo é este: mostrar como, no Glauber, lutas de classes e referências marxistas convivem com esse alegorismo figural. É por isso que a tese se chamava Narração contraditória. Porque o Glauber sempre viveu dessas contradições, que eu acho que são muito produtivas no trabalho dele como cineasta. Esse lado da luta de classes, do poder, está presente e convive com um grande esquema que ele tem do tempo, que é pautado pela teleologia e pela profecia: o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão. E isso tudo mediado por um diálogo com a cultura popular. Porque um dos pontos de vista do filme, um dos aspectos da narração, é o do cantador do cordel. Mas não é o único, pois convive com a música de Villa-Lobos, com o trabalho da câmera e outros recursos estéticos que se tensionam na produção de um efeito final.

Eu vejo o cinema como lugar onde há um conflito entre diferentes perspectivas que vão conviver ali. E acho que um dos artistas brasileiros que mais intensificaram essa idéia de que a criação é realmente um processo pelo qual você faz convergir diferentes referenciais, que vão entrar em convívio e conflito, é o Glauber. O mesmo ocorre com Terra em transe, que já é uma obra que tem como referência maior o drama barroco, tal como estudado por Walter Benjamin, no sentido pleno da palavra, onde encontramos as figuras do caminho em direção à catástrofe. Ao mesmo tempo, o filme tem alguns aspectos de análise da questão do golpe de Estado, a partir de luta de classes, que define o lado, digamos, materialista do Glauber. Então, o Glauber leitor da Bíblia e o Glauber barroco convivem com essas matrizes de caráter político mais contemporâneo e com a presença do marxismo. Vemos essas convergências até A idade da terra, que também mistura a questão mítica com a questão de uma análise do momento, a partir de condições muito claras.

Para resumir, o fundamental é não ser apressado e não simplesmente ver Benjamin em qualquer trabalho que se analisa a partir da noção de alegoria. Ele é fundamental numa determinada formulação desse conceito, e foi assim um grande momento de abertura de todo um continente para pensar a arte moderna. Mas a história da alegoria é milenar. E é necessário ver diferentes tipos de propostas de cineastas, a partir do que os filmes mesmo solicitam do analista. Eu não posso, por exemplo, pegar o Tonacci e trabalhar com o conceito benjaminiano de alegoria. Não é isso. É outro conceito. Eu não posso pegar o Sganzerla, que é pop, que é essa colagem, que é a constituição da narrativa a partir de citações, a partir da constelação de referências usadas com muita ironia antropofágica na figuração do abismo, e dizer que é barroco como o Terra em transe.

É importante aqui lembrar Fredric Jameson, que tem um texto muito interessante sobre o que é fazer história literária. Está lá no Marxismo e forma, na parte final, depois dos capítulos sobre Sartre, Lukács, Adorno, Ernst Bloch, Benjamin, enfim vários pensadores do século XX. Ele faz ali uma reflexão própria sobre a análise dialética e diz o seguinte: fazer história é pegar uma categoria formal (aí é a centralidade da forma) e ver como, ao trabalhar aquela categoria numa série de obras, as transformações formais das obras vão ao mesmo tempo evidenciando as transformações que podem ser pensadas a partir daquela categoria e caracterizando a relação entre cada obra e sua conjuntura histórica, de modo a selar o nexo entre o movimento histórico na forma e o movimento da história social. Jameson faz isso, por exemplo, na literatura francesa, de Balzac a Zola. Você tem Balzac, Stendhal, Flaubert e Zola. Você tem aí a categoria do realismo, que vai mudando de sentido, porque o realismo de Zola não é a mesma coisa que o do Flaubert, nem o do Stendhal nem o do Balzac. Então você pega uma categoria e vê como as diferentes dimensões que essa categoria vai adquirindo estão relacionadas e interagindo diretamente com o processo histórico maior.

Há a questão do melodrama também, que é outro ponto central dentro do seu trabalho.

É. O melodrama é exatamente a mesma coisa. É uma categoria (gênero dramático) que também tem uma história, desde o momento em que se instituiu no teatro francês, depois da Revolução Francesa. Os italianos chamam a ópera de melodrama, também. Na Itália, essa referência específica à ópera convive com o conceito de melodrama que a gente usa, que quase todo mundo usa, referido à tradição teatral – de diálogos em prosa e em fala cotidiana – construída na França, na Inglaterra, na Alemanha e em outros países como um gênero que se constitui na modernidade, portanto um gênero que é distinto de todas as outras experiências teatrais anteriores, seja a tragédia grega, sejam as formas do teatro medieval, do drama barroco, do teatro clássico francês. Nos últimos 200 anos, o melodrama tem uma história que chega até nós com muitas variantes. E um dos momentos-chave de sua gênese se deu ainda no século XVIII, no trabalho de autores como Diderot, na França, Lessing, na Alemanha, e Lillo, na Inglaterra. O livro do Peter Szondi, Teoria do drama burguês, nos mostra de que maneira se institui, no século XVIII, a noção do drama burguês, com suas premissas de valorização do mundo privado da família, que vão se desdobrar, em sua versão popular, no melodrama teatral. No século XX, entram nesse jogo o cinema, o rádio e a TV, setores de uma indústria cultural que, em verdade, começa no teatro de boulevard francês, que tinha um mercado muito vigoroso e se desenvolvia segundo conceitos que você, depois, vai encontrar na Broadway, em Nova York, ou na televisão. Claro que não se pode dizer que o melodrama do Pixérécourt, que é o autor canônico do melodrama de 1800, é igual ao melodrama da novela da Globo. Não. São coisas completamente distintas, embora tenham uma série de premissas comuns. Como também não se pode dizer que, em Hollywood, Griffith no início do século é igual aos melodramas dos anos 1950 do Douglas Sirk, do Minnelli ou de outros cineastas americanos. Hollywood também tem na sua história conexões a partir das quais você pode, pegando a categoria do melodrama, fazer uma história do cinema industrial e das conexões dele com a história americana e com todo o debate político que em cada momento se conectou com o cinema.

