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“Refazendo cabeças”: a valorização da negritude nos contos de Cristiane Sobral

Reconfiguring minds: valuing blackness in Cristiane Sobral's short stories

Rehacer las mentes: la valorización de la negritud en los cuentos de Cristiane Sobral

Resumo

Este artigo apresenta uma análise de quatro contos da autora negro-brasileira Cristiane Sobral: “Cauterização” (2009) e três contos publicados na coletânea Pretos em contos – volume 2 (2021). Ao longo do artigo, citamos trechos de uma entrevista que realizamos com Sobral em 2019 para iluminar sua obra e para apresentar a autora como modelo para processos colaborativos de escrita e de atuação no campo literário. Nesses contos, Sobral visa fomentar a valorização da negritude por leitores negros e não negros, muitas vezes por meio da representação de crises externas e internas pelas quais passam seus protagonistas. Nos textos podem ser vistas várias tentativas de “refazer a cabeça” dos leitores — isto é, de cultivar uma consciência negro-brasileira nas pessoas de variadas identidades raciais. Sobral mostra como isto será de benefício a toda a sociedade, e não apenas aos negro-brasileiros. Consideramos que, por meio desses textos, Sobral pretende provocar nos leitores uma crise de consciência e de identidade capaz de levá-los a uma nova compreensão de si, do mundo atual e dos mundos possíveis. Terminamos comentando a recepção das obras de Sobral e sua importância no movimento literário atual, no esforço de legitimar escritoras e mulheres negras no Brasil de hoje.

Palavras-chave:
Cristiane Sobral; literatura negro-brasileira; negritude; escrevivência

Abstract

This article undertakes an analysis of four short stories by black Brazilian author Cristiane Sobral: “Cauterização” (2009) and three short stories published in the collection Pretos em contos – volume 2 (2021). Throughout the article, we cite portions of our 2019 interview with Sobral to illuminate her work and to present her as a model for processes of collaborative writing and action in the field of literature. In the stories, Sobral aims to promote a deeper appreciation of blackness in the minds of black and non-black readers, often through portrayals of internal and external crises the protagonists go through. These texts contain many attempts to reconfigure the minds of readers—to cultivate a black Brazilian consciousness in people of various racial identities. Sobral shows how this will benefit all of society, and not just black Brazilians. The article argues that, through her texts, Sobral intends to provoke in readers a crisis of conscience and identity capable of moving them to new understandings of themselves, of the world today, and of possible worlds. The article ends by commenting on the reception of Sobral's works and her importance in the current literary movement, in efforts to legitimize black women and black women writers in modern-day Brazil.

Keywords:
Cristiane Sobral; black Brazilian literature; blackness; escrevivência

Resumen

Este artículo presenta un análisis de cuatro cuentos de la autora negro-brasileña Cristiane Sobral: “Cauterização” (2009) y tres de sus cuentos publicados en la colección Pretos em contos – volume 2 (2021). A lo largo del artículo, citamos extractos de una entrevista que hicimos con Sobral en 2019 para iluminar su trabajo y presentar a Sobral como un modelo para los procesos colaborativos de escritura y actuación en el campo literario. En estos cuentos, Sobral pretende promover la valorización de la negritud por lectores negros y no negros, a menudo a través de la representación de las crisis externas e internas por las que pasan sus protagonistas. En estos textos, se pueden ver varios intentos de “rehacer las mentes” de los lectores – o sea, de cultivar una consciencia negro-brasileña en personas de variadas identidades raciales. Sobral muestra cómo esto beneficiará a la sociedad en su conjunto, no solo a los brasileños negros. Consideramos que, a través de estos textos, Sobral pretende provocar en los lectores una crisis de conciencia e identidad capaz de conducirlos a una nueva comprensión de sí mismos, del mundo actual y de los mundos posibles. Terminamos comentando la recepción de las obras de Sobral y su importancia en el movimiento literario actual en el esfuerzo por legitimar a las escritoras negras en Brasil hoy en día.

Palabras-clave:
Cristiane Sobral; literatura negro-brasileña; negritud; escrevivencia

Após o pesadelo, A negra raspa qualquer vestígio de lisura E encontra consolo no futuro das suas raízes

— Cristiane Sobral, “Refazendo a cabeça”

Em seu poema “Refazendo a cabeça”, publicado em 2010, Cristiane Sobral descreve uma mulher negra que chora ao apalpar sua cabeça, pois sente “a falta dos seus universos crespos/ Assassinados/ Pelas escovas progressivas/ Digo, escolhas regressivas” (Sobral, 2010SOBRAL, Cristiane (2010). Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Athalaia., p. 114). No ano anterior, Sobral publicou o conto “Cauterização” no volume 32 dos Cadernos Negros, em que conta uma versão em prosa desse poema, com o mesmo desfecho: a protagonista resolve “cortar os cabelos cauterizados” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25) e deixar as raízes naturais crescerem outra vez, encontrando “consolo no futuro das suas raízes” (Sobral, 2010SOBRAL, Cristiane (2010). Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Athalaia., p. 114). Nesses textos, Sobral inclui uma série de trocadilhos que brincam tanto com as palavras como com as sensibilidades do leitor em relação à raça e à negritude. Este artigo apresenta uma análise de “Cauterização” em comparação com três contos seus publicados na coletânea Pretos em contos – volume 2 (2021), que foi um dos cinco finalistas para o Prêmio Jabuti de 2022 na categoria de contos. Essa coletânea, organizada por Cristiane Sobral e Plínio Camillo (2021SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.) (2021). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2.), é fruto de um processo de escrita e publicação coletiva de escritores negros e negras no Brasil e destaca o pretagonismo1 1 Desconhecemos a origem deste termo, mas vem ganhando força nos últimos anos. O primeiro uso que encontramos data de 2017, numa entrevista com a ativista Luanda Maat ((MN) Redação, 2017). — isto é, o protagonismo de personagens negros na literatura brasileira. Ao analisar a obra de Sobral, Cargnelutti (2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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) destaca as ideias de Elisa Lucinda, que escreveu o prefácio a Terra negra (outra obra de Sobral, publicada em 2017). Embora elaboradas com relação à obra de 2017, as ideias de Lucinda podem ser aplicadas a Pretos em contos – volume 2: ela explica que a coletânea é “uma escrita de tribo” cujos textos “trazem em si uma coletividade, representativa das histórias e das experiências da escritora, mas também de tantas outras mulheres negras e de uma comunidade afro-brasileira” (Cargnelutti, 2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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, p. 7).

Um senso de comunidade e de trabalho colaborativo está presente em muitas obras de Sobral, e um enfoque nessa colaboração é muito promissor. Contudo, consideramos que para entender a obra de Sobral no panorama maior de literatura de autoria negra e feminina é útil primeiramente fazer uma leitura cuidadosa de algumas obras específicas suas. O propósito do presente artigo é chamar atenção para a obra excelente e relativamente pouco estudada de Cristiane Sobral e também propor uma leitura comparada dos três contos de 2021 como continuações possíveis de “Cauterização”, contos esses que apresentam várias maneiras de pensar a consciência negra e feminina no Brasil contemporâneo. Também apresentamos Sobral como modelo para processos colaborativos de escrita e de atuação no campo literário, fundamentando-nos, ao longo do artigo, no conceito de escrevivência de Conceição Evaristo (2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229.) e citando trechos de uma entrevista que realizamos com Sobral em 2019 sobre sua obra, a literatura em geral e direitos humanos2 2 A entrevista inteira, “Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência”, é reproduzida neste mesmo número (nº 69) de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. .

