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Perspectivas femininas contemporâneas sobre o autoritarismo da ditadura militar: tempo e espaço em Liniane Brum, Luciana Hidalgo e Maria Valéria Rezende

Contemporary female perspectives on authoritarianism in the military dictatorship: time and space in Liniane Brum, Luciana Hidalgo, and Maria Valéria Rezende

Perspectivas femeninas contemporáneas sobre el autoritarismo de la dictadura militar: tiempo y espacio en Liniane Brum, Luciana Hidalgo y Maria Valéria Rezende

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar a contribuição de escritas femininas na contemporaneidade para o escopo da literatura sobre a ditadura militar no Brasil. Por meio de uma breve análise de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012), de Liniane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende, diferentes vertentes da contemporaneidade literária brasileira são discutidas em suas distintas formas de representar o período ditatorial. Apesar de tal diversidade de estilos, apontamos para os deslocamentos espaçotemporais na composição narrativa como ponto de convergência entre as três publicações, sua relação com a perspectiva narrativa (feminina) e sua compreensão do contexto histórico e social em questão.

Palavras-chave:
autoria feminina; ditadura militar brasileira; espaço; tempo

Abstract

This article aims to analyze the contribution of contemporary female writing to the scope of literature on the Brazilian military dictatorship. Through a brief analysis of Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) by Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) by Luciana Hidalgo, and Outros cantos (2016) by Maria Valéria Rezende, different aspects of contemporary Brazilian literature are discussed in their distinctive ways of representing the dictatorial period. Despite such diversity of styles, the spatio-temporal displacements in the narrative composition are appointed as a point of convergence between the three publications, and their relationship with the (female) narrative perspectives and their understanding of the historical and social contexts in question.

Keywords:
female authorship; Brazilian military dictatorship; space; time

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar la contribución de la escritura femenina contemporánea al ámbito de la literatura sobre la dictadura militar en Brasil. A través de un breve análisis de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) de Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) de Luciana Hidalgo y Outros cantos (2016) de Maria Valéria Rezende, se discute la literatura contemporánea brasileña en sus diferentes formas de representar el período dictatorial. A pesar de tal diversidad de estilos, señalamos los desplazamientos espaciotemporales en la composición narrativa como punto de convergencia entre las tres publicaciones, y su relación con la perspectiva narrativa (femenina) y su comprensión del contexto histórico y social en cuestión.

Palabras clave:
autoría femenina; dictadura militar brasileña; espacio; tiempo

Nos anos de regime ditatorial, sob forte censura e desmandos políticos que resultaram em incontáveis prisões e mortes, compreende-se que a literatura brasileira tenha se imbuído com frequência do papel que o jornalismo censurado não podia desempenhar. A brutalidade que passou dos porões dos quartéis às páginas das obras que lograram atravessar os agentes da censura é uma das marcas de um capítulo triste, mas fértil, da história literária brasileira; um período em que tantas vozes gritavam por mudanças, por liberdade, enquanto outras silenciavam ou eram silenciadas1 1 É conhecido que, por causa da atuação dos órgãos de censura, numerosas obras literárias foram impedidas de circular, tais como peças de Nelson Rodrigues e Dias Gomes, romances de Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão e Renato Tapajós. Ao comentar o período, Ana Maria Machado (1999, p. 18) afirma que “a década de 70, obrigada a se expressar metaforicamente, canaliza grande parte de sua manifestação literária para gêneros que antes eram marginais — a saber, as letras de canções, a poesia de mimeógrafo e a literatura infantil”. Também a autocensura causada pela opressão do regime era forma comum de silenciamento das dissonâncias. .

Em 1985 a democracia se restabeleceu no país — não sem alguns solavancos —, mas os autores brasileiros não pararam de escrever sobre aquele período. Ao analisar suas heranças, Tânia Pellegrini (2014PELLEGRINI, Tânia (2014). Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 151-178. https://doi.org/10.1590/S2316-40182014000100009
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, p. 172) observa que “o abandono do ímpeto da resistência é apenas relativo, pois ela ainda pulsa, só que mais atomizada, calcada em micropolíticas individuais, bem distantes da utopia coletiva de antes”. Para a autora, “não se trata mais de resistir à ditadura militar, mas a uma hierarquia ancestral em que predomina o discurso branco, masculino e cristão” (Pellegrini, 2014PELLEGRINI, Tânia (2014). Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 151-178. https://doi.org/10.1590/S2316-40182014000100009
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, p. 172). Portanto, se já não há uma ditadura a enfrentar pela luta coletiva, ainda há lutas sendo travadas em múltiplas esferas da sociedade brasileira, por vozes que continuam a buscar ser ouvidas, tais como as vozes de mulheres, de afro-brasileiros e da população LGBTQIA+.

Poderíamos então concluir que o autoritarismo é inimigo vencido e nos voltarmos para tantas outras pautas válidas que buscam projeção na sociedade e nas artes? A insistente presença da temática em obras de publicação recente parece contrariar essa noção de superação, e uma possibilidade de leitura para tal permanência é a relevância de se trazer ao debate tópicos referentes ao regime ditatorial em nossa época, em que propostas de governo direitista, autoritário e conservador parecem estar em crescente popularidade. Outra chave para a leitura dessa permanência é considerar aquele período da história do país como um trauma, já que sua própria noção implica a ideia de permanência.

Segundo Cathy Caruth (1996)CARUTH, Cathy (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Londres, Baltimore: Johns Hopkins University Press., o trauma é descrito como uma resposta a um evento ou série de eventos violentos e arrasadores que não são plenamente compreendidos no momento em que ocorrem, mas retornam de forma repetitiva como lembranças ou pesadelos à pessoa traumatizada2 2 Do original: “Trauma is described as the response to an unexpected or overwhelming violent event or events that are not fully grasped as they occur, but return later in repeated flashbacks, nightmares, and other repetitive phenomena” (Caruth, 1996, p. 91). . Assim como no trauma sofrido pelo indivíduo, portanto, também o trauma coletivo acarreta lembranças recorrentes e traz à tona a dor continuamente.

O processo de cura da dor pelas perdas ligadas à ditadura militar, no âmbito da sociedade brasileira, assim como em esferas individuais, tem se prolongado por décadas desde o fim do regime até a atualidade. Pela ausência de julgamentos e responsabilização que se seguiu à Lei da Anistia, a justiça ficou por ser feita. Para Márcio Seligmann-Silva (2014)SELIGMANN-SILVA, Márcio (2014). Imagens precárias: inscrições tênues de violência ditatorial no Brasil. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 13-34., a literatura contribui com tal processo de elaboração do trauma, pois “seu trabalho de memória quer afirmar que aquele passado é e deve estar presente hoje: a ficção é essa mise en action do passado, é um despertar dos mortos e um clamor pela justiça” (Seligmann-Silva, 2014SELIGMANN-SILVA, Márcio (2014). Imagens precárias: inscrições tênues de violência ditatorial no Brasil. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 13-34., p. 28). Por intermédio da escrita literária na contemporaneidade, novas perspectivas são somadas a esse clamor no inconcluso trabalho de superação do passado violento que a ditadura militar representou.

Este artigo apresenta uma leitura de três obras bastante diferentes entre si publicadas por mulheres na última década: Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012), de Liniane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende. As três publicações trazem a temática da ditadura militar por caminhos estéticos diversos, como procuramos apontar nas análises individuais, no entanto nelas destacamos, como ponto de convergência, os deslocamentos espaçotemporais na compreensão das protagonistas sobre o Brasil dos militares, assim como as trajetórias de aprendizado percorridas por essas mulheres.

