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As “epifanias” de Paulo Henriques Britto e a poesia de “arrancar os olhos”

The Paulo Henriques Britto’s “Epiphanies” and a “Plucking out the Eyes” Poetry

Las “epifanías” de Paulo Henriques Britto y la poesía de “sacar los ojos”

Resumo

Neste artigo, recorreremos a textos de filósofos e críticos literários para formular uma leitura crítica que consiga abarcar de modo suficiente alguns questionamentos estéticos que são implicitamente abordados na poesia de Paulo Henriques Britto. Tais tópicos são construídos por meio de uma subversão das noções de sujeito e objeto, o que nos leva a imaginar que é uma nova relação de uso que está evidenciada em sua poesia. Esse conceito convoca outros procedimentos que se ligam à especificidade da poesia como forma de ver o mundo além dos sentidos. A percepção transmutada e relativizada dos objetos responde a uma exigência da poética de Paulo Henriques Britto: a de expor a aparente vida comum como um palco em que a crise se apresenta como um substrato da reflexão estética.

Palavras-chave:
uso; objeto; crise; Paulo Henriques Britto

Abstract

In this paper, we will rely to philosophers’ and literary critics’ essays in order to formulate a critical reading of Paulo Henriques Britto’s poetry that would address its relation with some aesthetical issues. This relationship is built by a subversion of the concepts of subject and object. Thus, this feature led us to conceive some other use relations involving his poetry. Indeed, this concept invites other approaches related to the poetry’s specificity as a way to see the world beyond the senses. This transmuted/relativized perception of objects carries a remarkable exigence in Paulo Henriques Britto’s poetry: to show an apparent ordinary life as a stage where crisis can be understood as a substrate for an aesthetic reflection.

Keywords:
use; object; crisis; Paulo Henriques Britto

Resumen

En este artículo, recorreremos a textos de filósofos y En este artículo, recorreremos textos de filósofos y críticos literarios para desarollar una lectura crítica en la que se pueda abarcar suficientemente algunas cuestiones estéticas implícitamente puestas en la obra de Paulo Henriques Britto. Estas relaciones son construidas a través de una subversión de las nociones de sujeto y objeto, lo que nos lleva a creer que se trata de una nueva relación de uso que se evidencia en su poesía. Ese concepto convoca otros procedimientos relativos a la especificidad de la poesia como forma de ver el mundo más allá de los sentidos. La percepción transmutada y relativizada de los objetos se prende a una notable exigencia de la poética de Paulo Henriques Britto: exponer la aparente vida común como un palco escénico donde la crisis es presentada como un sustrato de la reflexión estética.

Palabras-clave:
uso; objeto; crisis; Paulo Henriques Britto

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!
Olavo Bilac

Malgrado a amplidão do tema e as interpretações que ele suscita até hoje, o lugar dos objetos na arte permanece sendo um requisito da investigação sobre o desenvolvimento, a historicidade e a análise das obras. Se o remetermos à poesia, o debate está remotamente relacionado à querela entre literalismo e lirismo (cujo epicentro está na França, com repercussões por todo o mundo), embora não esteja no cerne das preocupações estéticas de cada uma dessas vertentes. O debate entre as correntes, entretanto, é apenas uma das formas de analisar o tema, e não escapa à tentação de se estabelecer como uma luta entre programas. Não apenas concepções de poesia, mas também de política e de mundo.

É evidente que, diante da flagrante complexidade do problema, (que não se resume às supostas dicotomias forma/“conteúdo” ou arte/utilitarismo), algum recorte se mostra imperativo, de maneira que, abordando inicialmente o problema pela via estética, estenderemos pouco a pouco neste artigo esses parâmetros à poesia - à poética de Paulo Henriques Britto, mais especificamente. Quando dizemos “lugar”, referimo-nos a um lugar possível da questão dentro da hermenêutica de sua obra, o que implica entender que nela a leitura da trivialidade do objeto possui um espaço particular, “denunciador”, identificado aos epifenômenos que exporemos aqui. E, finalmente, quando dizemos objeto, remontamos à noção mais trivial de objeto, ou seja: àquela que remete a uma coisa passível de apreensão pelos sentidos. Essa redução analítica obedece à exigência de elencarmos um caso exemplar - o “uso” dos objetos na poesia de Paulo Henriques Britto como passaporte para uma insuspeita concepção da trivialidade discursiva.

A questão se desdobra, indubitavelmente, ao próprio estatuto político da poesia como expressão de mundo (e no mundo), evidenciando as relações conservativas e de troca entre condições de produção e discursividade. Como figurar poeticamente a obviedade da percepção dos itens de uso e fabrico de maneira a superá-la, sem deixar de lidar com a consciência de que esses itens já não pertencem à utilidade e ao mundo a que servem, mas a outro regime de reconstituição - ética e estética, presumivelmente? Há algum valor político que resulta da irrelevância do objeto trivial num quadro ou num poema?