Cristiane Sobral, nascida no Rio de Janeiro em 1974 e criada por uma mãe adotiva branca, é radicada em Brasília há várias décadas e foi a primeira mulher negra a se formar em interpretação teatral na Universidade de Brasília. Começou a publicar em 2000, nos Cadernos Negros, e desde então publicou várias obras de poesia, de contos e de teatro que dão prioridade a personagens negro-brasileiros3 3 Neste artigo priorizamos o uso do termo negro-brasileiro em vez de afro-brasileiro com base na interpretação da própria Cristiane Sobral: “Eu me considero uma escritora negra, negro-brasileira. […] [L]iteratura negro-brasileira, acho que é a expressão que mais dá conta. […] [E]ssa expressão afro não dá para mim, afrodescendente, afro-brasileira — não dá conta, eu acho. […] Todo mundo é afrodescendente. […] Então negro-brasileira, porque negro e brasileiro é uma coisa que nós que somos brasileiros — é diferente de ser negro-estadunidense, é diferente de ser negro-africano, é diferente de ser negro-indiano. Negro-brasileiro, porque no brasileiro também não tem purismo. Não dá para a gente tirar o indígena. Não dá. […] Porque nós somos isso também” (Sobral, 2023). Suas obras incluem Não vou mais lavar os pratos (poesia, 2010), Terra negra (contos, 2017) e Esperando Zumbi (teatro, 2018) — esta última contribui com uma perspectiva feminina para as histórias de Zumbi dos Palmares, figura importantíssima para a história do Brasil e para movimentos negro-brasileiros até hoje. . Criou sua editora, Aldeia de Palavras, com o intuito de criar espaço para a difusão de vozes e textos mais variados. Foi por essa editora que publicou Pretos em contos – volume 2, que conta com contribuições de 17 autores, dos quais dez são mulheres. Significativamente, foi a única obra colaborativa a entrar na lista dos finalistas do Prêmio Jabuti na categoria de contos. Nessa coletânea, tal como em muitas obras da autora, a negritude é tema recorrente, junto com a conscientização dos personagens e sua conexão às raízes. O fato de Sobral não conhecer a família biológica é significativo, pois, segundo ela, dá-lhe “autorização para escolher as minhas raízes, também, porque eu posso inventar algumas” (Sobral, 2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.). O tema de abraçar novos posicionamentos em relação às raízes também aparece nos textos analisados a seguir.

Apesar de Sobral começar a publicar no ano 2000, é somente a partir de 2017 que suas obras começam a receber uma atenção mais consistente da crítica4 4 Em sua tese de doutorado de 2008, Isabel Cristina Rodrigues Ferreira analisa uma peça teatral e um conto de Sobral, e um número da revista Afro-Hispanic Review (Oliveira-Monte e McElroy, 2010) aborda Sobral e sua obra brevemente, mas fora estes exemplos há pouca atenção crítica à obra de Sobral anterior a 2017. “Cauterização” (republicado em 2016 com o título “Metamorfose”) é assunto de algumas teses de mestrado e graduação (Lima, 2013; Souza, 2020) e de um artigo acadêmico (Carvalho, Lima e Lima, 2020). Não encontramos nenhum texto crítico que aborde os contos que ela publicou em Pretos em contos – volume 2 em 2021. . Para Quadros (2017)QUADROS, Dênis Moura de (2017). Poder e resistência na literatura afrofeminina de Paulina Chiziane e Cristiane Sobral: as insubmissas princesas Vuyazi e Nkala. Revista Athena, Cáceres, v. 12, n. 1, p. 35-49. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/2661. Acesso em: 30 nov. 2022.
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, ela faz parte de um grupo de escritoras negras que “somam forças para a ruptura, ainda parcial, da representação feminina negra na literatura e, em especial, a brasileira” (Quadros, 2017QUADROS, Dênis Moura de (2017). Poder e resistência na literatura afrofeminina de Paulina Chiziane e Cristiane Sobral: as insubmissas princesas Vuyazi e Nkala. Revista Athena, Cáceres, v. 12, n. 1, p. 35-49. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/2661. Acesso em: 30 nov. 2022.
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, p. 45). Como parte desta geração de escritoras, Sobral desafia as tendências históricas de publicação, em que a grande maioria de obras literárias publicadas no Brasil continua a ser de autoria masculina e branca (Dalcastagnè, 2021DALCASTAGNÈ, Regina (2021). Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas décadas: alterações e continuidades. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 56, no. 1, p. 109-143. https://doi.org/10.15448/1984-7726.2021.1.40429
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). Além de se identificar como mulher negra, Sobral mostra-se comprometida em “reafirmar a identidade negra, abordar temas muitas vezes silenciados, discutir gênero e raça, resgatar a memória e a ancestralidade, [e] trazer à tona valores culturais e tradicionais” (Cargnelutti, 2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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, p. 4). Esses temas incluem “a insubmissão e o empoderamento feminino, o racismo e a desigualdade social, o genocídio da população negra, a violência policial, a objetificação sexual da mulher, a reafirmação da identidade negra, a luta e a resistência constante de homens e mulheres negros/as” (Cargnelutti, 2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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, p. 12). Já para Coqueiro (2021COQUEIRO, Wilma dos Santos (2021). A literatura afro-brasileira feminina: ancestralidade e renascimento identitário no conto “Renascença” de Cristiane Sobral. Revista de Literatura, História e Memória, Cascavel, v. 17, n. 29, p. 111-126. https://doi.org/10.48075/rlhm.v17i29.26040
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), a autora representa “uma voz decolonial marcante na defesa da identidade negra, ligada à ancestralidade e à memória coletiva” que constrói personagens que “lutam para manter suas raízes étnicas e culturais, mesmo sofrendo todas as imposições da cultura europeia ainda bastante impregnada na sociedade brasileira” (Coqueiro, 2021COQUEIRO, Wilma dos Santos (2021). A literatura afro-brasileira feminina: ancestralidade e renascimento identitário no conto “Renascença” de Cristiane Sobral. Revista de Literatura, História e Memória, Cascavel, v. 17, n. 29, p. 111-126. https://doi.org/10.48075/rlhm.v17i29.26040
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, p. 124).

Em sua obra, vê-se uma consciência clara de amefricanidade — isto é, das experiências e heranças compartilhadas por pessoas negras e indígenas que vivem nas Américas (Gonzalez, 1988GONZALEZ, Lélia (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92-93, p. 69-82.) — e de como amefricanos no Brasil enfrentam barreiras interseccionais (Crenshaw, 1989CRENSHAW, Kimberlé (1989). Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, Chicago, n. 1, p. 139-167.) que dificultam suas vidas e que ameaçam sua identidade e autovalorização. Esses desafios mostram-se nas escrevivências (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229.) que Sobral invoca nos textos. Ao analisar a noção de escrevivência proposta por Conceição Evaristo (2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229.), muita atenção crítica enfoca a fusão da escrita com a experiência vivida — especialmente a das mulheres negras — inerente ao conceito. Contudo, ao esboçar o conceito de escrevivência, Conceição Evaristo aponta para mais um elemento que merece destaque: a visão. De fato, a primeira palavra do subtítulo desse texto é “Escre(vi)(vendo)me” (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 219). Neste termo, observam-se os conceitos de escrever, de viver e também de ver-se como partes interligadas da escrevivência. Neste artigo, sublinhamos a relação recíproca desses elementos na escrevivência — não só enfocando como a vida afeta a escrita ou a visão, mas como a escrita pode afetar a vida e a visão —, como todos os elementos têm o potencial de afetar as identidades de leitores e de escritores, para que possam “ferir o silêncio imposto” e ousar “executar um gesto de teimosa esperança” em relação a si mesmos (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 219). Além de dirigir-se apenas a pessoas negro-brasileiras, porém, Sobral aborda leitores das mais diversas identidades.

