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Tratamento conservador de ferimento penetrante isolado do esôfago cervical: relato de caso

Resumos

Ferimentos traumáticos do esôfago não iatrogênicos são de difícil manejo clínico e requerem condutas individualizadas e cuidadosas. Frente à baixa incidência dessa afecção, a maioria dos centros não possui experiência suficiente para a definição de uma conduta padronizada para o manejo de tais lesões. O tratamento conservador da perfuração do esôfago permanece um tema controverso, embora relatos mais recentes tenham documentado sua eficácia, especialmente após a perfuração, em pacientes que não apresentam outras lesões associadas, instabilidade hemodinâmica ou sinais de sepse. É apresentado aqui o caso de um paciente com ferimento por projétil no esôfago cervical tratado exclusivamente com manejo conservador, tendo sido realizados drenagem da lesão, suporte nutricional por meio de sonda nasoenteral e antibioticoterapia, com evolução satisfatória.

Perfuração esofágica; Trato gastrintestinal superior; Esôfago; Esôfago; Relatos de casos


Non-iatrogenic traumatic cervical esophageal perforations are usually hard to manage in the clinical setting, and often require a careful and individualized approach. The low incidence of this particular problem leads to a restricted clinical experience among most centers and justify the lack of a standardized surgical approach. Conservative treatment of esophageal perforation remains a controversial topic, although early and sporadic reports have registered the efficacy of non-operative care, especially following perforation in patients that do not sustain any other kind of injuries, and who are hemodynamically stable and non-septic. We report a case of a patient sustaining a single cervical gunshot wound compromising the cervical esophagus and who was treated exclusively with cervical drainage, enteral support and antibiotics.

Esophageal perforation; Upper gastrointestinal tract; Esophagus; Esophagus; Case reports


RELATO DE CASO

IPrograma de Residência em Cirurgia Geral, Universidade de Santo Amaro - UNISA, São Paulo (SP), Brasil

IIServiço de Emergência, Hospital Municipal Dr. Moyses Deutsch - São Paulo (SP), Brasil

IIIDisciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Universidade de Santo Amaro - UNISA, São Paulo (SP), Brasil; Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo (SP), Brasil

IVDisciplina de Cirurgia Pediátrica, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, São Paulo (SP), Brasil; Serviço de Cirurgia Pediátrica, Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch - São Paulo (SP), Brasil

VDisciplina de Cirurgia Geral, Universidade de Santo Amaro - UNISA, São Paulo (SP), Brasil; Serviço de Cirurgia Geral, Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch - São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente

RESUMO

Ferimentos traumáticos do esôfago não iatrogênicos são de difícil manejo clínico e requerem condutas individualizadas e cuidadosas. Frente à baixa incidência dessa afecção, a maioria dos centros não possui experiência suficiente para a definição de uma conduta padronizada para o manejo de tais lesões. O tratamento conservador da perfuração do esôfago permanece um tema controverso, embora relatos mais recentes tenham documentado sua eficácia, especialmente após a perfuração, em pacientes que não apresentam outras lesões associadas, instabilidade hemodinâmica ou sinais de sepse. É apresentado aqui o caso de um paciente com ferimento por projétil no esôfago cervical tratado exclusivamente com manejo conservador, tendo sido realizados drenagem da lesão, suporte nutricional por meio de sonda nasoenteral e antibioticoterapia, com evolução satisfatória.

descritores: Perfuração esofágica; Trato gastrintestinal superior; Esôfago/ lesões; Esôfago/radiografia; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

Em ferimentos perfurantes da região cervical, a lesão esofágica na porção cervical ocorre em 4 a 10% dos casos e é responsável por cerca de 70% de lesões ao órgão. Os ferimentos perfurantes no tórax comprometem o esôfago torácico em cerca de 0,5 a 2% dos casos(1,2). Quando o tratamento é estabelecido nas primeiras 24 horas, tempo considerado precoce pela maioria dos autores, o óbito ocorre em 25% dos pacientes. Após esse período, o diagnóstico é considerado tardio e a mortalidade cresce 50%. Quando o tratamento é realizado nas primeiras 24 horas, período padrão-ouro, a taxa de mortalidade é por volta de 25%. Após esse intervalo, é considerado um diagnóstico tardio, e a taxa de mortalidade alcança 50%(3).