A inquietação sobre tais temas é há tempos objeto de estudo de críticos e filósofos. Nosso ponto de partida neste artigo é um texto de Hannah Arendt, escrito em 1960 para a prestigiada revista Daedalus, ligada à American Academy of Arts and Sciences. O artigo, “A crise da cultura: sua importância social e política”, considerado um clássico do pensamento arendtiano, versa sobre o debate, candente àquele tempo, sobre a cultura de massa como suposta ameaça à cultura estabelecida. A autora retoma conceitos clássicos, como é de praxe em sua escrita, para relacionar a relação de cultura (palavra advinda do verbo latino coleo, “colher”) às noções de transformação do mundo pela ação humana, em que a ação se identifica à capacidade de “fundar e preservar corpos políticos, criando a condição para a lembrança, ou seja, a história” (Arendt, 2007ARENDT, Hannah (2007). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 16-17). A partir desse panorama histórico, ela estuda os termos em que fabricação e arte se estabelecem como padrões de inclusão ou exclusão dentro dos corpos políticos de Roma e Grécia. Afeiçoando-se à exigência clássica do thaumádzein, ou seja, do maravilhamento, e à philokalia, do amor à beleza, a autora pode conceber, dentro de sua argumentação, o critério segundo o qual entende que uma obra de arte deva aparecer, ser observada - a própria beleza:

Enquanto que a neutralidade de todos os objetos de que nos rodeamos repousa em terem uma forma através da qual aparecem, apenas as obras de arte são feitas para o fim único do aparecimento. O critério apropriado para julgar aparências é a beleza; se quiséssemos julgar objetos, ainda que objetos de uso ordinários, unicamente por seu valor de uso e não também por sua aparência - isto é, por serem belos, feios ou algo de intermediário -, teríamos que arrancar fora nossos olhos (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 263).

Há vários pontos de interesse nessa fala, de modo que alguns de seus desdobramentos serão retomados num momento posterior de nossa análise. Em primeiro lugar, chamamos a atenção para o antagonismo fundamental que, segundo a autora, divide nossa percepção ou ao menos divide o que deve ou não ser classificado como expressão de arte. Os objetos comuns, “de que nos rodeamos”, aparecem em sua neutralidade como forma, enquanto a “obra de arte” está ligada à finalidade de aparecer. Nessa leitura, note-se a espontaneidade dos objetos comuns que, “aparecendo”, despojam-se da finalidade de aparecer. Há um intervalo entre a representação do objeto depois de o percebermos, o lugar que ele tem no mundo e o dispositivo que o lançará fora da arte e aquém de qualquer existência que não seja destinada ao uso. A obra de arte, ao contrário, cujo fim é evidenciar-se pelos sentidos, pode existir para além de sua legibilidade tátil ou visual, pertencendo provavelmente à ordem das coisas que se absorvem pelos sentidos, mas que são gestadas repetidamente e de maneira particular pelo intelecto. Justamente por isso, está sujeita a critérios outros que não o do uso ou o do gasto, mas os do gosto,1 1 Nesse mesmo ensaio (“A crise na cultura”), Hannah Arendt põe em evidência a noção de gosto para afirmá-la como um requisito para a apreciação da arte. Nesse movimento, ela investe contra o filisteísmo, isso é, contra a prática de desprezar a arte em favor de uma vida dedicada a um utilitarismo vazio. Para fazê-lo, ela recorre a uma expressão atribuída a Péricles (“philokaleín met enteleías”, que significa “amor altivo à arte”), identificando-a a um senso comum (um “bon sens”, na tradução francesa) reconhecido e partilhado por todos, como também o é o juízo do belo: “O gosto enquanto uma atividade da mente realmente culta - cultura animi - somente vem à cena quando a consciência-de-qualidade se acha amplamente difundida, o verdadeiramente belo sendo facilmente reconhecível; é que o gosto discrimina e decide entre qualidades. Enquanto tal, o gosto e seu julgamento sempre atento das coisas do mundo impõe-se limites contra um amor indiscriminado e imoderado do meramente belo; ele introduz, no âmbito da fabricação e da qualidade, o fator pessoal, isto é, confere-lhe uma significação humanística. O gosto humaniza o mundo do belo ao não ser por ele engolfado: cuida do belo à sua própria maneira ‘pessoal’ e produz assim uma ‘cultura’” (Arendt, 1979, p. 278-279). da originalidade e da beleza.