Então, seja a alegoria, seja o melodrama, você tem categorias muito amplas que têm de ser pensadas como categorias dinâmicas, que se transformam historicamente. E essas transformações históricas fazem o elo entre o plano formal da construção da arte, do teatro, do cinema, da literatura, com os momentos históricos vividos. Jameson explicita isto claramente no que chama de constructo dialético, sendo a ideia de constructo emprestada Weber. Você cria um conceito ou incorpora um conceito que está dado aí e, no seu ensaio, você trabalha uma análise desse conceito, acoplada à análise das diferentes manifestações que ocorrem numa determinada série, e aí consegue construir a conexão entre a história formal das obras enquanto resposta a determinada conjuntura histórica. Essa forma tem um sentido e tem que ser interpretada; no fundo, é um enunciado de caráter social e político, claro.

Há uma questão, que já está explicitada na sua reflexão sobre esses conceitos e a história das formas, que aparece nos seus dois livros, o Sertão Mar e o Alegorias do subdesenvolvimento, que me parece muito importante para um público leitor que vem das ciências humanas e que não tem a mesma experiência e o mesmo repertório. Eu me lembro, particularmente no Sertão Mar, de uma frase que, salvo engano, é mais ou menos assim: "O que importa é o que bate na tela." É um ponto de partida metodológico em relação aos filmes. Para o historiador essa afirmação é muito importante, porque dialoga com a própria concepção que ele tem do filme como fonte. No seu trabalho, a história sempre está presente de diferentes maneiras e em diferentes momentos, com Jay Leyda ou com Paulo Emílio, no livro Sétima Arte: um culto moderno ou nos dois livros que acabei de citar. E eu acho que existe um pressuposto, uma dimensão histórica nesse sentido, que é a análise que você propõe em relação aos filmes. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso.

Você citou Jay Leyda, que também foi outro grande diálogo formador para mim. Ele era da mesma geração do Paulo Emílio. Até tiveram uma relação de convívio na França, num determinado momento. Era um historiador desconfiado da teoria, como o outro. Para ele, a questão da obra era a sua relação com o autor, com o projeto que a engendrava. Por isso escreveu o livro Eisenstein at work, quer dizer, Eisenstein trabalhando. Ele escreveu também biografias de grandes figuras da literatura americana – Herman Melvillle e Emily Dickinson são dois exemplos – e escreveu o Kino: história do cinema russo e soviético, que era uma história dentro de um padrão de quem realmente, tal como Paulo Emílio, tinha constituído seu pensamento antes daquele teoricismo que se constituiu nos anos 1960, 70, do qual eu era um pouco filhote, antes dos diálogos que foram essenciais para me colocar numa crise produtiva. Já observei que Marilena Chauí tinha sido muito forte nessa direção, pois virou ao avesso minha formação no início dos anos 1970, trazendo outra maneira de pensar os problemas da fenomenologia e da história. Todas essas influências somadas, restou uma certa maneira de pensar a arte, a literatura, o cinema, com privilégio para o contato com os objetos, a interação direta que desafia as grandes sistematizações teóricas, não para descartar a teoria mas para colocá-la em movimento, pois a teoria é essencial. O valor que isso tem para mim está expresso em O discurso cinematográfico, curiosamente um livro de apresentação de teorias. Não há ali análise de filme nenhum. É uma apresentação dos conceitos e a relação que houve, dentro de um determinado período no século XX, entre diferentes maneiras de conceituar a experiência do cinema. O decisivo é tentar um equilíbrio entre esses movimentos, o do conceito e o da sensibilidade gerada na interação direta com a obra.

Em termos da relação entre cinema e história, você toma, por exemplo, o trabalho de Marc Ferro e mostra como a idéia de contra-história só é possível se você enxergar na tela aquilo que não está previamente construído por toda a erudição histórica, pela acumulação de um conhecimento historiográfico e suas tendências hegemônicas num dado momento. O valor do documento, a imagem como documento não é para confirmar ou ilustrar um pensamento, mas é para gerar um desafio para o olhar, que deve ser capaz de detectar ali, naquele documento, evidências de uma outra coisa que não estava posta de antemão. Algo contrário, às vezes, ao que se poderia supor. A relação com o objeto vai muito além da formação teórica, vai muito além de uma ciranda de conceitos; ela passa pela forma como cada um de nós internaliza tudo isso e se põe inteiro diante do objeto, para poder fazer um diagnóstico, mobilizando toda a sua formação conceitual e sensibilidade, intuição. Deparar-se com um filme, uma obra literária, um quadro, uma peça, e mesmo com a própria conjuntura social vivida, é enfrentar o desafio de perceber certas particularidades e formular as perguntas que permitem desenvolver uma análise a partir de um convívio que tem aspectos que ultrapassam os guias que a teoria te dá. E nesse sentido o Paulo Emílio é fundamental. A famosa frase extraída daquele artigo "Cinema, amor e revolução" é um exemplo extraordinário. Ele começa falando em teorias que respeita e admira, lembrando que posso me apoiar na teoria de Stendhal para pensar a questão do amor, me apoiar na teoria marxista para pensar a revolução, e usar todo o arcabouço de teorias do cinema para pensar os filmes. Mas isso não é tudo nem o decisivo, pois diante de um fato novo, diante do presente, diante da minha conjuntura, eu vou ter que responder aos desafios do amor, do cinema e da revolução a partir de soluções que eu for capaz de inventar, pois cada conjuntura gera desafios que, ao invés de serem lugares de aplicação de teorias, são lugares de problematização. E é nessa interação entre a conjuntura e a tradição teórica que você vai inventar uma forma de equacionar que esteja à altura dessa situação vivida, seja no plano da estética, seja no plano do pensamento político, seja no plano enfim da filosofia. Eu acho que esse artigo dele é muito bom nesse sentido porque, na verdade, ele está falando da relação entre vida, arte e política. São os três polos. Na vida, na política e na relação com a arte, essa dimensão de ter sensibilidade para, internalizando toda uma tradição teórica, não ficar preso a ela dogmaticamente, não ficar cego para os aspectos novos que estão sendo vividos e ser capaz de saber que você está sempre apostando e arriscando. E voltando àquela ideia do artesão, do Antonio Candido, tudo converge, não é? Pois se trata de saber escolher quais são os recursos do pensamento que você deve usar para cada nova situação. Claro que dentro de um princípio de coerência e dentro de uma problemática que se define porque você tem perguntas que orientam a sua pesquisa. As perguntas têm valores por trás delas. Não existe pergunta que você faça que não tenha uma valoração implícita.