RELATO DE CASO

MAM, homem de 27 anos, admitido no Serviço de Emergência do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch vítima de ferimento penetrante. Na internação, apresentou sangramento na vias aéreas; estava hemodinamicamente estável sem alteração do nível de consciência, tendo orifício de entrada do projétil no lado esquerdo da região cervical junto ao músculo esternocleidomastóideo na zona 2, com eliminação de saliva. A intubação orotraqueal foi conduzida. Pouco tempo depois, o paciente tornou-se hemodinamicamente instável. A radiografia do tórax foi realizada no pronto atendimento e não evidenciou pneumotórax. Além disso, observou-se a presença de projétil de arma de fogo na zona perigosa. Devido a esse fato, considerando a condição clínica do paciente, uma cervicotomia exploratória foi sugerida. Encontrou-se lesão no esôfago cervical posterior medindo aproximadamente 2cm. Devido à localização não favorável, bem como a dificuldades na abordagem, decidiu-se implantar sonda nasoenteral e nasogástrica e um dreno laminar paralelo ao ferimento. Foi realizada traqueostomia de proteção no terceiro anel traqueal e, quando o procedimento foi finalizado,

o paciente foi transferido para unidade de terapia intensiva, onde iniciou terapia com anticolinérgico e antibiótico. Após a estabilização hemodinâmica, um TC scan (Figura 1) mostrou projétil de arma de fogo localizado antes dos corpos vertebrais C3/C4, causando degradação por artefatos na imagem local, pneumomediastino moderado e pneumotórax bilateral, resultado provável do barotrauma, que foram drenados prontamente. No segundo dia do pós-operatório o paciente foi submetido à endoscopia digestiva superior para reimplante de sonda nasoenteral, que foi acidentalmente removida, revelando perfuração de formato oval no esôfago medindo aproximadamente 20mm na região posterior, 24cm da arcada dentária superior (Figura 2). O paciente progrediu favoravelmente com a traqueostomia, que foi removida no 5º dia do pós-operatório, e a sonda torácia, removida no 15º dia pós-operatório, seguido do teste do azul de metileno.



No 19º dia do pós-operatório, o exame com contraste (Figura 3) mostrou ausência de extravasamento. Após, foi autorizado o início da nutrição via oral e o paciente recebeu alta hospitalar no 20º dia pós-operatório.


DISCUSSÃO

Em relação ao tratamento das perfurações esofágicas, primeiramente os critérios foram definidos por Cameron et al., em 1979, e, posteriormente, modificados por Altorjay et al., em 1997(1). O tratamento não operatório é o de escolha nos casos em que o paciente tem suspeita ou perfuração limitada, lesão por instrumento na região cervical, drenagem da cavidade esofágica e não obstrução por neoplasia(4,5).

O espaço posterior à retrofaringe constitui a zona perigosa, onde é encontrada anteriormente a fáscia alar e, posteriormente, a fáscia pré-vertebral. Tal espaço estende-se da base do crânio e desce livremente por meio do mediastino posterior até o nível do diafragma, no qual os dois estratos fasciais se fundem(6). Portanto, a zona perigosa oferece a rota anatômica mais importante para uma ligação contígua entre o pescoço e o toráx.

Os abscessos retrofaríngeos estão entre os espaços profundos de maior gravidade, uma vez que a infecção pode se estender diretamente para as regiões anteriores e posteriores do mediastino superior, ou por toda a extensão do mediastino posterior via zona perigosa(7). Pacientes não operados são monitorados de 7 a 10 dias sem nutrição oral, com nutrição parenteral total, e recebendo antibióticos de amplo espectro. Se o paciente permanecer estável após esse tempo, um esofagograma com contraste (gastrograffin) é realizado para verificar se a perfuração está fechada. Se não há evidência de extravasamento do contraste, o paciente inicia alimentação oral(5,6). Neste relato, a opção de introduzir sonda nasoenteral durante período intraoperatório justificou-se pela facilidade e pela segurança, sob a supervisão do cirurgião. O paciente não apresentou outras lesões que comprometessem seu trato digestivo, sendo nutrição enteral, atualmente, a melhor opção para suporte nutricional adequado. A nutrição diminui a translocação bacteriana, atenua a resposta inflamatória durante a fase aguda mediada por citocinas e reduz o risco de uma síndrome de disfunção de múltiplos órgãos.