O problema acontece quando algo, geralmente nascido dentro da própria obra, afeta essa constância. Os objetos passam a não se conformar mais na órbita daquilo a que foram destinados, e a questão deixa de ser “como perceber este objeto pelos sentidos” para transformar-se em “como entender intelectualmente esse objeto, que foi posto numa categoria que lhe é absolutamente estranha?”. A segunda das “Três epifanias triviais”, de Paulo Henriques Britto, exemplifica a prática de (con)fundir tais classificações:

As coisas que te cercam, até onde
alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem
nem mesmo uma migalha de atenção,
estas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa -
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo o que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.
O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Ideias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompeia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.
As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a tua hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)
(2003, p. 70-71)

Nesse poema, em que os objetos são vagamente definidos como “coisas que [nos] cercam”, o lugar do sujeito e as declinações do tempo são dadas pelo objeto. Diante disso que nos cerca e que insuspeitadamente possui uma vida própria afastada da existência humana, o poeta alinhava o exército dos entes que superam a mera concepção e encontram sua plenitude dentro do pequeno limiar de uso que contêm. Trata-se, afinal, de uma espécie de ataque ostensivo daquilo que não tem importância. A trivialidade dos sentidos é evidenciada pela forma como o tempo gasta as coisas, o que revela, na verdade, que é o próprio sujeito - e não as coisas que ele constrói - que está à mercê de sua perecibilidade. Assim, são as coisas que permitem ao tempo “correr”, e é a elas que ele deve sua medida. Os sentidos, sequestrados pelas ações fugazes, são apenas os ruídos que ressaltam timidamente no diapasão das únicas coisas que possuem existência real - os objetos. Como “testemunhas cegas da existência”, eles não são senão a própria medida da precariedade daquilo que os criou: a aventura, a Ideia, a forma concebida, o engenho da fabricação.

Nessa epifania do trivial, que não é senão a recusa a qualquer trivialidade, o papel da forma se resume a embaralhar as noções de ideia e utilidade. Enquanto para Hannah Arendt tais papéis divisam o que é e o que não é uma obra de arte, no poema de Paulo Henriques Britto toda e qualquer forma terminada de engenho, de elaboração, soa maior e mais íntegra do que a própria arkhé que as impulsiona. A “alvenaria do mundo”, isto é, aquilo que denuncia a sensaboria da completude, é a força vitoriosa que suplanta a brevidade e a caducidade do pensamento, o que revela sua ingrata condição de “enchimento”, “pó”, esquecimento, erro entre outros erros. Mas se essa alvenaria se presta a reforçar o edifício depauperado em que mora a condição humana de finitude, onde deveremos situar a poesia, a filosofia e tudo o que entendemos e reiteramos por manifestação de uma historicidade da existência?

Esse edifício é construído, sem dúvida, pela linguagem, e não pode ele próprio ser interpretado sob o signo do acaso. Num outro texto bastante difundido, “O conceito de História”, Hannah Arendt reitera a condição de reconhecimento, a qual está relacionada à possibilidade de compreender a natureza e o engenho humano. No que tange ao sujeito que se prontifica a reconhecer-se como tal, é exigido que se traduza ao menos a experiência comum que o une à técnica, àquilo “que ele mesmo fez” e que o situa numa historicidade comum a ele e a outros sujeitos:

De consequências muito mais imediatas para nosso conceito de História foi a versão positiva de subjetivismo que emergiu do mesmo transe: não obstante o homem pareça incapaz de reconhecer o mundo dado que ele não fez, deve contudo ser capaz de conhecer ao menos aquilo que ele mesmo fez (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 88).

Esse conceito está claramente ligado à capacidade de fabricação, às coisas inteligíveis que participam do universo das epifanias triviais. Mas essas mesmas coisas, consideradas sem a devida atenção à linguagem, estão encerradas em seu próprio tempo e, por isso mesmo, alçadas à condição de “observadoras”. Elas não têm sentidos, não estão “até onde se alcança a vista”, não têm lábios que tateiam, e não são sequer vivas. Em se reconhecendo como uma temporalidade circunstancial - mas que sobrevive a todas as outras -, elas não criam entre si uma noção de historicidade, mas se regozijam silenciosamente dentro do império dos sentidos humanos. Há, no entanto, um mundo a descrever, classificar e nomear: o que sobrou de Pompeia foi o nome que seus habitantes lhe deram, bem como a louça que sobrevive ao tempo. No mundo natural o homem também se encontra, como num espelho, com a linguagem dentro da qual opera, fruto de seu próprio engenho.2 2 “No que respeita à Ciência Natural, isso nos leva de volta à afirmação anteriormente citada de Heisenberg, cuja consequência ele formulou certa vez, em contexto diferente, como o paradoxo de que o homem, toda vez que tenta aprender acerca de coisas que não são ele próprio nem devem a ele sua existência, encontrará em última instância a si mesmo, a suas próprias construções e os padrões de suas próprias ações” (Arendt, 1979, p. 122). Aos sujeitos que reconhecem o mundo cabe, portanto, o truque de formar uma historicidade pela linguagem, reforçando o esquecimento de sua precariedade e plasmando naquelas mesmas formas vazias a sua subjetividade e a sua aventura pelo mundo das ideias. História e poesia, para Paulo Henriques Britto, são feitas de um mesmo nada (“o que é uma pena”, diz ironicamente o sujeito), ou um “nada que nadifica a si mesmo”, nas palavras de Agamben.3 3 Essa expressão é o título de um dos capítulos do livro O homem sem conteúdo (Agamben, 2012). A primeira das “Três epifanias triviais” tenta descrever a formulação desse movimento de retorno à Ideia, ancorando, evidentemente, sua força no que esse exercício tem de fissura e falhanço:

Seria trágico se não fosse bobagem.
Seria uma solução se houvesse um problema
possível de resolver. Seria uma imagem
poética se houvesse um espaço para um poema.
Estando as coisas como estão, não é mesmo nada.
O que é uma pena. Pois o gesto em si é belo
como uma ruína, ou uma xícara quebrada.
(Mas não é bem gesto, e sim a intenção de fazê-lo.
É mais a ideia de uma coisa que uma coisa,
apenas um projeto, e a plena convicção
de que mais nada vai acontecer depois,
a consciência de que a pseudo-solução
há de doer a vida inteira na lembrança,
como um castigo injusto imposto a uma criança.)
(Britto, 2003BRITTO, Paulo Henriques (2003). Macau. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 69)

O gesto, “belo como uma ruína”, fadado ao desgaste de ser “mais a ideia de uma coisa que uma coisa”, vem de encontro à necessidade quixotesca de durar mais do que uma xícara quebrada, mais do que um daqueles objetos triviais de uso comum. Atente-se aqui que a beleza alquebrada dessa consciência (ou a beleza dessa consciência alquebrada) aparece também, como em Arendt, dentro dos símbolos do aparecimento, da epifania. Entretanto, enquanto para a autora isso define a nobreza e o desprendimento da ação humana por meio da arte, para Britto eles não são senão índices de nossa falibilidade, como se fosse o próprio ser humano constrangido à noção de ser usável, descartado, prontamente malogrado em suas aspirações de infinitude. Não há nada mais distante da Ideia do que estar ligado a uma força cogente determinada para cumprir algo: dentro do poema, nem as faculdades de planejar e de fazer projetos que se efetivem estão bem desenvolvidas. E isso constitui o próprio gesto e, mais do que isso, a sua beleza inútil.

Chegamos aparentemente a um beco sem saída, a uma situação em que a poesia e a imagem poética se colocam abaixo das expectativas da utilidade e aquém do que poderiam expressar como linguagem, no sentido de que declinam da prerrogativa de formar uma historicidade consoante à experiência humana. Mas é só aparentemente que isso acontece. Para ver, às vezes é preciso “arrancar os olhos”. Se levarmos até ao limite a afirmação de Marcos Siscar de que “a insignificância do mundo, algo próximo da privação de sentido e de mundo, é a condição para que alguma outra coisa aconteça, se é verdade que ainda não aconteceu” (2010, p. 167), poderemos ver nessa sintomática “privação de sentido” a chave para uma leitura de poesia (e de arte, por extensão) que considere seus resíduos como participantes do produto final.

Estamos contando aqui com a ambiguidade da palavra “sentido” para formular a ideia de que a poesia de Paulo Henriques Britto retoma frequentemente a metáfora da perecibilidade dos objetos (com todos os fenômenos de percepção que ela envolve) para performar o conflito que emerge de uma exigência, até certo ponto superada, de eternidade e beleza. É um choque frontal com certa ideia de arte que privilegia a duração da obra e sua permanência no mundo:

Vista contra o fundo das experiências políticas e de atividades que, entregues a si mesmas, vêm e vão sem deixar sobre o mundo nenhum vestígio, a beleza é a própria manifestação da imperecibilidade. A efêmera grandeza da palavra e do ato pode durar sobre o mundo na medida em que se lhe confere beleza. Sem a beleza, isto é, a radiante glória na qual a imortalidade potencial é manifestada no mundo humano, toda vida humana seria fútil e nenhuma grandeza poderia perdurar (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 272).