Os elementos distintos da escrevivência aparecem claramente em “Cauterização” e nos contos mais recentes que analisamos neste artigo. Propomos que todos os textos abordados apontam para aquilo que Sobral vem fazendo em sua criação literária há muito tempo: imaginar e afirmar escrevivências múltiplas a fim de cultivar consciência negro-brasileira na mente dos leitores. Para leitores negro-brasileiros, isso implica uma valorização de sua própria negritude, enquanto, para leitores brancos, abarca uma reconfiguração de atitudes estereotipadas e negativas, para que indivíduos negro-brasileiros tenham mais espaço para exercer “autorrepresentação” e a sociedade brasileira dê mais lugar para “surg[ir] a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido” (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 223).

Para alcançar tal valorização da negritude, Sobral apresenta muitas crises externas e internas pelas quais passam seus protagonistas. Nesses textos podem ser vistas várias tentativas de (invocando as palavras da própria autora no poema citado no início do artigo) “refazer a cabeça” dos leitores, tanto negros como não negros. Aliás, os textos de Sobral sugerem que crises são necessárias para provocar mudanças — quer seja uma pessoa negro-brasileira aprendendo a abraçar sua negritude e se posicionar em relação a uma sociedade com tendências e estruturas racistas, quer seja um leitor não negro comprometendo-se a se esforçar para rejeitar estereótipos e criar uma sociedade em que a negritude é consistentemente e plenamente valorizada e aceita. Sobral mostra como esses objetivos serão de benefício a toda a sociedade, e não apenas aos negro-brasileiros, e como enriquecerão as percepções e vidas de todos.

A TRANSFORMAÇÃO DA MULHER NEGRO-BRASILEIRA EM “CAUTERIZAÇÃO”

Antes de considerarmos as obras mais recentes de Sobral e o panorama de experiências negro-brasileiras que as integram, vale examinar a maneira com que uma crise leva Socorro, protagonista do conto “Cauterização”, a avançar no processo de se descobrir e de aprender a se afirmar como pessoa negro-brasileira. Perto do final do texto, vê-se uma mudança súbita de sua consciência em relação à negritude. Nessa transformação, Socorro passa daquilo que Mary Helen Washington (2017)WASHINGTON, Mary Helen (2017). Teaching Black-Eyed Susans: An Approach to the Study of Black Women Writers. African American Review, Baltimore, v. 50, n. 4, p. 554-558. https://doi.org/10.1353/afa.2017.0097
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chama uma “mulher suspensa” (uma mulher insegura em relação a sua própria negritude) a uma “mulher emergente” (uma mulher confiante e forte, que valoriza e abraça sua herança racial e cultural) (Washington, 2017WASHINGTON, Mary Helen (2017). Teaching Black-Eyed Susans: An Approach to the Study of Black Women Writers. African American Review, Baltimore, v. 50, n. 4, p. 554-558. https://doi.org/10.1353/afa.2017.0097
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, p. 22). No início do conto, Socorro é uma “cidadã em busca de evolução” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22) — uma mulher negro-brasileira que aspira a ser branca. Ela jura que sofreu “os efeitos do aquecimento global” e “por isso foi escurecendo” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 21). Veste-se cuidadosamente e investe muito dinheiro nos processos de cauterização, “um processo intensivo de reestruturação dos fios que promete a solução para os chamados ‘cabelos baleados’” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22-23). Tudo isso para conquistar um marido branco e “deixar de ser uma mancha negra perante a sociedade” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22).

Após apresentar aos leitores os objetivos de Socorro, o conto retrata sua ida a um salão de beleza e suas preparações minuciosas para a uma festa com “pessoas ‘finas’”, escolhendo roupa e maquiagem calculadas para disfarçar “seu biotipo negroide” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 23). Ao dirigir para a festa, ela é chamada de “negona” por um motorista de ônibus, o que provoca uma fúria tão intensa em Socorro que ela sai do carro para brigar com ele. Dada a rapidez de sua saída do carro, ela esquece de proteger o cabelo da chuva que está caindo, e a água desfaz a cauterização e lava a maquiagem do rosto dela. Dar-se conta disso provoca uma ação drástica na protagonista: ela tira uma tesoura da bolsa e corta o cabelo — literalmente “refazendo a cabeça” para que o cabelo cresça naturalmente outra vez. Desse modo, Socorro torna-se “uma nova mulher” que é cada vez mais bonita, “mais serena e incrivelmente consciente” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25). Ela e o motorista, Jorge (também negro), beijam-se e partem “para uma nova etapa de suas vidas” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26). Os passageiros do ônibus, ao assistirem a essa cena fantástica, são inspirados a fazer as pazes com seus amigos e parentes, e o cobrador do ônibus promete “nunca mais contar piadas de negro” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26).

A experiência de Socorro e sua conscientização, junto com as reações dos espectadores que a observam (ainda que exageradas e um tanto implausíveis), formam uma espécie de microcosmo que representa o processo imaginativo pelo qual leitores podem passar, pois, como explica Wolfgang Iser (1980ISER, Wolfgang (1980). Interaction between Text and Reader. In: SULEIMAN, Susan R.; CROSMAN, Inge (org.). The Reader in the Text. Princeton: UP. p. 106-119.), o ato de leitura vai além do texto impresso, abrangendo “as ações envolvidas em responder ao texto” (Iser, 1980ISER, Wolfgang (1980). Interaction between Text and Reader. In: SULEIMAN, Susan R.; CROSMAN, Inge (org.). The Reader in the Text. Princeton: UP. p. 106-119., p. 106; tradução nossa)5 5 Ou, como Sobral (2023) explica, “A literatura permite certo exercício contemplativo e solitário, individual… [P]ara o leitor as obras são abertas”. . Por meio desses textos, Sobral parece querer provocar nos leitores — independentemente de sua identidade racial — uma crise de consciência e de identidade capaz de levá-los a uma nova compreensão de si, do mundo atual e dos mundos possíveis. No entanto, durante a maior parte do texto Socorro se expõe como mulher suspensa na tentativa constante de se afastar de conexões com a negritude no Brasil. Ela esquiva-se de qualquer comportamento visto como típico das comunidades negro-brasileiras: evita “rodas de samba assim como cerimônias religiosas afro-brasileiras”, fala baixo e esforça-se para “ser discreta em tudo”, comendo pouco e tentando esconder qualquer traço físico ou comportamento social que possa ser ligado à negro-brasilidade (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22). A seus olhos, esses esforços a ajudarão a transformar-se em alguém socialmente aceitável. Como resume a narradora, Socorro “era uma mulher cauterizada” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22).

