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Cultura científica: questões de marginalização, legitimação e avaliação das Humanas

Scientific culture: questions on the marginalization, legitimation and evaluation of the Humanities

Cultura científica: questiones de la marginación, legitimidad y evaluación de las Humanas

resumo

Considerando a crescente marginalização das Humanidades nas universidades do país e do exterior em razão da tecnicização do saber sob o signo da inovação científica, da competitividade e da internacionalização, apresento posicionamentos em defesa das áreas de Humanas e, particularmente, dos estudos de literatura, de parte de alguns pensadores contemporâneos a partir dos quais proponho algumas reflexões sobre: o sentido dominante do termo “ciência” no contexto dos vínculos entre universidade e políticas de Estado; a fixação de parâmetros de validação da produção científica de parte das agências de fomento que avaliam a produção sob o cálculo da razão eficiente; os efeitos de tais parâmetros na avaliação da produção no campo dos estudos literários; e a necessidade de avaliação de mérito que não descaracterize a relevância e a singularidade dos estudos de literatura, em termos de atividades de ensino e de pesquisa. Nesse contexto, coloco em destaque algumas considerações sobre textos apresentados durante o XXX Encontro da Anpoll, realizado em julho de 2015.

Palavras-chave:
Humanas; ciência; internacionalização; validação; estudos literários

abstract

On considering the growing marginalization of the Humanities in universities in the country and abroad as consequence of the technicization of knowledge under the rule of scientific innovation, competition and internationalization, I present some positions in defense of the Humanities and of literary studies, in particular, on the part of prominent contemporary scholars, and develop some thoughts on: the dominant meaning of science in the context of the ties between university and state policies; the definition of parameters of validation of faculty production by granting state agencies that apply these parameters on the basis of the calculus of efficient reason; the effects of such parameters in the field of literary studies; the necessity of evaluation of merit that does not undermine the relevancy and singularity of literary studies in terms of teaching and research activities. In this context, I highlight some topics that emerged in texts presented in the XXX Conference of Anpoll, in July 2015.

Keywords:
humanities; science; internationalization; validation; literary studies

resumen

Teniendo en cuenta la creciente marginación de las Humanidades en las universidades del país y en el exterior debido a la tecnificación del saber bajo el signo de la innovación científica, la competitividad y de la internacionalización, presento las posiciones en defensa de las Humanas y de las Letras por parte de algunos pensadores contemporáneos y propongo algunas reflexiones sobre: el sentido dominante del término "ciencia" en el contexto de los vínculos entre universidades y políticas de estado; la fijación de parámetros de validación de la producción científica por parte de las agencias de fomento que regulan bajo el cálculo de la razón eficiente; los efectos de tales parámetros cuando miden la producción en el campo de los estudios literarios; la necesidad de evaluación de mérito que no descaractericen la relevancia y singularidad de los estudios de literatura, en términos de actividades de enseñanza y de investigación. En ese contexto, pongo en relieve algunas consideraciones sobre los textos presentados durante el XXX Encuentro de Anpoll, realizado en julio de 2015.

Palabras clave:
Humanas; ciencia; internacionalización; validación; estudios literarios

Em setembro de 2015, circulou em jornais e redes sociais de várias partes do mundo uma notícia sobre o teor de uma carta enviada a 86 universidades nacionais do Japão pelo ministro da Educação daquele país, Hakuban Shimomura. Na referida carta, o ministro solicita às autoridades daquelas universidades que tomem medidas para restringir a matrícula de alunos nas áreas de Ciências Sociais e Humanas, sob a alegação de que a universidade deve servir àquelas áreas que mais eficientemente atendem às necessidades da sociedade (Governo..., 2015GOVERNO japonês recomenda que universidades do país fechem cursos de humanas (2015). Painel Acadêmico, São Paulo, 15 set. On-line. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/y9p2qk . Acesso em: 15 set. 2015.
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). Segundo levantamento do jornal japonês The Yomiuri Shimbun, 17 reitores já confirmaram que não vão admitir novos alunos para cursos de Humanas, incluindo cursos de graduação em Direito e Economia. Conquanto as universidades japonesas enfrentam um contexto específico de contingenciamento financeiro e decréscimo de matrículas em razão de queda nos índices de crescimento populacional, a noção de que o conhecimento das áreas de Humanas pode ser desqualificado por mecanismos de legitimação que a classificam como de menor importância e de pouco impacto para a educação e o desenvolvimento de um país é, no mínimo, estarrecedor - e tem se disseminado em muitas outras latitudes.

Em que pese diferenças regionais e especificidades locais, existe hoje um discurso dominante sobre o papel da universidade afinado com lógicas governamentais de inovação científico-tecnológica que buscam alavancar a competitividade no mercado científico global com políticas públicas direcionadas às áreas definidas como tendo valor estratégico e, por tal razão, consideradas prioritárias. Em outras palavras, no jogo de poder do capital global, a relação entre Estado e universidade submete a última - e particularmente as universidades públicas - às agendas de agências reguladoras e às políticas de financiamento que, articuladas a um sistema universal de avaliação, privilegiam um certo sentido de ciência que favorece a instrumentalização do conhecimento em termos de produção de tecnologia e bens materiais, ou seja, o que tem se chamado de “pesquisa finalizada”, definida por Derrida como toda pesquisa afinada com um “cálculo racional de programação” (1999DERRIDA, Jacques (1999). O olho da universidade. Introdução e organização de Michel Petersen, tradução de Ricardo Iuri Canko e Ignácio Neis. São Paulo: Estação Liberdade., p. 140).

A partir de posicionamentos sobre a crescente marginalização das áreas de Humanas de parte de alguns pensadores procedentes de diversas geografias, proponho algumas reflexões sobre: os comprometimentos da universidade com o discurso da inovação; a vigência de um determinado sentido de ciência no contexto de uma política de internacionalização e competitividade pautada na adoção de critérios de validação científica da produção de conhecimento; e os efeitos perversos daqueles critérios na avaliação da produção na subárea de estudos de literatura, considerando peculiaridades de suas formas de produção.