Em Brum (2012)BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., a composição da obra remete-se ao conceito de pós-memória, e a narrativa híbrida faz-se entre o documental e o ficcional; em Hidalgo (2016)HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., o distanciamento da personagem, que vive na França durante o período da ditadura, é o que lhe permite um olhar mais crítico e um processo de tomada de consciência e posição, ao mesmo tempo que abarca outras questões relativas ao exílio e à adaptação cultural; em Rezende (2016)REZENDE, Maria Valéria (2016). Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara., o percurso é mais intrincado, com uma narrativa fragmentada em numerosas passagens de tempo e espaços passados em exílios diversos, além do retorno da protagonista, já idosa, ao sertão nordestino, seu espaço de resistência no decorrer de um período da ditadura.

Além dos deslocamentos do espaço e do tempo, cuja análise perfaz o fio condutor dessa leitura comparativa, também procuramos explorar como a condição da mulher alicerça tais narrativas e de que maneiras essa condição se combina com o engajamento, potencializando uma leitura política das obras. Assim, refletimos sobre as contribuições da literatura escrita por mulheres na última década para a continuidade da elaboração do trauma que significou esse problemático período da história brasileira.

ANTES DO PASSADO: O SILÊNCIO QUE VEM DO ARAGUAIA (2012), DE LINIANE HAAG BRUM

Publicado em 2012, Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia é o resultado de uma extensa e pessoal pesquisa empreendida pela jornalista Liniane Haag Brum acerca de seu tio Cilon Cunha Brum. Em 1971 Cilon desapareceu sem deixar rastros após unir-se à Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência à ditadura impulsionado pelo Partido Comunista do Brasil em fins da década de 1960. Tal movimento levou um número impreciso de jovens, especialmente de classe média do sudeste e sul do Brasil ao norte do país, em um projeto que visava ao treinamento dos guerrilheiros para o enfrentamento armado dos militares. Sobre a reação do regime ao movimento, Roberto Vecchi (2014VECCHI, Roberto (2014). O passado subtraído da desaparição forçada: Araguaia como palimpsesto. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 133-149., p. 135) descreve:

O exército desencadeou uma das mais ferozes repressões, com três expedições que chegaram a mobilizar, ao que parece, de 3 a 5 mil soldados que a partir de 1972, por quase dois anos, se lançaram sobre os grupos de guerrilha. Até o número das vítimas que foram executadas e eliminadas na guerrilha do Araguaia continua oscilante. A Comissão Especial [da Verdade] analisou 64 casos de desaparecidos.

Os guerrilheiros, muitos deles oriundos de lideranças estudantis, foram, portanto, massacrados, e seus corpos desapareceram, o que prolonga indefinidamente o luto dos familiares, que nunca puderam enterrá-los ou ao menos obter mais informações de seu destino. Foi o que aconteceu com o tio de Liniane: a última vez que os familiares o viram foi no batizado da autora; depois disso, silêncio e tristeza. A angústia da família torna-se palpável pela presença de inúmeras imagens ao longo do livro, como fotografias, recortes de jornal e cartas entre familiares. Esses índices materiais corroboram uma possível leitura da obra de Liniane Brum como pós-memorial, já que, segundo Marianne Hirsch (2008)HIRSCH, Marianne (2008). The Generation of Postmemory. Poetics Today, n. 29, p. 103-128. https://doi.org/10.1215/03335372-2007-019
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— que cunhou o conceito —, a presença de tais elementos referenciais e materiais é traço prevalente nas obras que assim se podem classificar.

Segundo Hirsch (2008)HIRSCH, Marianne (2008). The Generation of Postmemory. Poetics Today, n. 29, p. 103-128. https://doi.org/10.1215/03335372-2007-019
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, a pós-memória descreve a relação entre determinada geração e a anterior quando esta testemunhou alguma espécie de trauma coletivo, e a primeira somente pode lembrar-se de tais eventos traumáticos por meio de histórias, imagens e comportamentos transmitidos pela geração anterior3 3 Do original: “Postmemory describes the relationship that the generation after those who witnessed cultural or collective trauma bears to the experiences of those who came before, experiences that they ‘remember’ only by means of the stories, images, and behaviors among which they grew up” (Hirsch, 2008, p. 106). . Narrativas pós-memoriais são, então, aquelas levadas a cabo não por aqueles que vivenciaram o autoritarismo e a violência, mas por outros que com as vítimas possuem ligação de sangue — filhos, ou sobrinhos, como no caso da obra de Liniane Brum.

Hirsch (2008)HIRSCH, Marianne (2008). The Generation of Postmemory. Poetics Today, n. 29, p. 103-128. https://doi.org/10.1215/03335372-2007-019
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comenta o nome que dá a tal conceito mencionando os vários “pós” com que convive a contemporaneidade e observa que, em grande parte dos casos (como em pós-modernidade ou pós-colonialismo, por exemplo), não se trata simplesmente de uma ruptura ou avanço temporal com o conceito original, mas uma problemática continuidade desses casos (Hirsch, 2008HIRSCH, Marianne (2008). The Generation of Postmemory. Poetics Today, n. 29, p. 103-128. https://doi.org/10.1215/03335372-2007-019
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, p. 106). A literatura pós-memorial, assim, expõe a não superação que já mencionamos do trauma imposto à sociedade brasileira pelas várias formas de violência empregadas pela ditadura militar.

O conceito de pós-memória tem sofrido críticas, como do já citado Vecchi (2021)VECCHI, Roberto (2021). A crise da pós-memória e o horizonte das sobrevivências: campos de batalha da memória no Brasil contemporâneo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 64, e645. https://doi.org/10.1590/2316-4018645
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, que nele vê a fragilidade de um duplo elo: “A dependência da transmissão da memória das imagens por um lado e a insuficiência das mesmas imagens pelo outro” (Vecchi, 2021VECCHI, Roberto (2021). A crise da pós-memória e o horizonte das sobrevivências: campos de batalha da memória no Brasil contemporâneo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 64, e645. https://doi.org/10.1590/2316-4018645
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, p. 5). De fato, as imagens — e mesmo o texto — são insuficientes para a plena reconstituição da memória, e suas lacunas deverão ser preenchidas pela ficção. Ainda assim, o conceito tem sido amplamente evocado em leituras de obras recentes que tematizam traumas em vários países, não somente os ligados ao Holocausto (marco histórico principal nos escritos de Hirsch, 2008HIRSCH, Marianne (2008). The Generation of Postmemory. Poetics Today, n. 29, p. 103-128. https://doi.org/10.1215/03335372-2007-019
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), mas especialmente nos países do Cone Sul. O que a pós-memória põe em evidência ao narrar episódios de violência pela voz não de testemunhas, mas de seus descendentes, é o aspecto afetivo de tais narrativas que resistem ao esquecimento daqueles que se foram, e esse afeto é o que distingue tais obras de tantas outras narrativas da ditadura e do Araguaia, tais como Azul corvo, de Adriana Lisboa (2014)LISBOA, Adriana (2014). Azul corvo. Rio de Janeiro: Objetiva., e Não falei, de Beatriz Bracher (2017)BRACHER, Beatriz (2017). Não falei. 2. ed. São Paulo: 34..

Lutar contra o esquecimento e o silêncio é o que faz Brum (2012)BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago. em cada página de seu romance, oscilando a cada parágrafo entre o documental e o ficcional, entre os fatos ligados a um problema histórico coletivo e seus efeitos subjetivos na intimidade de uma família. Tais componentes da obra podem ser vistos, por exemplo, no tom afetivo da narração: “Tio Cilon me acompanhou sempre. Era alto, magro, cabelo preto e liso. Tão bonito. Meu padrinho era lindo. Pena que quando eu nasci ele desapareceu” (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 19). Também nas cartas de “Nani” à “Vó Lóia” (Eloá) — e os apelidos mais uma vez desnudam a proximidade dos laços —, a busca pelo tio se mostra não somente como interesse por conhecer as verdades escondidas do regime militar, mas como desejo de trazer à luz a história do tio, abafada pelo medo e pelo constrangimento da família através dos anos, sob o estigma de terem um membro da família “subversivo”.