A aparente privação de sentido nos poemas de Britto responde a uma perspectiva de utilidade que nega a percepção comum da vista, do tato e do intelecto. Ela prefere mirar na direção de uma poesia que tematiza a si mesma e escolhe seus elementos desafiando o lugar dos objetos que a compõem e aquelas “sensações” esperadas, de maneira quase idílica, por uma visão convencional do fenômeno literário. Num contexto semelhante, essa idiossincrasia da linguagem poética fora descrita como uma “angústia do sentido”.4 4 No ensaio “A cisma da poesia brasileira”, publicado em 2005, Marcos Siscar empreende um diagnóstico sobre divisões, traços em comum e expectativas da poesia contemporânea brasileira: “Falta entender alguma coisa sobre a poesia contemporânea não porque uma falsa prudência o obriga, quando se trata do ‘caráter inacabado’ da atualidade, mas porque a poesia dramatiza uma certa angústia do sentido” (2010, p. 162, grifo nosso). Tratando especificamente do poema, nota-se que a “radiante glória” a que Arendt alude seria redimensionada ao ponto de uma grandeza infinitesimal, muito menos visível do que o grande triunfo clássico ou qualquer forma de heroísmo. Ocorre que, na poesia de Paulo Henriques Britto, o ato político não pertence a um regime definitivo de publicidade - ele ocorre como repercussão, paródia e ironia sobre atos e objetos comezinhos, quase particulares. E, embora seja verdade o fato de que “o elemento comum que liga arte e política é serem, ambos, fenômenos do mundo público” (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 272), ele não apresenta nenhuma relação com um ato de grandeza duradoura, mas sim com os acidentes no percurso de busca dessa grandeza. É natural, assim, que o Ideal não componha a matéria-prima da arte, mas sim que ele se reduza a uma forma propositalmente inócua cujo sentido não pretende se apresentar em sua integridade.5 5 “Em outras palavras, pensar toda forma como acontecimento da crise, habitada pelas forças desestabilizantes do informe, na contracorrente da polarização entre forma e força” (Pedrosa, 2015, p. 324, grifo nosso). Ressalte-se que a discussão proposta no artigo da pesquisadora versa sobre uma suposta tendência a abolir o verso, levantada por alguns críticos e estudada pela autora. De toda forma, evidencia-se nessa passagem a condição de inacabamento da poesia contemporânea. Não por acaso, a perspectiva tradicional para o problema da arte e do papel do artista é observada por Marcos Siscar no ensaio “O discurso da crise e a democracia por vir” como um dos motes do discurso que afirma e difunde uma suposta crise da poesia:

Dada a natureza do processo, pode-se imaginar que o crime pelo qual a poesia tem pagado, nesses casos, é justamente aquele que lhe deu prestígio, isto é, o de uma visão sacralizada e mitificada da experiência artística, que separa decisivamente o poeta do “comum dos mortais” (Siscar, 2010SISCAR, Marcos (2010). Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp., p. 34).

Não há nada mais distante da poesia de Paulo Henriques Britto do que a ideia de separação entre poesia e mundo comum. Não é que eles coincidam integralmente, mas as tensões que o mundo “palpável” cria (e amplia) emulam, analogamente, a relação enganosa com os sentidos. Nesse universo em que se encavalgam versos e objetos insuspeitos, a percepção e a busca pela comunicabilidade - denominadores comuns de qualquer partilha social -6 6 “Só podemos comunicar-nos com outros por meio daquilo que em nós, assim como nos outros, continuou em potência, e toda comunicação (conforme Benjamin intuiu a respeito da língua) é, antes de tudo, comunicação não de algo comum, mas de uma comunicabilidade. Por outro lado, se houvesse um único ser, este seria absolutamente impotente, e onde eu posso, ali já somos sempre muitos (assim como, se há uma língua, ou seja, uma potência de falar, não pode haver um único ser que fala)” (Agamben, 2017, p. 237). são contaminadas por essa espécie de consciência que parte dos entes que não possuem corpo nem um estatuto prático. São “pseudo-soluções”, formas preenchidas por “nada”, ou pensamentos relegados à ruína da Ideia. Não podemos perder de vista, no entanto, que essas formas vazias, “formas do nada”,7 7 Título de um livro de Paulo Henriques Britto, publicado em 2012, em que a temática da incomunicabilidade é também intensamente abordada. ocupam também elas uma corporeidade precária, evidenciada apenas quando em contraponto com os objetos que a denunciam em sua existência contingente:

O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.
Um belo dia - por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos -
você abre a janela, ou abre um pote
de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:
É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa existência cega
a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?
E neste exato instante
você por fim entende, refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.
(Mesmo que seja por trinta segundos.)
(Britto, 2003BRITTO, Paulo Henriques (2003). Macau. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 72-73)

Não será por acaso que a ideia (considerada aqui em sua acepção corriqueira, como um decaimento da Ideia primordial) é “despertada” pelos objetos: janela, pote de pêssegos, livro, poltrona. Se são eles que sobrevivem ao caos diário, evidentemente são eles que encontram algum tipo diminuído de transcendência - o extremo oposto dessa busca sem heroísmo pela glória da beleza, que parece mimetizar a crônica de uma morte lenta, inglória, sem sentido e sem brilho. É ainda mais evidenciada essa negação do sentido e da ordem se notarmos que essa existência cega, que tateia e lê os objetos pela sua exterioridade, é capaz de elucidar, pelo “latejar da mente”, o enigma que confere ao sujeito algo assemelhado - mas muito distante - da linear transcendência das coisas objetificadas. Dessa forma, é a primazia do tato como sentido diante dos outros8 8 “Assim como, com respeito à faculdade nutritiva, a sensação e o intelecto implicam um suplemento heterogêneo que diferencia o animal e o homem com relação à planta, também, enquanto o tato torna possível a vida, ‘os outros sentidos existem em vista do bem’, e como não é possível separar nos mortais a alma nutritiva das outras, da mesma forma ‘sem o tato não é possível que haja outro sentido... e com a perda do tato, os animais morrem’. O dispositivo metafísico-político que divide e articula a vida age em todos os níveis do corpo vivo” (Agamben, 2017, p. 229). Os trechos entre aspas provêm do De anima de Aristóteles (alíneas 434b 24 e 435b 3-4, respectivamente). que expõe o corpo em sua condição de contato com o mundo. Os objetos se definem à sombra da realidade, de maneira que a vista sozinha não satisfaz a exigência de verdade a que o sujeito pretende aceder. A “existência cega” que a poesia representa desvela, portanto, a condição de ambiguidade do sujeito no mundo: ele se reconhece como parte de um todo finito, e instrumentaliza, molda o mundo à sua volta (sem necessariamente atribuir a ele alguma possibilidade de leitura que não a da percepção imediata). No entanto, mostra-se absolutamente incapaz de superar em duração aquilo que criou e permanecerá.