É verdade que, do ponto de vista histórico, sempre houve uma assimetria entre a cultura das Ciências Exatas e Naturais e a cultura das Humanas, contudo as condições institucionais apresentam hoje um nível inusitado de desequilíbrio, tanto em termos de investimento de recursos públicos, como em termos de legitimação, visto que as Humanas, em geral, são vistas como tendo menor (ou nenhum) valor agregado, seja do ponto de vista epistemológico no quadro da hegemonia do conhecimento nas instituições acadêmicas, seja do ponto de vista do novo pragmatismo do mercado científico-financeiro, sustentado por políticas de Estado. A legitimação constitui um a priori para as Ciências Exatas e Naturais, mas não o é para as Humanas, visto que suas áreas precisam justificar permanentemente sua existência pelo uso de discursos mensuráveis e calculáveis de rendimento, um dispositivo de racionalidade técnica que despotencializa a energia crítica de seus saberes e, sobretudo, subestima sua relevância para o desenvolvimento humano, do país e do mundo.

O espectro da desvalia

O cientificismo está associado à racionalidade moderna e corresponde a um modo de produção do conhecimento fundamentado na ideia de método, o que significou uma ruptura decisiva em relação à ciência pré-moderna. O parâmetro que passou a dar legitimidade ao conhecimento produzido deixou de ser o discurso verdadeiro (silogismo dialético) para ser a verdade (silogismo científico) demonstrável objetivamente por meio de procedimentos metodológicos baseados nos princípios da disjunção, redução e abstração, na separação entre sujeito e objeto e na neutralidade desse sujeito com relação ao campo dos valores sociais e morais. Para o hermeneuta Hans-Georg Gadamer, em seu Verdade e Método II (2004GADAMER, Hans-Georg (2004). Verdade e Método II. São Paulo: Vozes; Petrópolis: Universitária.), a pretensão da ciência de superar, pela via do conhecimento objetivo, a casualidade da experiência subjetiva e o caráter plurissemântico da linguagem cristalizou um conceito unívoco de ciência, calcado no valor da técnica, operada segundo os moldes da lógica matemática. Dessa forma, o fundamento epistêmico da ciência moderna eliminou, do caminho cognitivo, o comprometimento com a reflexividade do sujeito cognoscente bem como desvinculou a prática científica da ordem do discurso e de suas condições de enunciação,2 2 Algumas dessas operações estão relacionadas, por exemplo, à utilização de analogias e metáforas, as quais podem encobrir certas informações para que uma descoberta científica seja afirmada ou, até mesmo, sustentar uma interpretação falaciosa, sem que isso coloque em risco a legitimidade do uso de uma analogia pela comunidade científica. Esse é o ponto desenvolvido por Nancy Leys em “Raça e gênero: o papel da analogia na ciência” (Leys, 1994). o que significou negar a contingência e a interpretação na produção de compreensão dos fenômenos ou dos objetos sob investigação. Contudo, cabe acrescentar que o pretenso esvaziamento da conflitividade político-ideológica assegurado pelo formalismo do método na produção de conhecimento não impediu o surgimento de teorias científicas sobre a variabilidade humana3 3 Refiro-me à teoria da seleção natural (Darwin), à teoria da eugenia (Galton), à teoria da biologia evolucionista (Vogt) e às teorias raciais baseadas na craniometria. que, de uma maneira ou outra, alimentaram racionalizações do pensamento etnocêntrico com relação às chamadas “evidências” da inferioridade racial e sexual.

A divisão moderna do conhecimento em áreas distintas não é somente uma sistematização de campos, do ponto de vista epistemológico, mas uma taxonomia que codifica poderes institucionais e disciplinares por meio dos quais algumas áreas do conhecimento são valorizadas pela cultura científica por corresponderem ao modelo de “ciência verdadeira”. O acirramento do antagonismo entre a cultura científica e a cultura literária no século XIX - não por coincidência um período marcado por significativo desenvolvimento das ciências exatas e biológicas - atingiu seu ponto culminante no século XX, conforme Antoine Compagnon (2009COMPAGNON, Antoine (2009). Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora da UFMG.), com sua referência à famosa conferência do físico Charles Percy Snow, proferida na Universidade de Cambridge em 1959, quando o físico afirmou que os conhecimentos das Ciências Humanas e Sociais teriam irremediavelmente perdido seu estatuto milenar privilegiado em relação às Ciências da Natureza e da Vida. Tal discurso que reivindica sentidos exclusivos dos termos “natureza” e “vida” para o fazer das Ciências Exatas e Naturais como forma de desbancar o fazer das Humanas surge, evidentemente, de uma vontade de verdade que atua sobre o discurso do outro e, assim, institui um poder, o poder de definir o que possui relevância e o que não possui. Trata-se, portanto, de uma estratégia retórico-discursiva dependente de juízos valorativos e interpretativos, contaminada ideologicamente pela posição e subjetividade do sujeito. É justamente nesse entendimento do funcionamento da linguagem e das operações discursivas do sujeito que fala/escreve que reside um dos eixos importantes do estudo no campo das letras e, de modo especial, da literatura. Seja na perspectiva teórico-crítica de Bakhtin, de Derrida ou de Foucault, entre outros, já se abandonou a ingenuidade sobre os usos dos discursos e já se aprendeu a discernir as cumplicidades entre sistemas de significação e dominação, entre a constituição de saberes disciplinares e regimes de verdade implicados em relações de poder. Se o signo linguístico não é neutro, mas social, ele próprio é um veículo material de produção ideológica, portanto, toda a produção do saber revela o caráter situado de seu discurso, o lócus de enunciação, lugar onde são engendradas as posições, os valores e as exclusões do sujeito que fala/escreve. Nesse sentido, pode-se dizer que, em se tratando do discurso do cientista referido, o feitiço se volta contra o feiticeiro, no sentido de que é sempre possível identificar no discurso utilizado pelos sujeitos que proclamam a superioridade do fazer da ciência verdadeira, o efeito diferido do princípio objetivo e racional, bandeira dos “cientistas” (outra apropriação exclusiva) nos discursos utilizados para se referir às Humanas.

