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O ISEB e os anos 1950 e 1960: reflexões em homenagem a Alzira Alves de Abreu * * O texto foi escrito em homenagem a Alzira Alves de Abreu, importante pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), e apresentado em evento realizado na FVG em 13 de setembro de 2023.

The ISEB and the 1950s and 1960s: reflections in honor of Alzira Alves de Abreu

ISEB y los años 1950 y 1960: reflexiones en homenaje a Alzira Alves de Abreu

Resumo

O artigo teve como objetivo retirar do esquecimento, analisar e valorizar a tese de doutorado de Alzira Alves de Abreu sobre o ISEB, defendida na França em 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975.. Procurou-se também comparar a sua análise com a de outros autores que se dedicaram a estudar o mesmo instituto e inserir o debate daquela época no contexto da sociologia emergente.

Palavras-chave:
Sociologia dos anos 1950; Subdesenvolvimento; Terceiro mundo; Lutas ideológicas; ISEB

Abstract

The article aimed to recover from oblivion, analyze, and value Alzira Alves de Abreu’s PhD thesis on ISEB, defended in France in 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975.. It also sought to compare her analysis with that of other authors dedicated to studying the same institute and inserting the debate of that time in the context of the emerging sociology.

Keywords:
Sociology of the 1950s; Underdevelopment; Third World; Ideological struggles; ISEB

Resumen

Este artículo tuvo el objetivo de sacar del olvido, analizar y valorar la tesis doctoral de Alzira Alves de Abreu sobre el Instituto Superior de Estudios Brasileños (ISEB), defendida en Francia en 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975.. También se pretende comparar su análisis con el de otros autores que estudiaron el mismo instituto y situar el debate de la época en el contexto de la sociología emergente.

Palabras clave:
Sociología de los años 1950; Subdesarrollo; Tercer mundo; Luchas ideológicas; ISEB

No Brasil dos anos 1950 e 1960, as ciências sociais tinham como uma de suas propostas, formuladas sobretudo por Florestan Fernandes, a necessidade de tornar os estudos da sociedade brasileira em conhecimento científico, ou seja, fazer com que a sociologia do país fosse uma ciência. Dentro dessa proposta estava a crítica ao ensaísmo, gênero predominante nas análises sociológicas brasileiras. Tal perspectiva crítica também pode ser visitada no artigo “Sociologia”, de Donald Pierson, publicado no Manual bibliográfico de estudos brasileiros (1949)PIERSON, Donald. Sociologia. In: MORAIS, Rubens Borba; BERRIEN, William (org.). Manual bibliográfico de estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Souza, 1949..

A polêmica entre ideologia versus teoria social guia as análises da época e se faz presente, por exemplo, em ISEB: fábrica de ideologias (1978)TOLEDO, Caio. ISEB: fábrica de ideologias. Prefácio Maria Sylvia Carvalho Franco. São Paulo: Ática, 1978., livro de Caio Toledo, no qual o autor examina o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1955 no Rio de Janeiro. Sobre o Instituto, é importante registrar a tese de Alzira Alves de Abreu, defendida, em 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975., na Universidade Paris-V – René-Descartes. Voltaremos ao tema do ISEB mais adiante.

O CONTEXTO BRASILEIRO DOS ANOS 1950 E AS LINHAS DE INTERPRETAÇÃO SOCIOLÓGICA

Vamos, em primeiro lugar, destacar o imaginário sociopolítico brasileiro dos anos 1950. Aquela conjuntura pode ser vista como o ponto de inflexão entre a tradição dos anos 1920 e 1930 e o processo de modernização que se instaura no mundo e no Brasil após a Segunda Guerra Mundial.

Nos anos 1950 se formou uma nova interpretação do Brasil. Ao comparar o país com outros do mundo, construiu-se uma nova categoria analítica, a de subdesenvolvimento, substituindo a de país atrasado. Ou seja, construiu-se a dicotomia subdesenvolvido versus desenvolvido para substituir a anterior, atrasado versus adiantado. Igualmente relevante foram as transformações no campo político-ideológico que fizeram a questão nacional, originalmente atrelada a movimentos de direita nos anos 1920 e 1930, passar a ser eixo central do pensamento das esquerdas.

Um conjunto de ideias e ideais começa a ganhar corpo a partir da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), fundada, em 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e sediada em Santiago. Quais eram aquelas ideias e ideais? A industrialização pela substituição de importações; a superação da deterioração dos termos de troca; a necessidade de proteção ao mercado interno; e o papel fundamental do Estado no processo de desenvolvimento.

