Acessibilidade / Reportar erro

Feto vivo dentro da bexiga urinária: relato de caso

RESUMO

A fístula vesicouterina é uma condição rara. Sua incidência, no entanto, vem aumentando, devido à maior incidência de cesáreas. A presença de feto vivo dentro da bexiga por meio de uma fístula vesicouterina constutui situação extremamente rara. Relatamos o caso de uma mulher com duas cesarianas anteriores encaminhada para o hospital devido à dor pélvica leve e sangramento genital. Na hospitalização, o exame físico estava normal. A ultrassonografia revelou saco gestacional inserido na parede anterior do útero com feto vivo de aproximadamente 13 semanas, com movimento corporal ativo e frequência cardíaca normal. O abdômen fetal, ao redor da cintura, estava preso na abertura de uma fístula vesicouterina de modo que a cabeça e o tronco fetais estavam totalmente dentro da cavidade da bexiga, enquanto os membros inferiores permaneciam na cavidade uterina. A laparotomia foi realizada, o trajeto fistuloso foi excisado, o feto (que estava sem batimento cardíaco) foi removido ao abrir a bexiga, sendo a cavidade uterina esvaziada. Além disso, foram reparados os defeitos na bexiga e no útero. O pós-operatório transcorreu sem intercorrências. Feto vivo dentro da bexiga é uma condição rara, e a continuidade da gravidez é improvável, sendo que a correção vesicouterina pode ser feita no momento da intervenção cirúrgica.

Descritores:
Aborto; Feto; Obstetrícia; Gravidez; Complicações na gravidez; Fístula urinária

ABSTRACT

Vesicouterine fistula is a rare condition. Its incidence, however, has been increasing due to the higher incidence of cesarean sections. The presence of a live fetus inside the bladder who passed through a vesicouterine fistula is an extremely rare situation. We report a case of woman who underwent two previous cesarean sections, was referred to a hospital due to mild pelvic pain and genital bleeding. At the moment, physical examination was normal. Ultrasound scan revealed a gestational sac inserted into the anterior wall of the uterus, with a living fetus of approximately 13 weeks, with active body movement and normal heart rate inside it. The fetal abdomen, around the waist, was stuck at the opening of a vesicouterine fistula, so that the fetal head and trunk were entirely into the bladder cavity, while lower limbs remained at the uterine cavity. Laparotomy was performed, the fistulous tract was excised, the fetus (without heart beating) was removed on opening the bladder, and the uterine cavity was emptied. The defects in the bladder and uterus were repaired. The postoperative period was uneventful. A live fetus inside the urinary bladder is a rare condition the continuation of pregnancy is unlikely and the vesicouterine correction can be made by the time of surgical intervention.

Keywords:
Abortion; Fetus; Obstetrics; Pregnancy; Pregnancy complications; Urinary fistula

INTRODUÇÃO

A fístula vesicouterina (FVU) é uma condição rara e representa apenas 1 a 4% de todas as fístulas urogenitais. Sua incidência, porém, tem aumentado devido à alta incidência de cesáreas.(11. Keskin MZ, Budak S, Can E, İlbey YÖ. Incidentally diagnosed post-cesarean vesicouterine fistula (Youssef's syndrome). Can Urol Assoc J. 2015;9(11-12): e913-5.) Aproximadamente 90% de todos os casos de FVU estão associados com síndrome de Youssef, em que a amenorreia e hematúria cíclica (menúria) são observadas em paciente anteriormente submetidos à cesárea. Sinais e sintomas podem ocorrer logo após o parto ou levar anos para se desenvolverem, e esses estão geralmente associados com piora na qualidade de vida e distúrbio psicológico.(22. Kamil AG, El Mekresh M. Umbilical cord prolapsed through urethra: an unusual presentation of a vesico-uterine fistula. Urol Ann. 2013;5(2):124-5.) Além da síndrome já referida, endometriose, parto obstruído, tuberculose, e malignidade são outras etiologias. O diagnóstico é feito por cistoscopia, histerografia ou urografia excretora, porém, em alguns casos, o ultrassom transvaginal, a imagem por ressonância magnética (RM) ou a tomografia computadorizada helicoidal apresentam papel importante.(33. Sharma OP. Secondary abdominal pregnancy in urinary bladder. Indian J Radiol Imaging. 2006;16(4):815-8.)

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 37 anos, G3P2, com histórico de dois partos por cesárea encaminhada a hospital terciário devido à dor pélvica leve e sangramento genital moderado durante alguns dias antes da consulta médica. Seu último período menstrual era incerto. Na anamnese, a paciente relatou menúria desde sua última cesárea, cerca de 6 anos antes. Na hospitalização, a paciente estava clinicamente estável, e o resultado de seu exame físico foi normal.