Ainda que tenhamos pouco acesso a seu passado, é fácil enxergar sua mentalidade e seus comportamentos paranoicos como manifestações de seu aprisionamento psicológico, fruto de anos de condicionamento social que a deixam acorrentada a um padrão de beleza branco e de difícil acesso. Como explicam Carvalho, Lima e Lima (2020CARVALHO, Maria do Carmo; LIMA, Rosy dos Santos; LIMA, Sara Regina de Oliveira (2020). Palavras, cenas e melodias: o crespo que tece histórias e resistência. Revista Entrelaces, Fortaleza, v. 10, n. 22, p. 59-76. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/58565/1/2020_art_mcmcarvalho_rslima_srolima.pdf. Acesso em: 30 nov. 2022.
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), nesse momento Socorro se entrega à “ditadura do cabelo” e “cede ao padrão eurocentrista, na tentativa de inserir-se na cultura dominante, distanciando-se das características que resplandecem sua identidade” (Carvalho, Lima e Lima, 2020CARVALHO, Maria do Carmo; LIMA, Rosy dos Santos; LIMA, Sara Regina de Oliveira (2020). Palavras, cenas e melodias: o crespo que tece histórias e resistência. Revista Entrelaces, Fortaleza, v. 10, n. 22, p. 59-76. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/58565/1/2020_art_mcmcarvalho_rslima_srolima.pdf. Acesso em: 30 nov. 2022.
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, p. 64). Socorro considera sua pele escura “um desafio imposto pelo Criador para testar os escolhidos” e acredita que “para aprender [é] necessário sofrer” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22). Dada essa visão da vida, é fácil entender por que ela insiste em vigiar as pernas, que “viviam aprisionadas sob o decreto implacável da meia-calça branca” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 24).

CULTIVAR A CONSCIÊNCIA PELA ESCRITA: TÉCNICAS LITERÁRIAS

Além de incluir a negritude como tema central do conto, constantemente visível nos pensamentos e comportamentos da protagonista, Sobral emprega técnicas de escrita cuidadosamente calculadas para provocar seus leitores e cultivar sua consciência negro-brasileira. As palavras da narradora, por exemplo, refletem a técnica artística de claro-escuro, em que pintores de longa data incluem um contraste notável entre luzes e sombras. Sobral contrasta as repetidas descrições da branquitude a que Socorro aspira com descrições da negritude. Ao fazer isso, a narradora brinca com o leitor e insere vários trocadilhos: esclarece que Socorro quer tornar-se “elegante e transparente, além de invisível, é ‘claro’” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22). Mais tarde, explica que Socorro passa a tarde inteira em um salão de beleza onde, para cauterizar os cabelos, teve que gastar “uma nota preta. Ou branca?” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 23). Esses trocadilhos reforçam o contraste claro-escuro do conto e convidam leitores a assumirem uma postura de solidariedade com Socorro e a refletirem sobre seu próprio papel em criar uma sociedade que pressiona as mulheres a valorizarem a branquitude acima da negritude e o cabelo “bom” acima do cabelo “ruim” que muitos negro-brasileiros têm.

Ao mesmo tempo que enfatiza e brinca com o contraste entre branco e preto, Sobral utiliza linguagem calculada para minar a eficácia das percepções de Socorro desde o início do conto e para mostrar como elas são distantes da realidade que a personagem precisa entender. Após explicar que ela consegue esconder seu “sangue negro” por meio de “uma ajeitada caprichada no ‘bombril’”, a narradora questiona seu êxito imediatamente: “Pelo menos era nisso que acreditava” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 21). Ela usa verbos como “desejar”, “acreditar”, “jurar” e “pretender” para chamar a atenção para a natureza subjetiva dessas crenças e para os processos mentais que fundamentam os esforços de Socorro. Ao destacar a subjetividade das percepções da protagonista, Sobral coordena os sons nas cenas do conto para destacar os elementos centrais da história. A própria Socorro fala baixo em uma tentativa de “ser discreta em tudo” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 22) e de fugir ao estereótipo da mulher negra barulhenta e agressiva. Ela evita os sons das rodas de samba e de práticas religiosas de comunidades negro-brasileiras. Continua sua fuga do samba e de outras coisas com ligações negro-brasileiras até quando está sozinha — no caminho para a festa, ela ouve música clássica, um gênero pouco associado a comunidades negro-brasileiras. Quando Jorge provoca a protagonista e esta sai pronta para brigar com ele, tudo em volta vira um caos — os passageiros do ônibus brigam para ficar próximos das janelas e poder assistir às interações entre Socorro e Jorge. Além de os passageiros fazerem barulho, “[a] chuva também não queria ficar de fora, ela gritava e batia no chão” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 24). Esse crescendo de som aponta para o clímax do conto: quando Socorro coloca a mão na bolsa — e antes de tirar a tesoura para cortar o cabelo — um passageiro “grit[a], para o espanto geral: ‘É uma arma!’” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25). Vale destacar nesta cena a transformação da tesoura em uma arma simbólica, que Sobral usa para simultaneamente subverter as expectativas violentas dos espectadores/leitores e para “revela[r] uma nova mulher” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25), pois ao cortar o cabelo Socorro ganha consciência de sua beleza natural e abraça Jorge, o encontro dos dois “desvend[ando] os silêncios sufocados por tantos anos” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26). Ou seja, são a crise e a comoção que provocam a mudança de mentalidade em Socorro e a possível mudança nas atitudes dos leitores.

Enquanto os passageiros aplaudem o beijo de Socorro e Jorge, a chuva “sussurr[a] baixinho a algumas mulheres que ali estavam e que, voluntariamente, deix[a]m a água levar um pouco de liberdade para dentro de suas cabeças” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26). Essas mulheres, embora não vivenciem uma crise pessoal nesse momento, são testemunhas da crise de Socorro e a experimentam vicariamente, o que as leva a tomar a decisão de abrir-se para a liberdade e uma nova consciência de si. Pegando emprestado a descrição que Silva (2018SILVA, Franciane Conceição da (2018). Feições do racismo no conto “Pixaim”, de Cristiane Sobral. Aletria, Belo Horizonte, v. 28, n. 4, p. 103-117. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18826. Acesso em: 30 nov. 2022.
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) oferece da protagonista de “Pixaim” (outro conto de Sobral), essas mulheres, tais como Socorro, vêm a reconhecer que, “ao buscar[em] espelhos que refletem a sua imagem, pode[m] enxergar neles não apenas a si mesma[s], mas a todas as suas ancestrais, mulheres negras, violentadas por ser aquilo que eram, mas que seguiram, resilientes, sendo aquilo que são” (Silva, 2018SILVA, Franciane Conceição da (2018). Feições do racismo no conto “Pixaim”, de Cristiane Sobral. Aletria, Belo Horizonte, v. 28, n. 4, p. 103-117. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18826. Acesso em: 30 nov. 2022.
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, p. 116). Nessa cena de “Cauterização”, tal como no comentário de Silva (2018SILVA, Franciane Conceição da (2018). Feições do racismo no conto “Pixaim”, de Cristiane Sobral. Aletria, Belo Horizonte, v. 28, n. 4, p. 103-117. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18826. Acesso em: 30 nov. 2022.
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), nota-se a importância da vista — de se reconhecer parcialmente na vida de outrem — em conscientizá-las e levá-las a abraçar sua herança negro-brasileira. É justamente este ato de ver um dos significados que Evaristo (2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 1) aponta no subtítulo de seu texto sobre escrevivência: “escre(vi)(vendo)-me”.

Tais como essas mulheres — e os outros espectadores, que começam a fazer as pazes e resolver problemas com parentes e amigos —, os leitores testemunham a transformação de Socorro e recebem um convite explícito do conto a refletir acerca de suas próprias experiências e de como uma história assim poderia se passar ou não. Após descrever as transformações dramáticas nos passageiros, o conto termina com este parágrafo:

Por fim, restou a imagem meio desfocada do trocador, que conseguiu realizar seu sonho e dirigir um ônibus. Com espírito de prontidão, sentou-se ao volante emocionado e, antes de dar a partida, fez uma oração silenciosa de arrependimento, prometendo nunca mais contar piadas de negro. Será? (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26).