Em seu trabalho você produz análises que acabam sempre tecendo algum tipo de consideração, que levam a um certo diagnóstico. Isso ocorre tanto no Sertão Mar, em relação ao momento em que aquelas obras foram feitas, como em outros textos seus, como na análise que você faz do O que é isso, companheiro?. Mesmo no prefácio do Alegorias, que acabou de ser relançado, você tem sempre esse movimento de tentar pensar um pouco o quadro geral da produção cinematográfica a partir das análises que são dedicadas a uma outra ou outra obra; há sempre um esforço de buscar essa sintonia com a conjuntura. Isso ocorre sobretudo nos grandes painéis que você fez sobre cinema moderno, sobre o cinema dos anos 1990 e sobre a produção de documentários brasileiros, publicado este ano na New Left Review.

Os painéis são sempre uma zona de risco muito grande, porque, justamente pelo fato de serem painéis, eles têm uma dimensão de passar por cima de muitas particularidades da situação, que são mais complexas do que aquilo que eles podem mostrar. E aí você tem um imperativo de levar em conta o gênero de texto. Análise de filme é um gênero de trabalho que tem as suas exigências, tem as suas premissas, tem a sua produtividade. Quando você se dispõe a fazer um panorama capaz de definir linhas de força que estão presentes num determinado período histórico, como me aconteceu seja no meu livro O cinema brasileiro moderno, que é voltado para o período da ditadura, fala dos filmes e organiza um campo, seja no O discurso cinematográfico, que tem aquela introdução pedagógica de toda uma série enorme de teorias, o que eu acho fundamental é deixar claro para o leitor qual é a escolha que você fez ao conduzir aquele painel; porque você sabe que fez uma escolha que tem pontos cegos, pontos de que ela não dá conta, nem poderia mesmo dar. Agora, o importante é que o leitor perceba quais são os princípios que norteiam a escolha feita e as perguntas feitas. Idem com relação à análise de filme.

Então, digamos assim, o grande ideal, o grande desejo é conseguir, respeitando as diferentes dimensões, fazê-las conviver, não no mesmo texto, mas num percurso mais amplo que a gente faz, que é a relação entre a teoria, a crítica e a história. Elas formam três polos, se você quiser, um triângulo que cada um de nós enfrenta. Queira ou não, se você quiser fazer crítica, ela terá premissas históricas e teóricas; queira ou não, se você quiser fazer teoria, estará respondendo a problemas trazidos pelos filmes, problemas que só podem ser detectados e percebidos por quem tem uma formação crítica e tem experiência de detectar nos filmes o que, estando ali, é foco de uma indagação, de uma reflexão. Resumindo, há o quadro conceitual, há a interação com o objeto no sentido de uma resposta valorativa, pois a crítica implica juízo, e, ao mesmo tempo, há a história como, digamos assim, o solo a partir do qual tudo se faz. Porque a história, para mim, é a premissa. Não sou historiador, mas, para mim, a história é o solo a partir do qual você pode pensar as coisas. Uma experiência se dá no tempo e dentro de um processo que tem um dinamismo, com o qual você tem de lidar num trabalho sobre arte. Crítica, teoria e história são três dimensões que vão se combinar, com pesos distintos, conforme eu esteja fazendo análise de filme ou um panorama. Se eu estou fazendo uma apresentação de grandes questões teóricas, eu posso, nesse caso específico, usar os filmes como um campo de experimentação das teorias. Em outro contexto, seria um problema fazer uma análise de filme só para transformá-lo em campo de ilustração de uma teoria. Quando digo que um filme é um bom objeto para que, a partir daí, se pense determinadas questões teóricas, isso não esgota o filme. Você pode trabalhar o mesmo filme em outra direção. Cada perspectiva de análise tem de construir as mediações que lhe são próprias para articular a análise textual com esquemas interpretativos que privilegiam um recorte entre outros. A análise histórica de obras, se não construir mediações que permitam dar conta da estrutura específica, ou seja, do que é próprio à materialidade (no caso do filme, imagem e som) e às opções estilísticas daquele gênero de discurso (no caso do filme, as opções de mise-en-scène, montagem e outros componentes da forma que implicam escolhas), se torna algo que com grande probabilidade produzirá uma visão redutora, não dando conta do objeto. A dimensão histórica da obra resulta da forma como tudo nela se constrói.

Seria bom você falar sobre a necessidade de educar o olhar, que é fundamental.

Aí há uma premissa fundamental. Você não pode fazer filosofia da matemática ou história da matemática sem conhecer matemática. Em relação às artes, a mesma coisa. Quer dizer, você tem ali uma experiência acumulada do olhar que, para o observador de hoje, é um ponto de partida para a apreciação das obras, para a construção de parâmetros de descrição e de análise formal e percepção de estilos. Isso interage com a elaboração conceitual e com as teorias que engendram métodos de pesquisa. Só para esquematizar, posso falar de dois polos de formação, sabendo estar criando um esquema que exagera na oposição entre caminhos que na prática estão mais embaralhados. Há quem entre nesse campo pelo caminho da aquisição de repertório através do contato com as obras, contato que forma uma sensibilidade, uma capacidade de discernimento típica de quem conhece muitas variantes. Há quem tenha na formação uma carga maior de leitura e empenho em sistematizar, classificar, ter um domínio conceitual das formas. Há quem tenha olhar de perito e perceba o detalhe e há quem tenha mais olho para a composição, a estrutura. A questão é combinar da melhor maneira possível esses recursos, o que, se pensarmos em termos de teoria, diz respeito à relação entre análises estruturais e análises estilísticas. O olho estrutural critica a ênfase ao estilo dizendo que a estilística se detém em particularidades e, a partir delas, promove o salto mortal para falar de uma obra em sua totalidade. Salto sem mediações, daí pouco consistente, porque quem é que diz que cada detalhe contém o princípio de uma obra inteira, e quem recusa o fato de que o significado de um traço particular depende de sua posição no conjunto? As pessoas mais atentas ao estilo podem responder que a atenção à estrutura corre o risco de só nos dar acesso a generalidades, ao que as obras têm em comum, e perder o essencial, a diferença que marca uma obra. Daí porque nos cursos, e em nosso próprio trabalho, é preciso evidenciar as virtudes da combinação desses dois caminhos – o que dá ênfase à fatura em seu detalhe, e o que dá ênfase à composição.