A CEPAL inaugura uma reflexão sobre as economias até então nomeadas de atrasadas, e que passam a ser chamadas de subdesenvolvidas. A teorização cepalina sobre essas economias, na qual se destacaram o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, apresentava alternativas às duas vertentes então predominantes: a economia neoclássica e a marxista. “O subdesenvolvimento não é apenas uma etapa de um processo linear e evolutivo de crescimento pelo qual passarão as economias subdesenvolvidas até chegarem a ser economias capitalistas desenvolvidas” ( Oliveira, 1986: 153OLIVEIRA, Francisco de. Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro. In: MORAES, Reginaldo et al. (org.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 149-168.). As economias subdesenvolvidas não eram uma etapa, mas um produto específico do sistema capitalista desde a expansão mercantilista da Europa em direção às Américas, à África e à Ásia. Essas economias constituem uma diferença no interior do capitalismo.

A teoria do subdesenvolvimento ganha foros de legitimidade devido ao grande movimento de descolonização no pós-Segunda Guerra. Essa teoria nasce como desafio das economias que haviam resistido de forma diferente à crise capitalista dos anos 1930. As teorias do subdesenvolvimento se aplicam aos países que tinham procurado se industrializar, fugir da velha divisão internacional do trabalho — de um lado, os produtores de matérias primas; de outro, os produtores de manufaturados. A teoria cepalina oferece alternativas, caminhos para sair da “camisa de força” da divisão internacional do trabalho. A teorização cepalina se converte em uma pauta de ação posta a serviço de uma burguesia industrial emergente no Brasil e na América Latina. A CEPAL “vai fundamentar teoricamente aquelas tentativas de erro e acerto, de sair da camisa de força, de industrializar-se contra a vontade dos países mais industrializados” ( Oliveira, 1986: 158OLIVEIRA, Francisco de. Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro. In: MORAES, Reginaldo et al. (org.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 149-168.). Segundo Francisco de Oliveira, foi Celso Furtado quem juntou teoria e prática, doutrina e proposição e “transformou-se numa espécie de ‘criador’ do Brasil, de suas mãos nascendo o pensamento sobre o Brasil moderno” ( Oliveira, 1986: 160OLIVEIRA, Francisco de. Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro. In: MORAES, Reginaldo et al. (org.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 149-168.). Furtado esteve engajado de modo teórico e prático, participando de debates e decisões concretas em torno dos rumos da política econômica, tanto como superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) 1 1 Fundada em 1959, com sede em Recife. no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), quanto como ministro de planejamento de João Goulart (1961-1964), no qual esteve engajado na missão de transformar o Brasil. Para Celso Furtado, a industrialização completava o projeto nacional e o Estado tornaria possível a inserção autônoma do Brasil nos quadros da divisão internacional capitalista do trabalho.

O significado dessa matriz é muito importante porque apresenta novas explicações para um velho problema. O Brasil não era atrasado porque sua população era miscigenada; porque fora colonizado por portugueses degredados; porque a Igreja católica impedia o desenvolvimento do capitalismo ao condenar o lucro; porque abaixo do trópico, com as “três raças tristes”, era impossível alcançar-se a civilização; porque o espírito aventureiro do ibérico impedia o progresso do país. Todas essas “razões” explicativas do atraso brasileiro já tinham tido lugar no pensamento brasileiro.

Pode-se, com risco de simplificação, agrupar os principais temas que marcaram os anos 1950 e 1960: desenvolvimento/subdesenvolvimento; substituição de importações; revolução burguesa/revolução nacional; sindicalismo; consciência operária, povo/populismo; campesinato; feudalismo/capitalismo/socialismo.

Neste contexto, criou-se o Instituto Brasileiro de Estudos Sociais e Políticos (IBESP), fundado em 1952, e que reunia intelectuais, economistas, cientistas sociais, filósofos, técnicos de administração pública, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Seus membros se reuniam no Parque Nacional de Itatiaia para realizar estudos dos problemas fundamentais do nosso tempo. Os estudos do IBESP deram ocasião à publicação, entre 1953 e 1956, dos Cadernos do Nosso Tempo. Participaram daquele grupo Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes de Almeida, Alberto Guerreiro Ramos, Evaldo Corrêa Lima, Roland Corbisier, Rômulo Almeida, Ignácio Rangel, entre outros. Eles pretenderam apostar em uma visão de terceiro mundo, de uma “terceira posição” entre os dois blocos, um liderado pelos Estados Unidos (liberalismo) e, o outro, pela União Soviética (marxismo), além do interesse pelo que acontecia nos novos países da África e da Ásia ( Schwartzman, 1979: 56SCHWARTZMAN, Simon. O pensamento nacionalista e os Cadernos de Nosso Tempo. Brasília, DF: Editora UnB, 1979.). Assim, montou-se, no IBESP, uma visão terceiro mundista, a qual procurava escapar da divisão bipolar do mundo e dos efeitos da Guerra Fria. A terceira via teve Hélio Jaguaribe como um de seus mais importantes formuladores. Os ibespianos tinham alguns pontos em comum: liam o sociólogo Karl Mannheim; recebiam influência da CEPAL e absorviam distintas vertentes do existencialismo.

