Acessibilidade / Reportar erro

Correlação entre exame físico e análise tridimensional da marcha na determinação dos desvios rotacionais em crianças com paralisia cerebral

Resumo

Objetivo

Avaliar a correlação entre dados do exame físico relativos à rotação do quadril e torção tibial com a cinemática do plano transverso em crianças com paralisia cerebral; e determinar quais pontos no tempo e eventos do ciclo de marcha apresentam maior correlação com achados do exame físico.

Métodos

Um total de 195 crianças com paralisia cerebral vistas em dois laboratórios de marcha, de 2008 a 2016, foi incluído neste estudo. As medidas do exame físico incluíram rotação interna do quadril, rotação externa do quadril, ponto médio da rotação do quadril e ângulo do eixo transmaleolar. Foram selecionados seis parâmetros cinemáticos para cada segmento, para avaliar a rotação do quadril e a do pé em relação à perna durante a marcha. As correlações entre exame físico e medidas cinemáticas foram analisadas por coeficientes de correlação de Spearman, e considerou-se um nível de significância de 5%.

Resultados

Comparando as medidas da rotação do quadril e da cinemática do quadril, encontramos correlações moderadas a fortes para todas as variáveis (p<0,001). Os coeficientes mais altos foram observados entre o ponto médio da rotação do quadril no exame físico e a rotação do quadril na cinemática (rho range: 0,48-0,61). Correlações moderadas também foram encontradas entre a medição do ângulo do eixo transmaleolar no exame físico e a rotação do pé em relação à perna na cinemática (faixa rho: 0,44-0,56; p<0,001).

Conclusão

Estes achados podem ter implicações clínicas na avaliação e no tratamento de desvios da marcha do plano transverso em crianças com paralisia cerebral.

Descritores
Paralisia cerebral; Exame físico; Marcha

Abstract

Objective

To evaluate the correlation between physical examination data concerning hip rotation and tibial torsion with transverse plane kinematics in children with cerebral palsy; and to determine which time points and events of the gait cycle present higher correlation with physical examination findings.

Methods

A total of 195 children with cerebral palsy seen at two gait laboratories from 2008 and 2016 were included in this study. Physical examination measurements included internal hip rotation, external hip rotation, mid-point hip rotation and the transmalleolar axis angle. Six kinematic parameters were selected for each segment to assess hip rotation and shank-based foot rotation. Correlations between physical examination and kinematic measures were analyzed by Spearman correlation coefficients, and a significance level of 5% was considered.

Results

Comparing physical examination measurements of hip rotation and hip kinematics, we found moderate to strong correlations for all variables (p<0.001). The highest coefficients were seen between the mid-point hip rotation on physical examination and hip rotation kinematics (rho range: 0.48-0.61). Moderate correlations were also found between the transmalleolar axis angle measurement on physical examination and foot rotation kinematics (rho range 0.44-0.56; p<0.001).

Conclusion

These findings may have clinical implications in the assessment and management of transverse plane gait deviations in children with cerebral palsy.

Keywords
Cerebral palsy; Physical examination; Gait

INTRODUÇÃO

Os pacientes deambuladores com paralisia cerebral (PC) classificados como níveis I-III, de acordo com o Gross Motor Function Classification System (GMFCS),(11. Palisano R, Rosenbaum P, Walter S, Russell D, Wood E, Galuppi B. Development and reliability of a system to classify gross motor function in children with cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 1997;39(4):214-23.)frequentemente apresentam desvios rotacionais da marcha, o que pode levar à disfunção de braços de alavanca e ao aumento do gasto energético.(22. Rethlefsen SA, Kay RM. Transverse plane gait problems in children with cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2013;33(4):422-30.,33. Gage JR, Schwartz MH, Koop SE, Novacheck TF, editors. The identification and treatment of gait problems in cerebral palsy. 2nd ed. Mac Keith Press; 2009. p. 285-36.) Entre os problemas rotacionais mais comuns na PC, estão o aumento da anteversão femoral e a torção tibial externa.(22. Rethlefsen SA, Kay RM. Transverse plane gait problems in children with cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2013;33(4):422-30.55. Hicks J, Arnold A, Anderson F, Schwartz M, Delp S. The effect of excessive tibial torsion on the capacity of muscles to extend the hip and knee during single-limb stance. Gait Posture. 2007;26(4):546-52.)

