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Gestação múltipla no surto de SARS-CoV-2: o desafio do pré-natal

Caro Editor,

A história da humanidade mudou em dezembro de 2019, quando um novo vírus foi detectado na cidade de Wuhan, na China. Milhões de indivíduos foram rapidamente infectados no mundo todo, e o novo coronavírus, inicialmente chamado doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19), trouxe um impacto enorme ao causar a síndrome respiratória aguda grave; por isso passou a ser denominado coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Com transmissão rápida, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a infecção como uma pandemia. Indivíduos em todos os continentes foram afetados, e o número de mortes tem aumentado diariamente, com altas taxas.(11. Huang C, Wang Y, Li X, Ren L, Zhao J, Hu Y, et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet. 2020;395(10223):497-506. Erratum in: Lancet. 2020 Jan 30.)

Sabe-se que gestações múltiplas requerem atendimento pré-natal especial, devido ao maior risco materno-fetal. O risco da infecção pela COVID-19 em gestação gemelar é semelhante ao da gestação única. A placentação é determinada no primeiro trimestre e classifica as gestações gemelares em dois grupos. De acordo com o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e a International Society of Ultrasound in Obstetrics & Gynecology (ISUOG), a partir de 16 semanas, as gestações monocoriônicas devem ser monitoradas por ultrassom, a cada 2 semanas, ao passo que as dicoriônicas, a cada 4 semanas.(22. Khalil A, Rodgers M, Baschat A, Bhide A, Gratacos E, Hecher K, Kilby MD, Lewi L, Nicolaides KH, Oepkes D, Raine-Fenning N, Reed K, Salomon LJ, Sotiriadis A, Thilaganathan B, Ville Y. ISUOG practice guidelines: role of ultrasound in twin pregnancy. Ultrasound Obstet Gynecol. 2016;47(2):247-63. Erratum in: Ultrasound Obstet Gynecol. 2018;52(1):140.)

A síndrome de transfusão feto-fetal ocorre em 10% a 15% das gestações monocoriônicas, requer diagnóstico precoce e tem taxa de mortalidade de 90% e morbidade de aproximadamente 50% no feto sobrevivente. O risco de morte fetal é seis e oito vezes maior nas gestações monocoriônicas e dicoriônicas, respectivamente, após 24 semanas de gestação, quando comparado ao das gestações únicas. A frequência de pré-eclâmpsia é duas a três vezes maior nas gestações gemelares. Para esse e outros riscos, muitos centros obstétricos definem os intervalos entre as consultas com base nas imagens ultrassonográficas.(33. Elito Júnior J, Santana EF, Cecchino GN. Monochorionic twin pregnancy: potencial risks and perinatal outcomes. In: Darwish A. Contemporany gynecologic practice. 76th ed. London (UK): InTech Open; 2015.v. 1, p. 203-34.)No entanto, os cuidados obstétricos precisaram ser reorganizados, devido à pandemia de COVID-19. Deve-se evitar o contato físico, e as gestantes e a equipe médica devem usar equipamentos de proteção individual. O ACOG sugeriu que a atenção pré-natal para gestações únicas ocorra em quatro momentos principais. O primeiro, com aproximadamente 12 semanas, quando se realiza o ultrassom do primeiro trimestre, e o segundo, com cerca de 20 semanas, para o ultrassom do segundo trimestre. O terceiro momento acontece com 24 a 28 semanas, quando é importante rastrear diabetes gestacional e, finalmente, com cerca de 34 semanas, para avaliar vitalidade no terceiro trimestre.(44. The American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). Novel Coronavirus 2019 (COVID-19). Practice advisory. Summary of key updates (July 1, 2020) [Internet]. Washington (DC): ACOG; 2020 [cited 2020 Jul 14]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
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Nas gestações gemelares, a realização de ultrassonografias é ainda mais especial, pois esta situação presenta maior frequência de aneuploidias. O período entre 24 e 28 semanas também se aplica a gestações múltiplas, pois, além da maior frequência de diabetes gestacional neste grupo, alguns tipos de gestações gemelares também têm maior prevalência de defeitos cardíacos. Portanto, a ISUOG recomenda realizar ecocardiografia fetal em todas as gestações monocoriônicas. A vitalidade fetal no terceiro trimestre merece mais atenção, especialmente nas gestações múltiplas, já que esse grupo tem maior incidência de restrição de crescimento intrauterino e discrepância ponderal entre os fetos.(22. Khalil A, Rodgers M, Baschat A, Bhide A, Gratacos E, Hecher K, Kilby MD, Lewi L, Nicolaides KH, Oepkes D, Raine-Fenning N, Reed K, Salomon LJ, Sotiriadis A, Thilaganathan B, Ville Y. ISUOG practice guidelines: role of ultrasound in twin pregnancy. Ultrasound Obstet Gynecol. 2016;47(2):247-63. Erratum in: Ultrasound Obstet Gynecol. 2018;52(1):140.,33. Elito Júnior J, Santana EF, Cecchino GN. Monochorionic twin pregnancy: potencial risks and perinatal outcomes. In: Darwish A. Contemporany gynecologic practice. 76th ed. London (UK): InTech Open; 2015.v. 1, p. 203-34.)Apesar da recomendação do ACOG para avaliação presencial, a frequência usual de consultas obstétricas deve ser mantida, por meio do desenvolvimento recente da telessaúde. Para reduzir a exposição das pacientes e a transmissão da COVID-19, as consultas virtuais permitem manter a qualidade e a segurança do cuidado pré-natal e detectar os desfechos adversos, apesar da distância.(55. Fryer K, Delgado A, Foti T, Reid CN, Marshall J. Implementation of obstetric telehealth during COVID-19 and beyond. Matern Child Health J. 2020; 24(9):1104-10.) No caso de gestações múltiplas, o controle de peso e as mensurações de pressão arterial da paciente devem ser realizados em casa e informados ao médico por meio da telessaúde. O médico do atendimento pré-natal pode conversar diretamente com a paciente e enviar relatórios, prescrições e solicitações de exames com assinatura digital, acompanhando a evolução da gravidez.(66. Barton JR, Saade GR, Sibai BM. A proposed plan for prenatal care to minimize risks of COVID-19 to patients and providers: focus on hypertensive disorders of pregnancy. Am J Perinatol. 2020;37(8):837-44.,77. Madden N, Emeruwa UN, Friedman AM, Aubey JJ, Aziz A, Baptiste CD, et al. Telehealth uptake into prenatal care and provider attitudes during the COVID-19 pandemic in New York City: a quantitative and qualitative analysis. Am J Perinatol. 2020;37(10):1005-14.)