Em termos do cinema narrativo-dramático, poder-se-ia dizer que interessa articular a análise da estrutura (dramaturgia, narrativa) e a análise do estilo. O que, em termos didáticos, nós chamamos de macroanálise (primeira segmentação que identifica as partes e sua relação com o todo) e microanálise (que identifica detalhes formais decisivos em cada segmento). Isso fica mais visível quando pensamos na análise da relação entre um filme e um romance. Há categorias gerais da narratologia e da dramaturgia que são comuns a cinema e literatura. Posso me apoiar em categorias gerais que me ajudam a elucidar o princípio de composição de uma obra literária e o princípio de composição de um filme, como as questões ligadas à maneira como se trabalha o espaço, a maneira como se trabalha o tempo, a maneira como está definido o foco narrativo ou, de modo geral, a lógica das ações e seus motivos, bem como o ponto de vista segundo o qual se olha para tudo e a partir do qual se narra; porque narrar é inventar um mundo imaginário e no mesmo gesto inventar uma maneira de narrar esse mundo. Eu posso falar de certos tipos de narrações que se manifestam seja na literatura, na história em quadrinhos ou no cinema ou mesmo numa peça de teatro. Por outro lado, existe um ponto que é específico, que é o nível estilístico. Se eu quiser falar do estilo de um filme, eu tenho que falar daquilo que diz respeito aos recursos específicos usados por um cineasta para construir aquele objeto; e esses recursos específicos estão fundados na técnica, na materialidade do processo. Então, falar de cinema estilisticamente é falar de câmera, é falar de certos modos de compor imagem, é falar de montagem e de encenação; ou seja, falar daquilo que depende fundamentalmente da linguagem suporte, que está ancorada numa materialidade e numa técnica. Da mesma forma, para fazer uma análise estilística de uma obra literária, eu vou ter que trabalhar com a sintaxe, com o vocabulário e com formas de definir determinado tipo de figura de linguagem. Então, o nível estilístico de análise é o que contempla a matéria específica de que se faz o discurso, técnicas bem definidas. O que não impede que existam maneiras de você fazer correlações entre estilos no cotejo entre uma obra literária e um filme.

Passando a outro aspecto do problema, falar de estilo é falar de um modo de fazer que implica uma escolha. E quando eu falo em escolha, não falo em decisão necessariamente consciente, intenção expressa. Falo de um trabalho que, uma vez feito, torna claro que aquela é uma maneira de fazer, não é a maneira. Há estilo onde há pluralidade de opções. No caso do cinema, essa pluralidade se evidencia na alternativa entre um plano longo e um plano curto, na oposição entre um primeiro plano e um plano geral, entre formas de montagem ou recusa da montagem. Isso é um dado estilístico. A relação imagem e som também é um dado estilístico que define como, a cada momento, está se dando a relação entre a trilha sonora e a imagem. A mise-en-scène, que os franceses tanto exaltam como um núcleo decisivo, é uma maneira de compor a cena, com ator, com uma série de coisas que vão definindo um estilo; algo que para ser descrito precisa de uma referência direta à aparência construída através de recursos materiais. É diferente de conceitos como gênero, como alegoria. De qualquer modo, os gêneros dramáticos e as figuras de retórica, sendo gerais, devem encontrar um modo de efetivação mediado pela matéria própria a cada fazer artístico.

Essa articulação toda passa também por outro ponto de partida, que é nunca perceber a obra, mesmo a clássica, como algo que se conforma a uma determinada estrutura, sem qualquer possibilidade de tensão entre eventuais canais, entre os campos da imagem e do som. Esse é um ponto de partida importante, que a todo momento você ressalta, como na análise de São Bernardo, filme de 1972 de Leon Hirszman, publicada na revista Literatura e Sociedade com o título "O olhar e a voz: a narração multifocal do cinema e a cifra da História em São Bernardo". No cinema moderno, essa pluralidade de canais se manifesta com intensidade, porque um registro vai para um lado, outro vai para outro, e essas tensões são evidenciadas. Isso não quer dizer que no cinema clássico isso também não aconteça, mas acontece de uma outra maneira.

Você tem razão. É improdutivo ver todos os filmes clássicos industriais feitos em Hollywood como seguindo os mesmos princípios e fazendo sempre a mesma coisa, ou seja, mais do mesmo. Não. Você pode encontrar naqueles que são mais interessantes contradições que mostram que ali há um jogo de forças que tensiona, digamos, o sistema da obra. Diferentes dimensões da fatura e diferentes canais de comunicação (e o filme tem vários) trazendo cada qual o seu aporte. O fato de você ter essa pluralidade de figuras presentes na produção e essa pluralidade de dimensões, o que é inerente à composição de um filme, gera suas contradições. No cinema, a pluralidade de canais derivada da matéria mesma do cinema dá mais ensejo a movimentos conflitantes, mas isso é algo que também existe na obra literária, de outra maneira. Inclusive, eu me lembro que um livro que teve influência na minha geração – Teoria da produção literária, de Pierre Macherey – falava exatamente da relação tensa entre projeto e fatura. Algo que curiosamente está muito presente no seu trabalho, Eduardo. Quer dizer, existe um projeto das ditas narrativas de fundação, que são grandes projetos, monumentais, que em outros países levaram a filmes como Nascimento de uma Nação, Intolerância, Napoleão, etc., e esse projeto pode até alimentar a realização de um filme, como no caso dos filmes do Humberto Mauro que você estudou, mostrando que entre projeto e fatura há uma distância. Ali, isso ocorre por certos motivos. Agora, em qualquer filme você vai ter essa mesma dialética, como também nas obras literárias, pois a pura intenção de um escritor é apenas um ponto de partida que passa por uma série de transformações, algumas inconscientes, de modo que a fatura não confirma e não realiza o projeto tal e qual era desejado.