Os membros do IBESP acabam por procurar fontes mais estáveis de financiamento para seus estudos e trabalhos e se voltam para o Estado, no qual, através de Anísio Teixeira, diretor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), são inseridos no organograma do Estado brasileiro sob o nome de Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

O ministro da Educação no governo Café Filho, Cândido Mota Filho, criou o ISEB por meio do Decreto nº 37.068, de 11 de julho de 1955. Cândido Mota Filho, autor de um importante livro sobre Alberto Torres, atualiza desse autor a ideia de criar um instituto de estudos dos problemas nacionais. Ao ISEB caberia a pesquisa, o estudo, a coordenação e orientação — uma política enfim — pensada como instrumento de formulação de uma consciência nacional capaz de produzir uma orientação a ser dada aos problemas do desenvolvimento econômico do país.

Vale lembrar que, nos anos 1950, o Estado é visto como o agente da modernização e da incorporação de parcelas do povo, pelo menos, daquela parte que estivesse integrada ao processo de industrialização, ou seja, aos sindicatos e partidos. Assim, o Estado passa a ser agente da democratização por meio do capitalismo. Aqui estamos dentro do espaço do nacionalismo desenvolvimentista, ou do nacional-populismo.

A ideologia do desenvolvimento é vista como capaz de dar organicidade às ações técnicas de planejamento como as que se tornaram realidade no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Assim se expressou Hélio Jaguaribe ( 1977 : 6JAGUARIBE, Hélio. [Artigo]. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 6, 25 ago. 1977. Caderno Especial.), um dos ideólogos do desenvolvimentismo:

Década extraordinária da decolagem do desenvolvimento, da tomada de consciência da nossa problemática econômico-social, da mobilização das massas, da democracia populista. Década da grande fase madura e fecunda de Getúlio Vargas e da incompatível criatividade de Juscelino Kubitschek. É também década da inocência e das ilusões sobre as terríveis dificuldades sociopolíticas do desenvolvimento.

Entre 1955 e 1964, acirraram-se as lutas ideológicas entre marxistas, liberais e conservadores pela hegemonia do processo histórico. Para muitos membros do ISEB, não fazia sentido estabelecer distinções rigorosas entre ciência e ideologia, entre produção científica e ideológica. Segundo eles, ambas são complementares e voltadas para a defesa dos interesses nacionais. A ideologia é então vista como resultado da reflexão de especialistas — sociólogos, economistas, políticos —, que, superando os limites de seus respectivos campos de pesquisa, chegam ao pensar filosófico. Realizam a compreensão das categorias que configuram o processo histórico e acompanham o projeto de modificação das estruturas fundamentais da nação.

O ISEB incorpora a mesma problemática derivada da CEPAL, mas acopla a ela outros condicionantes. Considera ser necessária a formulação de uma ideologia para tornar possível o desenvolvimento. Entram em cena outros temas e perspectivas: a nação versus antinação; a alienação; a consciência histórica. A ideologia do desenvolvimento era considerada necessária já que, de modo espontâneo, o desenvolvimento não seria alcançado. Consideram que, sem a ideologia da modernização, a nação seria vencida pelas forças do atraso.

Nos anos 1950, a interpretação da realidade brasileira e do processo histórico desdobrou-se em diversas vertentes e produziu acesas polêmicas. A economia, como já mencionamos, era o campo predominante e passou a fornecer as chaves explicativas, inclusive das relações entre cultura e desenvolvimento nacional.

Vamos agora explorar mais de perto as interpretações sobre o ISEB, começando pela contribuição que Alzira Alves de Abreu deu ao tema em sua tese defendida na França, em 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975..

A TESE DE ALZIRA ALVES DE ABREU SOBRE O ISEB

Sua formação, é preciso ressaltar, foi forjada como aluna de História da famosa Faculdade Nacional de Filosofia (FNFI), criada em 1939 e vinculada à Universidade do Brasil. A Faculdade era considerada um dos centros do “esquerdismo” no Rio de Janeiro. O outro era a União Nacional dos Estudantes (UNE), cuja sede era na Praia do Flamengo.