A avaliação quantitativa destas alterações com base no exame físico é, muitas vezes, subjetiva e imprecisa, o que pode afetar diretamente o tratamento.(66. Davids JR, Benfanti P Blackhurst DW, Allen BL. Assessment of femoral anteversion in children with cerebral palsy: accuracy of the trochanteric prominence angle test. J Pediatr Orthop. 2002;22(2):173-8.88. Sangeux M, Mahy J, Graham HK. Do physical examination and CT-scan measures of femoral neck anteversion and tibial torsion relate to each other? Gait Posture. 2014;39(1):12-6.) Da mesma forma, a mensuração da anteversão femoral e da torção tibial com tomografia computadorizada pode apresentar alta variabilidade inter-e intra-avaliador, podendo não se correlacionar com o exame físico e o padrão real da marcha.(88. Sangeux M, Mahy J, Graham HK. Do physical examination and CT-scan measures of femoral neck anteversion and tibial torsion relate to each other? Gait Posture. 2014;39(1):12-6.1111. Carriero A, Zavatsky A, Stebbins J, Theologis T, Shefelbine SJ. Correlation between lower limb bone morphology and gait characteristics in children with spastic diplegic cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2009;29(1):73-9.)

Muitas estratégias de tratamento buscam melhorar a marcha de crianças com PC, e a correção de problemas rotacionais é essencial no planejamento de intervenções ortopédicas para este grupo de pacientes.(33. Gage JR, Schwartz MH, Koop SE, Novacheck TF, editors. The identification and treatment of gait problems in cerebral palsy. 2nd ed. Mac Keith Press; 2009. p. 285-36.) Por isto, é necessário avaliar adequadamente essas anormalidades, para determinar as melhores indicações cirúrgicas para cada paciente e garantir correções precisas. A combinação entre exame clínico e análise de marcha tridimensional (AM3D) é frequentemente usada em pacientes com PC para essa finalidade.(99. Radler C, Kranzl A, Manner HM, Höglinger M, Ganger R, Grill F. Torsional profile versus gait analysis: consistency between the anatomic torsion and the resulting gait pattern in patients with rotational malalignment of the lower extremity. Gait Posture. 2010;32(3):405-10.,1212. Gage JR. Gait analysis. An essential tool in the treatment of cerebral palsy. Clin Orthop Relat Res. 1993;(288):126-34. Review.)

Estudos já exploraram a correlação entre achados do exame físico e da AM3D apresentando resultados conflitantes, a depender dos parâmetros analisados.(1313. Lee KM, Chung CY, Kwon DG, Han HS, Choi IH, Park MS. Reliability of physical examination in the measurement of hip flexion contracture and correlation with gait parameters in cerebral palsy. J Bone Joint Surg Am. 2011;93(2):150-8.1616. McMulkin ML, Gulliford JJ, Williamson RV, Ferguson RL. Correlation of static to dynamic measures of lower extremity range of motion in cerebral palsy and control populations. J Pediatr Orthop. 2000;20(3):366-9.)Eventuais discordâncias entre dados clínicos e a cinemática podem estar relacionadas a fatores dinâmicos, que não alteram as medidas estáticas do exame físico, como instabilidade articular, desequilíbrio muscular e movimento involuntário.(1414. Desloovere K, Molenaers G, Feys H, Huenaerts C, Callewaert B, Van de Walle P. Do dynamic and static clinical measurements correlate with gait analysis parameters in children with cerebral palsy? Gait Posture. 2006;24(3):302-13.) O impacto destes fatores dinâmicos pode variar, de acordo com a fase do ciclo de marcha, dependendo das forças externas e internas que atuam em cada membro, com possíveis reflexos nas medidas angulares da cinemática. Até onde sabemos, nenhum estudo avaliou especificamente a correlação entre dados do exame físico e a cinemática do plano transverso em diferentes pontos no tempo durante o ciclo de marcha. Determinar qual medida se correlaciona melhor com a avaliação clínica pode ser relevante para o planejamento de correções cirúrgicas nesses pacientes.

OBJETIVO

Determinar se dados do exame físico referentes à rotação do quadril e torção tibial se correlacionam com a cinemática do plano transverso na avaliação do perfil rotacional de crianças com paralisia cerebral, e determinar quais pontos no tempo e eventos do ciclo de marcha apresentam maior correlação com os achados deste exame.