Só podemos compreender a maneira como se dá esse processo de mudança de estatuto dos objetos do poema se abandonarmos o sentido ordinário da palavra uso, que confere aos objetos a sua forma prática e, consequentemente, a sua aura de acabamento. É necessário, nesse contexto, deixar de lado a noção de uso como ação de um ser sobre outro (que é utilizado) e entendê-la como uma força capaz de nutrir,9 9 “Em um ensaio exemplar [Problèmes de linguistique générale], Émile Benveniste chamou atenção para o aparentemente inexplicável duplo significado do verbo grego trepho, que significa tanto ‘nutrir’ quanto ‘adensar, coagular um líquido’ (por exemplo, trephein gala, ‘fazer coalhar o leite’). A dificuldade é resolvida quando se compreende que o verdadeiro significado de trepho não é simplesmente nutrir, mas ‘deixar crescer ou favorecer o desenvolvimento natural de algo’” (Agamben, 2017, p. 232). deixar florescer as interações que os objetos exercem com o ambiente em que estão, já que estes se encontram estranhamente irmanados a um mundo de poesia e infinitude. É claro que quem propõe esse novo uso do mundo é o poeta, e esse sistema parece funcionar apenas quando inscrito nos limites da organização desse mecanismo. Ele obedece mais firmemente à noção que Giorgio Agamben retira do verbo grego chrestai, análogo ao termo latino uti e relacionado a espécies diversas de uso:

O verbo chrestai parece não ter significado próprio, mas assume sentidos diferentes de acordo com o contexto. [Georges] Redard elenca dessa maneira 23 significados do termo, de “consultar um oráculo” a “ter relações sexuais”, de “falar” a “ser infeliz”, de “golpear com o punho” a “sentir nostalgia” (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo., p. 43).

Soa estranho, em português ou em qualquer outro idioma, dizer que um objeto “abandona” a sua natureza de uso ou mesmo que ele “promove interações” com o meio e com os seres do ambiente. Parece tautológico expressá-lo nessa forma ativa, mas certamente o princípio vigente aqui não é o da irrealidade ou da irracionalidade. O que está em jogo é o próprio direcionamento que a linguagem permite que os objetos tenham dentro desse pequeno sistema. É, por assim dizer, certo uso da linguagem em que o sujeito (poético) aparece “sujeitado” ao objeto (“antipoético”). Os objetos, dentro da poesia de Paulo Henriques Britto - e, portanto, não apenas nas “Três epifanias triviais” -10 10 Podemos citar liminarmente aqui alguns poucos poemas em que a condição do objeto aparece em primeiro plano: “Biodiversidade”, publicado no livro Macau (2003); “Uma nova teoria de tudo” e “Natureza morta II”, de Nenhum mistério (2017); os “Cinco sonetetos grotescos”, publicado em Tarde (2007). Os exemplos se multiplicam por toda a obra de Paulo Henriques Britto, especialmente a partir de Trovar claro (1997). não têm lugar, mas buscam seu lugar na esteira da linguagem. É esse trânsito que permite que os objetos e demais seres “antipoéticos” adquiram uma espécie de vida própria dentro da poesia, como consta no poema “Biodiversidade”: uma “nova forma de vida, / tipo um ramo alternativo do reino animal” (Britto, 2003BRITTO, Paulo Henriques (2003). Macau. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 9). Nesse reino, o modo como os entes se mobilizam é aparentado à descrição do verbo chrestai proposta por Agamben: “Podemos agora definir o significado de chrestai: ele expressa a relação que se tem consigo, a afeição que se recebe enquanto se está em relação com determinado ente” (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo., p. 47, grifo do autor).