A historiografia predominante na Faculdade, a factual, tinha como expoente o catedrático Hélio Viana. Em contrapartida, o ambiente estudantil da FNFI era efervescente, de luta política com forte presença do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que já contava com a dissidência da linha chinesa, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Foram alunos de História da FNFI, entre outros, Rubem César Fernandes, Pedro Celso Uchôa Cavalcanti Neto e Elio Gaspari. Nelson Werneck Sodré, que fazia parte do ISEB, recebeu uma encomenda do Ministério da Educação para escrever uma coleção de história do Brasil voltada para professores. Então, ele oferece um curso para estudantes de História e, a partir daí, seleciona alunos para serem seus assistentes no projeto de uma História Nova. Pedro Celso, Rubem Cesar e Joel Rufino estão entre aqueles que, selecionados, escreviam as primeiras versões de textos para Nelson Werneck Sodré, segundo depoimento de Rubem Cesar ( 2014 : 47-52CESAR, Rubem. Fora de ordem: viagens de Rubem Cesar. Organização Lucia Lippi Oliveira e Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.).

O Golpe de 1964 entra na FNFI com os chamados Inquérito Policial Militar (IPM), os quais investigam as atividades consideradas subversivas. Com os IPM, e com o clima político a partir de 1964, muitos professores de História foram perseguidos, como no caso de Maria Yedda Linhares, que respondeu, entre 1964 e 1966, a sete inquéritos, tendo sido presa e aposentada compulsoriamente. Maria Yeda Linhares se exila na França, e só retorna ao Brasil em 1974.

O Departamento de Ciências Sociais da FNFI teve menor proeminência na luta política pré-1964. Em sua direção permaneceu, por muitos anos, Hildebrando Leal, catedrático interino, pensador conservador ligado à Igreja católica. O caso de Luiz de Aguiar Costa Pinto é informativo. Graduado em Ciências Sociais na mesma turma de Guerreiro Ramos, Costa Pinto veio a ser assistente de Jacques Lambert desde 1943. Entretanto, ele só conseguiu realizar um concurso para catedrático de Sociologia na Faculdade de Ciências Econômicas, quando ela foi incorporada à Universidade do Brasil.

Com a Reforma Universitária de 1967, criou-se, em 1968, o Instituto de Ciências Sociais, que passou a funcionar na rua Visconde de Olinda, em Botafogo. O Instituto inaugura a pesquisa em Ciências Sociais na Universidade do Brasil e, por sua vez, viverá um clima bastante agitado com o acirramento da luta política: alunos em greve, informantes da polícia assistindo aulas, invasão policial.

Foi no Instituto que se desenvolveu o projeto de pesquisa sobre grupos econômicos e condições institucionais da industrialização brasileira. Uma das figuras mais relevantes foi a do sociólogo, jornalista e intelectual Luciano Martins de Almeida que desenvolvia seu projeto de estudo sobre a burguesia industrial. Luciano Martins pesquisará o que considerou ser as quatro decisões estratégicas para o desenvolvimento brasileiro. Tal pesquisa, desenvolvida para seu doutorado de Estado na França, deu ocasião ao livro Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento: introdução à crise brasileira (1968)MARTINS, Luciano. Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento: introdução à crise brasileira. Rio de Janeiro: Saga, 1968.. Ao analisar as decisões do Estado — criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE); da indústria automobilística; da indústria siderúrgica e da indústria do petróleo —, Luciano Martins atribui o desenvolvimento brasileiro exclusivamente à burocracia iluminista, desmerecendo a participação do empresariado nacional. Tal questão foi apresentada e discutida por Maria Antonieta Parayba Leopoldi (2000)LEOPOLDI, Maria Antonieta Parayba. Política e interesses na industrialização brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado. São Paulo: Paz e Terra, 2000. em Política e interesses na industrialização brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado.

Luciano Martins pesquisou, escreveu e discutiu o papel do empresariado brasileiro e teve grande interlocução com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (1968)CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1968., o qual também estudou o tema em seu livro Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil.

Integravam o projeto de Luciano Martins no Instituto de Ciências Sociais duas pesquisadoras: Alzira Alves de Abreu e Maria Luiza Proença. Participaram do projeto como bolsistas Celina Vargas do Amaral Peixoto, Wellington Moreira Franco, Ayrton Fausto, entre outros.

Fez parte também do IFCS Maurício Vinhas de Queiros, que se notabilizou pelo livro Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja de Canudos.

Vejamos como Glaucia Villas Bôas (2022)VILLAS BÔAS, Glaucia. Maurício Vinhas de Queiroz. Bionotas. Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Porto Alegre, 27 mar. 2022. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/project/mauricio-vinhas-de-queiroz/. Acesso em: 11 nov. 2023.
https://sbsociologia.com.br/project/maur...
se refere ao Instituto de Ciências Sociais, em particular, à presença de Maurício Vinhas de Queiroz do ICS:

O ICS foi o primeiro instituto de pesquisa em Ciências Sociais a integrar uma universidade na cidade do Rio de Janeiro […] Durante os anos em que lá trabalhou, Mauricio Vinhas de Queiroz conviveu com Evaristo de Moraes Filho, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Luiz de Castro Faria, Victor Nunes Leal, Roberto Cardoso de Oliveira e Marina São Paulo de Vasconcellos, que compunham o Conselho Diretor do Instituto. Além desses professores, ele manteve contato próximo com os colegas de sua equipe da pesquisa: Luciano Martins de Almeida, Alzira Alves de Abreu, Maria Luiza Proença, Rosélia Perissé, Maria Stella Amorim e José Antônio Pessoa de Queiroz […], enquanto Gilberto Velho e Alba Zaluar nela se integraram como bolsistas […].