Conforme o algoritmo do ACOG, as mulheres com história de contato com pacientes com COVID-19 devem manter o atendimento pré-natal de rotina. No caso de pacientes sintomáticas, o ACOG dividiu em três grupos de risco (baixo, moderado e alto). Para aquelas no grupo de baixo risco, com sintomas leves e sem comorbidades, recomenda-se isolamento. O grupo de risco moderado, com comorbidades, doenças obstétricas ou incapaz de realizar autocuidado, deve ser atendido no nível ambulatorial. Aquelas com alto risco, com sintomas graves, como desconforto respiratório, febre e evidências radiológicas de pneumonia, devem ser encaminhadas imediatamente ao pronto-socorro.(88. The American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). Novel coronavirus 2019 (COVID-19). Practice advisory. Summary of key updates (Ago 12, 2020) [Internet]. Washington (DC): ACOG; 2020 [cited 2020 Ago 15]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
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O uso de corticoides nas gestações múltiplas, entre 24 e 34 semanas, para maturação pulmonar e redução de outras sequelas da prematuridade, é bem aceito em todas as diretrizes obstétricas, nas gestações estáveis. A incidência de partos prematuros aumentou nas gestantes com COVID-19. O Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) recomenda realizar uma ultrassonografia 14 dias após o final da doença aguda, enquanto o ACOG recomenda um ultrassom do terceiro trimestre para as gestantes infectadas nos dois trimestres anteriores.(88. The American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). Novel coronavirus 2019 (COVID-19). Practice advisory. Summary of key updates (Ago 12, 2020) [Internet]. Washington (DC): ACOG; 2020 [cited 2020 Ago 15]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
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9. Royal College of Obstetricians & Gynaecologists (RCOG). Coronavirus (COVID-19) Infection in pregnancy. Information for healthcare professionals Version II [Internet]. London (UK): RCOG; 2020 [cited 2020 Jul 24]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
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-1010. Royal College of Paediatrics and Child Health (RCPCH). COVID-19 - guidance for neonatal settings [Internet]. London (UK): RCPCH; 2020 [cited 2020 Jul 14]. Available from: https://www.rcpch.ac.uk/sites/default/files/generated-pdf/document/COVID-19---guidance-for-neonatal-settings.pdf
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Apesar das gestações gemelares terem um final mais precoce em relação às gestações únicas (aproximadamente 38 semanas para dicoriônicas, 36 semanas para monocoriônicas e 32 a 34 semanas para as monoamnióticas), recomenda-se que o parto não seja antecipado durante a infecção por COVID-19, caso não haja morbidade materno-fetal que o justifique. Esperar por um resultado negativo no teste para coronavírus pode ser uma decisão importante para melhores cuidados materno-fetais e neonatais, durante o parto e o aleitamento materno.(1111. Santana EF, Melo Corrêa V, Bottura I, Parise Filho JP. Time and mode of delivery in twin pregnancies. In: Elito Júnior J. Multiple pregnancy: new challenges. London (UK): InTech Open; 2019. v. 1, p. 211-22.)

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    6 Jul 2020
  • Aceito
    15 Jul 2020
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