O mal-estar diante da crescente desvalorização das áreas das Humanas no cenário global tem produzido gestos insurgentes no campo da filosofia e dos estudos literários. Um deles é o de Martha Nussbaum, filósofa da Universidade de Harvard, que afirma estarmos diante de uma crise de grandes proporções e de grave significação global, haja vista os riscos que ameaçam a existência das Humanas. No livro Not for profit: why democracy needs the humanities (Não para o lucro: porque a democracia precisa das Humanidades),4 4 Em linha similar, a britânica Helen Small (2013) defende o trabalho nas áreas de Humanas como sendo uma das práticas que reflete sobre as formas de construir sentido no campo da cultura e agrega, a esse trabalho, um forma distinta de conhecimento e compreensão que, necessário à sociedade sob muitas perspectivas, permanece na contramão do valor de uso instrumental. publicado em 2010NUSSBAUM, Martha (2010). Not for profit: why democracy needs the humanities. New Jersey: Princeton University Press., Nussbaum apresenta uma defesa veemente da necessidade de integrar, de forma mais efetiva, a educação à área a partir do diagnóstico de uma crise silenciosa que se abate sobre as universidades e que corrói seu objetivo primeiro, que é o de formação. Com um título provocador, Nussbaum desenvolve a tese de que o futuro da democracia no mundo está em risco a partir de algumas premissas: i) o campo das artes e das humanidades é crucial para a educação para a democracia; ii) esse campo vem sendo marginalizado e seus conhecimentos tomados como periféricos ou supérfluos em razão da ciência e da tecnologia definirem o valor daquelas áreas que podem trazer mais financiamento externo à academia; e iii) essas áreas são favorecidas porque seus conhecimentos vão ao encontro da sede das nações por dividendos materiais e competitividade no mercado global. Apresentando inúmeros exemplos dessa situação, Nussbaum mostra que cortes progressivos nos currículos do ensino de primeiro, segundo e terceiro graus estão acontecendo em praticamente todas as nações do mundo e que se a tendência atual persistir, em pouco tempo as nações estarão produzindo gerações de máquinas eficientes e úteis em lugar de pessoas cidadãs que possam pensar por si próprias, fazer reflexões sobre suas tradições e instituições, compreender a realidade em que estão inseridas e reconhecer o sentido dos sofrimentos dos outros. Segundo ela, a perda de habilidades necessárias para manter as democracias no mundo é decorrente de um modelo dominante de desenvolvimento econômico que, ao enfatizar demasiadamente o crescimento material, promove o empobrecimento das formas de convivência no campo da vida social e política. Se o sistema educacional, do ensino básico ao ensino universitário, não preparar os jovens para o exercício de uma forma inclusiva de cidadania, adverte ela, não haverá sustentação para a democracia e muito menos para a estabilidade social. Nesses termos, a defesa das Humanas reside no argumento de seu alcance social, na medida em que, a par das especialidades de suas áreas, todas estão direcionadas à formação de civilidades e ancoradas no desenvolvimento do pensamento crítico, da imaginação criadora e da capacidade de compreender, de modo empático, a experiência do outro, condição sine qua non para que se possa adquirir uma perspectiva ampla do mundo complexo em que vivemos.

O outro nome de destaque nas discussões atuais sobre o futuro das Humanas é o de Gayatri Spivak, da Universidade Columbia e destacada intelectual no campo das teorias pós-coloniais. Em seu An aesthetic education in the era of globalization (Uma educação estética na era da globalização), publicado em 2012SPIVAK, Gayatri (2012). An aesthetic education in the era of globalization. Massachusetts: Harvard University Press., Spivak apresenta pontos de convergência com Nussbaum, muito embora sua ênfase recaia sobre a importância específica da educação literária. Para ela, o exercício da imaginação associada à educação estética é uma forma de empoderamento na medida em que abre possibilidades de discernimento e de negociação sobre o que ela define como a double bind no coração da democracia. O uso do termo double bind traduz a sua compreensão das injunções presentes nas sociedades dita democráticas, que colocam, em diferentes níveis lógicos, demandas que o sujeito não pode ignorar e das quais não pode escapar, gerando um conflito interno inexprimível, por exemplo, entre o desejo da igualdade de direitos e de vida digna e a impossibilidade de sua concretização em razão da racionalidade que rege os mecanismos sociais de normalização e uniformização. Ao traçar um paralelo com outras áreas do conhecimento, Spivak argumenta que a versão das Humanas, no início do que chamamos hoje de globalização, era maximizar o treinamento imaginativo e minimizar a uniformização mental paralisante dos processos de modernização capitalista, mas hoje, a universidade se tornou ambiciosa e minimiza as Humanas a fim de alcançar o máximo de sua versão neoliberal globalizada. Além disso, acrescenta que, a despeito da crescente e aparente ênfase multiculturalista nos currículos no ocidente, de maneira geral, a educação tem falhado em seu propósito de ensinar os estudantes a compreender as vidas daqueles que se situam fora dos constructos hegemônicos e de suas formas de teorizar/pensar.