O convívio em ambiente intelectual fértil e promissor, voltado para a discussão e a pesquisa, marcou não só a trajetória de Maurício Vinhas de Queiroz, como repercutiu na formação e na escolha de carreira dos jovens participantes. Os resultados do trabalho causaram impacto nos meios acadêmicos carioca e paulista, uma vez que contrariavam a tese, defendida por políticos e intelectuais à época, de que a burguesia nacional era capaz de conduzir o processo de reformas do país. O Golpe e a instauração da Ditadura Militar, em 1964, logo comprovaram o acerto do projeto [desenvolvido pelos pesquisadores daquele instituto]. Em 1967, o ICS teve suas atividades encerradas [pela Ditadura].

Alzira Alves de Abreu menciona, em entrevista dada ao Projeto Memória das Ciências Sociais, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC, Acervo História Oral), que as prisões dos professores de História e as perseguições aos seus colegas de geração a levaram a viajar para a França em 1969, e lá fazer o doutorado de terceiro ciclo. Para tal, recebeu uma bolsa do governo francês graças ao apoio, diz ela, de Celso Furtado. Levou na mala o projeto de pesquisar o ISEB. Luciano Martins também foi para a França, onde desenvolveu seu doutorado de Estado intitulado Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil (1976)MARTINS, Luciano. Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil. Paris: Anthropos, 1976..

A tese Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB, defendida por Alzira na França em 1975ABREU, Alzira Alves de. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. 1975. Thèse (Doctorat) – Université Paris-V – René-Descartes, Paris. 1975., tinha como propósito pesquisar e discutir o papel do ISEB, e indagar se aquele Instituto pode ou não ser considerado um grupo de interesse, ou seja, se ele age em nome de interesses específicos e que visa influenciar as decisões do poder relativas ao desenvolvimento brasileiro. A pesquisa toma como uma das fontes as obras publicadas pelos principais integrantes do ISEB: Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes de Almeida, Alberto Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe, Ignácio Rangel e Roland Corbisier.

Em sua entrevista ao CPDOC, Alzira menciona que veio ao Brasil durante sua permanência na França, quando entrevistou Hélio Jaguaribe, Darcy Ribeiro e Costa Pinto.

As origens, a organização e a atuação do ISEB merecem a atenção da autora, que destaca os dois grupos que se juntaram em sua formação, um de São Paulo e outro do Rio de Janeiro. Entre as premissas do ISEB, consta que o Instituto deveria estudar os problemas nacionais à luz da inserção do país no contexto internacional. Outra premissa é que deveriam formular soluções aplicáveis. E, vale registrar, seus membros precisavam argumentar e persuadir os responsáveis pelas decisões, já que nenhum deles integrava as esferas de poder no Brasil.

Para fazer chegar sua mensagem aos ocupantes do poder e divulgar suas ideias, os membros do ISEB se utilizaram de cursos, conferências e estudos, muitos publicados em livros pelo Instituto. Pretendiam falar em nome da “burguesia industrial do país”, ou melhor, do setor moderno da indústria.

Entre os principais temas tratados por essa bibliografia do ISEB estão desenvolvimento e subdesenvolvimento, política econômica, substituição de importações, inflação, planejamento, nacionalismo, capital estrangeiro, estatismo e privatismo. Se esses eram os temas comuns, havia grande heterogeneidade de posições relativas a tais temas dentro do grupo do Instituto.

A pesquisa de Alzira Alves de Abreu produziu uma das primeiras teses — não publicada — que teve como objeto o ISEB. Há uma bibliografia de época citada na pesquisa na qual constam Celso Furtado, Roberto Simonsen, Francisco Weffort, Nelson Werneck Sodré e Fernando Henrique Cardoso.

Tentando sumarizar os principais pontos da tese, deve-se registrar que a autora considera, em sua conclusão, que não foi possível comprovar que a atuação do ISEB tenha correspondido a um grupo de interesse. Seus procedimentos envolviam sobretudo argumentação e persuasão. Assim, considera Alzira Alves de Abreu, os membros do ISEB podem ser melhor classificados como uma intelligentsia brasileira. Além das divergências políticas e ideológicas internas, o grupo tinha o mesmo tipo de formação jurídico-humanista em que faltava competência específica para influenciar na planificação necessária, por exemplo, no Plano de Metas. Reitera também que as análises dos isebianos sobre o dilema político-econômico do país eram baseadas na distinção entre setores tradicionais que estavam perdendo o poder versus setores modernos e dinâmicos da economia. Para impulsionar o lado moderno seria necessário uma ideologia do desenvolvimento.