MÉTODOS

Após aprovação pelo Comitê de Ética local de cada centro (CAAE: 53157815.2.1001.0071), analisamos retrospectivamente os bancos de dados de dois laboratórios de marcha separados, localizados em um hospital de Atenção Terciária (Laboratório 1 - Laboratório de Marcha do Hospital Israelita Albert Einstein - LEME, São Paulo, Brasil) e uma unidade de reabilitação (Laboratório 2 - Laboratório de Marcha do Hospital AACD, Unidade Abreu Sodré, São Paulo, Brasil). Realizamos uma busca eletrônica para identificar uma série de pacientes consecutivos submetidos à AM3D completa entre 2008 e 2016.

Os pacientes foram incluídos neste estudo de acordo com os seguintes critérios: idade entre 4 e 18 anos; diagnóstico de PC; diparesia espástica ou hemiparesia espástica; GMFCS I-III; com AM3D e exame físico completos disponíveis no banco de dados.

Pacientes que apresentavam algum dos seguintes critérios foram excluídos deste estudo: cirurgia ortopédica anterior envolvendo osteotomia de derrotação femoral e/ou tibial, componente discinético significativo, e dados incompletos no banco de dados do laboratório de marcha.

Exame físico e análise de marcha tridimensional

Os protocolos para o exame físico e a AM3D eram semelhantes nos dois centros, o que minimizou o risco de diferenças sistemáticas nas medidas. Todas as medidas foram obtidas por fisioterapeutas capacitados, com mais de 1 ano de experiência em AM3D, como parte dos exames de rotina realizados em cada laboratório de marcha, tendo sido analisadas retrospectivamente. O mesmo fisioterapeuta realizou o exame clínico e a AM3D de cada paciente.

O exame físico das alterações rotacionais foi realizado com o paciente em decúbito ventral, com o joelho no lado testado flexionado a 90°. Usando a perna como referência, foram realizadas rotações interna e externa do quadril. O ângulo da rotação do quadril é medido com a ajuda de um goniômetro, usando uma linha vertical e o eixo longitudinal da perna como referência (Figura 1). O ponto médio da amplitude de rotação passiva do quadril foi calculado para cada paciente, conforme descrito por Kerr et al.,(1515. Kerr AM, Kirtley SJ, Hillman SJ, van der Linden ML, Hazlewood ME, Robb JE. The mid-point of passive hip rotation range is an indicator of hip rotation in gait in cerebral palsy. Gait Posture. 2003;17(1):88-91.) como o ponto médio entre as rotações interna (RIQ) e externa máximas do quadril (REQ). A medida clínica da anteversão femoral pelo teste da proeminência trocantérica(1717. Novacheck TF, Trost JP Sohrweide S. Examination of the child with cerebral palsy. Orthop Clin North Am. 2010;41(4):469-88. Review.) não foi utilizada, uma vez que a confiabilidade e a correlação desse teste com a anatomia óssea real podem não ser satisfatórias.(66. Davids JR, Benfanti P Blackhurst DW, Allen BL. Assessment of femoral anteversion in children with cerebral palsy: accuracy of the trochanteric prominence angle test. J Pediatr Orthop. 2002;22(2):173-8.,1818. Chung CY, Lee KM, Park MS, Lee SH, Choi IH, Cho TJ. Validity and reliability of measuring femoral anteversion and neck-shaft angle in patients with cerebral palsy. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(5):1195-205.)A medição da torção tibial também foi realizada com o paciente em decúbito ventral. O ângulo formado entre o eixo central da coxa e o eixo transmaleolar, observado no plano coronal reflete a torção tibial sem a influência de eventuais deformidades intrínsecas dos pés (Figura 2).