Este “Será?” é a chave para entender o conto, pois pode ser interpretado de várias formas. À primeira vista, parece ser um questionamento da sinceridade do arrependimento do motorista e uma expressão de dúvida sobre sua promessa de deixar de “contar piadas de negro” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 26). Uma segunda interpretação aplica-se à reação dos passageiros, questionando a probabilidade de eles reagirem da maneira descrita e dramaticamente mudarem suas vidas. Ainda outra interpretação enfoca a transformação súbita de Socorro em “nova mulher” que se aceita e que se apaixona imediatamente por Jorge. A interpretação final — e a que interessa mais à análise deste artigo —aplica-se aos leitores, incitando-os a questionar a possibilidade de uma cena assim se passar em um Brasil presente ou futuro e se eles vão fazer o esforço necessário para criar uma sociedade em que uma mulher negra não sinta pressão para se conformar a padrões de beleza eurocêntricos. Já que é a última palavra do conto, a pergunta final — “Será?” — não tem resposta explicitada pela autora, o que a faz ecoar na mente do leitor, provocando reflexão sobre essas possibilidades.

EXPANDIR O PANORAMA DO POSSÍVEL: NOVAS PERSPECTIVAS EM PRETOS EM CONTOS – VOLUME 2

O conto “Cauterização” oferece uma perspectiva importante para os leitores, celebrando a conscientização de Socorro e apontando para um caminho possível pelo qual uma pessoa negro-brasileira pode evoluir de pessoa “suspensa” a pessoa “emergente” (Washington, 2017WASHINGTON, Mary Helen (2017). Teaching Black-Eyed Susans: An Approach to the Study of Black Women Writers. African American Review, Baltimore, v. 50, n. 4, p. 554-558. https://doi.org/10.1353/afa.2017.0097
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, p. 22). No entanto, como Evaristo (2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 223) bem lembra em seu texto sobre escrevivência, “Não existe […] uma identidade única para as mulheres”, e podemos facilmente expandir essa afirmação para incluir homens negro-brasileiros também. Sobral reflete em parte essa variedade de identidades e experiências negro-brasileiras nos contos dela que aparecem em Pretos em contos – volume 2, todos os quais têm menos de duas páginas de extensão.

Em “A lei do sangue”, a narradora conta duas experiências próprias oferecendo uma ave ao orixá Exu, em gestos de devoção conforme as tradições do candomblé. Da primeira vez, a protagonista não está preparada mentalmente porque é influenciada por estereótipos e medos fomentados pela sociedade que a cerca e pelo medo infantil de galos. Como explica a narradora, “Eu não estava inteira”, e é por isso que “a oferenda acabou ficando incompleta” (Sobral, 2021bSOBRAL, Cristiane (2021b). A lei do sangue. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 2-3., p. 2). O fato de ela estar disposta a oferecer a ave a Exu mostra que está muito mais confortável em se associar ao candomblé que Socorro, mas ainda assim ela é afetada por pressão social que a deixa na dúvida. Quando a narradora oferece uma ave a Exu pela segunda vez, é mais experiente e mais confiante — é “protagonista da [sua] cabeça” e já está livre “do falso machismo aviário” que criara raiz em sua mente quando era menina (Sobral, 2021bSOBRAL, Cristiane (2021b). A lei do sangue. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 2-3., p. 2). Afirma que, dessa vez, “Não temi a minha força” (Sobral, 2021bSOBRAL, Cristiane (2021b). A lei do sangue. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 2-3., p. 3). Ela oferece o galo e ao ver o axogum (a pessoa encarregada de realizar tais sacrifícios) sacrificar a ave, “sent[e] sua energia” e tem vontade de ser a pessoa que corta o pescoço do animal (Sobral, 2021bSOBRAL, Cristiane (2021b). A lei do sangue. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 2-3., p. 3). “Quando o sangue esguichou, já estava apaixonada. Ele era sangue do meu sangue” (Sobral, 2021bSOBRAL, Cristiane (2021b). A lei do sangue. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 2-3., p. 3). A atitude da narradora mostra uma união espiritual com o galo que acaba de ser sacrificado, junto com uma postura emergente de confiança quanto a sua própria posição no mundo e sua relação com os seres ao seu redor.

Embora esse conto seja diferente de “Cauterização” em muitos aspectos, o que vemos nos dois textos é um desenvolvimento da psique da protagonista — uma superação de medos e preocupações cultivados ao longo de muito tempo, mas que se mostram desconstruídos durante os clímax das histórias. Socorro passa a abraçar seu cabelo natural como parte íntegra de si, e a narradora de “A lei do sangue” relata seu desenvolvimento mental em relação ao candomblé, uma religião cujas raízes e cuja cultura ainda têm fortes ligações com populações negro-brasileiras. Como explica Sueli Carneiro (2020CARNEIRO, Sueli (2020). Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra.), o candomblé oferece às mulheres um espaço de protagonismo e independência (Carneiro, 2020CARNEIRO, Sueli (2020). Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra., p. 84) e o contato que elas passam a ter com orixás “proporciona uma mudança significativa na vivência dessas mulheres” (Carneiro, 2020CARNEIRO, Sueli (2020). Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra., p. 74). Isto é exatamente o que acontece com a narradora de “A lei do sangue”, que consegue tornar-se “inteira” ao exercer sua devoção e refletir sobre sua própria identidade. Nos dois contos, a protagonista aprende a se posicionar em relação a coisas tipicamente negro-brasileiras de maneira saudável e pessoal. Ambos apresentam uma aceitação da negritude e uma tomada de consciência em relação a sua posição no mundo.

Tal como “Cauterização”, o conto “747” enfoca uma pessoa negro-brasileira como protagonista — desta vez é um homem, Antônio, que está indo comemorar os dois anos de relacionamento com sua companheira, Dora. Após ter dificuldades com o carro, ele abre o capô e é sujo pela lama jogada por um carro que passa. Antônio xinga o motorista branco, que volta e chama-o de macaco. Os palavrões viram uma luta corporal, em que Antônio derruba o homem branco, que cai na lama. Antônio liga para Dora e explica, “Esse escureceu, ficou lá caído, roupa toda suja, cara manchada de graxa preta. Bora enegrecer essa gente nem que seja no soco. Tô chegando, te amo!” (Sobral, 2021aSOBRAL, Cristiane (2021a). 747. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2. p. 36-37., p. 37). Tal como em “Cauterização”, neste conto vemos o uso de humor e de trocadilhos para comunicar a mensagem central do texto. O duplo sentido de “escureceu” — no sentido de o homem branco desmaiar e sua vista escurecer por conta do soco que levou e também de ele ficar mais escuro por conta da lama e da graxa que sujam seu corpo — também se vê no verbo “enegrecer”, que pode ser aplicado à aparência física do homem branco e à necessidade de cultivar a consciência negro-brasileira na sociedade como um todo.

Como se observa em “Cauterização”, a ideia de cultivar consciência negro-brasileira é um tema muito presente em “747”, mas os contos também se assemelham no nível do cenário — em ambas as histórias, os protagonistas arrumam-se para uma celebração e estão dentro (ou ao lado) do carro quando são provocados por outra pessoa. Contudo, a resolução de cada um é marcadamente diferente, e os clímax mostram como os protagonistas respondem a essas situações estressantes. Enquanto em “Cauterização” vemos um fim que tende ao realismo mágico em seu final feliz, em “747” o protagonista recorre à violência para resolver o problema que vê diante de si.