A atmosfera de medo e perseguição é recriada em Antes do passado por meio da recomposição ficcional de certos eventos. Vejamos como isso se dá no primeiro capítulo do romance, que traz por título, como entrada em um diário, apenas “9 de junho de 1971, Porto Alegre, Rio Grande do Sul”. O breve capítulo inicia-se com a seguinte descrição:

O corpo muito magro deixava as costelas à mostra. A pele judiada, salpicada de sangue, acompanhava o contorno dos ossos graúdos. A expressão do rosto era complacente: estava entregue. A paisagem em volta mostrava um tempo em que a natureza não era natureza, mas simplesmente o mundo. Tudo o que existia, o que os olhos podiam ver, eram árvores, galhos e mato (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 17).

A descrição de um indivíduo fisicamente maltratado (magro, judiado), submetido à violência (sangue, entregue), em meio a uma natureza inóspita (galhos, mato) e um tempo em suspensão, cria no leitor — que já conhece pela apresentação do livro a história do desaparecimento de Cilon — a impressão de que se vai reconstituir uma cena em que o tio é vitimado pelos militares. Tal expectativa quebra-se no fim do parágrafo: o homem das costelas à mostra não é o tio, e o mato ao redor não é da região do Araguaia: “A imagem no fundo da igreja São Sebastião parecia falar. Falava do alto, onde estava incrustada” (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 17). Trata-se de uma imagem de Cristo, sacrificado pela ganância dos líderes de seu tempo, que receavam perder o poder que detinham. A analogia no primeiro parágrafo do romance estabelece uma aproximação entre Jesus Cristo e os jovens guerrilheiros, porta-vozes de um desejo de mudança, contra as autoridades, que a temiam. Em seguida aparece, finalmente, o protagonista da história: “O moço esguio nem a percebeu. […] Encolhia-se. Passou pela porta, rápido, aflito, e se esgueirou até a última coluna do lado direito do altar. Saiu, aos poucos, de trás do pilar torneado” (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 17). A recriação textual do evento do batismo de Liniane, que a família não sabia ser a despedida do tio Cilon, é um exemplo da forma como a ficção se coloca nas lacunas da memória, estabelecendo o caráter híbrido do texto.

Se algumas passagens do livro relatam com um tom objetivo ou documental os resultados da investigação da autora, em muitas outras abundam marcas de afeto e de ficcionalidade, como a construção de um espaço nos mínimos detalhes, as impressões e sentimentos de pessoas presentes, ou, como no caso da cena supracomentada, a elaboração de um ambiente de medo que a narradora, o bebê da ocasião, não poderia ter captado. A ficcionalidade de tais passagens, desse modo, contribui para o envolvimento do leitor na história que é contada. Tais vantagens da ficção foram destacadas por Ettore Finazzi-Agrò (2014)FINAZZI-AGRÒ, E. (2014). (Des)memória e catástrofe: considerações sobre a literatura pós-golpe de 1964. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 179-190., ao comentar sobre obras empenhadas em relatar os acontecimentos com fidelidade:

Apesar do seu escrúpulo documentário, essas obras não conseguem, a meu ver, mostrar de modo completo não aquilo que realmente aconteceu, mas a dor e o sangue, as lágrimas e as feridas que se abriram no corpo da Nação e na lembrança traumática dos sobreviventes. Aquilo que falta, mais uma vez, é a comoção pelos corpos torturados, pelas pessoas massacradas, pela dor dos sobreviventes (Finazzi-Agrò, 2014FINAZZI-AGRÒ, E. (2014). (Des)memória e catástrofe: considerações sobre a literatura pós-golpe de 1964. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 179-190., p. 181).

Ao reconstituir eventos reais do passado preenchendo as lacunas da memória com a ficção, Brum (2012)BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago. desloca a narração até esse passado que não se quer esquecido. A mesma reencenação ficcionalizada de acontecimentos do passado se nota na seguinte passagem:

Só naquele dia foi diferente. No final da tarde, quando a vó Lóia retornou da viagem a Porto Alegre para o meu batizado, Rejane não conseguiu identificar se o pranto era causa ou consequência. Naquela noite, assustada, violou a regra involuntariamente. As duas deitadas na cama de casal, a mão de veias saltadas afagando-lhe uma das bochechas, perguntou, sem que tivesse tempo de se autocensurar:

Vó, tu tá chorando por causa do tio? (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 131).

As nuanças com que são representadas as interações entre os familiares de Nani e seus sentimentos afastam a narrativa de um relato objetivo dos resultados de uma pesquisa. A escassez de informações sobre o tio, a regra implícita de não falar sobre ele e o desconforto sutilmente presente quando alguém traz à tona o assunto têm o atributo de expor as consequências da repressão em uma microesfera familiar. A pessoalidade do relato, no entanto, não o restringe, e ao leitor não é difícil expandir os eventos lidos da esfera particular à social, sabendo-se que não foram poucos os que tombaram sob a violência das prisões e torturas sistematicamente praticadas pelos órgãos de inteligência e repressão do regime. Ainda, passagens como a que transcrevemos deslocam a narrativa do tempo da narradora para o tempo dos eventos que ela investiga. Desse modo, o olhar que se constrói sobre a história de Cilon e do Brasil carrega a impressão de proximidade das pessoas e dos eventos.

Não somente o deslocamento no tempo traz essa narrativa do passado de volta para perto do leitor, mas também o deslocamento espacial que a narradora empreende enquanto pesquisadora. Na segunda parte do livro, Nani viaja até a região do Araguaia e entrevista moradores com idade suficiente para haverem testemunhado algum encontro com Cilon, então conhecido pelos codinomes Comprido ou Simão. A cada passo de sua jornada, a narradora pergunta-se se o espaço que percorre teria sido o mesmo por onde o tio andou anos antes:

Será que tio Cilon teria rodado pela estrada em construção, a Transamazônica, que eu iria percorrer dali a uma hora? Será que também chegou por Marabá? Estava sozinho ou vinha com algum companheiro? […] Imaginei o corpo magro e comprido, inquieto, sempre a virar para os lados. O semblante preocupado cuidando as portas, as pessoas. O olhar no chão (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 152).

Durante sua viagem em dezembro de 2009, Nani imagina os encontros que teria, as entrevistas que faria e os ricos relatos que esperava obter daqueles habitantes do Araguaia que um dia conheceram seu tio. A realidade da viagem, contudo, mostra-se outra: pouquíssimas pessoas que viviam ali em 1971 podiam ser encontradas, e as entrevistas revelaram-se cheias dos vazios do esquecimento, esquecimento mais coletivo que particular — entende-se, pela hesitação, ou até mesmo receio, que as potenciais testemunhas demonstravam ao serem inquiridas sobre os guerrilheiros. Os detalhes da história do tio que a narradora buscava se perdem na imensidão das águas do rio, dos campos e das matas a perder de vista, da exiguidade de olhos e ouvidos que pudessem ter conhecido Cilon naquelas modestas vilas tantos anos atrás. Sair do sul/sudeste em direção ao norte foi mais que um deslocamento ao local que guarda os restos mortais ocultos de dezenas de guerrilheiros; foi também um deslocamento de volta a um passado histórico cujos vestígios permanecem em cada canto e família do Brasil. Mesmo depois de décadas, o medo conserva-se: “Nazaré olhou para um dos homens, para outro — e disse: ‘Não sei de nada não, nunca vi ninguém’” (Brum, 2012BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago., p. 236), mas pouco depois revelou o que sabia, contrariando sua própria disposição instintiva de alegar desconhecimento por medo de possíveis consequências.