Macherey faz análise de obras literárias exatamente a partir daí. Ele diz: existem determinados modelos de referência que incidem sobre o trabalho do escritor; um determinado escritor tem um projeto de intervenção no seu momento, mas, ao buscar essa intervenção, ele tem disponíveis determinados modelos oferecidos pela tradição, modelos que entram em contradição com o projeto, que terminam gerando uma outra coisa. Ele diz isso do Julio Verne. E a gente pode dizer isso também, muito depois, da ficção científica do cinema no século XX. Quer dizer, você tem determinada intenção que vem da indústria, mas o modo como as pessoas se inscrevem dentro dela pode mudar a direção do trabalho. E os modelos mobilizados, que vêm de uma tradição já dada, também podem alterar tudo. Por outro lado, você tem isso claramente no cinema militante. Alguém faz um filme com propósito de intervenção política, e essa intervenção política, que tem determinados pressupostos e tem um desejo que vai numa direção, recebe novas inflexões, porque o modelo estético de que o cineasta dispõe e que ele mobiliza pode gerar um resultado que está muito distante do desejado. Em todos os casos é preciso examinar a relação entre projeto e fatura, para ver o que efetivamente está na tela. Por isso, a entrevista com um cineasta é um documento à parte. Não estou dizendo que os cineastas não devem ser lidos nas suas entrevistas. Mas são entrevistas de alguém que está falando de uma obra que não se confunde com as intenções nem com a maneira como ele vê seu próprio trabalho.

Gostaria que nos contasse sobre o seminário realizado em 2011 na França em torno do seu trabalho.

Ali foi o seguinte: fui para desenvolver um seminário de doutorado na Universidade de Paris III durante um mês, seminário de três sessões em torno da relação entre alegoria e história, a partir de determinados trabalhos que, na verdade, não incluíam o cinema brasileiro, pois eu estava concentrado em Griffith, Eisenstein, Pastrone, Gance, Irmãos Taviani e Manoel de Oliveira, e queria fazer um cotejo entre os clássicos e os modernos na lida com a figuração da história em filmes monumentais na forma. Tomando os modernos, há o Non, a vã glória de mandar, do Manoel de Oliveira, que tem um diálogo direto com Intolerância, tal como os irmãos Taviani, que em Bom dia, Babilônia tomam o filme de Griffith como objeto central. Fassbinder, no Casamento de Maria Braun, também faz uma reflexão sobre essa tradição alemã de pensar a história da Alemanha em alegorias, que no tempo clássico eram mais monumentais e, num cinema como o dele, são tratadas com ironia. O contexto do seminário era esse. Além disso, perto da minha partida para a França, o CRECI (Centre de Recherche en Esthétique du Cinema e des Images), dirigido por Philippe Dubois e Nicole Brénez, ambos de Paris IV, fez a proposta de haver um dia inteiro, que eles chamam de journée d'études, de discussão em torno do meu trabalho, convidando pessoas que abordariam diferentes tópicos num diálogo direto comigo.

O nome geral da Jornada foi "Allégorie au cinema: entre l'histoire et la théorie". De manhã, houve a abertura com uma palestra minha, com o tema "Alegoria e teatralidade no cinema de Glauber Rocha". Aí falei de Brasil, de alegoria e da teatralidade, que é assunto da minha pesquisa no momento. Por exemplo, no prefácio para a nova edição do Alegorias do subdesenvolvimento apresento uma série de interrogações que definem a posição do cineasta diante da sua conjuntura, que eram pensadas nos anos 1960-70 a partir das alegorias e agora o são a partir do documentário. Pois bem, dentro da análise do documentário, me interessa o problema da teatralidade, como um dado fundamental da cultura contemporânea que aí se manifesta. No caso daquela conferência valeu a discussão da teatralidade no Glauber, que era outro problema, mas tem o mesmo campo conceitual da discussão sobre teatralidade hoje.

Ampliando o horizonte do debate, veio a fala de quatro pesquisadores que fizeram uma espécie de arguição sobre tópicos diversos do meu trabalho, cada qual com um recorte. Eu até brinquei na hora da minha resposta que estava me sentindo numa defesa de tese, embora sem formalidades. Foi muito engraçado. Cada um fez um diagnóstico, começando por Mateus Araújo e Lucia Monteiro, que são brasileiros. Mateus tem doutorado em filosofia, uma co-tutela Sorbonne-UFMG, e Lucia Monteiro está terminando o doutorado na França, numa co-tutela também, mas com a USP; naquele momento, os dois estavam radicados na França. Marcos Uzal veio para discutir Hitchcock, uma especialidade dele como crítico já bem inserido no campo – tem livros e dirige uma coleção de livros para a Yellow Now –, e o quarto "arguidor" foi o Dario Marchiori, que é italiano, mas tem todo o trabalho dele desenvolvido na França. No período da tarde houve quatro diálogos com outro formato. Foi o momento dos pesquisadores com mais quilometragem. Tive um diálogo sobre Manoel de Oliveira (porque eu tinha o meu texto sobre o Manoel de Oliveira lá no seminário) com Mathias Lavin, que tem o melhor livro escrito na França sobre Manoel de Oliveira. Extraordinário, o livro dele. Depois, tive o diálogo com a Laura Mulvey, e já aí o eixo era a questão da cinefilia e as transformações que ocorreram a partir das novas tecnologias, com ênfase para a nova teoria do espectador diante do DVD. Ela falou da cinefilia no momento da formação dela na Inglaterra dos anos 1960 e sobre o que significava então o diálogo com a França para os ingleses, e eu falei da minha formação no Brasil, e sobre o que significava, nos anos 1970, a nossa relação com esse campo da cinefilia francesa e da teoria francesa. Depois teve o diálogo com o Robert Stam. Aí foi sobre o Brasil. Foi o único diálogo sobre o Brasil, direto sobre o cinema brasileiro, pois ele era o único brasilianista entre meus interlocutores.