Os objetos em uso, portanto, estão sendo alinhados em sua relação com os entes que compõem a cena. A ausência de hierarquia entre sujeito do poema e seres inanimados (ou seja, aqueles entes despojados da anima cara àquilo que se move) ajuda a compor a noção de realidade e de forma que se instaura nas “Epifanias triviais”: o objeto ensina e se torna sujeito; o sujeito se rende e torna-se um meio para uma revelação insólita, que contraria a criticidade inerente à sua razão. A voz poética, em sua pretensa neutralidade, não faz senão confundir ainda mais o intervalo entre consciência e delírio, entre sensação e pensamento, entre razão e intuição. Tudo isso aponta, mais do que para o belo ou para o consenso, para as fricções que afetam as engrenagens da sociedade e transformam os homens em objetos e os objetos em seres animados. E, de fato, essa voz que fala o poema não parece propensa a querer dirimir a questão, mesmo porque, a bem da verdade, o pasmo diante da barbárie cotidiana tem se mostrado um topos recorrente na relação entre poesia e política.11 11 Marcos Siscar, no ensaio “O grande deserto de homens”, pondera que “o mal-estar do presente como época de desolação, de falta de poesia ou de poesia que falta, é mais (ou menos) do que uma informação, uma constatação sociocultural ou estética: ele constitui o modo pelo qual a poesia apresenta modernamente seu ‘programa’, seu sentido dentro do conjunto de vozes sociais.” (2010, p. 63-64, grifo do autor). Outro parecer semelhante, num outro ensaio do mesmo autor (“O discurso da crise e a democracia por vir”), defende que “teorias sobre a poesia e sobre a arte já destacaram o fato de que a obra se comunica com seu público menos pela transmissão de conteúdos informacionais do que pela capacidade que tem de devolver a esse público a imagem daquilo que é (ou poderia ser) sua própria experiência (vivida ou imaginada) dos desequilíbrios do mundo. São as marcas do desejo e da violência, características da relação com o outro, estampadas como figuras legíveis no poema, que permitem ao leitor a compreensão dos recalques e das exclusões que constituem sua própria experiência” (2010, p. 36). Diante das evidências, parece difícil fugir à constatação de que, contra toda sensatez, não é preciso sempre ter os olhos abertos para que haja poesia.