Partindo de sua reflexão sobre a prática pedagógica, desenvolve o argumento central: a educação estética seria o último instrumento disponível por meio do qual se poderia perseguir o desejo de justiça global e democracia uma vez que a solidariedade ética que alimenta esse desejo somente é possível através de um treinamento rigoroso da imaginação. Para Spivak, os efeitos homogeneizadores da globalização não podem neutralizar ou destruir o dispositivo perceptivo-sensorial com que experienciamos a condição de ser, e o discurso literário é o lugar, por excelência, em que as particularidades dessa condição, que é histórica e culturalmente contingente, são imaginadas, recebidas e reimaginadas, o que potencializa o dispositivo sensorial do sujeito de modo a alargar a experiência do ser, levando-o a ultrapassar o fechamento da identidade sitiada pelo individualismo, o que sinaliza a possibilidade de um desenvolvimento humano fora da lógica do capital. Na passagem da experiência subjetiva para a formação de uma imaginação crítica capaz de suspender o eu no texto de um que é outro reside a importância do ensino da literatura como treinamento para o impulso ético. Para ela, a noção de ética não é uma abstração filosófica, não se encontra lá no arquivo da tradição da filosofia moral, de onde se poderia resgatá-la, mas é uma noção construída através e em cada contexto de relações humanas. Na esteira do pensamento de Emanuel Levinas, Spivak afirma a importância de uma ética prática, pressuposta no fato de que nascer humano é nascer já direcionado ao outro e aos outros e é essa condição que a racionalidade econômica do capital coloca em risco ao transformar as pessoas em objetos de uso e de exploração. Sua posição sugere que a educação literária é uma questão de preservação da capacidade crítica e imaginativa, um investimento estratégico articulado não somente a um projeto de nação, mas à necessária ressignificação do sentido de pertencimento a uma comunidade planetária.5 5 Essa concepção é desenvolvida em seu livro anterior, The death of a discipline (2003), em que, ao discutir a morte e a sobrevivência da literatura comparada, Spivak formula o conceito de uma comunidade por vir.

Muito distante dos pressupostos metodológicos associados à objetividade e à universalidade do saber moderno, cujo legado, mesmo em um período pós- feyerabeniano6 6 Refiro-me a Paul Feyerabend, autor de Contra o método (2007). ainda é forte, os estudos de literatura configuram um campo singular de produção de conhecimento pautado pela razão imaginativa e dialógica, que é resistente à noção de totalidade e homogeneização, é atuante na descolonização do pensamento, nas esferas locais, nacionais e internacionais, e está direcionada à formação de civilidades comprometidas com a democratização do campo social e cultural. Não há como menosprezar o alcance dos estudos literários, sua potencialidade de fecundar significados com os quais podemos fazer sentido do mundo e gerar reflexões crítico/filosóficas sobre o campo estético das linguagens e sobre as contingências do humano, no contexto das materialidades históricas que determinam as formas de vida social e cultural, nas quais ocorrem os embates de valores éticos, estéticos e políticos. São esses embates que fazem dos estudos literários a aventura fascinante de comunidades de pensamento pela complexa e multifacetada história humana, uma história que narra o trabalho estético-filosófico da linguagem, da identidade e da diferença, da fantasia e da memória, das paixões e das ilusões, das perdas e dos sonhos, dos traumas e desejos, das verdades possíveis e imaginárias, da liberdade e da falta dela, o que fomos, o que somos, o que não queremos ser e o que poderemos vir a ser. Precisamente por potencializar as disposições cognitivas, afetivas, empáticas e motivacionais dos sujeitos com relação às referidas questões, o saber da e sobre a literatura sempre foi considerado perigoso por regimes autoritários e de exceção, basta olhar retrospectivamente para momentos da história mundial do século XX para constatar a perseguição a pensadores, a interdição de obras e autores e a queima de livros em praças públicas.

Inovação e internacionalização

No século XX, a corrida pelo desenvolvimento econômico e pelo progresso material fomentou a tecnociência,7 7 Ver, nesse sentido, as reflexões de Jürgen Habermas em O futuro da natureza humana (2004). um fenômeno da industrialização da ciência e cujo princípio básico é a produção de saberes funcionais e competências altamente especializadas que possam atender à lógica do mercado, local e global. Assim, talvez mais do que em qualquer outra época, os estreitos vínculos entre a ciência e os centros de poder - político, econômico e também militar - acabam tendo um papel decisivo na indução das prioridades científicas, na distribuição de recursos e na predominância de um modelo dominante de cultura científica em que o saber é transformado em uma força produtiva, inserida em redes técnico-econômicas do estado, com vistas ao mercado e seus dividendos.

No contexto dessa realidade, a universidade passou por grandes transformações e é hoje o resultado da convergência de vários fatores - econômicos, políticos, tecnológicos e sociais - que são, muitas vezes, explicados e justificados sob o signo da globalização e do capital. Por isso, a palavra de ordem nas universidades do país e do exterior é inovação, como se inovação fosse algo novo no horizonte do saber e não um termo que descreve a própria natureza e função precípua do avanço do conhecimento e da cultura humana ao longo de sua história. O que é efetivamente novo é a associação do termo inovação com noções de empreendedorismo, de iniciativas universidade-empresa, o que torna o termo discursivamente marcado pela lógica de um “empresariamento” da ciência, traduzido na utilização e aplicabilidade, quase que mandatória, de conhecimentos gerados pelas pesquisas desenvolvidas na academia. Como explica Walter L. Roque, “os processos de inovação são consequências de ações integradas entre governo, academia, indústria e mercado, que são os principais agentes na elaboração de políticas para o desenvolvimento científico, tecnológico, industrial e dos serviços” (2015). Fica evidente que tal sentido de inovação transforma a universidade num lugar em que o conhecimento é atrelado às demandas do mercado, com suas redes materiais e sociais, o que significa privilegiar aquelas áreas com mais possibilidades de transformar conhecimento em produto e, possivelmente, em artigo de consumo.