As poucas informações das testemunhas e a impotência da sobrinha para desvendar o destino do tio e paradeiro de seu corpo corroboram a eficiência do sistema empregado pelos militares para eliminar seus inimigos. Conforme aponta Vecchi (2014VECCHI, Roberto (2014). O passado subtraído da desaparição forçada: Araguaia como palimpsesto. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 133-149., p. 136), o “Araguaia, na verdade, acaba por se tornar a brecha que deixa entrever o rosto do horror do regime”. Ou seja, a máquina de destruição e morte segue ainda por ser desmascarada. O sobrevivente, ou, no caso da escrita pós-memorial, o descendente, é também aquele que, segundo Caruth (1996)CARUTH, Cathy (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Londres, Baltimore: Johns Hopkins University Press., deve contar o que significa “não ver” (Caruth, 1996CARUTH, Cathy (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Londres, Baltimore: Johns Hopkins University Press., p. 105). Investigações como a que deu origem à obra de Liniane Brum (2012)BRUM, Liniane Haag (2012). Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago. nos permitem vislumbrar essa face da ditadura mediante a reconstrução de um cronotopo de ameaça e temor.

RIO-PARIS-RIO (2016), DE LUCIANA HIDALGO

Bem menos ancorado em experiências particulares é o romance de Luciana Hidalgo, Rio-Paris-Rio (2016), que desde o título aponta para um movimento de exílio e retorno executado por muitos brasileiros durante o período ditatorial4 4 Embora não haja dados precisos, estima-se que cerca de dez mil pessoas tenham se exilado durante o período da ditadura militar, em diversos países de asilo, tais como França, Itália, Chile, México, Suécia e Argélia (Cruz, 2018, p. 115-116). . A protagonista, a jovem estudante de filosofia Maria, não se encontra em Paris para fugir à perseguição política, mas entende-se que foi encorajada pelo pai a se afastar daquele Brasil em que os estudantes estavam na linha de frente da resistência — e, consequentemente, do perigo — da ditadura militar, embora a própria Maria pareça pouco envolvida com as questões políticas do Brasil no início da narrativa. Seu exílio seria, portanto, mais preventivo que forçado — como o foi para tantos outros. Segundo Ilana Heineberg (2020HEINEBERG, Ilana (2020). Exílio da ditadura na ficção brasileira da geração pós-memorial: a perspectiva e a estética dos filhos. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 60, e6006. https://doi.org/10.1590/2316-4018606
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, p. 9), “em Rio-Paris-Rio, a perspectiva descentrada da ditadura brasileira também transfere o foco para questões de adaptação cultural, linguística, encontros entre jovens fugidos de diversos regimes autoritários”. Há, portanto, paralelamente à reconstrução de uma experiência de exílio na Europa no decorrer do regime, a abordagem de diversos aspectos dessa experiência, para além de uma relação de causalidade com o elemento político.

O romance desvenda lentamente e de forma diluída a relação de Maria com seu avô, um general da cúpula do golpe, a neutralidade inicial da moça diante dos acontecimentos políticos em sua terra natal, seu relacionamento com outros jovens brasileiros em Paris e também com os amigos franceses, Luc e Martine. Ao transcorrer da narrativa, a protagonista vê-se em meio à efervescência do movimento estudantil francês em 1968, e sua trajetória é de gradual tomada de consciência e posicionamento diante do que acontecia no Brasil.

Paralelamente a esse movimento, revela-se o envolvimento amoroso de Maria com Arthur, artista de rua que no passado como soldado no Brasil vira a ameaça do autoritarismo chegar bem perto de sua família. O pai, um jornalista com “ideias vermelhas”, “chegou a protestar com toda a sua cultura marxista espremida nas entrelinhas de artigos que incomodavam. Até que um dia não voltou do trabalho. A mulher correu delegacias, em vão” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 57). O pai de Arthur voltou para casa depois de 20 dias, muito maltratado e ameaçado, e um tanto paranoico. Ainda assim, o rapaz declara: “Sou totalmente contra pegar em armas, entrar nessa guerra com uma gente que eu desprezo. Não devemos falar a mesma língua desses milicos nunca” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 58).

A postura do namorado é em certa medida destoante da da maioria dos jovens exilados com quem Maria convive. Atitudes mais combativas e inflamadas como as de Marechal e Ciaiei são comuns nos momentos de sociabilidade entre os brasileiros — e não somente. Mais interessado em poesia, esculturas e em viajar pelo mundo, Arthur é um contraponto às obrigações estudantis e rotineiras de Maria, que permanece em Paris mesmo quando o rapaz sai em viagem pela Europa, e é na França que Maria percorre uma trajetória de formação que parte de observações da sociedade francesa e comparações com o Brasil, como no trecho a seguir:

– Vocês têm muita sorte, Luc, de estar aqui na França nesse exato momento, muita sorte mesmo, com essa liberdade de ir e vir, esse direito tão simples. O Brasil está agonizando. Meus amigos de infância que ficaram lá, ou fingem uma vida feliz e alienada, ou começam a se engajar numa luta contra o regime militar, tomados por um ódio, por uma revolta, uma violência que não têm, nunca tiveram. […] Ao ouvir [Luc] descrever o velho mundo, Maria, nascida no país do futuro, conclui que mais vale um passado sólido do que uma promessa de paraíso (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 46).

Nessa reflexão, a comparação de Maria é desvantajosa para o Brasil. A jovem admira a estabilidade da democracia na França e a segurança dos direitos e liberdades individuais naquele país em que “ela é apenas a convidada, não a dona da festa” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 67) e onde a forma peculiar com que pronunciam seu nome é apenas um lembrete de seu não pertencimento. Afastar-se do Brasil, para a protagonista, permite uma perspectiva distanciada e gradualmente mais crítica de suas instituições e fragilidades, mas não a plena assimilação ao espaço de acolhimento. O deslocamento (até certo ponto voluntário) da neta do general lhe dá o calibre necessário às lentes com que enxerga o Brasil e até mesmo o próprio avô, tão terno nas lembranças da infância, mas vilão das brutalidades que assolavam o país.

De acordo com Ricardo Barberena e Ana Carolina Ferrão (2020BARBERENA, Ricardo Araújo; FERRÃO, Ana Carolina Schmidt (2020). Desvelando identidades: realismo e subjetividade em Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo. Revista Investigações, v. 33, n. 1, p. 1-12. https://doi.org/10.51359/2175-294x.2020.245169
https://doi.org/10.51359/2175-294x.2020....
, p. 8), “a identidade do general foge da representação estereotipada, trazendo as contradições comuns de qualquer e todo indivíduo”. De fato, as memórias do general como um avô carinhoso não são construídas sem suas contradições. No capítulo 6, ao acordar de um pesadelo, Maria recorda a morte do irmão aos 10 anos de idade: “O garoto na casa do avô, encantado pelas armas do avô, iludido pelas histórias de guerras nunca combatidas pelo avô” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 61). Interessa notar a insistência do período em associar o avô — palavra repetida três vezes — ao acidente do menino com uma arma, responsabilizando o velho pela atração que o militarismo exercia sobre o irmão. A heroicização da figura do militar, nessa passagem, é inconfundivelmente construída como ilusão, enquanto a realidade é a da morte do inocente, o menino morto por causa do apelo das armas. Guerras nunca combatidas: a mentira do heroísmo, a verdade da violência e da morte gratuita.