Figura 1
Avaliação clínica das rotações interna (A) e externa (B) do quadril
Figura 2
Avaliação clínica da torção tibial usando o eixo transmaleolar

Para coleta de dados cinemáticos, marcadores reflexivos foram posicionados em referências anatômicas específicas descritas por Kadaba et al.(1919. Kadaba MP Ramakrishnan HK, Wootten ME. Measurement of lower extremity kinematics during level walking. J Orthop Res. 1990;8(3):383-92.) Os pacientes foram instruídos a caminharem descalços, em uma velocidade escolhida por eles, ao longo de um corredor de 8m. Para avaliar a variabilidade, foram coletados, no mínimo, dez ciclos de marcha para cada membro inferior. A trajetória dos marcadores dentro do laboratório foi capturada por um sistema eletrônico com oito câmeras de infravermelho (Vicon no Laboratório 1, e Qualisys OQUS300, no Laboratório 2). Os dados foram processados com o software Nexus (Oxford Metrics, Oxford, Reino Unido), no Laboratório 1, e Vicon Clinical Manager, (Oxford Metrics, Oxford, Reino Unido), no Laboratório 2, de acordo com a técnica descrita por Davis et al.(2020. Davis RB III, Ounpuu S, Tyburski D, Gage JR. A gait analysis data collection and reduction technique. Hum Mov Sci. 1991;10(5):575-87.) Foi selecionado um único ciclo de marcha representativo (Figura 3). Para os fins deste estudo, analisamos exclusivamente a cinemática do plano transverso do quadril (rotação do quadril) e do pé (rotação do pé em relação à perna - RP). A RP mede a rotação do pé em relação à posição do joelho durante a marcha.(2121. Gottschalk HP Karol LA, Jeans KA. Gait analysis of children treated for moderate clubfoot with physical therapy versus the Ponseti cast technique. J Pediatr Orthop. 2010;30(3):235-9.)Essa medida foi usada no lugar do ângulo de progressão do pé (APP) para excluir o movimento pélvico e do quadril nas análises que envolviam torção tibial.

Figura 3
Exemplo de cinemática do plano transversal obtida na análise de marcha tridimensional. Lado direito em azul, lado esquerdo em vermelho, marcha normal em verde. As anormalidades mostradas incluem assimetria pélvica, rotação interna do quadril direito e ângulo externo bilateral de progressão dos pés. Este paciente era um menino de 13 anos com hemiparesia direita, anteversão femoral elevada e torção tibial externa no lado afetado

Variáveis analisadas

Os seguintes dados demográficos foram extraídos do banco de dados: idade no momento do exame, classificação topográfica, nível GMFCS e cirurgias anteriores.

Os dados do exame clínico incluíram RIQ, REQ, ponto médio da rotação do quadril (PMRQ)(1515. Kerr AM, Kirtley SJ, Hillman SJ, van der Linden ML, Hazlewood ME, Robb JE. The mid-point of passive hip rotation range is an indicator of hip rotation in gait in cerebral palsy. Gait Posture. 2003;17(1):88-91.) e torção tibial medida pelo eixo transmaleolar (ETM).

Os dados cinemáticos incluíram rotação de quadril no contato inicial, rotação de quadril média no apoio, rotação de quadril média no apoio simples, rotação de quadril máxima, rotação de quadril mínima, rotação de quadril média no balanço, RP no contato inicial, RP média no apoio, RP média no apoio simples, RP máxima, RP mínima, RP média no balanço.

Para todos os ângulos, seguimos a convenção usual de valores negativos para rotação externa e valores positivos para rotação interna. Foram feitas correlações entre (1) exame físico do quadril e cinemática do quadril; (2) torção tibial ao exame físico e cinemática do pé. Cada lado foi analisado individualmente.

Tamanho da amostra

Com base em dados de estudos previamente publicados,(1313. Lee KM, Chung CY, Kwon DG, Han HS, Choi IH, Park MS. Reliability of physical examination in the measurement of hip flexion contracture and correlation with gait parameters in cerebral palsy. J Bone Joint Surg Am. 2011;93(2):150-8.1515. Kerr AM, Kirtley SJ, Hillman SJ, van der Linden ML, Hazlewood ME, Robb JE. The mid-point of passive hip rotation range is an indicator of hip rotation in gait in cerebral palsy. Gait Posture. 2003;17(1):88-91.) um tamanho de amostra de 195 pacientes foi calculado para a obtenção de correlações significativas de pelo menos 0,45, com nível de significância de 5% e poder de 90%.

Análise estatística

As correlações entre as medidas do exame físico e da cinemática foram analisadas pelos coeficientes de correlação de Spearman, apresentados com intervalos de confiança de 95% e valores de p. Para todas as análises, o programa R 3.2.2 (R Core Team, 2015) foi usado, e um nível de significância de 5% foi considerado. As correlações foram interpretadas de acordo com as seguintes diretrizes: coeficiente <0,20, muito fraco; 0,21-0,40, fraco 0,41-0,60, moderado; 0,61-0,80, forte; 0,81-1,00, muito forte.(2222. Evans JD. Straightforward Statistics for the Behavioral Sciences. Belmont (CA): Brooks/Cole Publishing Company; 1996. p. 113.)