Nesse quadro, observa-se que o modelo dominante da cultura científica vigente na academia alimenta-se de uma concepção pragmático-utilitária do conhecimento que se insere no processo de neoliberalização, referindo-se aqui a um projeto político-científico que naturaliza certas condições de produção segundo as quais o financiamento está vinculado aos rendimentos, mensuráveis de acordo com critérios do mercado científico global. Em sintonia com esse processo, destaca-se, em nosso meio, o controle quantitativo do saber através de mensurações de impacto e de rankeamentos da produtividade através de processos de avaliação da produção docente, número de patentes, número de artigos publicados em periódicos indexados, número de referências em bases internacionais de dados, número de citações, cujo objetivo é o status institucional/nacional no ranking mundial de produtividade. Esse processo transforma os sujeitos docentes e pesquisadores em máquinas de fabricar textos submetidos a uma linha de produção e montagem que acirra o nível de competitividade interna por fomento ao mesmo tempo que sustenta a política governamental na busca da melhoria do ranking do país no mercado científico global.

A inquietude diante dessa lógica de controle que evoca uma gestão empresarial dos docentes e das universidades é expressa por José Geraldo Sousa Júnior (2015SOUSA JÚNIOR, José Geraldo (2015). Essa construção é tensa e precisa ser negociada. Entrevista por Araldo Neto. Revista Adverso, Porto Alegre, n. 214, p. 4-9, maio/jun. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/M1tAu4 . Acesso em: 26 dez. 2016.
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, p. 8), ex-reitor da UnB, na sua referência à “submissão, no plano da pesquisa acadêmica, a um modelo produtivista de adequação globalizada, um padrão de conhecimento que desconhece a singularidade autônoma do saber, espontaneamente construído por indicadores e metas que a própria universidade possa elaborar”.8 8 Trecho de entrevista concedida à revista Adverso, da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ADufrgs Sindical), na qual o autor defende a criação de uma Lei Orgânica das Instituições Públicas de Ensino Superior. E o fenômeno não é somente local. Para o ex-reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa (2015NÓVOA, António (2015). Obsessão por normas e controles transforma universidades num inferno. Entrevista por Marco Aurélio Weissheimer. Revista Adverso, Porto Alegre, número especial, p. 14-18, jun. Disponível em: Disponível em: https://issuu.com/verdeperto/docs/213 . Acesso em: 26 dez. 2016.
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, p. 15) “a situação que vivemos hoje, com docentes asfixiados por sucessivos controles produtivistas e com instituições sufocadas por uma burocracia sem fim, torna a vida universitária muito problemática e difícil”. Ainda segundo o educador, a universidade enfrenta duas ameaças: uma “que valoriza a gestão sobre o ensino e a pesquisa, trazendo para dentro das universidades discursos e práticas empresariais”; e outra, “que acentua o valor econômico das universidades que, por esta via, abre as portas para a mercantilização do espaço do ensino superior” (Nóvoa, 2015NÓVOA, António (2015). Obsessão por normas e controles transforma universidades num inferno. Entrevista por Marco Aurélio Weissheimer. Revista Adverso, Porto Alegre, número especial, p. 14-18, jun. Disponível em: Disponível em: https://issuu.com/verdeperto/docs/213 . Acesso em: 26 dez. 2016.
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, p. 18).

A atual pressão conjuntural com relação à internacionalização da produção científica para elevar o nível de nossa competitividade ficou patente em reunião dos comitês de assessores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), convocada para o trabalho de reclassificação das bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) - uma reivindicação histórica de parte da comunidade científica (Ministro..., 2013MINISTRO fala sobre a ciência brasileira em seminário de avaliação de bolsistas no CNPq (2013). Comunicação Social - CNPq, 1º abr. On-line. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/3iNLXS . Acesso em: 26 dez. 2016.
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). Antecedendo as reuniões dos comitês, houve um seminário com apresentação de dados estatísticos de produção, de reflexão sobre os desafios da atual empreitada nacional de ciência, tecnologia e inovação no quadro comparativo com os países mais desenvolvidos, com vistas à necessidade de conciliar a produção científica com os principais desafios brasileiros. Dele participaram como expositores o então ministro de Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp, o presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Guimarães, e o presidente do CNPq, Glaucius Oliva, bem como os representantes das grandes áreas. Sobre a relação do aumento da produção científica ocorrida nos últimos anos e que alocou o Brasil na 13ª posição, o então presidente do CNPq reiterou a necessidade de compatibilizar aquele ranking com o ranking econômico, ou seja, aproximar o ranking científico da posição brasileira como sexta economia mundial. Segundo ele, entre os gargalos para o avanço da ciência brasileira estão: a qualificação, relevância e impacto dos projetos; o baixo nível de inovação (no ano de 2012, o país ocupava a 58ª posição, muito abaixo dos países membros dos BRICS, com exceção da Índia, na 66ª posição); o pequeno número de patentes registradas; e a falta de atrativos para talentos que poderiam contribuir na qualificação da mão de obra nacional.