Neste conto também vemos a técnica de claro-escuro para enfatizar os elementos raciais. Ao conversar com Dora, Antônio chama-a de “Preta” e descreve-se como “negão” (Sobral, 2021aSOBRAL, Cristiane (2021a). 747. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2. p. 36-37., p. 37). Do outro lado, o homem com quem Antônio luta é totalmente monocromático: “Branco, de branco, até o sapato era branco” (Sobral, 2021aSOBRAL, Cristiane (2021a). 747. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2. p. 36-37., p. 36). Tal como em “Cauterização”, Sobral usa linguagem binária e claro-escuro para invocar dois lados opostos do espectro. Ironicamente, essa binaridade convida os leitores a imaginar uma sociedade multicolorida em que preto e branco não são as únicas opções — uma sociedade em que há espaço para experiências e perspectivas variadas. Ou, como explica Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.), ela quer propor “um espectro de reflexão para que outras humanidades possam se desenhar”. As perspectivas e humanidades variadas que Sobral elabora em sua escrita trazem ao público-leitor brasileiro escrevivências múltiplas, em que, como explica Conceição Evaristo (2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229.), autoras como Sobral, “para além de um sentido estético, buscam semantizar um outro movimento, aquele que abriga toda as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida” (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 223, grifos do original). Afirmar lugares de vida variados ajuda o leitor a entender a complexidade de identidades negro-brasileiras e como se desenvolvem.

É interessante notar que, embora “Cauterização” termine de maneira pacífica, logo após ser provocada por Jorge, Socorro sai do carro “pronta para uma revolução. Ela agora entendia que, pior que a violência, só mesmo a passividade” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 24). Ou seja, em “Cauterização” temos uma intenção de violência que se desmancha em um ato de reconfiguração física (cortar o cabelo) e um ato romântico (abraçar e beijar Jorge). Por outro lado, em “A lei do sangue” vemos a concretização saudável de um ato de violência sagrada — de sacrifício — que ajuda a protagonista a sentir-se realizada e consciente em sua identidade e situação, apesar dos estereótipos que anteriormente dificultavam a aceitação íntegra de sua herança negro-brasileira.

Se em “747” vemos uma recorrência mais clara à violência, em “Nós por nós” esse tipo de reação violenta diante do racismo atinge seu auge. Neste conto dois amigos, Ribeiro e Aprígio, relembram sua atuação ao longo de muito tempo na luta contra a opressão de populações negro-brasileiras. Frustrado com demonstrações fracassadas, Aprígio explica que nem participa mais de “campanha contra o racismo, esse trem não vinga” (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 68). O objetivo que ele e Ribeiro adotaram há tempos é simples: “Enquanto a gente tivesse força cumpriria a missão: matar brancos de poder” (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 69). Fazendo um cálculo de cabeça do número de assassinatos que já cometeram, Ribeiro explica, “Na primeira leva, deputados uns trinta. Cinco Governadores, trinta Prefeitos. Empresários, uns duzentos. Mas Aprígio, na primeira vez tudo é detalhe, depois vai misturando” (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 68). Ao continuar a conversa, os dois revelam que há células de seu grupo em vários lugares e países e que, para eles, a solução é simples: “Se os brancos são minoria da população a gente resolve matando branco, sem dó” (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 69).

Esse conto representa a concretização dos medos de pessoas não negras de que a população negro-brasileira parta para a violência na tentativa de alcançar seus objetivos. Esses medos, que aparecem em “Cauterização” quando o passageiro vê Socorro colocando a mão na bolsa e grita “É uma arma!” (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25), chegam a se tornar realidade nesse conto chocante. Ainda que os personagens do conto falem da violência contra brancos como solução aceitável para os problemas de racismo, esta abordagem não é defendida pelo narrador do conto, que apenas reproduz os comentários de Ribeiro e Aprígio. Em nossa leitura desse texto, o propósito não é fomentar a violência contra os brancos, senão provocar o leitor a pensar no “extermínio negro” histórico no Brasil, que empurra Ribeiro e Aprígio a quererem responder de maneira violenta (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 69). Em vez de defender a violência, o conto choca o leitor e leva-o a refletir sobre a história violenta do Brasil com relação ao extermínio de grupos indígenas e negro-brasileiros. Tal como “Cauterização” e “A lei do sangue”, o conto representa uma mudança grande de perspectiva nos personagens. Aprígio orgulha-se de “não ser mais um preto de prateleira e de manifestação, nem de internet” (Sobral, 2021cSOBRAL, Cristiane (2021c). Nós por nós. In: SOBRAL, Cristiane; CAMILLO, Plínio (org.). Pretos em contos. Brasília: Aldeia de Palavras. v. 2, p. 68-69., p. 68). Ou seja, ele passa de uma perspectiva passiva (pelo menos aos seus olhos) sobre a negritude a uma atitude ativa, ainda que muito mais violenta. De forma semelhante, o leitor pode passar por um processo de conscientização e reflexão, dado seu contato forçado com esses personagens. Embora condenem (com toda razão) as ações dos personagens em “Nós por nós”, é importante os leitores conhecerem personagens assim, para que possam contemplar “as várias formas de subjetividades” que a literatura permite retratar e pensar na importância de “reivindicar modelos — além dos modelos únicos — de representação na literatura e na arte, para que outras subjetividades também possam ser apresentadas nesses lugares” (Sobral, 2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.). Ou seja, o propósito de apresentar os personagens em “Nós por nós” não é recrutar discípulos de suas abordagens, senão ampliar a percepção do leitor sobre a humanidade e o espectro de ideias e perspectivas existentes no Brasil e no mundo. Esse tipo de perspectiva nem sempre é agradável, mas é uma busca de dar conta da “miséria e da riqueza que o cotidiano oferece, assim como escrevem às suas dores e alegrias íntimas” (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 224). Em vez de escrever apenas personagens e enredos felizes, Sobral está comprometida em refletir todo um espectro de experiências e de perspectivas que surgem (ou podem surgir) de uma sociedade em que amefricanos são discriminados regularmente, o que não é nada agradável para negro-brasileiros e que a prosa de Sobral pode comunicar aos leitores.

Após ser questionada sobre a reação ideal a seus textos, Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.) explica que a pessoa que lê suas obras “tem de ficar meio zonza, tem de ficar meio chocada. Aquilo tem de mexer com a pessoa”6 6 Sobral (2023) continua na entrevista, “Tem uns livros que você compra para enfeitar a sala, que você bota na mesa, e tem até umas medidas que você tira e tal. Eu nunca quis que meus livros fossem perfumaria. Sempre quis que fossem um pouco bombásticos, que causassem alguma reação — ou uma coisa boa, mas que tivesse algum impacto”. . Com “Nós por nós”, ela certamente atinge seu objetivo de chocar o leitor e de provocar uma reação e uma reflexão. Nos outros contos, ainda que menos drásticos, também se encontra essa provocação do leitor, essa intenção de “mexer com a pessoa” e ter um impacto que vai além do momento da leitura do texto.