RESULTADOS

Uma série de 195 pacientes consecutivos, que cumpriram os critérios de inclusão, formou a amostra deste estudo, com 85 pacientes (43,6%) do Laboratório 1 e 110 (56,4%) do Laboratório 2. Os intervalos de confiança para todas as correlações foram semelhantes nos dois centros, de modo que todos os dados foram analisados como um único grupo. Os dados demográficos estão resumidos na tabela 1.

Tabela 1
Características demográficas dos pacientes incluídos

Quanto às correlações entre as medidas de rotação de quadril ao exame físico e a cinemática do quadril, elas foram moderadas a fortes para todas as variáveis (p<0,001) (Tabela 2). Os valores dos coeficientes de correlação de Spearman variaram de 0,39 a 0,61. Os coeficientes mais altos foram observados entre a PMRQ ao exame físico e os parâmetros da cinemática do quadril, principalmente a rotação de quadril média no balanço. Os coeficientes mais baixos foram observados para as correlações relativas à REQ ao exame físico. Entre os parâmetros da cinemática do quadril, os coeficientes mais baixos foram observados para correlações envolvendo rotação de quadril média no apoio simples.

Tabela 2
Correlações entre as medidas de quadril ao exame físico e a cinemática do quadril

Correlações moderadas também foram encontradas entre a medida do ETM ao exame físico e os dados da cinemática do pé (p<0,001), com coeficientes entre 0,44 e 0,56 (Tabela 3). Os valores mais altos foram observados entre a torção tibial ao exame físico e a RP mínima na cinemática (RP externa máxima). Os coeficientes mais baixos foram observados para correlações envolvendo RP no contato inicial.

Tabela 3
Correlações entre as medidas de torção tibial ao exame físico e a cinemática do pé

DISCUSSÃO

Neste estudo, encontramos correlações significativas entre os dados do exame físico e a análise de marcha na avaliação de perfil rotacional de crianças com PC. Até onde sabemos, este é um dos estudos sobre esse assunto com o maior tamanho de amostra.

Para as análises de rotação de quadril, os coeficientes mais altos foram observados para correlações envolvendo a PMRQ ao exame físico. Resultados semelhantes foram publicados por Kerr et al.,(1515. Kerr AM, Kirtley SJ, Hillman SJ, van der Linden ML, Hazlewood ME, Robb JE. The mid-point of passive hip rotation range is an indicator of hip rotation in gait in cerebral palsy. Gait Posture. 2003;17(1):88-91.) que encontraram correlações significativas entre as medidas do exame físico e os dados de cinemática para o quadril. Os autores reportaram que a PMRQ se correlacionou melhor com a rotação de quadril na fase de apoio, com valores de r entre 0,55 e 0,58. Não houve avaliação separada da cinemática do quadril na fase de balanço, embora os autores tenham reportado tendência de aumento nas correlações quando se considerou a rotação de quadril apenas na fase de apoio. Em nosso estudo, encontramos coeficientes de correlação discretamente mais altos nas análises que envolviam rotação de quadril em balanço.

A rotação do quadril no apoio, particularmente no médio apoio, é bastante útil para estimar o valor necessário da derrotação quando as osteotomias femorais são realizadas para tratar a marcha na PC.(2323. Pirpiris M, Trivett A, Baker R, Rodda J, Nattrass GR, Graham HK. Femoral derotation osteotomy in spastic diplegia. Proximal or distal? J Bone Joint Surg Br. 2003;85(2):265-72.,2424. de Morais Filho MC, Neves DL, Abreu FP Kawamura CM, dos Santos CA. Does the level of proximal femur rotation osteotomy influence the correction results in patients with cerebral palsy? J Pediatr Orthop B. 2013;22(1):8-13.) No entanto, em nosso estudo, as correlações mais baixas entre as medidas do quadril ao exame físico e a cinemática do plano transversal foram observadas para a rotação de quadril no apoio simples. É possível que o aumento da carga sustentada pela extremidade inferior em apoio simples aumentaria o papel de outros fatores, como contraturas, espasticidade e fraqueza. Desloovere et al., encontraram correlações consideráveis da RIQ no apoio com a espasticidade dos flexores do quadril e as contraturas dos adutores do quadril,(1414. Desloovere K, Molenaers G, Feys H, Huenaerts C, Callewaert B, Van de Walle P. Do dynamic and static clinical measurements correlate with gait analysis parameters in children with cerebral palsy? Gait Posture. 2006;24(3):302-13.) o que corrobora ainda mais nossa hipótese.