Se nesse sexto capítulo a indisposição de Maria com o avô ainda está nas entrelinhas, outros mergulhos no passado e notícias do presente acabarão por definir a postura da jovem ao final da narrativa: “– Meu avô é general e acho que tem mais é que levar na cara uma resposta à altura das barbaridades que ele e os amiguinhos generais vêm impondo ao país. A minha geração tem mesmo que pegar em armas pra resistir” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 140). O pacifismo que predominava — tanto no discurso de Arthur quanto na neutralidade que Maria aparenta no início do romance — dá lugar a um envolvimento carregado de revolta e decisão da protagonista. A violência torna-se justificável por uma maior consciência do autoritarismo, que ao longo do romance aparece em fragmentos de discursos, relatos de exilados, manchetes de jornais e outros ecos distantes da terra natal. “É uma violência justa, certas violências se justificam” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 140), diz Maria a um jovem norte-americano, um Pantera Negra que ela acabara de conhecer e que concordava com tais justificações no contexto da luta por direitos civis e humanos em seu país. Ao presenciar o movimento dos estudantes em Paris, cujos motivos Maria buscava entender, cresce sua percepção da necessidade de se enfrentar o inimigo.

Mesmo esse lugar de observação do exílio não permite o completo afastamento da realidade brasileira. Para Jaime Ginzburg (2012GINZBURG, Jaime (2012). A violência na literatura brasileira: notas sobre Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; HARDMAN, Francisco Foot (org.). Escritas da violência. Rio de Janeiro, 7Letras. v. 1. p. 123-135., p. 124), “não existe um lugar do qual eu possa falar de fora da violência brasileira, purificado, distanciado, em que a linguagem utilizada para falar do assunto seja inteiramente independente do campo dos conflitos sociais”. A observação da experiência contemporânea de Ginzburg (2012)GINZBURG, Jaime (2012). A violência na literatura brasileira: notas sobre Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; HARDMAN, Francisco Foot (org.). Escritas da violência. Rio de Janeiro, 7Letras. v. 1. p. 123-135. também vale para a personagem do romance de Hidalgo (2016)HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco. que, ainda que falando outra língua e vivendo na Europa, a todo momento é chamada à lembrança das perniciosas consequências do autoritarismo, seja por suas próprias memórias e percepções, seja pelos diálogos com outros exilados, seja até mesmo pela observação do engajamento dos estudantes franceses em defender sua liberdade e direitos. Leva um tempo até que Maria se dê conta de que a motivação da revolta dos estudantes se resumia a uma frase: é proibido proibir (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 118): “Vêm à memória as conversas com Martine, a francesa mostrando à brasileira o quanto a França é um país atrasado, católico e rural. Aí, com um sorrisinho no canto da boca, a neta do general se lembra da quadrilha de generais mantendo seu país na mira do fuzil. E pensa com carinho em seu Brasil atrasado, católico e rural” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 93). Nenhum afastamento é capaz de cegar Maria para o governo tirânico dos militares e sua involuntária proximidade com ele pelo avô.

O aumento de consciência crítica e posicionamento político de Maria no romance converge para sua conclusão com o movimento final, de retorno ao Brasil, já indicado no título da obra. Em setembro de 1979 — o ano da promulgação da Lei da Anistia —, a protagonista e Arthur retornariam ao Rio de Janeiro ao mesmo tempo que o narrador informa, com efeito de simultaneidade, o destino de cada uma das demais personagens. Ainda que quase todas tenham sido negativamente impactadas pela ditadura militar dos 15 anos anteriores, a tônica das páginas finais é de mudança e otimismo: “Vai ser bom, vai ser muito bom chegar, pegar a Avenida Brasil, sair do túnel Rebouças, que ela não conhecia, e dar de cara com a Lagoa Rodrigo de Freitas, mergulhar na praia de Copacabana” (Hidalgo, 2016HIDALGO, Luciana (2016). Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco., p. 157). Nessas quatro páginas finais do romance, o ritmo acelerado com que o narrador presta contas dos destinos individuais constrói uma perspectiva de dispersão espacial e convergência no tempo. É como se o narrador, em sua onisciência, adiantasse esse retorno como parte de um futuro ainda desconhecido e ansiado pela personagem, efeito obtido pela escolha dos tempos verbais e pela expectativa que se cria nos últimos parágrafos.

OUTROS CANTOS (2016), DE MARIA VALÉRIA REZENDE

Em Outros cantos, publicado por Maria Valéria Rezende em 2016, a construção do tempo não se faz em torno de expectativas nem projeções, mas das memórias de outra Maria. Esta, idosa, percorre em uma longa e desconfortável viagem de ônibus o mesmo caminho que percorrera décadas antes, em direção à pequena vila de Olho D’Água, no sertão nordestino. O romance é fragmentado em excertos que alternam o presente da viagem com lembranças da vida da protagonista naquele mesmo lugar logo que completara 30 anos e também passagens de outras memórias, de um tempo indeterminado em Ghardaia, na Argélia. Somam-se ainda algumas poucas passagens de outros exílios, em Paris e na fronteira entre México e Estados Unidos, de encontros e desencontros com outros brasileiros.

De estilo mais experimental, portanto, que as obras comentadas anteriormente — pelo menos quanto à construção espaçotemporal, instância em que este ensaio se foca —, as lembranças da protagonista alternam-se em trechos predominantemente curtos, desestabilizando a narrativa e lançando o leitor no movimento incessante de rememoração de Maria. Portanto, ao longo de todo o romance a narração homodiegética mobiliza tempos e espaços distintos pelo olhar observador da protagonista viajante e suas recordações de experiências passadas.

Não é senão com a narrativa já avançada que se lança luz ao leitor sobre o que levara Maria àquele ermo enquanto jovem. As referências ao exílio na França e na Argélia contribuem com a gradual composição do contexto em que se amparam as memórias preponderantes. A ditadura militar, que poucas vezes no romance se mostra de forma mais direta, não desnuda completamente sua violência, mas está na causa de cada experiência narrada.

Maria mudara-se para Olho D’Água para trabalhar como professora na vila. Cheia de expectativas e esperanças freireanas de incutir a consciência de classe e o pensamento crítico naqueles sertanejos, a moça enfrentou a morosidade dos serviços públicos, a precariedade de condições e a escassez de recursos que eram já parte intrínseca da experiência de vida daquelas pessoas há gerações: “Eu tinha de trabalhar para viver, como os outros. […] meus dias voltaram à rotina já aprendida, as tarefas estafantes e repetitivas, mas agora sem o desafio do novo, minha musculatura e meu estômago adaptados às exigências sertanejas” (Rezende, 2016REZENDE, Maria Valéria (2016). Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara., p. 104). A dura adaptação foi beneficiada pelo cuidado quase materno de Fátima, mulher forte e acostumada aos rigores daquele viver. De forma semelhante, na Argélia Maria recebeu também os cuidados de uma mulher mais velha e experiente. Suas experiências no sertão e na Argélia são, desse modo, semelhantes a tempos de formação em que a mentoria de uma figura feminina a orienta e a protege naqueles espaços desconhecidos.

As lembranças da protagonista frequentemente emanam o encantamento da descoberta de novas culturas, apesar das dificuldades enfrentadas, podendo nesse ponto ser comparadas ao olhar de aprendizagem cultural do estrangeiro pela outra Maria, em Paris. Os modos de vida dos outros, suas crenças e manifestações culturais e religiosas, seu trabalho, tudo se descortina como descoberta aos olhos dessa Maria aos 30 anos:

Estavam todos lá, […] todos vestidos em seus modestos trajes festivos que eu antes só vira bem dobrados no baú da casa de Fátima, todos iluminados por uma expressão de alegria contida. A vontade de chorar que eu retinha, por pejo, ganhou novo motivo além da comoção pela beleza de tudo aquilo (Rezende, 2016REZENDE, Maria Valéria (2016). Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara., p. 62).