O último debate foi com a Nicole Brenez, e foi o mais polêmico de todos, porque era uma análise comparativa do Fredric Jameson e do David James, dois marxistas americanos que têm pontos em comum, mas dirigem seus trabalhos, no caso do cinema, para objetos bem distintos. David James é um teórico que tem um trabalho extraordinário, feito em torno do cinema e também, às vezes, da música. É professor da University of Southern Califórnia, a USC, em Los Angeles. Tal como a Nicole o defende, seu grande mérito é redefinir o cânone, sendo construtor de novos objetos, atento a um cinema que está fora da vista, na maioria das vezes por motivos políticos. Ele sai fora dos objetos usuais da universidade para ir para os objetos mais invisíveis. Um dos seus livros nos traz de volta ao alegórico, pois seu título é Alegorias do cinema. É um livro sobre todo o trajeto do cinema experimental americano, esse mesmo cinema com o qual eu tive um contato enorme a partir do pessoal de Nova York. E ele tem um diálogo forte com o Jameson, com a Annette Michelson, que foi minha orientadora, e com P. Adams Sitney, que foi meu professor na NYU. Então o cotejo era entre o James, como paradigma de postura de um teórico de esquerda diante do cinema, e o Jameson, que ela criticou porque preso a obras canônicas, seja à própria indústria hollywoodiana, seja aos grandes nomes, como Godard e outros autores europeus e asiáticos. Havia uma polêmica implícita, porque o pressuposto da Nicole era privilegiar David James e ter uma postura crítica em relação ao Jameson, me jogando na posição de advogado deste. E eu fiquei numa posição de buscar outro lugar, que era bem diferente do dela, e sem assumir essa posição de advogado de Jameson, embora mostrando o quanto James nele se apoiou para construir seu método de trabalho. No debate, houve uma explicitação de uma série de coisas que os dois têm em comum ou em conflito, forma de atravessar várias questões teóricas presentes na análise dos filme contemporâneos. Foi superprodutivo e ajudou muito.

Essa jornada se realizou em Paris III?

Foi um evento da Paris III, mas o CRECI promove essas jornadas no Instituto Nacional de História da Arte, INHA, e por um acaso surreal tudo se passou na Sala Walter Benjamim! Digo acaso porque era a sala onde normalmente as jornadas acontecem, e só esta teve a alegoria como tema da palestra de abertura e de alguns debates. O interessante é que me gerou um desafio, ainda mais com a falação que durou o dia todo, com variações, momentos de um diálogo mais convergente e momentos mais conflitantes.

Outra forma de intervenção sua no debate atual é a coordenação editorial da coleção Cinema, Teatro e Modernidade no que diz respeito a cinema, a partir do lançamento de uma série de livros que são emblemáticos para pensar essa relação com a história, com as questões ligadas à visualidade no sentido mais amplo. Eu queria que você falasse um pouco sobre esse trabalho.

O convite do Charles Cosac aconteceu em 2001, exatamente quando eu estava terminando os textos que depois foram reunidos em O olhar e a cena e estava, portanto, totalmente mergulhado nessa relação entre o cinema e a história do teatro, a partir do dito drama burguês do século XVIII e do desenvolvimento de determinados gêneros como o melodrama, potencializador da visualidade no teatro.

Diderot, no século XVIII, reclamava da Comédie Française, dizia: "Isso não é teatro, é declamação de poesia. Em vez de fazer uma mise-en-scène, em vez de construir uma ação no palco, cada ator vem e fala um texto. Isso não é teatro." Diderot queria o ilusionismo no palco, queria a encenação capaz de gerar uma relação com o público, em que a visualidade da cena e a composição das aparências do mundo fossem fundamentais. Tanto é que ele foi o inventor da noção de quarta parede. Reclamava porque os nobres assistiam às encenações sentados em pleno no palco, ali perto dos atores. Era distintivo. E era totalmente anti-ilusionista, se você assim quiser. Daí a ideia da quarta parede: lá é o palco, a plateia tem que estar do lado de cá, e tem de haver uma fronteira clara entre a plateia – cuja presença não deveria ser reconhecida pelos atores – e a cena teatral. Também Voltaire reclamava desse teatro, tal como era encenado na época, onde valia a ideia do primado da poesia do texto, da grande poesia da tragédia grega ou da grande poesia do Racine ou do Corneille, mas com pouca elaboração da cena propriamente dita. Com Diderot temos um desses momentos de defesa da encenação como um dado essencial do teatro, princípio que deu muito mais valor à experiência visual do espetáculo. E Diderot falou do paradoxo do comediante, que é a ideia de que a atuação tem que gerar no público a reação emocional, mas o ator tem que ter a sua técnica. O ator é aquele que, paradoxalmente, constrói tudo para que o público viva intensamente um papel, mas isso não significa que ele tem que necessariamente vivê-lo. Isso iria dar uma discussão longa: Stanislavski, por exemplo, vai montar outra teoria do ator, onde o método se apoia justamente na ideia de que ele representa a emoção da personagem, trazendo, pela memória afetiva, emoções semelhantes tiradas de sua própria experiência. Mas em termos de quarta parede os pressupostos do realismo russo eram os iguais ao de Diderot. Já no cinema, a separação dos espaços é mais radical, e a posição da câmera define o espaço cênico, que também não reconhece a plateia (no cinema clássico, o ator não deve olhar para câmera; atua para ela, mas finge que ela não existe).