Além disto, estudos que consideram a medida da anteversão femoral não encontraram correlação adequada entre a anatomia do fêmur proximal e a marcha.(1010. Aktas S, Aiona MD, Orendurff M. Evaluation of rotational gait abnormality in the patients cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2000;20(2):217-20.,1111. Carriero A, Zavatsky A, Stebbins J, Theologis T, Shefelbine SJ. Correlation between lower limb bone morphology and gait characteristics in children with spastic diplegic cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2009;29(1):73-9.)Carriero et al.,(1111. Carriero A, Zavatsky A, Stebbins J, Theologis T, Shefelbine SJ. Correlation between lower limb bone morphology and gait characteristics in children with spastic diplegic cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2009;29(1):73-9.) investigaram a relação entre marcha e morfologia óssea na ressonância magnética (RM) em crianças saudáveis e crianças com PC diplégica espástica. Os autores encontraram correlação significativa entre a anteversão femoral e a rotação pélvica e do quadril em crianças saudáveis, mas não no grupo com PC. Isso enfatiza a importância de fatores dinâmicos na cinemática do quadril no plano transverso em crianças com PC.

Quanto à comparação entre as medidas de torção tibial do exame físico e a cinemática do pé, encontramos correlações moderadas para todos os parâmetros analisados. Resultados semelhantes foram relatados por Aktas et al., que encontraram fortes correlações entre a rotação tibial durante a marcha e a torção tibial medida no exame físico e na tomografia computadorizada.(1010. Aktas S, Aiona MD, Orendurff M. Evaluation of rotational gait abnormality in the patients cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2000;20(2):217-20.)Concordamos com os autores quando eles comentam que a torção tibial provavelmente é o principal fator determinante da rotação tibial durante a marcha, já que a quantidade de rotação nas articulações do joelho e do tornozelo é desprezível. No entanto, é importante destacar que não pudemos usar a medida cinemática de rotação tibial em nossos estudo devido às restrições impostas pela configuração do laboratório de marcha das duas instituições.

Outros estudos usaram o APP para avaliar a cinemática do pé no plano transversal, mas não encontraram correlação entre a torção tibial e a progressão do pé.(1111. Carriero A, Zavatsky A, Stebbins J, Theologis T, Shefelbine SJ. Correlation between lower limb bone morphology and gait characteristics in children with spastic diplegic cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2009;29(1):73-9.,1414. Desloovere K, Molenaers G, Feys H, Huenaerts C, Callewaert B, Van de Walle P. Do dynamic and static clinical measurements correlate with gait analysis parameters in children with cerebral palsy? Gait Posture. 2006;24(3):302-13.) O APP refere-se ao ângulo entre o eixo longitudinal do pé e a linha de progressão da marcha no laboratório, e pode ser influenciado por desvios rotacionais em diferentes níveis, incluindo a pelve, o quadril, a tíbia e o pé.(33. Gage JR, Schwartz MH, Koop SE, Novacheck TF, editors. The identification and treatment of gait problems in cerebral palsy. 2nd ed. Mac Keith Press; 2009. p. 285-36.,2020. Davis RB III, Ounpuu S, Tyburski D, Gage JR. A gait analysis data collection and reduction technique. Hum Mov Sci. 1991;10(5):575-87.) A RP foi usada como parâmetro alternativo neste estudo, embora estejamos cientes de que deformidades no pé podem ter influenciados nossos resultados.(2121. Gottschalk HP Karol LA, Jeans KA. Gait analysis of children treated for moderate clubfoot with physical therapy versus the Ponseti cast technique. J Pediatr Orthop. 2010;30(3):235-9.)Ainda assim, o fato de termos encontrado correlações significativas entre o ETM medido no exame físico e a RP na marcha sugere que este parâmetro é mais representativo da torção tibial do que o próprio APP.