No momento das falas dos representantes das áreas, Sérgio Adorno da USP, representante das Humanas, enfatizou o fato de que a avaliação se coloca de maneira diferente nas Humanas, em razão de seus temas distintos e diferentes processos de produção, pois, segundo ele, somos parte integrante da experiência de construção do nosso objeto do conhecimento, além de trabalharmos com ideias, valores, linguagens, culturas, comportamentos e posicionamentos. Essa singularidade não pode ser facilmente aferida, de maneira que se impõe a pergunta: como avaliar o impacto de ideias e valores em termos de sua circulação e, pior ainda, em termos de impacto internacional? Não há dúvida de que as Humanas contribuem para o desenvolvimento social do país, mas nem sempre segundo a definição do que é considerado contribuição pelas outras ciências. Necessário dizer que a fala de Adorno foi praticamente neutralizada pelas falas dos representantes das outras áreas, cuja dominante ratificou a posição do então ministro sobre a necessidade de tornar a ciência brasileira mais competitiva, tendo como meta a aproximação da produção científica, atualmente na 13ª posição, com os níveis de produção dos países que compõem os BRICS. O índice de 20% de crescimento na produção científica nos últimos 30 anos foi considerado insuficiente pelas autoridades presentes, sendo que o objetivo último da atual política científica é conseguir que o país alcance a 10ª posição e assim se aproxime dos índices dos países desenvolvidos. Ficou evidente que essa política está amparada em uma concepção de universidade de resultados, em que a formação é direcionada à pesquisa com vistas a atingir uma meta de governo, que é a de incrementar a posição do país no elenco dos países que competem no mercado global. Para tanto, os discursos buscaram convencer que uma universidade competitiva é sinônimo de país competitivo, e que a competição é fundamental para o progresso e o bem-estar social. Nessa linha de raciocínio, não existe a possibilidade de uma valorização efetiva das atividades de ensino e de formação, as quais ficam relegadas a segundo plano, rendendo reles pontuação para progressão funcional, em um país de enormes deficiências educacionais.9 9 Para uma leitura aprofundada dessas questões, ver Hélgio Trindade (2002). Abandonar a educação como modelo de transformação social por um modelo de formação voltada ao mercado internacional da produção científica em termos de coeficientes científicos e tecnológico-empresarial é levar a tecnicização da educação às últimas consequências, ou seja, à produção de máquinas humanas e não de sujeitos conscientes e solidários, capazes de divisar alternativas de intervenção na vida cultural, social e política visando à melhoria da qualidade de vida coletiva, em um mundo que precisa urgentemente aprender como superar os conflitos e as ameaças que afligem nosso presente e colocam em risco nosso futuro.

Não resta dúvida de que as Ciências Humanas contribuem para o desenvolvimento social nos respectivos contextos nacional e internacional, mas nem sempre segundo a definição do que é considerado contribuição pelas outras ciências. A reiterada nomeação de áreas das Exatas e das Naturais como prioritárias para a atual política científica, ao longo do seminário realizado nas dependências do CNPq, reitera a valorização de uma determinada forma de fazer ciência que não só hierarquiza as áreas do saber como desqualifica o fazer das Humanas, uma vez que alimenta o pré-conceito de que o conhecimento por elas produzido não autoriza o reconhecimento de sua contribuição para o desenvolvimento do país. Não há nada contra o desenvolvimento científico desde que a concepção de ciência não se reduza ao que Tzvetan Todorov (2010, p. 210) define como “programação dos cérebros”, em outras palavras, uma monocultura do pensamento instalada, de forma hegemônica, quando se trata de definir o que conta como ciência. Sem as Humanas, não há como sustentar o sentido do que seja vida acadêmica, porque são elas que mantêm viva a tradição da universidade como centro de reflexão crítica sobre valores, na contramão de uma nova ordem que se rende às redes estatais de cálculo e dividendos, produtividade e competição no mercado.10 10 Ver, nesse sentido, o texto de Terry Eagleton (2010).

Políticas de produção e de avaliação

A questão da produção científica e dos critérios estabelecidos para sua validação formulados pelas agências reguladoras estatais - Capes e CNPq - sempre constituíram um tema candente, e porque não dizer nevrálgico, para os docentes pesquisadores das áreas de letras e linguística e, particularmente, para aqueles que atuam no campo dos estudos literários, cujo modus operandis, em se tratando de pesquisa, não oferece nenhuma garantia de finalidade, no sentido de aplicabilidade, seja pelo viés da chamada inovação científica, seja pelo discurso altamente valorizado de produção de novas tecnologias a serem apropriadas pelas redes tecno-econômicas da universidade. Mais do que em outros tempos, considerando as políticas das agências de fomento e da própria universidade, acentua-se a clivagem entre, por um lado, o fazer das ciências exatas e naturais, consideradas áreas “nobres”, com um estatuto de normatividade científica forte, e, por outro, o fazer dos estudos literários, enquadrados em termos de uma universalidade “fraca”, de importância tangencial às grandes questões que alavancam o desenvolvimento da sociedade e do país. Tais denominações reduzem a voltagem da pesquisa literária ao senso comum do diletantismo beletrista, porque afinal, “todos sabem ler um romance ou uma poesia”, como dizem professores e alunos de outras áreas quando questionam nossos alunos sobre o que fazem com a literatura.

Como o mais importante fórum científico, acadêmico e político da pós-graduação e pesquisa na área de letras e linguística do país, os encontros nacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll), desde sua fundação em 1984, têm mobilizado a comunidade de docentes pesquisadores em torno de questões relativas ao fortalecimento e o aprimoramento da área, desde a qualificação do quadro de recursos humanos e a sistematização e articulação dos grupos de pesquisa (preocupação nos anos 1980), o acesso ao fomento no contexto dos magros recursos disponibilizados pelas agências em sua relação às nossas demandas (característica dos anos 1990 e primeiros anos do século XXI), até critérios de avaliação externa no cenário de uma política científica nacional de internacionalização da produção. As preocupações em torno da última questão sempre assombraram as discussões ao longo dos últimos 20 anos da associação, particularmente no que diz respeito aos modelos e metodologias utilizadas na avaliação dos programas de pós-graduação, vistos como uma forma de nivelamento das singularidades dos programas, que, ao apagar as diferenças entre a produção das áreas, coloca em desvantagem os estudos de literatura e algumas vertentes da linguística, como a análise do discurso, pela forma, digamos, diferencialmente oblíqua, de inserção na cultura da publicação científica. O entendimento sobre o poder de interferência das agências na vida acadêmica e no próprio desenvolvimento das universidades e sobre os riscos de centralização de decisões sobre a validação da produção resultante das pesquisas sempre fomentaram, no âmbito da Anpoll, um receio generalizado de submissão cega ou de uma discordância inconsequente em relação aos índices externos de validação de mérito científico.