Esses são alguns exemplos de problemas comuns a teatro e cinema, e a ideia foi montar uma coleção na qual fosse examinada essa conexão na modernidade (esta entendida como o período pós-Revolução Industrial, porque modernidade, conforme o critério, muda de coordenadas). Como interagem esses dois tipos de espetáculo, de que forma o teatro participa da construção de um tipo de cultura visual que depois seria retomada e potencializada pelo cinema? A mesma pergunta pode ser feita para a questão do drama, e se estender para a relação entre cinema e artes visuais, design e projetos mais totalizantes de construção de uma nova relação entre arte e ambiente, como é analisado no livro do François Albera sobre Eisenstein e o construtivismo, ou no de Jacques Aumont, O olho interminável: cinema e pintura.

O livro de abertura da coleção foi O cinema e a invenção da vida moderna, que é o que mais teve recepção nos cursos de história. É um livro muito amplo, nessa ideia de como se constitui uma experiência do olhar no século XIX, que é anterior ao cinema e estabelece o campo visual dentro do qual o cinema emerge para se tornar o maior catalisador do processo a partir de 1900. Nos livros de teatro publicados na coleção, há um debate teórico central que tem como figura fundamental Peter Szondi, que discute a crise do drama no final do século XIX e as diferentes formas como os dramaturgos lidaram com essa crise, até a emergência do teatro épico de Brecht. Debatendo com ele, há os autores que o homenageiam, mas buscam outro enfoque para pensar os desdobramentos do teatro contemporâneo, como Jean-Pierre Sarrazac, que foi orientando do Bernard Dort quando este era o grande teórico brechtniano na França, junto com Roland Barthes, nos anos 1950. Léxico do drama moderno e contemporâneo, do Sarrazac, é um livro que parte de Teoria do drama moderno, do Szondi, escrito nos anos 1950, mas constrói outro caminho para pensar a superação da crise do drama moderno. O livro de Thies Lehmann, O teatro pós-dramático, faz um panorama de experiências de grupo teatrais que ao longo dos últimos 30, 40 anos se pautaram por esse acento dado ao espetáculo teatral, à performance enquanto tal, com uma minimização do texto. Daí por que pós-dramático. Claro que é polêmica essa noção de pós-dramático, porque implica a constituição de uma teatralidade que não está mais dialogando com a dramaturgia dos grandes autores. Sua publicação gerou uma boa polêmica aqui, envolvendo vários grupos de teatro. Mas, justamente, a idéia da coleção é construir uma coisa meio prismática em torno de determinadas problemáticas, e não ficar apenas numa única linha de reflexão; e também fazer com que haja um cotejo entre diferentes livros sobre cinema e sobre teatro.

O cinema e a invenção da vida moderna, organizado por Leo Charney e Vanessa R. Schwarz, com prefácio seu, de certa forma remete a um outro momento da sua trajetória, que é o do contato com o grupo que Leyda coordenou nos anos 1970, momento em que toda uma geração de historiadores iniciava suas pesquisas.

Tom Gunning, em especial.

Exato. Eu queria que você falasse um pouco sobre aquele momento, que foi emblemático, porque chamou muito a atenção para a problemática histórica. Você já trazia isso, como bem mostrou aqui, e isso seria trabalhado por você de uma outra maneira. Mas acho curioso que o primeiro livro da coleção da Cosac seja justamente algo que remeta a esse momento da sua vida intelectual.

Em 1975, quando eu cheguei a Nova York, havia o grupo coordenado por Jay Leyda no Griffith Project, que foi a pesquisa monumental que eles fizeram em torno dos filmes do Griffith realizados entre 1908 e 1913. Na época, o padrão era o filme de um só rolo, que durava 10, 12 minutos. Participei desse grupo em 1976 e 1977, no momento em que Tom Gunning estava escrevendo a tese que gerou o livro sobre o Griffith. Mas nesse caminho se constituiu o conceito do cinema de atrações, principal noção nessa redefinição dos critérios de análise do cinema do início do século, quando se descartou aquela teleologia que fazia do cinema narrativo a meta e se reduzia o cinema anterior a "primitivo", atribuindo-lhe como único papel preparar o caminho da conquista da narração e da consolidação do cinema narrativo clássico. Havia uma certa influência do pensamento de Walter Benjamin nesse grupo, uma vez que a ideia era fazer a história do vencido, recuperar um tempo esquecido em sua dimensão própria, que era o do "cinema de atrações", que entre 1895 e 1907 teve uma importância enorme e não se reduz a um cinema narrativo precário, como passou a ser visto depois. Aquele grupo de historiadores, que incluiu também André Gaudreault, de Montreal, construiu uma outra temporalidade histórica, baseada no fato de que existia um gênero de filmes cuja questão não era narrar, mas trabalhar com efeitos produzidos pela tecnologia do cinema e fazer desses efeitos o seu próprio objeto. Ao contrário de serem filmes ilusionistas, que constroem o imaginário, no qual a tecnologia se esconde ou se minimiza para o espectador ficar ligado na transparência da narração, eram filmes exibicionistas, no sentido de que você exibia a técnica, e a partir daí você criava determinados efeitos. Então o essencial não era contar a história, mas produzir efeitos, atrações, que iam ressaltar aquilo que é próprio ao cinema.

Curiosamente, esse cinema de atrações, que nessa nova historiografia passou a ter sua qualidade própria e seu universo próprio, em verdade, tem a ver com aquele momento da história, não só do cinema, da passagem do século XIX para o XX. Não por acaso, ele foi uma referência para aqueles que, já nos anos 1920, defendiam um cinema de vanguarda e queriam se afastar da indústria e do narrativo clássico. O cinema experimental dos anos 1920, na sua postura antinarrativa, empenhada em fazer do cinema uma forma de arte que dialogasse com a tradição das artes plásticas ou da música, fez o primeiro elogio do cinema de atrações (inclusive a Germaine Dulac tem um texto, do final dos anos 1920, que é explícito nessa direção), elogio que iria ser recuperado mais adiante, naquele contexto nova-iorquino do cinema experimental americano, que tinha muita incidência na Universidade de Nova Iorque. O cinema de Stan Brakhage, de Hollis Frampton, Michael Snow, Andy Warhol, entre outros. Você tem, assim, na construção do conceito de cinema de atrações uma nova postura do historiador que redefiniu a periodização da história do cinema. Ao mesmo tempo, esse conceito seria afinado a essas posturas, que, ao longo da história do cinema, definiram alternativas ou até recusas radicais dessa tradição narrativa clássica.