Acreditamos que a combinação de exame físico e AM3D continua sendo muito importante na tomada de decisões relativas à cirurgia ortopédica em pacientes com PC. Fatores dinâmicos podem causar desvios da marcha do plano transverso sem alterações significativas no exame clínico estático, principalmente para rotação de quadril. Isso poderia alterar a escolha do procedimento cirúrgico de uma osteotomia derrotativa do fêmur para uma transposição muscular, por exemplo.(2525. Majestro TC, Frost HM. Posterior transposition of the origins of the anatomic internal rotators of the hip. Clin Orthop Relat Res. 1971;79:57-8.)Nos centros que não oferecem a AM3D, uma análise visual da marcha detalhada, combinada a um exame físico cuidadoso, pode ser uma alternativa viável. No entanto, é importante ressaltar que a análise visual da marcha pode ter baixa concordância interobservadores, principalmente para anormalidades da marcha do plano transverso.(2626. Kawamura CM, de Morais Filho MC, Barreto MM, de Paula Asa SK, Juliano Y, Novo NF. Comparison between visual and three-dimensional gait analysis in patients with spastic diplegic cerebral palsy. Gait Posture. 2007;25(1):18-24.)

Este estudo tem algumas limitações. Os dados foram analisados retrospectivamente e, portanto, podem estar sujeitos a erros de coleta de dados. No entanto, as avaliações de qualidade são uma rotina nas duas instituições, com número limitado de fisioterapeutas capacitados e ortopedistas envolvidos na coleta e interpretação de dados. O fato de este estudo incluir pacientes de dois laboratórios de marcha separados também pode afetar a variabilidade. No entanto, ambos usaram protocolos semelhantes e compartilharam parte dos profissionais envolvidos neste estudo. Finalmente, não fizemos comparações diretas entre os diferentes subtipos de PC e níveis do GMFCS, nem comparamos o lado afetado ao não afetado em hemiparéticos, devido ao pequeno número de pacientes nesse subgrupo.

Tomamos medidas adicionais para aumentar a confiabilidade de nossos resultados, como a análise de poder para estabelecer um tamanho de amostra adequado, a inclusão de uma série de pacientes consecutivos com critérios rigorosos e a análise independente inicial das correlações dos dois centros para detectar diferenças.

CONCLUSÃO

Este estudo confirmou que o ponto médio da rotação do quadril no exame físico é um indicador mais sensível e com utilidade clínica da rotação de quadril durante a marcha para crianças com paralisia cerebral, principalmente na fase de balanço. Além disto, a medida da torção tibial ao exame físico pelo eixo transmaleolar correlaciona-se significativamente com a rotação do pé durante a marcha, particularmente com a rotação externa máxima do pé em relação à perna. Estes achados podem ter implicações clínicas no tratamento de desvios da marcha do plano transverso em crianças com paralisia cerebral.