Assim, pretendiam estar representando uma burguesia industrial moderna, ou seja, serem representantes dos interesses dessa burguesia moderna. Quando a situação política do país se deteriora nos anos 1960, o nacional-desenvolvimentismo vai se tornar “ideologia” de mobilização das massas. Os isebianos se unem a setores periféricos — estudantes, frente Parlamentar Nacionalista, PCB — na luta para defender um desenvolvimento dirigido pela burguesia industrial, a qual faria oposição ao capital estrangeiro, predominantemente norte-americano. Seu projeto nacionalista, entretanto, era ultrapassado, conclui a autora, e foi incapaz de impedir a política de associação da “burguesia nacional” com o capital estrangeiro.

AS OUTRAS TESES SOBRE O ISEB

Otema ISEB ainda é pouco estudado tendo em vista a importância que teve à época. Uma outra tese mais recente deve ser mencionada: a de Alexsandro Eugênio Pereira (2003)PEREIRA, Alexsandro Eugênio. A crítica e a polêmica em torno do ISEB. 2003. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003., O ISEB na perspectiva de seu tempo: intelectuais, política e cultura no Brasil (1952-1964). Seu objetivo foi analisar a formação e a atuação dos intelectuais que compunham o Instituto correlacionadas às alterações da conjuntura política.

Embora concorde que os membros do ISEB não pertenciam aos altos postos do poder, observa que alguns deles transitavam em organizações importantes, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os isebianos procuravam assim alianças com o poder econômico e político. Havia também os que exerciam funções técnicas, de segundo escalão, na burocracia federal, como formuladores de políticas públicas, caso de Inácio Rangel e Jesus Soares Pereira, respectivamente no (BNDE) e na Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc).

Alexsandro Pereira (2003)PEREIRA, Alexsandro Eugênio. A crítica e a polêmica em torno do ISEB. 2003. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. destaca as transformações nas posições políticas do país no início dos anos 1960 e registra que, no ISEB, a partir de 1961, uma “nova direção” passa a comandar suas atividades: Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré, Carlos Estevão e Wanderley Guilherme dos Santos, ou seja, figuras mais distantes do grupo de Itatiaia, berço originário do Instituto.

Lembra também que os intelectuais do ISEB estiveram distantes do ensino presente na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. As Faculdades de Filosofia tinham como objetivo principal formar professores e padeciam de um peso burocrático excessivo. No caso do Rio de Janeiro, a pesquisa vai estar presente em instituições fora do universo do ensino universitário, como o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), criado por Anísio Teixeira. A pesquisa vai também ter lugar no Centro Latino-Americano de Ciências Sociais, criado por Luiz Costa Pinto, ligado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). As pesquisas em ciências sociais na Universidade do Brasil só tiveram lugar a partir da criação do Instituto de Ciências Sociais, em 1968.

A trajetória institucional do ISEB foi apresentada por Alexsandro Pereira (1998)PEREIRA, Alexsandro Eugênio. A crítica e a polêmica em torno do ISEB. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 10, n. 11, p. 259-265, 1998. como resultado de mudanças derivadas da conjuntura histórica e da ação dos seus intelectuais, fazendo a seguinte ressalva: a ampliação da comunicação necessária com o povo vai acontecer, não no ISEB, mas no espaço do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Outra vertente de divulgação do pensamento do ISEB em uma linguagem ao alcance de todos será contemplada com a edição dos Cadernos do povo brasileiro, editado por Ênio Silveira, fundador e editor da Civilização Brasileira. O mesmo significado se apresentou na edição da coleção História Nova, organizada por Nelson Werneck Sodré. Ou seja, ampliou-se o papel do intelectual comprometido com a formação da consciência política das camadas populares. Mesmo sem essa inserção direta com o povo, segundo Pereira, o ISEB se envolveu diretamente no debate das Reformas de Base, e as opções de seus quadros inviabilizaram sua sobrevida no pós-1964.

Esta retrospectiva de pesquisas sobre o ISEB não pode deixar de ser mencionar o primeiro livro a ser publicado sobre o Instituto, o de Caio Toledo, ISEB: fábrica de ideologias, tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1974, realizada sob orientação de Maria Sylvia Carvalho Franco, autora da apresentação do livro na edição publicada pela Ática em 1978. A tese de Caio Toledo, assim como o texto da orientadora questiona o conceito de alienação utilizado pelos isebianos. Ele derivava mais da leitura do existencialismo e tinha pouca relação com a análise marxista da alienação do trabalho. Também criticou a ausência de um tratamento rigoroso do trabalho das classes sociais. Ao pregar a aliança de classes, os isebianos estariam negando a contradição fundamental entre capital e trabalho.