Em meio ao caos no final de “Cauterização”, os passageiros do ônibus respondem de maneiras variadas, uns ignorando completamente, outros “faze[ndo] propaganda, comenta[ndo] sobre a vida das celebridades” e uns até roubando, enquanto outros querem chamar a polícia (Sobral, 2009SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos negros: contos. São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26., p. 25). Assim como esses passageiros têm respostas diferentes à cena, nos contos de Pretos em contos há uma variedade de respostas ao racismo e às interações entre negros e brancos no Brasil. A pergunta contundente que vem no final do conto sobre Socorro — esse “Será?” abrupto — convida leitores a pensarem na probabilidade de uma cena assim vir a acontecer de fato. Na comparação de contos que propomos aqui, leitores podem ver “A lei do sangue”, “747” e “Nós por nós” como manifestações de futuros possíveis, dependendo das reações do leitor e dos brasileiros em geral em relação ao racismo. Ao ler esses contos, vale perguntar-nos se o fim violento de “Nós por nós” (em que tensões e frustrações históricas levam ao assassinato em massa) parece mais provável que o fim fantástico de “Cauterização” (em que tudo se resolve de maneira súbita e pacífica). Afirmamos outra vez que o propósito desses contos não é instigar a violência, mas provocar reflexão quanto a realidades possíveis e ao trabalho requerido para criar uma sociedade mais tolerante e acolhedora para aqueles que frequentemente são marginalizados e que muitas vezes sentem pressão para conformar-se a modelos brancos de comportamento e de pensamento. Além disso, os contos representam “um modo de ferir o silencio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança” (Evaristo, 2020EVARISTO, Conceição (2020). Gênero e etnia: uma escre(vivência) contemporânea. In: SCHNEIDER, Liane; MOREIRA, Nadilza Martins de Barros (org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. 2. ed. João Pessoa: Editora do CCTA. v. 5. p. 219-229., p. 219). Ou, como explica Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.), ajudam leitores a perceber que “existem alguns grupos que têm seus direitos tão roubados em nossa sociedade” que “as suas concepções de humanidade sempre foram aviltadas — ultrajadas e extirpadas —, e não se discutiam aí as suas humanidades. Parece que alguns sempre foram mais humanos que outros”.

Chamar a atenção para a disparidade entre os direitos de pessoas que pertencem a diferentes grupos na sociedade brasileira contextualiza a violência de “Nós por nós” e provoca o leitor a refletir sobre possíveis diferenças entre sua reação em relação à ideia de exterminar a população negra (algo que vem sendo tacitamente aprovado, dado o legado da escravidão, a realidade da violência policial e do racismo estrutural na sociedade brasileira) e a de exterminar a população branca (algo impensável para muitos, já que os brasileiros brancos pertencem àquela categoria dos que “sempre foram mais humanos que outros”)7 7 Esta frase de Sobral lembra muito a famosa linha em Animal Farm [A revolução dos bichos] (1945) de George Orwell (2015): “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”. Sobral (2023) continua, após essa observação, explicando que “[a]lguns têm a primazia dos direitos, e sempre tiveram, e esses outros ainda não têm a legitimidade da reivindicação dos seus direitos. E isso ainda é muito jurássico, que um grupo não tenha quem lute pelos seus direitos”. . O conto “747” e os demais textos analisados neste artigo assemelham-se a outras obras de Sobral no sentido de que “são representativas de uma tentativa de incentivo para que o leitor perceba elementos e contextos que estão além do livro propriamente dito, sem que essa atitude implique uma atenção menor ao texto literário em si” (Cargnelutti, 2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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, p. 12). Suas obras convidam para uma conexão com o mundo real e estão voltadas “à conjuntura que gira em torno de uma coletividade” (Carvalho e Souza, 2022CARVALHO, Maria do Carmo Moreira de; SOUZA, Elio Ferreira de (2022). Escrevivência: epistemologia dos orixás e a autoafirmação do “sujeito-mulher-negra” no conto “Das águas”, de Cristiane Sobral. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 37, p. 196-208. https://doi.org/10.24261/2183-816x1537
https://doi.org/10.24261/2183-816x1537...
, p. 201). Esse grupo de leitores inclui “homens e mulheres negros e negras, ainda que esses, obviamente, não possam nem devam ser seus únicos leitores” (Cargnelutti, 2020CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
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, p. 7). Ou seja, Sobral convida os leitores, independentemente de sua identidade, a se juntarem a uma comunidade maior para lutar contra as barreiras interseccionais que negro-brasileiros encontram em seu dia a dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos contos analisados neste artigo, o processo de conscientização e de mudança nos personagens ocupa o espaço de poucas páginas. Entretanto, a obra de Sobral mostra uma atenção à complexidade dos processos individuais e muitas vezes sinuosos que levam à consciência mais sofisticada de si e dos outros ao redor de um indivíduo. Em suas obras, Sobral abre um espaço para leitores das mais variadas perspectivas e experiências começarem (ou continuarem) a trilhar este caminho de aprendizagem e conscientização, caminhada esta que é essencial para “refazer a cabeça” dos milhões de indivíduos que compõem a sociedade brasileira a fim de melhor ouvir e validar a escrevivência dos que historicamente têm sido marginalizados. Sobral é uma pioneira na legitimação de escrevivências negro-brasileiras contemporâneas, tanto por sua atuação nos campos de literatura e teatro como por sua editora, Aldeia de Palavras, que visa expandir oportunidades para escritores e escritoras emergentes. Como explica a própria autora,

Nós queremos ampliar os limites para que outras mulheres negras possam estar nesse espaço criativo. E quanto maior for essa penetração no sentido da convivência […] na medida em que alguém que não é negro e lê um livro que fala de personagens negros, isso pode contribuir para uma pedagogia da convivência. Dá uma subjetividade entre um leitor e um livro que fala dessa subjetividade de pessoas negras (Sobral, 2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.).

Em sua obra, Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.) tem “uma preocupação de complexificar os personagens” e de mostrar como avanços para a população negro-brasileira geram melhorias “para nossa sociedade como um todo”. E, embora este artigo tenha um enfoque na valorização da negritude nas obras de Cristiane Sobral, é importante salientar que sua obra engloba muito mais do que isto. Ao retratar humanidades variadas e promover convivência no imaginário dos leitores, a autora consegue atingir indivíduos das mais diversas perspectivas e experiências — frequentemente ela recebe mensagens de leitores negro-brasileiros e não negros explicando como seus textos os ajudaram a abraçar sua identidade negro-brasileira ou a demonstrar mais sensibilidade e respeito para com os negro-brasileiros a seu redor. Apesar de não prever que sua literatura teria este papel “um pouco medicinal […] os textos têm esse poder, de alguma forma tratar as pessoas” (Sobral, 2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.).

Ao falar da intersecção de raça e gênero no Brasil (temas recorrentes na obra de Sobral), a escritora Djamila Ribeiro (2017)RIBEIRO, Djamila (2017). We Need to Break with the Silences. TEDx São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6JEdZQUmdbc. Acesso em: 20. nov. 2022.
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afirma que precisamos “reconfigurar” como enxergamos a humanidade das pessoas para criar mais espaço e para quebrar com os silêncios e ausências na sociedade brasileira. Para isso acontecer, Ribeiro (2017)RIBEIRO, Djamila (2017). We Need to Break with the Silences. TEDx São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6JEdZQUmdbc. Acesso em: 20. nov. 2022.
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afirma,

é necessário que a gente se incomode de verdade. E esses discursos potentes desses grupos que historicamente não tiveram voz, eles vão incomodar. Eles vão incomodar de fato. E é necessário que esse incômodo seja visto como algo positivo. […] Sem o incômodo, a gente não promove mudança. […] Porque não pode ser meu amigo, disse Alice Walker, quem exige meu silêncio. E se ele não me ouve, ele está exigindo meu silêncio.