É interessante ressaltar que, tendo participado desse grupo ali naquele período, numa experiência que resultou em alguns trabalhos meus – artigos sobre Griffith e, mais tarde, o livrinho da coleção Encanto Radical, da Brasiliense –, terminei por não mais engatar minha pesquisa na deles. Vim para o Brasil e fiquei centrado no cinema moderno brasileiro. Quando voltei para Nova York em 1982, o quadro já era outro, mas em 1986 recuperei, em nova temporada lá, a pesquisa sobre o melodrama que eu havia começado no Griffith Project. Foi nos anos 1970-80 que se constituiu a nova historiografia. E eu a acompanhei de modo intermitente, mantendo relação mais próxima apenas com Tom Gunning. Mas é interessante ver recorrências dessa mesma questão do espetáculo teatral e do cinematográfico, dois campos ligados. A relação entre cinema e teatro é muito mais complexa e muito mais interessante do que aquele senso comum que foi produzido desde o início do século XX, de que o cinema tem que superar as suas raízes teatrais, para não se reduzir a teatro filmado. Essa preocupação, que é daquela época, gerou na crítica cinematográfica esse gesto de atacar um filme dizendo que é teatro filmado. Isso se liga à ideia antiga de uma especificidade do cinema que seria construída a partir do momento em que ele conseguisse se libertar de determinadas influências ou origens. Eu acho que não é por aí; a coisa é mais complexa, vai se processando numa via de mão dupla. O cinema também mudou o teatro. Certas discussões que são feitas hoje no teatro ou nas artes plásticas não existiriam sem o cinema, e vice-versa. A interação desautoriza essa ideia de pureza. O problema fundamental é esse: não confundir a existência de especificidades com o fato de que essas especificidades são o único valor e que respeitá-las ou radicalizá-las é atingir uma pureza desejável. Essa é uma postura redutora. Acho que você pode até fazer uma grande obra a partir desse pressuposto. Mas é uma obra entre outras obras que vão ter outras lógicas e outras maneiras de entender esse problema. Agora, você transformar isso num princípio teórico é um desastre. E aí nós temos de novo o mestre André Bazin, que já cunhou o conceito de cinema como arte impura. Uma impureza inclusive reconhecida por alguém como Adorno, com certo desconforto. Uma das questões que está muito presente na relação do Adorno com o cinema é que, ao contrário da música, em que o Adorno vê um princípio formal inerente e imanente à sonoridade da tradição musical, sem referente externo, o cinema está muito contaminado pelo mundo, por causa da base fotográfica da imagem; há uma contaminação e uma impureza presente no cinema que impede de se pensar o cinema como música. Embora não esteja excluída a realização de um cinema que se quer música, isso não poder ser tomado como princípio geral do cinema, única via de legitimá-lo esteticamente. Pelo contrário. Estou mais interessado no problema das contaminações recíprocas, no cruzamento das artes e dos estilos, e o que vejo à minha volta é uma constelação de espetáculos em que não se pode mais separar teatro, cinema, performance, instalação. É o mundo da cena, da imagem e da palavra sem fronteiras.

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2012

Ismail Xavier é um dos mais importantes teóricos no campo dos estudos cinematográficos. Sinal dessa importância é o verbete a ele dedicado no recente Dictionnaire de la pensée du cinéma (Paris: PUF, 2012), organizado por Antoine de Baecque e Philippe Chevalier. Discípulo de Antonio Cândido e de Paulo Emílio Salles Gomes, priorizou em sua extensa e rigorosa produção acadêmica a análise fílmica, tomando-a como ponto de partida para entender a sociedade e a história, perspectiva que confere ao seu trabalho uma dimensão original e produtiva na abordagem das relações entre arte e política. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (1a ed. 1983; 2a ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007; traduzido para o francês em 2009) e Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, cinema marginal (1a ed. 1993; 2a ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2012) constituem momentos luminosos desse método, obras que também são fundamentais para entender a cultura brasileira dos anos 1960. O exame meticuloso dos filmes, outra vez encetado em O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Nova, Nelson Rodrigues (São Paulo: Cosac & Naify, 2003), convive em seu percurso com trabalhos que delineiam o quadro mais geral do pensamento cinematográfico e de sua história, como é o caso de O discurso cinematográfico: a opacidade e a transferência (4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008; traduzido para o espanhol em 2009) e O cinema brasileiro moderno (3a ed. Rio de Jaeiro: Paz e Terra, 2006), além dos livros organizados A experiência do cinema (2a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991) e O cinema no século (Rio de Janeiro: Imago, 1996). Em sua vastíssima obra, cabe destacar também uma de suas primeiras publicações, Sétima arte: um culto moderno (São Paulo: Perspectiva, 1978), que se debruça sobre as teorias de cinema das vanguardas artísticas dos anos 1910 e 1920 e o contexto brasileiro do mesmo período, leitura ainda atual para aqueles interessados nos estudos a respeito da modernidade, do modernismo e do cinema silencioso brasileiros. Ismail Xavier publicou mais de 70 artigos em diferentes línguas, fato indicativo de sua inserção internacional. Muitos deles ainda não foram reunidos em livro, como é o caso dos importantes estudos realizados para a revista Literatura e Sociedade sobre São Bernardo (1972), de Leon Hirszman, e para a revista Estudos de Cinema acerca da alegoria e da monumentalização em Intolerância (1916), de David Griffith, autor central para Xavier. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, é até hoje responsável pela formação de várias gerações de pesquisadores e estudiosos dos mais diversos temas, diversidade que atesta o gesto do intelectual sempre aberto ao debate e ao enfrentamento do novo nos campos da teoria e da história do cinema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013
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