Pode-se dizer que a tese de Alzira Alves de Abreu e a de Caio Toledo têm pontos em comum e diferenças. Ambas tratam de ideologia e analisam a produção dos intelectuais do ISEB. No entanto, Caio acentua o equívoco teórico e Alzira o analítico daqueles intelectuais brasileiros.

As críticas e polêmicas suscitadas pelo livro de Caio Toledo, também foram analisadas por Alexsandro Pereira (1998)PEREIRA, Alexsandro Eugênio. A crítica e a polêmica em torno do ISEB. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 10, n. 11, p. 259-265, 1998. em “A crítica e a polêmica em torno do ISEB”. Utilizarei desse artigo na medida em que apresenta de forma clara os pontos centrais da obra de Toledo, isto é, aquelas que geraram as principais polêmicas.

Segundo Pereira, Toledo acentua a ênfase dos isebianos à necessidade de construção de uma ideologia do desenvolvimento, o que permitiria a superação do subdesenvolvimento. Neste sentido, os isebianos acabaram por promover a reabilitação das ideologias em lugar de procedimentos das ciências sociais. A razão disto acontecer, segundo a vertente do marxismo uspiano da época, estaria nos conceitos teóricos com os quais os pesquisadores do ISEB operavam. O que os isebianos apresentavam como ciência, como verdade, nada mais seria do que ideologia, uma vez que as suas propostas estariam atreladas às aspirações do conjunto da nação. Assim, a objetividade científica ficaria dependente do projeto ideológico.

Pereira reafirma que o texto de Maria Sylvia Carvalho Franco, “O tempo das ilusões”, que serviu de prefácio à primeira edição do livro de Toledo, resume a crítica ao ISEB: falta de “precisão” teórica e distorção do idealismo. Uma das divergências fundamentais dos marxistas da USP com os isebianos tratava da compreensão de qual seria a contradição principal, oposição entre capital e trabalho no lugar de oposição entre nação e antinação. Assim, as inconsistências teóricas na formulação da teoria de classes e da contradição principal levaram os isebianos a privilegiar a ideologia e não a ciência, o que, segundo a interpretação de Toledo e de Carvalho Franco, abriu terreno para a “mistificação” e para o “obscurantismo”.

Outro artigo interessante acerca da controvérsia em torno do Instituto é de Aparecida Abranches (1999)ABRANCHES, Aparecida Maria. Ciências sociais e vocação política: o caso do ISEB. In: MAIO, Marcos Chor; VILLAS BÔAS, Glaucia (org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999. p. 329-343., no qual a pesquisadora ressalta que, para os isebianos, a “ideia de que a produção de conhecimento tem como fim contribuir para o destino da sociedade”. Tal premissa estrutura o pensamento dos intelectuais do ISEB.

Segundo a autora, a atitude de engajamento dos membros do ISEB não significou divórcio da ética científica. Assim, Aparecida Abranches estuda as concepções de Guerreiro Ramos de saber em ato e saber engajado, as quais marcam os intelectuais como atores políticos, valendo o exemplo de Max Weber. Guerreiro vai defender uma sociologia “autêntica”, produzida pela superação do “vício europocêntrico” e que tem um propósito salvador e de reconstrução nacional. Vale lembrar que a sociologia militante de Guerreiro Ramos apresenta críticas ao modelo da sociologia paulista, em especial a de Florestan Fernandes ( Oliveira, 1995OLIVEIRA, Lucia Lippi. O trabalho sociológico: dois padrões. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi. A sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. p. 91-110.).

Desse modo, os intelectuais do ISEB se identificam mais com o conceito de intelligentsia, que corresponde melhor a junção da vocação política e científica ao produzir um “saber operacional [e] que redunde em benefício para a comunidade à qual está referido, atuando, portanto, como norteador de medidas a serem encaminhadas pela política nacional” ( Abranches, 1999: 330ABRANCHES, Aparecida Maria. Ciências sociais e vocação política: o caso do ISEB. In: MAIO, Marcos Chor; VILLAS BÔAS, Glaucia (org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999. p. 329-343.).

A sociologia impregnada no ISEB, principalmente em Guerreiro Ramos e em Jaguaribe, “elege a política como objeto de uma reflexão engajada e de uma atitude militante que toma o Estado como lugar privilegiado do agir” ( Abranches, 1999: 342ABRANCHES, Aparecida Maria. Ciências sociais e vocação política: o caso do ISEB. In: MAIO, Marcos Chor; VILLAS BÔAS, Glaucia (org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999. p. 329-343.)