Referências

  • ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva.
  • ARENDT, Hannah (2007). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • AGAMBEN, Giorgio (2012). O homem sem conteúdo. Tradução de Cláudio Oliveira. São Paulo: Autêntica.
  • AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo.
  • BRITTO, Paulo Henriques (1997). Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras.
  • BRITTO, Paulo Henriques (2003). Macau. São Paulo: Companhia das Letras .
  • BRITTO, Paulo Henriques (2007). Tarde. São Paulo: Companhia das Letras .
  • BRITTO, Paulo Henriques (2012). Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras .
  • BRITTO, Paulo Henriques (2017). Nenhum mistério. São Paulo: Companhia das Letras .
  • PEDROSA, Célia (2015). Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 84, p. 321-333.
  • SISCAR, Marcos (2010). Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp.
  • 1
    Nesse mesmo ensaio (“A crise na cultura”), Hannah Arendt põe em evidência a noção de gosto para afirmá-la como um requisito para a apreciação da arte. Nesse movimento, ela investe contra o filisteísmo, isso é, contra a prática de desprezar a arte em favor de uma vida dedicada a um utilitarismo vazio. Para fazê-lo, ela recorre a uma expressão atribuída a Péricles (“philokaleín met enteleías”, que significa “amor altivo à arte”), identificando-a a um senso comum (um “bon sens”, na tradução francesa) reconhecido e partilhado por todos, como também o é o juízo do belo: “O gosto enquanto uma atividade da mente realmente culta - cultura animi - somente vem à cena quando a consciência-de-qualidade se acha amplamente difundida, o verdadeiramente belo sendo facilmente reconhecível; é que o gosto discrimina e decide entre qualidades. Enquanto tal, o gosto e seu julgamento sempre atento das coisas do mundo impõe-se limites contra um amor indiscriminado e imoderado do meramente belo; ele introduz, no âmbito da fabricação e da qualidade, o fator pessoal, isto é, confere-lhe uma significação humanística. O gosto humaniza o mundo do belo ao não ser por ele engolfado: cuida do belo à sua própria maneira ‘pessoal’ e produz assim uma ‘cultura’” (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 278-279).
  • 2
    “No que respeita à Ciência Natural, isso nos leva de volta à afirmação anteriormente citada de Heisenberg, cuja consequência ele formulou certa vez, em contexto diferente, como o paradoxo de que o homem, toda vez que tenta aprender acerca de coisas que não são ele próprio nem devem a ele sua existência, encontrará em última instância a si mesmo, a suas próprias construções e os padrões de suas próprias ações” (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva., p. 122).
  • 3
    Essa expressão é o título de um dos capítulos do livro O homem sem conteúdo (Agamben, 2012AGAMBEN, Giorgio (2012). O homem sem conteúdo. Tradução de Cláudio Oliveira. São Paulo: Autêntica.).
  • 4
    No ensaio “A cisma da poesia brasileira”, publicado em 2005, Marcos Siscar empreende um diagnóstico sobre divisões, traços em comum e expectativas da poesia contemporânea brasileira: “Falta entender alguma coisa sobre a poesia contemporânea não porque uma falsa prudência o obriga, quando se trata do ‘caráter inacabado’ da atualidade, mas porque a poesia dramatiza uma certa angústia do sentido” (2010, p. 162, grifo nosso).
  • 5
    “Em outras palavras, pensar toda forma como acontecimento da crise, habitada pelas forças desestabilizantes do informe, na contracorrente da polarização entre forma e força” (Pedrosa, 2015PEDROSA, Célia (2015). Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 84, p. 321-333., p. 324, grifo nosso). Ressalte-se que a discussão proposta no artigo da pesquisadora versa sobre uma suposta tendência a abolir o verso, levantada por alguns críticos e estudada pela autora. De toda forma, evidencia-se nessa passagem a condição de inacabamento da poesia contemporânea.
  • 6
    “Só podemos comunicar-nos com outros por meio daquilo que em nós, assim como nos outros, continuou em potência, e toda comunicação (conforme Benjamin intuiu a respeito da língua) é, antes de tudo, comunicação não de algo comum, mas de uma comunicabilidade. Por outro lado, se houvesse um único ser, este seria absolutamente impotente, e onde eu posso, ali já somos sempre muitos (assim como, se há uma língua, ou seja, uma potência de falar, não pode haver um único ser que fala)” (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo., p. 237).
  • 7
    Título de um livro de Paulo Henriques Britto, publicado em 2012BRITTO, Paulo Henriques (2012). Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras ., em que a temática da incomunicabilidade é também intensamente abordada.
  • 8
    “Assim como, com respeito à faculdade nutritiva, a sensação e o intelecto implicam um suplemento heterogêneo que diferencia o animal e o homem com relação à planta, também, enquanto o tato torna possível a vida, ‘os outros sentidos existem em vista do bem’, e como não é possível separar nos mortais a alma nutritiva das outras, da mesma forma ‘sem o tato não é possível que haja outro sentido... e com a perda do tato, os animais morrem’. O dispositivo metafísico-político que divide e articula a vida age em todos os níveis do corpo vivo” (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo., p. 229). Os trechos entre aspas provêm do De anima de Aristóteles (alíneas 434b 24 e 435b 3-4, respectivamente).
  • 9
    “Em um ensaio exemplar [Problèmes de linguistique générale], Émile Benveniste chamou atenção para o aparentemente inexplicável duplo significado do verbo grego trepho, que significa tanto ‘nutrir’ quanto ‘adensar, coagular um líquido’ (por exemplo, trephein gala, ‘fazer coalhar o leite’). A dificuldade é resolvida quando se compreende que o verdadeiro significado de trepho não é simplesmente nutrir, mas ‘deixar crescer ou favorecer o desenvolvimento natural de algo’” (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio (2017). O uso dos corpos. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo., p. 232).
  • 10
    Podemos citar liminarmente aqui alguns poucos poemas em que a condição do objeto aparece em primeiro plano: “Biodiversidade”, publicado no livro Macau (2003)BRITTO, Paulo Henriques (2003). Macau. São Paulo: Companhia das Letras .; “Uma nova teoria de tudo” e “Natureza morta II”, de Nenhum mistério (2017)BRITTO, Paulo Henriques (2017). Nenhum mistério. São Paulo: Companhia das Letras .; os “Cinco sonetetos grotescos”, publicado em Tarde (2007)BRITTO, Paulo Henriques (2007). Tarde. São Paulo: Companhia das Letras .. Os exemplos se multiplicam por toda a obra de Paulo Henriques Britto, especialmente a partir de Trovar claro (1997)BRITTO, Paulo Henriques (1997). Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras..
  • 11
    Marcos Siscar, no ensaio “O grande deserto de homens”, pondera que “o mal-estar do presente como época de desolação, de falta de poesia ou de poesia que falta, é mais (ou menos) do que uma informação, uma constatação sociocultural ou estética: ele constitui o modo pelo qual a poesia apresenta modernamente seu ‘programa’, seu sentido dentro do conjunto de vozes sociais.” (2010, p. 63-64, grifo do autor). Outro parecer semelhante, num outro ensaio do mesmo autor (“O discurso da crise e a democracia por vir”), defende que “teorias sobre a poesia e sobre a arte já destacaram o fato de que a obra se comunica com seu público menos pela transmissão de conteúdos informacionais do que pela capacidade que tem de devolver a esse público a imagem daquilo que é (ou poderia ser) sua própria experiência (vivida ou imaginada) dos desequilíbrios do mundo. São as marcas do desejo e da violência, características da relação com o outro, estampadas como figuras legíveis no poema, que permitem ao leitor a compreensão dos recalques e das exclusões que constituem sua própria experiência” (2010, p. 36).
Editor de seção: Igor Ximenes Graciano

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2019
  • Aceito
    04 Set 2019
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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