REFERENCES

  • 1
    Palisano R, Rosenbaum P, Walter S, Russell D, Wood E, Galuppi B. Development and reliability of a system to classify gross motor function in children with cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 1997;39(4):214-23.
  • 2
    Rethlefsen SA, Kay RM. Transverse plane gait problems in children with cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2013;33(4):422-30.
  • 3
    Gage JR, Schwartz MH, Koop SE, Novacheck TF, editors. The identification and treatment of gait problems in cerebral palsy. 2nd ed. Mac Keith Press; 2009. p. 285-36.
  • 4
    Robin J, Graham HK, Selber P Dobson F, Smith K, Baker R. Proximal femoral geometry in cerebral palsy: a population-based cross-sectional study. J Bone Joint Surg Br. 2008;90(10):1372-9.
  • 5
    Hicks J, Arnold A, Anderson F, Schwartz M, Delp S. The effect of excessive tibial torsion on the capacity of muscles to extend the hip and knee during single-limb stance. Gait Posture. 2007;26(4):546-52.
  • 6
    Davids JR, Benfanti P Blackhurst DW, Allen BL. Assessment of femoral anteversion in children with cerebral palsy: accuracy of the trochanteric prominence angle test. J Pediatr Orthop. 2002;22(2):173-8.
  • 7
    Lee SH, Chung CY, Park MS, Choi IH, Cho TJ. Tibial torsion in cerebral palsy: validity and reliability of measurement. Clin Orthop Relat Res. 2009; 467(8):2098-104.
  • 8
    Sangeux M, Mahy J, Graham HK. Do physical examination and CT-scan measures of femoral neck anteversion and tibial torsion relate to each other? Gait Posture. 2014;39(1):12-6.
  • 9
    Radler C, Kranzl A, Manner HM, Höglinger M, Ganger R, Grill F. Torsional profile versus gait analysis: consistency between the anatomic torsion and the resulting gait pattern in patients with rotational malalignment of the lower extremity. Gait Posture. 2010;32(3):405-10.
  • 10
    Aktas S, Aiona MD, Orendurff M. Evaluation of rotational gait abnormality in the patients cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2000;20(2):217-20.
  • 11
    Carriero A, Zavatsky A, Stebbins J, Theologis T, Shefelbine SJ. Correlation between lower limb bone morphology and gait characteristics in children with spastic diplegic cerebral palsy. J Pediatr Orthop. 2009;29(1):73-9.
  • 12
    Gage JR. Gait analysis. An essential tool in the treatment of cerebral palsy. Clin Orthop Relat Res. 1993;(288):126-34. Review.
  • 13
    Lee KM, Chung CY, Kwon DG, Han HS, Choi IH, Park MS. Reliability of physical examination in the measurement of hip flexion contracture and correlation with gait parameters in cerebral palsy. J Bone Joint Surg Am. 2011;93(2):150-8.
  • 14
    Desloovere K, Molenaers G, Feys H, Huenaerts C, Callewaert B, Van de Walle P. Do dynamic and static clinical measurements correlate with gait analysis parameters in children with cerebral palsy? Gait Posture. 2006;24(3):302-13.
  • 15
    Kerr AM, Kirtley SJ, Hillman SJ, van der Linden ML, Hazlewood ME, Robb JE. The mid-point of passive hip rotation range is an indicator of hip rotation in gait in cerebral palsy. Gait Posture. 2003;17(1):88-91.
  • 16
    McMulkin ML, Gulliford JJ, Williamson RV, Ferguson RL. Correlation of static to dynamic measures of lower extremity range of motion in cerebral palsy and control populations. J Pediatr Orthop. 2000;20(3):366-9.
  • 17
    Novacheck TF, Trost JP Sohrweide S. Examination of the child with cerebral palsy. Orthop Clin North Am. 2010;41(4):469-88. Review.
  • 18
    Chung CY, Lee KM, Park MS, Lee SH, Choi IH, Cho TJ. Validity and reliability of measuring femoral anteversion and neck-shaft angle in patients with cerebral palsy. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(5):1195-205.
  • 19
    Kadaba MP Ramakrishnan HK, Wootten ME. Measurement of lower extremity kinematics during level walking. J Orthop Res. 1990;8(3):383-92.
  • 20
    Davis RB III, Ounpuu S, Tyburski D, Gage JR. A gait analysis data collection and reduction technique. Hum Mov Sci. 1991;10(5):575-87.
  • 21
    Gottschalk HP Karol LA, Jeans KA. Gait analysis of children treated for moderate clubfoot with physical therapy versus the Ponseti cast technique. J Pediatr Orthop. 2010;30(3):235-9.
  • 22
    Evans JD. Straightforward Statistics for the Behavioral Sciences. Belmont (CA): Brooks/Cole Publishing Company; 1996. p. 113.
  • 23
    Pirpiris M, Trivett A, Baker R, Rodda J, Nattrass GR, Graham HK. Femoral derotation osteotomy in spastic diplegia. Proximal or distal? J Bone Joint Surg Br. 2003;85(2):265-72.
  • 24
    de Morais Filho MC, Neves DL, Abreu FP Kawamura CM, dos Santos CA. Does the level of proximal femur rotation osteotomy influence the correction results in patients with cerebral palsy? J Pediatr Orthop B. 2013;22(1):8-13.
  • 25
    Majestro TC, Frost HM. Posterior transposition of the origins of the anatomic internal rotators of the hip. Clin Orthop Relat Res. 1971;79:57-8.
  • 26
    Kawamura CM, de Morais Filho MC, Barreto MM, de Paula Asa SK, Juliano Y, Novo NF. Comparison between visual and three-dimensional gait analysis in patients with spastic diplegic cerebral palsy. Gait Posture. 2007;25(1):18-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2017
  • Aceito
    30 Nov 2017
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br