Tais lembranças brilham e ocupam a mente da Maria idosa, que, ao percorrer as estradas do interior da Bahia de volta a Olho D’Água, metaforicamente revisita e revive as emoções e também certa solidão de outra época.

A época seria a década de 1970, mas no universo sertanejo representado a realidade é quase atemporal, haja vista que os moradores da região continuam a exercer o duro trabalho de tingimento e tecelagem de redes por um ínfimo pagamento de alguém — quase uma entidade do mundo capitalista subdesenvolvido — conhecido apenas como “Dono”. Semelhantemente ao Araguaia visitado por Nani, onde pouca transformação ou desenvolvimento parece ter havido desde a guerrilha, aqui a exploração do trabalho braçal e a continuidade de tais condições suspendem a temporalidade do enredo, o que é interrompido pela presença de Maria no local como professora do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), projeto de alfabetização adulta instituído na ditadura militar.

Planejando fazer mais que ensinar a ler e escrever, Maria vem subverter aquela ordem imemorial. De acordo com Freitas e Milfont (2022FREITAS, Sávio R. S.; MILFONT, Raíza H. S. (2022). A mulher duplamente subversiva em Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende. Re-Unir, v. 9, n. 1, p. 106-119., p. 114), “sua subversão é realizada não só através de sua estratégia ideológica para libertação intelectual dos injustiçados, como também pelos próprios métodos que pretende utilizar no momento de suas aulas, um método freiriano de educação”. Embora o projeto de escolarização seja interrompido pela aproximação de agentes do governo, Maria aprende nesse momento que seus pupilos sabiam mais sobre si e sobre o contexto político e social de opressão que o país enfrentava, já que são eles que vêm alertá-la e pedir-lhe para fugir rapidamente no caminhão das redes. O alerta dos vizinhos, portanto, aponta para sua percepção de que Maria poderia ter problemas com as autoridades.

Interessa observar que o espaço escolhido por Maria para empreender sua militância foi o sertão, tradicionalmente associado ao subdesenvolvimento, e nos anos 1950 e 60 palco de uma modesta atuação das Ligas Camponesas, movimento articulado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) com o objetivo de promover a reforma agrária e outras transformações sociais. Fora dos centros urbanos onde a guerrilha e os movimentos estudantis se arriscavam em atividades de resistência, a ação transformadora dessa personagem é direcionada aos marginalizados do sertão nordestino, onde a mulher acreditava poder suscitar um levante popular. Sua viagem de volta àquele local, décadas mais tarde, é semelhante à viagem da protagonista de Antes do passado na medida em que performa um retorno mais que espacial, mas temporal, àqueles espaços que parecem conservar os traços da realidade dos anos 1970.

Ainda a respeito da suspensão do tempo naquele espaço de escassez, a passagem em que Maria presencia um festejo religioso de grande importância para os moradores locais é ilustrativo da universalidade e atemporalidade dessa voz levantada pelos humildes da terra. O cântico que invocam à Nossa Senhora expressa o desamparo de tal povo: “Só vós, Mãe bondosa, nos valeis, / Só vós nos trazeis luz e esperança, / Estendendo para os pobres vossa mão” (Rezende, 2016, p. 62-63). A devoção dos moradores de Olho D’Água testemunha uma tradição católica local, mas fala da desesperança dos explorados no sistema, na autoridade instituída, e coloca somente na intervenção divina a possibilidade de que alguém cuide de si. Tal discurso pode facilmente ser identificado com o desalento de tantos outros explorados do mundo capitalista e em desenvolvimento, em muitos outros lugares e épocas. Sentimento de comparável consternação levou Maria àquele espaço, e o tempo que ali passou lhe foi de cura, aprendizado, formação.

Naquele mundo de escassez, a força e a beleza do trabalho humano saltavam aos olhos, eu aprendia a viver ali, retomava esperanças, ia, aos poucos, deixando descansarem em paz os meus mortos e perguntando-me quando seria capaz de saber o que fazer para transformar em nova vida as injustiças e dores (Rezende, 2016, p. 29).

O espaço de aridez e desprovimento do sertão nordestino, cenário de tantas obras da literatura brasileira e de seus estudos críticos5 5 Em A invenção do nordeste e outras artes (2001), Durval Muniz Albuquerque Júnior analisa a construção discursiva do nordeste através do século XX, dividindo a produção cultural da e sobre a região em dois blocos: como espaço da saudade e como território de luta. O romance de Rezende (2016) difere em estilo e tônica dos romances de 1930 em que o autor baseia sua divisão. Contudo, se o quiséssemos ler segundo as chaves do autor, poderíamos considerá-lo como constituindo um nordeste enquanto “território de revolta contra a miséria e as injustiças” (Albuquerque Júnior, 2001, p. 183). Considera-se para isso a própria motivação da personagem para ali estar, em busca da revolução e da ruptura para além dos centros urbanos do sudeste brasileiro, com os sertanejos explorados e aparentemente isolados dos acontecimentos políticos que efervesciam no país. As análises de Albuquerque Júnior (2001) são especialmente elucidativas para se compreender o complexo processo político, social e cultural que resultou na consolidação do nordeste como região distinta no Brasil e dotada de todo um imaginário próprio. , é onde a protagonista amplia sua visão da realidade de seu país, assim como o faz a protagonista de Rio-Paris-Rio ao se afastar do Brasil. Não apenas o autoritarismo do governo fazia suas vítimas naquele período histórico-político determinado, mas a tirania da pobreza fazia suas vítimas nas esquecidas cidades do interior do Brasil desde os primórdios da nação, e a resistência diante dessa forma de violência não era a guerrilha, mas a própria sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde 1964, muitos escritores têm publicado incontáveis obras literárias sobre a ditadura militar no Brasil, quer como discreto pano de fundo para seus romances, quer enquanto tema de importância central para as obras. As publicações dos anos 1960 a 80 foram comumente vistas sob uma divisão em vertentes tais como alegórica, jornalística e autobiográfica, e nos últimos anos muitos desses romances têm sido estudados como expressões da pós-memória. O que se percebe, contudo, é a continuidade da presença da temática da ditadura militar na literatura brasileira contemporânea, e as classificações parecem não bastar para tão múltiplas manifestações e estilos.

Dessa permanência — e pode-se dizer novo impulso após o trabalho da Comissão Nacional da Verdade —, origina-se uma reflexão acerca da relevância e motivação dessas obras, uma vez que as décadas que se seguiram ao fim do regime foram de silenciamento e individualização das experiências traumáticas. Para Márcio Seligmann-Silva (2014SELIGMANN-SILVA, Márcio (2014). Imagens precárias: inscrições tênues de violência ditatorial no Brasil. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43, p. 13-34., p. 30-31), “no Brasil ocorreu uma privatização do trauma: apenas os familiares e pessoas próximas às vítimas, além dos próprios sobreviventes, se interessaram por esse tema e investiram na sua memória, na reconstrução da verdade e na busca da justiça”.

Na ausência de uma elaboração coletiva, a literatura coloca-se ao lado da historiografia — ambas construções sociais —, sem a pretensão de espelhar a verdade, mas enquanto repositório de traumas individuais que se entrelaçam no tecido de dor da nação sob a violência que marcou aquele período. Desse modo, esses romancistas oferecem seu quinhão ao trabalho inconcluso de elaboração dessa vivência nacional. Ao mesmo tempo, preenchem uma lacuna apontada por Evelyn Mello (2020MELLO, Evelyn (2020). Literatura, feminismo e ditadura: possíveis caminhos da crítica literária para uma leitura de obras escritas por mulheres no período do regime militar brasileiro. Itinerários, n. 50, p. 37-55., p. 43) na “escassez de leituras que privilegiem o olhar de mulher voltado à ficcionalização do período militar”. Para Caruth (1996CARUTH, Cathy (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Londres, Baltimore: Johns Hopkins University Press., p. 92), o retorno repetitivo da lembrança do trauma sugere uma relação com o evento mais ampla e profunda do que se pode ver ou conhecer. A incompreensibilidade de tais acontecimentos é o que motiva sua dolorosa recorrência na memória.