Em se tratando de índices, cabe um pequeno relato. Em junho de 2015, o CNPq, por meio de sua área técnica, promoveu um levantamento da qualidade de produção dos docentes pesquisadores a partir do rastreamento de citações em periódicos indexados a fim de chegar ao impacto dos textos produzidos, o chamado índice H, obtido através de uma série de procedimentos disponibilizados pelo Google Scholar, possivelmente com o objetivo de adotar o referido índice em futuras concessões de fomento, o que seria um desastre para as Humanas em geral. Paralelamente, foi feita uma pesquisa do ranking de cientistas nas instituições brasileiras a partir do índice de citações no Google Scholar (GSC)11 11 O ranking está disponível em: http://www.webometrics.info/en/node/102 e, para surpresa e preocupação da técnica que atende ao Comitê de Letras e Linguística, foi identificado apenas um nome da área na lista. Cabe esclarecer que o índice H tem sofrido pesadas críticas por suas limitações (Marques, 2013MARQUES, Fabrício (2013). Os limites do índice H. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 207, p. 35-39, maio. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/F8ws2L . Acesso em: 7 nov. 2015.
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),12 12 No artigo “Os limites do índice H”, Fabrício Marques menciona os perigos da supervalorização do índice H para fins de tomada de decisões de parte das agências de fomento, problematiza a questão do índice em termos de coautoria no caso de redes de pesquisadores, e alerta sobre a manipulação da autocitação. entre elas, a ênfase demasiada em um único indicador de desempenho, um único número resultante da relação entre o número de artigos publicados em periódicos indexados e o número de citações de cada um, como se esse número pudesse dizer alguma coisa sobre a produtividade de um pesquisador ou, ainda, sobre a relevância de sua produção. A adoção do referido índice de forma generalizada faz tabula rasa das diferenças contextuais entre áreas com histórias e tradições muito diferenciadas sobre o que constitui pesquisa e produção de conhecimento, gerando, nesse processo, comparações lineares, que fixam desigualdades em escala de valor. Por exemplo, o maior impacto da produção em literatura brasileira é certamente local e, ainda mais, a relevância dessa produção não pode ser mensurada apenas por citações, uma vez que o livro e o capítulo de livro são os tipos de produção valorizadas na área. Aliás, essa valorização não se limita ao espaço nacional, basta verificar os dados curriculares dos autores que participam de coletâneas na área de estudos de literatura publicados no exterior, dados esses localizados nas últimas páginas dos livros, para comprovar que o que é de fato valorizado são livros e capítulos em obras coletivas. Nenhum(a) autor(a) sequer faz referências a artigos publicados em periódicos em seu resumo da atuação acadêmica.

Nessa linha de discussão, cabe destacar a importância do XXX Encontro da Anpoll, realizado de 6 a 8 de julho de 2015 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o tema “Produção, produtividade, produtivismo”. Muitas questões ganharam visibilidade nos textos das palestras e mesas-redondas, alguns marcados com um acento inconformista salutar diante das injunções da atual política de pesquisa e produção e que, por isso mesmo, oferecem subsídios para uma eventual elaboração de agenda de prioridades e metas que contemple as especificidades da área a serem debatidas pela comunidade e negociadas no âmbito das agências de fomento por nossos representantes. O texto de Alamir Aquino Correa (2015CORREA, Alamir Aquino (2015). O índice H é igual à soma dos tercetos. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 30., Universidade de São Paulo, 6-8 jul. (Texto para discussão). Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/voXvfO . Acesso em: 2 nov. 2015.
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) intitulado “O índice H é igual à soma dos tercetos” ratifica a noção da importância de livros e capítulos para a área ao evidenciar seu alto grau de incidência na comparação com as outras áreas, e interroga, de maneira absolutamente procedente, sobre qual seria a quantidade razoável de produção acadêmica para pesquisadores que são igualmente docentes formadores de recursos humanos. É fato que, na corrida para cumprir cotas de publicações estabelecidas para se manter em um programa de pós-graduação e não correr o risco de ser responsabilizado pelos colegas por eventuais prejuízos à avaliação de seu programa, o docente passa as atividades de ensino para o pós-graduando bolsista que precisa cumprir a exigência de estágio de docência na graduação. A prática é corrente e, com isso, a questão da formação perde terreno para a pesquisa, quando as duas atividades deveriam convergir e se complementar. A formação de recursos humanos é uma das nossas vocações, de maneira que haveria de se pensar em uma forma de compatibilizar o mérito das duas atividades em termos de avaliação dos programas de pós-graduação e no momento do docente submeter pedidos de bolsa ou de fomento. Ainda no que se refere aos meios de publicações, Correa levanta outra questão pertinente, a de que muitas vezes as propostas dos call for papers não têm relação com tópicos com os quais o(a) pesquisador(a) vem trabalhando há anos e que, diante dessa falta de espaço qualificado, a supervalorização da publicação em periódicos deveria ser redimensionada. Nessas condições, não há como negar que as pressões produtivistas ou então, o produtivismo, versão brasileira do publish or perish da academia norte-americana, induz a distorções no quesito da qualidade, com a publicação de textos de ocasião, com o uso do expediente de coautoria, na contramão das práticas da área, particularmente dos estudos literários, e com a proliferação desmedida de periódicos para canalizar uma produção de mérito questionável.