Após a admissão, foi realizada ultrassonografia pélvica e transvaginal. O exame revelou saco gestacional na parede anterior do útero com feto vivo de aproximadamente 13 semanas, com movimento corporal ativo e frequência cardíaca normal. O saco gestacional não estava completamente dentro da cavidade do útero, ao invés disso, estava herniado na bexiga urinária por meio de abertura de aproximadamente 17mm. O abdômen fetal, ao redor da cintura, estava preso na abertura da fístula, de modo que o crânio, o tronco e os membros superiores estavam inteiramente na bexiga urinária, enquanto os membros inferiores permaneciam dentro na cavidade uterina. A RM foi realizada para melhor avaliação anatômica e definição de programa terapêutico (Figuras 1 A e B). Após, o quadro clínico da paciente progrediu com aumento da dor e sangramento genital. Em outro ultrassom, realizado horas após o primeiro exame, foi diagnostica morte fetal, mostrando migração total do feto para cavidade da bexiga urinária. Foi proposta laparotomia para remoção fetal, curetagem uterina e correção da fístula.

Figura 1
A e B. Ressonância magnética por imagem mostrando feto parcialmente na bexiga urinária materna

Realizou-se laparotomia, e os achados intraoperatório relevaram presença de trajeto fistuloso entre a bexiga urinária e o segmento inferior uterino, que permitiu ao feto migrar para bexiga (Figura 2). O feto foi removido por meio de abertura na bexiga urinária, sendo a cavidade uterina esvaziada e o trajeto fistuloso, removido. Os defeitos na bexiga e útero foram reparados. O período pós-operatório ocorreu sem eventos adversos, e a paciente recebeu alta hospitalar 2 dias depois com cateter na bexiga urinária (mantido por mais de 12 dias).

Figura 2
Polo cefálico fetal, tronco fetal no interior da bexiga (aberta)

DISCUSSÃO

O caso relatado descreve gravidez ectópica com desenvolvimento de parte do saco gestacional e feto dentro da bexiga. O presente caso é aparentemente o segundo a ser relatado na literatura médica. Apesar de alguns relatos de prolapso do cordão umbilical que ocorreram por meio da uretra devido ao FVU, achados de laparotomias do feto no interior da bexiga urinária devido à ruptura espontânea do útero, após indução do parto ou curetagem sem sucesso,(44. Banale K, Javali T, Babu P, Jyothi GS, Shetty P, Nagaraj HK, et al. Fetus in bladder. Indian J Urol. 2013;29(4):351-2.) foram descritos somente por Sapre et al., no caso de um natimorto encontrado no interior da bexiga após migração por meio de FVU.(55. Sapre S, Agarwal R, Chawla A. Vesicouterine fistula resulting in a vesical pregnancy. Int J Gynaecol Obstet. 2012;118(2):175.)

Exatamente como em nosso relato de caso, esses autores descreveram uma paciente submetida anteriormente a duas cesáreas. A paciente daquele estudo tinha histórico de amenorreia que durava cerca de 10 semanas, dor abdominal inferior, e hematúria por 5 dias. Além disso, a paciente queixou-se de hematúria cíclica com ciclo menstrual reduzido desde de sua última cesárea.

Nossa paciente apresentou histórico de lesão na bexiga urinária na última cesárea, sendo que este fato chamou a atenção na patofisiologia do caso. Apesar de a paciente ter sido mantida com cateter na bexiga por longo um período após o evento, permaneceram os sintomas sugestivos de FVU: ausência de sangramento vaginal durante o período menstrual, mas com presença de sangue na urina (menúria). Apesar de a paciente ter investigado a condição antes da gravidez, mesmo com o exame de cistoscopia, a fístula não pode ser identificada nem corrigida. A gestação, que levou à distensão da cavidade uterina permitiu a identificação da lesão e, mais importante, seu tratamento.

Devido à raridade desta situação médica, o curso do tratamento foi incerto no primeiro momento. Como possibilidades, foram consideradas a histerectomia ou a correção do defeito da parede anterior do útero. Como o feto estava vivo no primeiro ultrassom, analisou-se a possiblidade de tentar realocar o feto na cavidade uterina. Porém, devido à ocorrência de morte fetal espontânea, esta abordagem foi descartada, e o tratamento foi baseado no desejo da paciente de realizar nova tentativa de gravidez.

REFERENCES

  • 1
    Keskin MZ, Budak S, Can E, İlbey YÖ. Incidentally diagnosed post-cesarean vesicouterine fistula (Youssef's syndrome). Can Urol Assoc J. 2015;9(11-12): e913-5.
  • 2
    Kamil AG, El Mekresh M. Umbilical cord prolapsed through urethra: an unusual presentation of a vesico-uterine fistula. Urol Ann. 2013;5(2):124-5.
  • 3
    Sharma OP. Secondary abdominal pregnancy in urinary bladder. Indian J Radiol Imaging. 2006;16(4):815-8.
  • 4
    Banale K, Javali T, Babu P, Jyothi GS, Shetty P, Nagaraj HK, et al. Fetus in bladder. Indian J Urol. 2013;29(4):351-2.
  • 5
    Sapre S, Agarwal R, Chawla A. Vesicouterine fistula resulting in a vesical pregnancy. Int J Gynaecol Obstet. 2012;118(2):175.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2018
  • Aceito
    11 Dez 2018
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br