Os três romances previamente comentados ilustram a multiplicidade de feições das publicações atuais sobre a ditadura militar e seu acréscimo ao conjunto desse panorama. Em Antes do passado, ficção e realidade fazem-se miscíveis no relato da investigação de Nani a respeito de seu tio. A dor da família é palpável no lirismo das cartas entre a narradora e a avó, mulheres que nunca se conformam com a perda de Cilon, que é mais que a perda física da morte: é também a impossibilidade de descobrir a verdade sob o manto de silêncio que a ditadura impõe sobre o destino dos guerrilheiros. O presente da investigação entrelaça-se com dois passados: aquele dos fatos e documentos, que sobejam nas páginas do livro, e aquele das reconstituições, permeadas de emoção — e ficcionalidade — na imaginação da sobrinha que revive os últimos passos do tio. Esse reviver é quase literal quando Nani mais uma vez se desloca, dessa vez no espaço, e viaja até o Araguaia para colher os fragmentos de memórias dos poucos moradores do local que poderiam ter tido contato com seu tio. O espaço torna-se então imensidão e quase vazio, assim como o silêncio que contrasta com as expectativas de grandes descobertas que Nani levou ao Araguaia. Ainda assim, a protagonista enfrenta o sigilo dos crimes perpetrados durante o regime e imbui-se do papel de herdeira desse trauma que não relega ao esquecimento.

Em Rio-Paris-Rio a protagonista não é apresentada no início da narrativa com tanta coragem e disposição ao desnudamento da verdade como Nani. Maria, a estudante de filosofia, é confrontada lentamente com suas próprias verdades e sua história pessoal, em que o avô militar estava em ternas memórias de infância. A ambiguidade do general é percebida e revelada em pequenas doses, assim como outras lembranças dolorosas, como a morte prematura do irmão. Afastada do Brasil, Maria passa por um processo formativo ao presenciar a revolta dos estudantes em Paris em 1968, e, ao tentar compreender aquele evento histórico e social, torna-se clara para ela a indispensabilidade da luta para o enfrentamento das forças que conservam a sociedade em atraso — é o que ela vê tanto na França como no Brasil. O duplo deslocamento indicado pelo título do romance e que resume o itinerário de numerosos exilados políticos é o trajeto da compreensão de Maria sobre sua própria realidade histórica, que se impõe à particularidade das experiências pessoais da moça em Paris. A vida de jovem mulher, com seus interesses românticos, seus desafios enquanto estudante e seu lugar na sociabilidade entre outros exilados e amigos franceses não têm menor destaque que o fato de ser brasileira e precisar se posicionar diante do que acontecia no país, mesmo que a distância. O último salto temporal nas últimas páginas do romance, em que o narrador antevê o retorno dos exilados após a Lei da Anistia, sedimenta a posição de uma Maria mais madura e esperançosa diante das mudanças que no Brasil indicavam a derrocada da ditadura.

A Maria professora de Outros cantos também percorre outros tempos e espaços ao revisitar a vila de Olho D’Água, que a acolhera décadas antes em seus sonhos de educadora freireana e subversiva da ordem estabelecida. No sertão nordestino dos anos 1970, em que o autoritarismo do governo era ensombrado pela urgência de sobreviver à escassez de recursos e ao trabalho duro e explorado, a mulher que passou por vários exílios cresceu sob a orientação e o cuidado de outras mulheres, fortes e experientes. O cuidado quase maternal dessas mentoras fortalece a jovem Maria, cujo envolvimento com a resistência à ditadura é revelado a conta-gotas no romance. O elemento político desse pano de fundo parece ofuscado pelo processo de aprendizado da mulher, mas está no próprio cerne e motivação de sua vivência naquele ambiente naturalmente hostil, mas humanamente acolhedor. A trama da vida de Maria é construída pelo entrelaçamento de diversos tempos e espaços, na busca por um sentido para a resistência e pela oportunidade de mudar vidas, ainda que em bem pequeno alcance. As reflexões de Maria já idosa, cumprindo o caminho de volta a um espaço e tempo significativos em sua vida, dão o vislumbre da intimidade de uma mulher envolvida com as questões sociais de seu tempo.

Assemelham-se as três obras enquanto narrativas de um processo de aprendizagem por parte das protagonistas. Cada qual enfrenta questões íntimas e pessoais ao mesmo tempo que todas definem seu lugar como mulheres na sociedade, seja durante o período da ditadura, seja em uma época posterior, na qual permanecem as heranças daquele regime. De acordo com Regina Dalcastagnè (1996DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o Regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora da UnB., p. 116):

Se parte desses problemas pode ser entendida como peculiar à existência humana, a maioria deles ainda é específica do gênero feminino, que pode estar longe de ser a minoria, mas continua sendo marginalizado dentro da sociedade. Por isso mesmo, entregar a narrativa a uma mulher é olhar a história sob outra perspectiva.

A perspectiva dessas mulheres é, por sua vez, ampliada pelos deslocamentos espaçotemporais que perfazem em suas respectivas narrativas. Esses deslocamentos são, em nossa leitura, o cerne da aproximação entre os três romances; o movimento de afastamento e retorno permite a cada uma das protagonistas maior compreensão acerca dos significados do regime autoritário para o país e da importância de seu próprio posicionamento nessa realidade histórica. As três protagonistas agem, diga-se, de forma ativa — em suas ainda que restritas esferas de influência — em resistência ao regime. Seja por enfrentar o silêncio, seja por tomar consciência e mudar de atitude, seja por ensinar sobre a consciência de classe a trabalhadores, as três mulheres afastam-se do papel feminino passivo e condescendente para uma postura de disposição para o combate contra a opressão. Cada qual com suas especificidades, conforme buscamos resumir nos parágrafos anteriores, as três protagonistas lançam luz sobre a experiência de mulheres durante e após o regime militar e suas implicações.

Dominick LaCapra (1999LACAPRA, Dominick (1999). Trauma, absence, loss. Critical Inquiry, v. 25, n. 4, p. 696-727., p. 713) em seus proeminentes estudos sobre o trauma estabelece uma diferenciação entre modos de resposta à perda e ao trauma histórico. O crítico considera a melancolia como traço de uma atuação (act-out) da dor e aproxima-se das conceitualizações freudianas para defini-la como processo continuado e repetitivo de depressão e autoflagelação. Ao trabalhar para elaborar (work-through) ou resolver a dor do luto, no entanto, o indivíduo transcende a individualização do sofrimento e socializa-o de modo a permitir seu distanciamento crítico, retomar a vida social e renovar-se pelo trabalho da memória.

Lançando mão, por sua vez, dos estudos de Lacan acerca do trauma, Cathy Caruth (1996CARUTH, Cathy (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Londres, Baltimore: Johns Hopkins University Press., p. 102) observa que, em eventos traumáticos em que há a perda de entes queridos, a vida dos sobreviventes permanece ligada à vida dos que não vivem mais, e o trauma não consiste simplesmente em uma condição de apreensão da realidade, mas de “uma relação ética com o real” (Caruth, 1996, p. 102). Há, portanto, a urgente necessidade de se falar e testemunhar pelos que já não podem fazê-lo, e o mesmo parece valer para a literatura brasileira em sua relação com a sociedade: a temática permanece nas publicações mais atuais, como permanece a falta de justiça diante das violências perpetradas e das vidas perdidas, e tais obras reconhecem e validam a dor dos que ficaram e de seus descendentes.