O debate entre ciência e ideologia, entre contradição fundamental e secundária, entre diversas interpretações da realidade histórica brasileira, entre elas a existência ou não do feudalismo no Brasil, marcam os anos 1960.

As teses dos isebianos, suas falhas e seus acertos, lidam com a questão central a respeito das razões e do perfil do “atraso no Brasil”, ou seja, a questão da sobrevivência do arcaico. Como explicar que, no Brasil, os setores modernos reforçam o atraso, o que acaba criando um “circuito fechado”? Florestan Fernandes ( 1987 [1975]FLORESTAN, Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987 [1975].) também lidou com tal questão em A revolução burguesa no Brasil.

Por fim, podemos dizer que a tese de Caio Toledo pode ser considerada como derivada das proposições teóricas do marxismo uspiano, que tem como uma de suas expressões os trabalhos de Maria Sylvia Carvalho Franco. A tese de Alzira Alves de Abreu descende das pesquisas de Luciano Martins, o qual, embora muito esquecido, esteve presente em teses sobre industrialização, empresariado e política do Estado.

O IMPACTO DO DEBATE PARA A SOCIOLOGIA BRASILEIRA

Assim, na sociologia dos anos 1950 e 1960, é possível identificar três linhagens. Certamente, a de maior relevância e influência foi a de Florestan Fernandes, haja vista sua posição e papel central na USP. A segunda foi a de Guerreiro Ramos, cuja divergência com a de Florestan foi comentada por mim em capítulo incluído no livro A sociologia do guerreiro (1995)OLIVEIRA, Lucia Lippi. O trabalho sociológico: dois padrões. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi. A sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. p. 91-110., no qual destaco a proposta de uma sociologia brasileira, ou de uma sociologia feita no Brasil, e que foi perdedora. Membro do ISEB, defensor de uma sociologia engajada, uma sociologia “autêntica”, Guerreiro Ramos teve pouca influência no mainstream. Seus pensamento e propostas, sobretudo aquelas presentes em Administração e estratégias do desenvolvimento (1966)GUERREIRO RAMOS, Alberto. Administração e estratégia do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1966., vieram a marcar o campo da administração pública.

E, por fim, a vertente derivada em especial de Costa Pinto, foi objeto do importante livro Ideias de modernidade e sociologia no Brasil, organizado por Marcos Chor Maio e Glaucia Villas Bôas (1999)MAIO, Marcos Chor; VILLAS BÔAS, Glaucia (org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.. Os autores presentes nessa coletânea não só reconstroem a trajetória de Costa Pinto, mas também a de temas e questões que marcaram as ciências sociais dos anos 1950 e 1960. Ou seja, estão apresentando a história do entendimento que a geração fundadora das ciências sociais teve sobre o Brasil.

O take-off da moderna pesquisa em sociologia no Brasil é herdeira do Projeto UNESCO sobre as relações raciais na Bahia, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro ( Pereira; Sansone, 2007PEREIRA, Cláudio; SANSONE, Lívio (org.). Projeto UNESCO no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.). Ela foi um marco a partir do qual foram criados o CBPE, em 1952, e o CLAPCS, em 1957. Costa Pinto foi fundador do CLAPS e seu diretor de 1957 a 1961.

Entre as décadas de 1950, 1960 e início de 1970, o campo da sociologia acadêmica era definido por dois grandes temas: estrutura social e mudança social. Os cursos e a bibliografia se desdobravam nesses dois temas. O tema da mudança social, assim como o da estratificação social, foram marcantes em vários livros valendo citar o de Costa Pinto, Sociologia do desenvolvimento, publicado pela editora Civilização Brasileira, sendo a primeira edição de 1960COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. Sociologia do desenvolvimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970., a segunda de 1965 e a terceira de 1970COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. Sociologia do desenvolvimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.. A coleção Textos Básicos de Ciências Sociais, editada pela Zahar, também ao longo da na década de 1970, reunia os textos dos principais autores sobre o tema. Vale também lembrar do livro de Octavio Ianni, Teorias de estratificação social: leituras de sociologia, editado pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, em 1972.

Hoje é possível dizer que as mudanças sociais em curso na sociedade brasileira são mais notáveis e visíveis. Entretanto, parece que as resistências às mudanças foram e são mais agudas do que poderiam parecer. Daí a qualificação de estruturais — racismo estrutural, clientelismo estruturar, patrimonialismo estrutural, marginalidade estrutural —, ou seja, as mudanças ainda não foram capazes de alterar a estrutura social.

Referências

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    Fundada em 1959, com sede em Recife.
  • Fonte de financiamento: Não houve.
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    O texto foi escrito em homenagem a Alzira Alves de Abreu, importante pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), e apresentado em evento realizado na FVG em 13 de setembro de 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2023
  • Aceito
    10 Nov 2023
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