Independentemente da identidade dos leitores, a obra e a atuação de Cristiane Sobral — seja no campo da literatura, seja no do teatro ou no mercado editorial — apresenta oportunidades de refletir e reconfigurar atitudes, de cultivar a valorização da negritude ao nível individual e coletivo e de combater a ausência e o silenciamento de perspectivas amefricanas. Ao propor escrevivências variadas e provocar o incômodo necessário de que Ribeiro (2017)RIBEIRO, Djamila (2017). We Need to Break with the Silences. TEDx São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6JEdZQUmdbc. Acesso em: 20. nov. 2022.
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fala, a obra de Cristiane Sobral (e a de tantas outras escritoras) pode ajudar o Brasil a abraçar a negritude e a “encontra[r] consolo no futuro das suas raízes” (Sobral, 2010SOBRAL, Cristiane (2010). Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Athalaia., p. 114). Estas contribuições ajudarão a mudar as atitudes dos leitores em relação a uma sociedade que abrace a negritude e abra espaço para experiências e vozes negro-brasileiras. Nesse processo, as sementes plantadas por Sobral e outras escritoras brotam na mente dos leitores, criando a possibilidade de imaginar e gerar outros futuros para suas raízes — tanto as raízes orgânicas como as raízes afetivas. Assim sendo, as atitudes de negro-brasileiros e de outros podem passar de um questionamento cético — “Será?” — a uma afirmação comprometida: “Será!”.

  • 1
    Desconhecemos a origem deste termo, mas vem ganhando força nos últimos anos. O primeiro uso que encontramos data de 2017, numa entrevista com a ativista Luanda Maat ((MN) Redação, 2017(MN) REDAÇÃO (2017). #Negrasrepresentam – Lua Maat, conhecimento e centralidade africana! Mundo Negro, 30 nov. 2017. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/negrasrepresentam-lua-maat-conhecimento-e-centralidade-africana/. Acesso em: 1 dez. 2022.
    https://mundonegro.inf.br/negrasrepresen...
    ).
  • 2
    A entrevista inteira, “Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência”, é reproduzida neste mesmo número (nº 69) de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea.
  • 3
    Neste artigo priorizamos o uso do termo negro-brasileiro em vez de afro-brasileiro com base na interpretação da própria Cristiane Sobral: “Eu me considero uma escritora negra, negro-brasileira. […] [L]iteratura negro-brasileira, acho que é a expressão que mais dá conta. […] [E]ssa expressão afro não dá para mim, afrodescendente, afro-brasileira — não dá conta, eu acho. […] Todo mundo é afrodescendente. […] Então negro-brasileira, porque negro e brasileiro é uma coisa que nós que somos brasileiros — é diferente de ser negro-estadunidense, é diferente de ser negro-africano, é diferente de ser negro-indiano. Negro-brasileiro, porque no brasileiro também não tem purismo. Não dá para a gente tirar o indígena. Não dá. […] Porque nós somos isso também” (Sobral, 2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.). Suas obras incluem Não vou mais lavar os pratos (poesia, 2010), Terra negra (contos, 2017) e Esperando Zumbi (teatro, 2018) — esta última contribui com uma perspectiva feminina para as histórias de Zumbi dos Palmares, figura importantíssima para a história do Brasil e para movimentos negro-brasileiros até hoje.
  • 4
    Em sua tese de doutorado de 2008, Isabel Cristina Rodrigues Ferreira analisa uma peça teatral e um conto de Sobral, e um número da revista Afro-Hispanic Review (Oliveira-Monte e McElroy, 2010OLIVEIRA-MONTE, Emanuelle; MCELROY, Isis Costa (2010). Abrindo o caminho. Afro-Hispanic Review, Nashville, v. 29, n. 2, p. 11-24. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/i40064296. Acesso em: 20 nov. 2022.
    https://www.jstor.org/stable/i40064296...
    ) aborda Sobral e sua obra brevemente, mas fora estes exemplos há pouca atenção crítica à obra de Sobral anterior a 2017. “Cauterização” (republicado em 2016 com o título “Metamorfose”) é assunto de algumas teses de mestrado e graduação (Lima, 2013LIMA, Elizabete Barros de Sousa (2013). Identidades em conflito: uma leitura das peças de Cristiane Sobral. 44f. Tese (Doutorado em Literatura) – Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/5823/1/2013_ElizabeteBarrosdeSousaLima.pdf. Acesso em: 20 nov. 2022.
    https://bdm.unb.br/bitstream/10483/5823/...
    ; Souza, 2020SOUZA, Maria Alice Lins Apolonio de (2020). Do enredamento à transformação: corpo negro performando (re)nascimento e resistência. 59f. Tese (Licenciatura em Língua Portuguesa) – Centro de Ciências Humanas Letras e Arte, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/19834. Acesso em: 20 nov. 2022.
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    ) e de um artigo acadêmico (Carvalho, Lima e Lima, 2020CARVALHO, Maria do Carmo; LIMA, Rosy dos Santos; LIMA, Sara Regina de Oliveira (2020). Palavras, cenas e melodias: o crespo que tece histórias e resistência. Revista Entrelaces, Fortaleza, v. 10, n. 22, p. 59-76. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/58565/1/2020_art_mcmcarvalho_rslima_srolima.pdf. Acesso em: 30 nov. 2022.
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    ). Não encontramos nenhum texto crítico que aborde os contos que ela publicou em Pretos em contos – volume 2 em 2021.
  • 5
    Ou, como Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.) explica, “A literatura permite certo exercício contemplativo e solitário, individual… [P]ara o leitor as obras são abertas”.
  • 6
    Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.) continua na entrevista, “Tem uns livros que você compra para enfeitar a sala, que você bota na mesa, e tem até umas medidas que você tira e tal. Eu nunca quis que meus livros fossem perfumaria. Sempre quis que fossem um pouco bombásticos, que causassem alguma reação — ou uma coisa boa, mas que tivesse algum impacto”.
  • 7
    Esta frase de Sobral lembra muito a famosa linha em Animal Farm [A revolução dos bichos] (1945) de George Orwell (2015)ORWELL, George (2015). A revolução dos bichos. Bandeirantes: Universidade Estadual do Norte do Paraná.: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”. Sobral (2023SOBRAL, Cristiane (2023). Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência. Entrevistador: Jordan B. Jones. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 69.) continua, após essa observação, explicando que “[a]lguns têm a primazia dos direitos, e sempre tiveram, e esses outros ainda não têm a legitimidade da reivindicação dos seus direitos. E isso ainda é muito jurássico, que um grupo não tenha quem lute pelos seus direitos”.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Leila Lehnen por me apresentar a Cristiane Sobral e sua obra, à própria Cristiane Sobral por ceder a entrevista, e a Patrícia H. Baialuna de Andrade e aos/às pareceristas anônimos/as por suas contribuições. Agradeço também o trabalho de Xana Furtado, Carrie Janotti, Ashton Welker e Cayden Bro em ajudar a transcrever e analisar a entrevista. Finalmente, agradeço o apoio financeiro da Belda Summer Research Fund (administrada pelo Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros na Brown University) e de um Humanities Mentored Experience Grant (administrado pelo BYU College of Humanities) no decorrer desta pesquisa.

Referências

  • CARGNELUTTI, Camila Marchesan (2020). A construção de um espaço literário para vozes afro-brasileiras: Terra Negra, de Cristiane Sobral, e a editora Malê. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-14. https://doi.org/10.1590/2316-40186114
    » https://doi.org/10.1590/2316-40186114
  • CARNEIRO, Sueli (2020). Escritos de uma vida São Paulo: Jandaíra.
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Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2022
  • Aceito
    14 Abr 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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