Pacientes com diagnóstico tardio representam um problema sério. Geralmente, os indivíduos estão em más condições clínicas, necessitando de tratamento agressivo e definitivo. Geralmente requerem procedimentos cirúrgicos múltiplos que apresentam piora nos resultados(8). Complicações, como fístulas cervicais ou esôfago-pleurais e empiema pleural são descritos na literatura(6,9). O tratamento consiste em drenagem extensa para eliminar as fístulas e tratar a infecção pleural(9). O momento adequado para aplicar o tratamento conservador não é fácil de definir, de modo que é prudente e imperativo avaliar a situação clínica. Na fase inicial é difícil antecipar até quando os efeitos da perfuração são limitados ou se progredirão para mediastinite, empiema pleural ou sepse. A experiência do cirurgião é fundamental para definir a conduta, baseada em situação clínica, testes laboratoriais e ferramentas de imagem, se deve ser aplicado tratamento conservador ou, se necessário, procede de acordo com padrões atuais, com um tratamento cirúrgico agressivo, que pode incluir abordagem de controle da lesão antes do tratamento definitivo(9). As opções cirúrgicas na fase aguda são: a exteriorização do esôfago cervical, a drenagem da cavidade torácica ou cavidade mediastinal e a abordagem abdominal para proceder ao posicionamento da sonda de nutrição enteral. O posicionamento da sonda deve ser preferencialmente realizado em jejunostomia, já que, algumas vezes, a sonda gástrica pode ser implantada tardiamente, como parte do procedimento de reconstrução.

REFERÊNCIAS

  • 1. Vogel SB, Rout WR, Martin TD, Abbitt PL. Esophageal perforation in adults: aggressive, conservative treatment lowers morbidity and mortality. Ann Surg. 2005;241(6):1016-21; discussion 1021-3.
  • 2. Weber AL, Siciliano A. CT and MR imaging evaluation of neck infections with clinical correlations. Radiol Clin North Am. 2000;38(5):941-68.
  • 3. Marsico GA, Azevedo DE, Guimarães CA, Mathias I, Azevedo LG, Machado T. Perfurações de esôfago. Rev Col Bras Cir. 2003;30(3):216-23.
  • 4. Altorjay A, Kiss J, Vörös A, Bohák A. Nonoperative management of esophageal perforations. Is it justified? Ann Surg. 1997;225(4):415-21.
  • 5. Ribeiro Junior MA, Alves LD. Ferimentos cervicais: revisão de literatura. Emerg Clín. 2008;14:12-8.
  • 6. Shaffer HA Jr, Valenzuela G, Mittal RK. Esophageal perforation. A reassessment of the criteria for choosing medical or surgical therapy. Arch Intern Med. 1992;152(4):757-61.
  • 7. Brinster CJ, Singhal S, Lee L, Marshall MB, Kaiser LR, Kucharczuk JC. Evolving options in the management of esophageal perforation. Ann Thorac Surg. 2004;77(4):1475-83.
  • 8. Fonseca AZ, Ribeiro MA Jr, Frazão M, Costas MC, Spinelli L, Contrucci O. Esophagectomy for a traumatic esophageal perforation with delayed diagnosis. World J Gastrointest Surg. 2009;1(1):65-7.
  • 9. Reynolds SC, Chow AW. Severe soft tissue infections of the head and neck: a primer for critical care physicians. Lung. 2009;187(5):271-9.
  • Tratamento conservador de ferimento penetrante isolado do esôfago cervical: relato de caso

    Marina Gabrielle EpsteinI; Sara Venoso CostaI; Filipe Gusmão CarvalhoI; Aline Fioravanti PasquettiI; Herico Arsie NetoII; Pamella Tung PedrosoII; Cesar Augusto SimõesIII; Jaques PinusIV; Marcelo Augusto Fontenelle Ribeiro JuniorV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      30 Out 2011
    • Aceito
      03 Mar 2012
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