  • 1
    É conhecido que, por causa da atuação dos órgãos de censura, numerosas obras literárias foram impedidas de circular, tais como peças de Nelson Rodrigues e Dias Gomes, romances de Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão e Renato Tapajós. Ao comentar o período, Ana Maria Machado (1999MACHADO, Ana Maria (1999). Contracorrente: conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática., p. 18) afirma que “a década de 70, obrigada a se expressar metaforicamente, canaliza grande parte de sua manifestação literária para gêneros que antes eram marginais — a saber, as letras de canções, a poesia de mimeógrafo e a literatura infantil”. Também a autocensura causada pela opressão do regime era forma comum de silenciamento das dissonâncias.
  • 2
    Do original: “Trauma is described as the response to an unexpected or overwhelming violent event or events that are not fully grasped as they occur, but return later in repeated flashbacks, nightmares, and other repetitive phenomena” (Caruth, 1996, p. 91).
  • 3
    Do original: “Postmemory describes the relationship that the generation after those who witnessed cultural or collective trauma bears to the experiences of those who came before, experiences that they ‘remember’ only by means of the stories, images, and behaviors among which they grew up” (Hirsch, 2008, p. 106).
  • 4
    Embora não haja dados precisos, estima-se que cerca de dez mil pessoas tenham se exilado durante o período da ditadura militar, em diversos países de asilo, tais como França, Itália, Chile, México, Suécia e Argélia (Cruz, 2018CRUZ, Fábio Lucas (2018). A História e as memórias do exílio brasileiro. Fronteiras: Revista Catarinense de História, n. 20, p. 115-137. https://doi.org/10.36661/2238-9717.2012n20.8139
    https://doi.org/10.36661/2238-9717.2012n...
    , p. 115-116).
  • 5
    Em A invenção do nordeste e outras artes (2001), Durval Muniz Albuquerque Júnior analisa a construção discursiva do nordeste através do século XX, dividindo a produção cultural da e sobre a região em dois blocos: como espaço da saudade e como território de luta. O romance de Rezende (2016)REZENDE, Maria Valéria (2016). Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara. difere em estilo e tônica dos romances de 1930 em que o autor baseia sua divisão. Contudo, se o quiséssemos ler segundo as chaves do autor, poderíamos considerá-lo como constituindo um nordeste enquanto “território de revolta contra a miséria e as injustiças” (Albuquerque Júnior, 2001, p. 183). Considera-se para isso a própria motivação da personagem para ali estar, em busca da revolução e da ruptura para além dos centros urbanos do sudeste brasileiro, com os sertanejos explorados e aparentemente isolados dos acontecimentos políticos que efervesciam no país. As análises de Albuquerque Júnior (2001)ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz (2001). A invenção do nordeste e outras artes. 2. ed. Recife: FJN, Massangana; São Paulo: Cortez. são especialmente elucidativas para se compreender o complexo processo político, social e cultural que resultou na consolidação do nordeste como região distinta no Brasil e dotada de todo um imaginário próprio.
  • ERRATA

    10.1590/2316-40186902erratum
    No artigo “Perspectivas femininas contemporâneas sobre o autoritarismo da ditadura militar: tempo e espaço em Liniane Brum, Luciana Hidalgo e Maria Valéria Rezende”, com número de DOI 10.1590/2316-40186902, publicado no Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 69, e6902, 2023:
    ONDE SE LIA:
    Resumo
    O presente artigo teve como objetivo analisar a contribuição de escritas femininas na contemporaneidade para o escopo da literatura sobre a ditadura militar no Brasil. Por meio de uma breve análise de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012), de Liniane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende, diferentes vertentes da contemporaneidade literária brasileira são discutidas em suas distintas formas de representar o período ditatorial. Apesar de tal diversidade de estilos, apontamos para os deslocamentos espaçotemporais na composição narrativa como ponto de convergência entre as três publicações, sua relação com a perspectiva narrativa (feminina) e sua compreensão do contexto histórico e social em questão.
    Abstract
    This article aimed to analyze the contribution of contemporary female writing to the scope of literature on the Brazilian military dictatorship. Through a brief analysis of Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) by Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) by Luciana Hidalgo, and Outros cantos (2016) by Maria Valéria Rezende, different aspects of contemporary Brazilian literature are discussed in their distinctive ways of representing the dictatorial period. Despite such diversity of styles, the spatio-temporal displacements in the narrative composition are appointed as a point of convergence between the three publications, and their relationship with the (female) narrative perspectives and their understanding of the historical and social contexts in question.
    Resumen
    Este artículo tuve como objetivo analizar la contribución de la escritura femenina contemporánea al ámbito de la literatura sobre la dictadura militar en Brasil. A través de un breve análisis de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) de Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) de Luciana Hidalgo y Outros cantos (2016) de Maria Valéria Rezende, se discute la literatura contemporánea brasileña en sus diferentes formas de representar el período dictatorial. A pesar de tal diversidad de estilos, señalamos los desplazamientos espaciotemporales en la composición narrativa como punto de convergencia entre las tres publicaciones, y su relación con la perspectiva narrativa (femenina) y su comprensión del contexto histórico y social en cuestión.
    LEIA-SE:
    Resumo
    O presente artigo tem como objetivo analisar a contribuição de escritas femininas na contemporaneidade para o escopo da literatura sobre a ditadura militar no Brasil. Por meio de uma breve análise de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012), de Liniane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende, diferentes vertentes da contemporaneidade literária brasileira são discutidas em suas distintas formas de representar o período ditatorial. Apesar de tal diversidade de estilos, apontamos para os deslocamentos espaçotemporais na composição narrativa como ponto de convergência entre as três publicações, sua relação com a perspectiva narrativa (feminina) e sua compreensão do contexto histórico e social em questão.
    Abstract
    This article aims to analyze the contribution of contemporary female writing to the scope of literature on the Brazilian military dictatorship. Through a brief analysis of Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) by Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) by Luciana Hidalgo, and Outros cantos (2016) by Maria Valéria Rezende, different aspects of contemporary Brazilian literature are discussed in their distinctive ways of representing the dictatorial period. Despite such diversity of styles, the spatio-temporal displacements in the narrative composition are appointed as a point of convergence between the three publications, and their relationship with the (female) narrative perspectives and their understanding of the historical and social contexts in question.
    Resumen
    Este artículo tiene como objetivo analizar la contribución de la escritura femenina contemporánea al ámbito de la literatura sobre la dictadura militar en Brasil. A través de un breve análisis de Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (2012) de Liliane Haag Brum, Rio-Paris-Rio (2016) de Luciana Hidalgo y Outros cantos (2016) de Maria Valéria Rezende, se discute la literatura contemporánea brasileña en sus diferentes formas de representar el período dictatorial. A pesar de tal diversidad de estilos, señalamos los desplazamientos espaciotemporales en la composición narrativa como punto de convergencia entre las tres publicaciones, y su relación con la perspectiva narrativa (femenina) y su comprensión del contexto histórico y social en cuestión.
    NA PÁGINA 12, FOI INCLUÍDO OS AGRADECIMENTOS:
    AGRADECIMENTOS
    Agradeço ao Office of the Associate Academic Vice President for Research and Graduate Studies da Universidade Brigham Young por financiar, através da Women’s Research Initiative grant, o projeto de pesquisa do qual este artigo resulta.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Office of the Associate Academic Vice President for Research and Graduate Studies da Universidade Brigham Young por financiar, através da Women’s Research Initiative grant, o projeto de pesquisa do qual este artigo resulta.

Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Aceito
    24 Mar 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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