No texto “Letras e Humanidades depois da crise”, Alcir Pécora (2015PÉCORA, Alcir (2015). Letras e humanidades depois da crise. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 30., Universidade de São Paulo, 6-8 jul. Palestra. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/koK14F . Acesso em: 10 out. 2015.
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) oferece uma narrativa sui generis na qual o percurso de vida acadêmica pessoal imbrica-se em uma crítica - ácida e ao mesmo tempo bem-humorada - às transformações da universidade cristalizadas na palavra “mágica” gestão e na adoção, pelas Humanas, do discurso dissimulado da eficácia e da cientificidade para tratar de questões que não admitiriam tal linguagem calculável. Na visão do docente, as Humanas abdicaram de sua identidade pressuposta na tradição de erudição e autonomia do conhecimento, “modelo chave da pesquisa nas Humanas,” para adotar uma nova identidade forjada pelo modelo das Ciências Exatas, integrando-se, assim, ao movimento de transformação da universidade em sua luta por recursos externos. Nesse sentido, considera o interesse das universidades por bolsas de docência na pós-graduação concedidas por agências estatais como forma de obter mão de obra barata. Todavia, por outro viés, seria possível considerar o acesso às bolsas uma maneira de transferir aos alunos de pós-graduação as atividades obrigatórias de ensino, de modo a desonerar os docentes de carga horária para poder produzir os textos que, uma vez publicados, irão render dividendos para o programa de pós-graduação. A questão é que não somos pesquisadores que “casualmente” exercem a docência, somos, a princípio, professores envolvidos com a formação e a qualificação de recursos humanos na área do ensino. Quem não lembra a última janela em que marcamos o setor ao qual nossa produção está vinculada cada vez que alimentamos o Lattes com dados referentes à produção bibliográfica? O marcador “educação” pressupõe um compromisso com a dimensão pedagógica de nosso fazer. Ter consciência desse compromisso significa assumir que o conhecimento está a serviço de um bem maior do que um currículo Lattes inflado. Nesse sentido, torna-se imprescindível um reajuste de visão, uma tomada de posição com relação aos efeitos colaterais de uma identidade territorializada, ou pelo menos cindida, entre o ser e não ser, entre assumir e lutar pela nossa diferença ou abdicar de uma identidade própria e se render aos critérios da homogeneização. Se, como diz Pécora (2015PÉCORA, Alcir (2015). Letras e humanidades depois da crise. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 30., Universidade de São Paulo, 6-8 jul. Palestra. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/koK14F . Acesso em: 10 out. 2015.
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, p. 11), o aparecimento das agências de fomento e seu poder decisório sobre a política científica das áreas é “o anúncio do fim da universidade enquanto entidade autônoma”, o que nos resta é lutar contra a corrente, porque “navegar é preciso,” e ainda há tempo. Tempo para resgatar nossas energias de rebeldia e de resistência à violência do “monismo epistemológico” (Mezan, 2007MEZAN, Renato (2007). Sobre pesquisadores e andorinhas. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Mais 29 abr. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/TGrn0F . Acesso em: 30 set. 2015.
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) que induz ao adestramento do pensamento crítico e analítico. A responsabilidade do pensamento, segundo Derrida (1999DERRIDA, Jacques (1999). O olho da universidade. Introdução e organização de Michel Petersen, tradução de Ricardo Iuri Canko e Ignácio Neis. São Paulo: Estação Liberdade., p. 156-157), implica a necessidade de despertar ou de re-situar uma responsabilidade “em um período de ‘crise’, como se diz, de decadência ou de renovação, quando a instituição está on the brink, a provocação para pensar reúne no mesmo instante o desejo de memória e a exposição de um futuro, a fidelidade de um guardião bastante fiel para querer guardar até a sorte do futuro, em outros termos, a singular responsabilidade pelo que ele não tem e que ainda não existe”.

Referências

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  • TRINDADE, Hélgio (Org.) (2002). Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis: Vozes.
  • 2
    Algumas dessas operações estão relacionadas, por exemplo, à utilização de analogias e metáforas, as quais podem encobrir certas informações para que uma descoberta científica seja afirmada ou, até mesmo, sustentar uma interpretação falaciosa, sem que isso coloque em risco a legitimidade do uso de uma analogia pela comunidade científica. Esse é o ponto desenvolvido por Nancy Leys em “Raça e gênero: o papel da analogia na ciência” (Leys, 1994LEYS, Nancy (1994). Raça e gênero: o papel da analogia na ciência. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.).
  • 3
    Refiro-me à teoria da seleção natural (Darwin), à teoria da eugenia (Galton), à teoria da biologia evolucionista (Vogt) e às teorias raciais baseadas na craniometria.
  • 4
    Em linha similar, a britânica Helen Small (2013SMALL, Helen (2013). The value of humanities. Oxford: Oxford University Press.) defende o trabalho nas áreas de Humanas como sendo uma das práticas que reflete sobre as formas de construir sentido no campo da cultura e agrega, a esse trabalho, um forma distinta de conhecimento e compreensão que, necessário à sociedade sob muitas perspectivas, permanece na contramão do valor de uso instrumental.
  • 5
    Essa concepção é desenvolvida em seu livro anterior, The death of a discipline (2003SPIVAK, Gayatri (2003). The death of a discipline. Nova York: Columbia University Press.), em que, ao discutir a morte e a sobrevivência da literatura comparada, Spivak formula o conceito de uma comunidade por vir.
  • 6
    Refiro-me a Paul Feyerabend, autor de Contra o método (2007FEYERABEND, Paul (2007). Contra o método. São Paulo: Editora da UNESP.).
  • 7
    Ver, nesse sentido, as reflexões de Jürgen Habermas em O futuro da natureza humana (2004HABERMAS, Jürgen (2004). O futuro da natureza humana. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes.).
  • 8
    Trecho de entrevista concedida à revista Adverso, da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ADufrgs Sindical), na qual o autor defende a criação de uma Lei Orgânica das Instituições Públicas de Ensino Superior.
  • 9
    Para uma leitura aprofundada dessas questões, ver Hélgio Trindade (2002TRINDADE, Hélgio (Org.) (2002). Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis: Vozes.).
  • 10
    Ver, nesse sentido, o texto de Terry Eagleton (2010EAGLETON, Terry (2010). Death of the universities. The Guardian, London, 17 Dec. On-line. Disponível em: Disponível em: https://goo.gl/hFqDoo . Acesso em: 7 nov. 2015.
    https://goo.gl/hFqDoo...
    ).
  • 12
    No artigo “Os limites do índice H”, Fabrício Marques menciona os perigos da supervalorização do índice H para fins de tomada de decisões de parte das agências de fomento, problematiza a questão do índice em termos de coautoria no caso de redes de pesquisadores, e alerta sobre a manipulação da autocitação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    Fev 2016
  • Aceito
    Ago 2016
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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